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) p L'!I) li co <..:s p<..: ra el os profissionais ela lite ratura qu I.; 111 "
IIH:11l1 quai s SflO os b o ns livros e quais são os mau s : qu e: OI'
Id g u c m , se pare m o jo io elo trigo, fixem o d mon e. !\ fun S.'{lo
d o c ríl ico Iite rá rio é , conforme a etimologia, e1 e cl a ra r: "!\ c lt o
qu <.: <..:s te livro é bom ou mau ." Mas os leitores, p o r exe mpl o
os d e c rô ni cas literárias ela imprensa cotidiana ou se m:ln :d ,
I!l Cs m o que n ã o detestem o acerto ele contas, se can S:11l1 do:'
Jul g am e ntos ele va lor que mais parecem caprichos , e gos l:lri:llll
qu e, a lé m disso, os críticos justificassem sua s prc.: f"e r0 11 c1n:l,
:d'irmanelo, por exemplo : "Estas são as minhas ra zt>l's I.: s. 11I
ho as razões ." A crítica eleveria ser uma avali ação ~lrg llIlH · I\l.ld . 1
Mas as avaliações literárias, tanto as dos espec i:llisl:IS <111 :1111 11
:IS el os amadores, têm, ou poderiam ter, um fun t bl11 VIII O 1111/"
li vo? Ou mesmo sensato? Ou elas nunca são se não jUlg: 1I1 1t'11I '"
s ubjetivos e a rbitrários, do tipo "Eu gosto, e u n:l() } '. llI oI ll "t
!\liás, admitir que a apreciação crítica é inexorave lm c lll v :11 111 /1 '
Liva nos conelena fatalmente a um ceticismo tol :" l' :1 11111
so lipsismo trágico?
A história literária, como disciplina univers itúria , IVIII II II
Iibertar-se da crítica, acusada de impressionista ou d og m(11 !t': I,
s ubstituindo-a por uma ciência positiva da literatura . I~: VV I'
dade que os críticos elo século XIX - de Sainte-Be uvl:, qu"
colocava Mme Gasparin e Tópffer muito acima ele Ste ndhal , :t
Brunetiere , que vomitava Bauelelaire e Zola - enga naram -s"
tanto a respeito ele seus contemporâneos, que um pou co ti "
reserva seria bem-vinda. Donde a proscrição, durante Illuiro
tempo respeitada, de teses sobre autores vivos, como se basta ss"
conformar-se ao cânone herdado da tradição para evitar a
subjetividade e o julgamento de valor. O julgamento tornou-se
secundário, ou foi até mesmo eliminado , em todo caso el e
forma deliberada , ela disciplina acadêmica, em oposição à
' 1'11 1<.':1 jOI'n :ill sl ll':1 OU :l t ' rll k '.1 (h' ,1111111 , !'( 'I\UIlt! \) :111 I 1'('\ H 1:lIl d ll :I/, 111 11 1111, di I" Ih 11 1" 1i I 11 111 11 I ItllI /1 1. 11 11" 1 111 '1 ,,11 .111 11" I ti 11\ 111 1'1 di
de..: c ríti cas que..: Al be..: rl Tl1 ih:lud l' 1 dI HIIIl ): ul :1. O v: II 01', p <.: I1 S: llll 11111 1111 1.11/ 1' I ) 1 ,11111 11 1' 11I'I 1t 1l1 1l 11 I1 II lIl d l ' III j( 'n lllgllll p .II ,1 , I
se us adversários, d e pende d e..: UIll :1 re..:: I<::IO i nd iv id u:iI : t:O I) 1I IlIl' I , IIIII ,1 11 11 1,('( 11 11. \ 1:-", (' !l0, ':1 11.1 . IM ( ' II /..)() tl n ... 1I:ldo ll.1" "'" 11111.,
cada obra é única, ca da indivídu o re age..: a e la e m I'un \':-Io ti .. 1 1' 1 ~ llltl ll (lI, HI.llld l'," l' .... nI IOI·L' . . se..: lo m :lr:I" ) o . . II vro l. . do ('~ pll l l ll
sua persona lidade incompará ve l. dll ll 1I ,I\·OI'S. ' 11\1 C:l 11 0 I1 t.: l' , p o is, n:lc io n:II (t:o mo LlI1 W I lj ~ I ( 1I 1. 1
Mas a oposição entre objetividade (cie ntífica) e s ubj e ti v i- ..In 111 I'I:lIu 1':1) , <.: Ic prom o v<.: os d :íssi t:()s nac ion:1is :10 n íVl.·1 tio,
d a de (crítica) é considerada pel a teoria como um e ngod o, e /
HII .'H" . . l' d o s 1:1 1in os, compõe um firmam e nlO di :lnlc..: do <lu :"
mesmo a história literária mais restrita, fixa d a unicame nte nos ;.1 I jlI VS I:IO da : I(.Imir:l ~· :io indi vidual ni1 0 se co loca l11ai s : St'll ,
fatos, repou sa a inda e m julga m e ntos de valor, qu a ndo nada 1I 111 11\1I1I t.: nl os rorm :lm um palrimô ni o, uma me mó ri a co ll' llv:l.
devido à decisão prévia, o ma is d as vezes tácita, sobre o que
constitui a lite ra tura (o cânone, os grandes escritores). As
a bordagens m a is teóricas ou descritivas (forma lista, estrutura l, N t\ SUA MAIORIA, OS POEMAS SÃO RUIN~,
ima ne nte), qu e ira m ou não, também n ão escap a m da avaliação, IVI t\S SÃO POEMAS
que muitas vezes é, a í, fundamental. Toda teoria , pode -se
dizer, envolve uma preferê ncia, a inda que seja pelos textos 1\ :lva lia çi1o d o s textos literá rios (sua comparação, s ua c l:! ss l
que seus conceitos des crevem m e lhor, textos pelos qu a is ela I k':1\'i1 0, s ua hi e rarquização) d eve ser difere nc iada d o v:ll or tI :1
foi provavelm e nte instiga da (como ilu stra a ligação e ntre os 111 l.·r:IlUra e m s i m esmo . Mas é claro qu e os dois p rob le mas Ii :l o
formalistas ru ssos e as vanguardas poé ticas , ou entre a esté- ,;: 10 ind e p e nd e ntes: um mesmo critério de valor (po r eX l'lIlpl o,
tica da recep ção e a tradi ção moderna). Assim, uma teoria () L's lra nh a m e nto, ou a complex idade, ou a obsc u rid :ld v, (H I .1
erige suas preferên cias, ou seus preconce itos, em universa is pu re za) preside, e m geral, à distinção e ntre te xlOS IIlv l,:,, 1111. I '
(por exemplo, o estranhamento ou a negatividade). Entre os Il'X lOS n ão lite rá rios, e à class ifica ção d os tex tos IIICI:' '' I'!
New Critics, dos qu a is muitos eram ta mbé m poetas, a valori- ' nlre s i. Não gostaria de voltar à n atureza e ~I run ~':I () (\ :1 I li 1."
zação da a n a logia e da iconicidade favorecia a poesia e m r:ll.ura (ve r Capítulo O. D e fa to, o filósofo Ne lson C ()()tllll illl
d e trime nto d a prosa. Em Barthes, a distinção entre tex to legível
'sc re v ia:
e texto escriptível, abertamente valorativa, privilegia os textos
difíceis ou obscuros. No estruturalismo, em gera l, o desvio
Devemos di stinguir muito claramente [... 1 a q ucsl:to ;' () 'tll l' I
formal e a consciência literária são valorizados em oposição à
arte?" da questão "O que é a boa a rte?" [, .. 1 Se CO Il1 CÇ: lIl1 W, 11111
convenção e ao realismo (ovelha negra da teoria, cujo resul- defi nir "o que é uma obra de arte" e m te rmos cl t! "o <t u\' (' ;1
tado irônico foi fa la rem dele abunda ntemente) . Todo estudo boa a rte", [.. .1 estamos definitivame nte perdidos . 1'0 rquI.: , IlIl v
literário depende de um sistema de preferências, consciente lizmente , a maior parte das obras de arte é ruim .'
ou não. A possibilida de e a necessidade de objetividade e d e
cientificidade vão ser, ao longo do século XX, questionadas, A g ra nde maioria dos poemas é medíocre, qu ase tod os os
como o fez a hermenê utica, até a exaustão. romances são b o ns p a ra serem esqu ecidos, mas nem por isso
O tema "valor", ao lado da questão da subjetividade do deixam d e ser p oemas, deixam ele ser romances. Uma m á inle r-
julgamento, comporta ainda a questã o do cânone, ou dos clás- pretação ela Nona Sinfonia, observava ta mbém Gooclman, 6
sicos, como se diz de preferência em fra ncês, e da forma ção arte tanto quanto uma boa ihte rpretação d essa m esma ob ra .l
desse cânone, de sua autoridade - sobretudo escolar - , de A avaliação racional de um poema pressupõe uma n o rm a,
sua contestação, de sua revisã o . Em grego, o câ none e ra uma isto é, uma definição da n a tureza e da função ela litera tura -
regra, um m o delo, uma norma representada por uma obra a acentu a ndo-se, por exemplo, seu co nteúdo ou, então , s ua
ser imitada . Na Igrej a, o cânone foi a lista, mais ou menos forma - , que a o bra considerada realiza ele m a neira ma is o u
226 227
1ll ~ Il O S :lpro prl:id:1. ÀSS II" , qUI '11I ,1111/1\11 v: tl OI' Ii 1()lIII:t 1111 '1:111 ,1, di 11 ',11 111 l ' lt · l, ['IIII,dllll l' II!.III!! () III H.J "pi' ll an 11:1 ,'1 11 ;1 III ! 111 .1, 1' 111
pro valve lm e nte co lo car{i ull1a I)()l'/, In J(r! C:I :lcl lll:1 tiL' 1I1\l:1 pov,., I:1 1_'H,"d" , lI!' i 1I 11 >'1 1111i1 "IHI. I" 0 11 " 11\ :1 " III VI':II\II ,I, ()h/l(' l v: llld (l di
did á tica e um romance s imbó li co : l c im ~1 d e UI1l ro m:II1 <"l' ti l' 1" 111 1 /. \ 1.1 H I ~ \fli l k. II,: , l () , À g l':1I1tk l',:1 111 <.: 1':'11'1:1 vx lg ll'l :1 ()\ II Il )/
idé ias (como Proust que, e m O 'r emjJo Nedescoberl o, se 111:1111 - I1,1(/ 1I W I'i <l1 1\' 11 :10 : lp <.~ I1 : I S a l'in :ili<.l ad e s<.: 111 !'im , logo, 11111'111 ,1:,
festava contra o romance patriótico ou popular), mas qu e m I'III IIS, (.'x lsll,; nt'i :lis, filo sófi cas, r<.: li g io sas e le. À I1l l,;S llI a d l.~
insiste para qu e a obra tenha um conteúdo human o jul g a , 1 1 /l ~' , l () n:t ['(: lla p(; lo po e l ~1 W. 11. Àud e n , o q u:" <.Iil'.i:l qU i' :1
sem dúvida, a arte pela arte, ou a arte "pura", ou a lite ratura /
prl llll'l l':1 qu <.:sl:io qu e lh e interessava, quand o li a Ulll pOC Ill:I, VI: I
sob coerção ("I'Oulipo"), inferior a uma obra densa d o p o nto It 'l' Ide:1 - "I':is uma m::íq u ina ve rba l. Co mo e la fu nc io n:1rI!
de vista da experiência nela contida, Recai-se, de imediato, na 111 :1,,, qll ~ s ua seg unda qu estão e ra, no se ntid o mais ~ll11pl (),
qu e rela sobre a hierarquia das artes, onipresente no século IIlm:tI : "Q ue espéc ie d e s uj e ito habita este p oe ma? QU I,; id ( I:1
XIX, Qu al é a a rte superior? Lembremo-nos da riva lidade ('Iv ,'i~ I'az da be la vida o u d e be lo lugar? E qu e id é ia do nl :tI
entre a esca la hegeliana, que coloca a inteligibilidade - logo a 111 )'.ar? O qu e e le escond e d o le ito r? O que ele esco nd e até (/ (; s i
poesia - no ma is alto patamar, e a classificação herdada de IIH.:S I11 0?" ~ OS mo d e rni stas e os formalistas, qu e julga m co nse J'-
Schope nhauer, que coloca a música (a linguagem dos a njos , :1<.I o r um p o nto d e vista como o de Eliot ou d e Au clçn , CIIl
segundo Proust) acima de tudo: esse dilema é também, prova- 1': IZfIO d e s ua ins istê n c ia no conteúdo literário, co nte nl:II11 -Sl',
ve lmente, um avatar.?a alternativa entre o gosto cláss ico e o ' 111 ge ral , com um c rité rio estético, como a nov id ad <.: ou :1
k a ntiana), m as a grandeza de um texto literá rio (uma vez complexidade ou a multivalência. A obra de valo r é a o hl :1
reconhecido como pertencendo à literatura) depe ndi a d e que se continua a admirar, porque ela contém uma plur:1I 1
critérios não estéticos: clade de níveis capazes de satisfazer uma variedade d e le it()I'l's ,
Um poema de valor é uma peça de organização mais compacla
ou, ainda, uma peça ca racterizad a por sua dificuld ad e o u
A grandeza da "literatura"- escreve ele em "Religi ão e litera-
obscuridade, segundo uma exigência que se tornou prim o r-
tura" (935) - não pode ser determinad a exclusivamente p or
p adrões literários; embora devamos lembra~-n os que o fato dial desde Mallanné e as vanguardas. Mas a originalidad e, :1
de tratar-se ou não de literatura só pode ser d ete rminad o p o r riqueza, a complexidade, podem ser exigidas também elo p o nto
padrões Iite rários. 3 de vista semântico, e não apenas formal. A tensão entre sentido
e forma torna-se e ntão o critério dos critérios.
Em suma, indagaremos primeiro de um texto se ele é pura e No final do século XIX, o escritor inglês Matthew Arnold
simplesmente literatura (um romance , um poema, uma p eça apontou como objetivo da crítica estabelecer uma moral social
228 229
! UIII :I lIluralll :1 COllll':1 :1 h:ll'i l.íll, ' d ,1 1111:11l 0Il cl :l, l ' d vi'lllill () 1 , 1'1 11 ,-", ' 11 '-1 , ;1 lI l1 lt: .1 1"1 ''' \,,1111(11 11 111 1) - :U' " 1,,,1>; 11' 111 1" ' "tI
~~tLJd o literá ri o , num impOI'I:llllv :Irllgo s O /)J'(.! "A hlll ~':'I () tI:! ,11 1. 11 , ' 111 1.1 1l lt 'tll tll /4 111.1 ,-' (' Iv d,,/,:t l'l:t :1 11I1 1IIt ,l tt :ti ' '''' ,I ,I
Crítica Hoje" (1864), como "uma le nlali va (k:s inl e ress: ld :1 d .. I lt l 1'\:\ IIIld ld .III I', ;1 1\': ('(' II () POt ll () ,
conhecer e ensinar o que de melho r se co nhece u e ~e pe nso u
no mundo" (a disinterested endeavour to learn and propap,ale
the best that is known and thought in the world) .' Para ess" lU IsAO I S I 'J~,(,J CA
crítico vitoriano, o ensino da literatura devia servir para c ul - /
tivar, policiar, humanizar as novas classes médias que surgiram
CO III O GC: ra rei Gc nc tte lembra , nu ma o bra rece nLe, I,C/ Ne/fI
na sociedade industriaL Muito distante do desinteresse no II(m /:'slbúliqll e IA Re la ção Esté ti ca] (1997), to mo 11 , o Be lo ro l
sentido kantiano, a função social da literatura era propor às
po r muil O le mpo co ns id e rado (d e Platão a To más el e Aquln o
pessoas interessadas em leitura que dessem uma finalidade
• :11 ~ as Lu zes) uma pro prie dad e objetiva das co i sa~. II UIl H.:
es piritual aos seus lazeres, e despertar nelas um sentimento
!'oi um dos prime iros a observar a diversidade dos julgam e nl o,';
nacional , no momento em que a religião não bastava mais . 'slé li cos segundo o s indivíduos , as épocas, as na ções, 1n:IS
Na França , durante a III República, o papel da literatura foi reso lve u d e ime di a to a imensa dificuldade que e le mesJI) o
concebido de maneira muito semelhante: esperava-se do seu k:v antava e xplica ndo a discordância dos julgame ntos eSlé
ensino solidariedade, patriotismo e moralidade cívica. O valor t i co ~ por sua maior ou menor justeza: em resum o , se Im lw '
,. '1/ da literatura, resumido no cânone, dependeria então da instrução nó s julgássemos corretamente, todos nós acharíam os IK:lm:
,li que os escritores se permitissem promover. Essa servidão foi o s mesmos poemas, e feios os mesmos poemas. A C dl/CO rir/
denunCiada na segunda metade do século XX, e mesmo desde Faculdade do juízo, de Kant, sua terceira Crfl ictl, roi () IV X111
os anos trinta , na Inglaterra, por F. R. Leavis e seus colegas de rundamental para se passar da tese da obje tivid:l (k: do 111 ,1"
Cambridge, que redesenharam o cânone da literatura inglesa (idé ia clássica) à tese da subjetividade, até mesmo !I d:I 11' 1.11
e promovera m escritores que abordavam a história e a socie- vid ade do Belo (idéia romântica e moderna): "O jlll g:III1 I' III '1
dade de modo menos convencional , mas não menos moral , do gosto, escrevia Kant, não é [.. .] um julga me nl o d () ('( )III " 'L
aqueles que Le avis chamava de The Great Tradition [A Grande me nto, conseqüentemente não é um julgame nto I( )!\ iI'() , 111 ,1
Tradição] (Ja ne Austen, George Eliot, Henry ]ames, ]oseph estético - razão pela qual entendemos que se u princípio li , 'l i 'I
Conrad e D. H . Lawrence). Para Leavis, ou ainda para Raymond minante não pode ser senão subjetivo."6 Em ouLr:IS p:i1 :1 VI .I ",
Williams, o valor da literatura está ligado à vida, à força , à segundo Kant, o julgamento "Este objeto é belo" não I,: xpllll " .
intensidade da experiência de que ela seria testemunho, à senão um sentimento de prazer ("Este objeto me agra (b ") (, 11.1 11
faculdade da literatura de tornar o homem melhor. Mas a reivin- pode receber nenhuma demonstração ou discuss~1O apo l:HI.I :
dicação , a pa rtir dos anos sessenta, da autonomia social da em provas objetivas. Para Kant, o julgamento esté ti co c: PUI':I
literatura, ou mesmo do seu poder subversivo, coincidiu com mente subjetivo, como o julgamento do deleite, qu e ex prilll l'
a margin a lização do estudo literário, como se seu valor no um prazer dos sentidos ("Este objeto me dá prazer"), dire l'e l1
mundo conte mporâneo tivesse se tornado mais incerto . temente do julgamento do conhecimento ou do julgam<.; nl o
Como d e há bito, apresentarei primeiro os pontos de vista prático (mora!), fundamentados, estes, em propriedades o bj <.; -
antitéticos, o da tradição, que crê no valor literário (na sua tivas ou em princípios de interesse. Subjetivo como o julga-
objetividade, na sua legitimidade), e o da história literária mento do deleite, o julgamento estético se distingue, e nLre -
ou da teoria literária que, por razões diferentes, imaginam não tanto, deste último por ser desinteressado, razão pela qua l KanL
precisar dele. Há, mais uma vez, toda uma série de termos que entende que o julgamento estético está interessado exclusi -
qualificam essa oposição: "clássicos", "grandes escritores ", vamente na forma (e não na existê ncia) do objeto. "O gosto é a
"panteão ", "câ none", "autoridade ", "originalidade" e também faculdade de julga r um objeto ou um modo de representa çã
"revisão", "rea bilitação ". Logicamente, o relativismo absoluto por intermédio d a satisfa çã o ou cio desprazer, de maneira
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23 1
dos tw er essa riu . C IHIIll:l - Sl' liv Ih·Ir! .1i I ()hJv l o dv lI1I1 :1 1:11 .'; : lll ~l
I" 111 111 11' 11 du 1111 11 \ It lll llti j () di ' 111 11 :llI tl gu I~ I II V llI O I' 0 11
" VII I
fa ção ."7 O Ik lo é , pois, s<..:cunt! :tl'l() , 11 :10 prill1 (j rlo : l'o nl'lln dlll
I di II q l) ! ' I1 111 (' 11 ) P l l d( ·I . ~l\': p t.: r vv II V I' ()
jU lg:1I1 H.: 111 0 do gos lO, ..
do-se o efe ito com a ca usa , e:s."c..: ( o nome qu e: SI.! (./ (j :1 UIll
111 )1111 ' .1/, dll \ ' I I ' l l ~' : I ,4 dv s<.; ns ibilitlad c..: nOl:ld as po r Ilu me . Mas
sentimento de prazer desinteressad o UI sua objetiva çJ o ou sua
I 111\·lvll.... :lo 1I1t1 v~' rs: 1I do jul game: nlo estético é co nfirm ada,
racionalização). Essa profunda revolução desloca o eSlé l ico
11J/1 Il lll 0S d c..: 1<:lnl , p<..:l o sensus communis estético, a p arti r
do objeto para o sujeito: a estética não é mais a ciência do be l,.,
dll ([ 11 :11 c ld:1 indi víd uo postula uma comunidade de sensibi-
mas a da apreciação estética, como já afirmava a sabedoria
/ Ild.ltl v l' nlrc os ho me ns:
popular e como dizia um provérbio inglês: Beauty is in lhe
eye of the beholder ("A beleza está no olho do espectador").
::Ida um julga belo - conclui Ge nette - aqu ilo que lhe agrada
No entanto, tendo estabelecido solidamente o subje tivismo ti \; mane ira desinteressada, e reivindica o asse ntimento unive rsa l
do julgame nto estético, Kant se esforçava por não deduzir : 111 no me, primeiramente, da certeza interior desse caráter desin-
daí uma conseqüência fatal para a noção de valor: o relati- Ic rcssado e , e m seg undo lugar, da hipó tese tranqüilizadora de
vismo do Belo. Procurava preservar o julgamento es tético do uma id e ntidade ele gosto entre os home ns.9
relativismo - reconhecido como plenamente subjetivo _
através do que e le chamava de sua "pretensão legítima " à o ra CiOC1l110 é claramente precano, porqu e Kant mos tro u
universalidade, isto é, à unanimidade. Quando eu e laboro :Ipc nas que o julgamento subjetivo do gosto pretende se r
um julgame nto estético, contrariame nte a um julga me nto do II(,:cessá rio e universa l, mas não, em absol uto, que essa pre-
deleite, pretendo que todos p articipem dele. Todo julgamento tc nsJo é legítima , nem, é claro, que é satisfeita. Kant, após
esté tico exige um consentimento geral: 'slabelecer a subjetividade do julgamento estético, tenta esca-
par da co nseqü ênci a ine lutáve l da relatividade d esse julga-
No que concerne ao agradável, ca da um decid e se se u julga- me nto; esforça-se desesperadamente por preservar um sensus
mento , fundamentado num sentim ento p essoa l e at ravés do 'olnmunis dos valores, uma hierarquia estética legítima. Mas ,
qual se diz que um objeto agrada, se limita, além disso, só à seg undo Genette, trata -se de um voto piedoso.
sua pessoa. Conseqü entemente, adm ite que ao dizer "O vinho
das Caná ri as é ag radável ", alg uém retifique a expressão, lem- Logo, um objeto não é belo em si. O va lor subjetivo é
brand o -lh e que d everia dize r: "Ele me é agrad áve l. " L.. ] A atribuído ao objeto como se fosse uma propriedade sua: Beauty
respeito do agradável, o que preva lece é o prin cípio : cada is pleasure objectified ("A beleza é um prazer objetivado"). 'o
um tem seu gosto particular (na ordem dos sentidos). Quanto Como se falou das o utras ilusões analisadas anteriormente e
ao belo, a questão é inteirame nte outra . Seria (precisamente o denunciadas pela teoria (as ilusões intencional, referencial,
inve rso) ridículo alguém que julga uma coisa a seu gosto pensar
afetiva, estilística, genética), pode-se, pois, falar de uma ilusão
em justificar esse gosto dizendo: este obje to [.. .] é belo para
mim. L.. ] Quando algu é m diz d e uma co isa qu e ela é bela , estética: a o bjetivação do valor subjetivo. Genette opõe a essa
a tribui aos o utros o mesmo prazer: n ão julga simp lesmente ilusão um relativismo radical, confirmando, de modo absoluto,
para si, mas para cad a um , e fa la e ntão da beleza como se ela o subjetivismo kantiano: "A pretensa avaliação estética" , afirma
fosse uma propriedade das coisas. 8 ele, "não é para mim se não uma apreciação objetivad a".11
Segundo Genette, um relativismo total decorre necessariamente
Essa pretensão universal do julga mento ("como se") está abstra- do reconhecimento do caráte'r subj etivo das ava liações esté-
tamente fundamentada, segundo Kant, e m seu caráte r desin- ticas . Portanto, não é possível definir racionalmente um valor.
teressado: visto que não é pervertido por nenhum interesse Um sensus communis, um consenso, um cânone, po de nascer,
pessoal, o julga mento estético é necessari amente p artilhado . às vezes, de maneira empírica e errá tica, mas não constitui
por todos (que são desinteressados como eu). Esse mo tiVei é, nem um universal, nem um a priori.
sem dúvida, muito idealizado, como se nada além do inte resse A atitude de Genette é coe rente: depois de ter refutado,
(a propriedade, por exemplo: um quadro que possuo é mais em nome da poética do texto, todas as outras ilusões literárias
232
233
:Of'f't! l1l(;s, um" Vl:Z a/):lnt! OIl :ld ,1 ,I 11i11'1':ll o logl :1 VIII pI'P Vl' II() I) I 1 ,I'i~kll 11'1 1111"-" Ild l' II II IIIH Ilo'l p :1I ,11 Iw,n:, I' I()dol ." .111 1\ ' I I i>t )V,', :
da estética, Ge ne tte e m pr(;cntk UIlI co m!):! 1(; :I n:í logo CO!)I/':I 111111 ' II Illtll l'l dll .t1 I ' 1I 11 1"vn. . :" , ~' IIII( ' () :lIu :" l: O l: 1l: !"Il O, ~\ Illr"
o valor literário e recusa as co n5cq Ci ê nc ias ú" ima s d o SlI bj< '. 11 1111' , 11 1' () /l lo ll,tI , (' Illl'~· :1 Ir: ldi ~· :- I () l: :1 o ri g in a lida t\(;, (; nlrC a
tivismo kantiano. Como a intenção, a repres e nta ção e le., 111 1111:1 t· () ('() III i' u(lo . 1':55:1 ap o log ia d o clássico é perfeita,
o valor não tem , segundo seu ponto de vista, nenhuma p e r! i- 11\'1I"v ll:t d ~' III : ti S p:t r:1 qu e suas costuras não ced a m com o uso .
nência teórica e não constitui, em absoluto, um crité ri o a ce i- it/ (; i:t l: o te rm o classicismo, não é inútil le mbrar, são
tável nos estudos literários. A linha divisória é, pois, d as mais / "" 111 0 rece ntes e m francês. O termo só apareceu no século
claras: de um lado, os defensores tradicionais do cânone, de {IX, paral e lame nte a romantismo, para designar a doutrina
outro, os teóricos que lhe contestam toda validade. Entre os d() . . l'l eocl:1ss icos , partidários da tradição cláss ica e inimigos
dois, um ce rto núme ro de posições me dianas, logo frágeis, (h ins pira ção ro mântica . Quanto ao adje tivo clássico, ele existia
menos defensáveis, esforçam-se por mante r uma certa legiti- 11 0 sC:c ul o XVII, qu ando qualificava o que merecia ser imitado,
midade do valor. Depois das Luzes, uma vez a baladas a ,.\.' rvir d e mode lo, o que tinha autoridade. No final do século
tradição e a autoridade, tornou-se difícil identificar os clássicos VII, d es ig nou também o que era ensinado em sala de aula,
com uma norma universal. Mas seria esse um motivo para kpo is , durante o século XVIII, o que pertencia à Antigüidade
cair num completo relativismo? Examinarei duas tentativas g rega e latina, e somente ao longo do século XIX, emprestado
de salvar os clássicos, duas maneiras de preservar um meio- lo a le mão como antônimo de romântico, designou os grandes
termo: em Sa inte-Beuve, entre classicismo e romantismo e, ·scritores franceses do século de Luís XlV.
num outro momento crucial, em Gadamer, cuja tese sobre o Primeiramente, a definição ideal de Sainte-Beuve - "um
valor, assim como a tese sobre a intenção, procura agradar a ve rdadeiro clássico", em oposição ao clássico falso ou inautên-
deus e ao diabo, ou seja à teoria e ao senso comum. I ico - é muito diferente da "definição corrente", que ele come -
ç·o u por lembrar: "Um clássico, segundo a d efini ção corrente,
(; um autor antigo, já consagrado pela admiração e com autori -
o QUE É UM CLÁSSICO? dade no seu gênero."13 "Antigo", "consagrado", "com autoridade "
são os três atributos que Sainte-Beuve de ixa de lado e qu e, di z
Num artigo de 1850, "Qu 'Est-ce qu 'un Classique?" [O que e le, vêm dos romanos . Ele lembra que, em latim, classicus e ra ,
É um Clássico?], Sainte-Beuve propunha uma definição rica e no sentido próprio, um epíteto de classe que identificava os
complexa de clássico. Considerava as objeções vindas do subje- cidadãos que poss uíam uma certa renda e pagavam impostos,
tivismo e do rel ativismo, e as rejeitava num longo parágrafo e m oposição aos proletarii, que não pagavam, antes de Aulu -
tão hábil quanto a manobra que lhe era necessá rio executar: Gelle, em Nuits Attiques [Noites Áticas], ter aplicado metafori-
camente essa distinção à literatura, fa la ndo de um "escritor
Um verd adeiro cl ássico L.. ] é um autor que e nriqu ece u o espí-
clássico L..], n ão um proletário" Cclassicus adsiduusque aliquis
rito humano, que realmente aumentou seu tesouro, que lhe fez scriptor, non proletarius, XIX, VIII,1S) . Para os romanos, os clás-
dar um passo a mais , que descobriu a lguma verdade moral sicos eram os gregos; posteriormente, p a ra o homens da Idade
não equívoca ou apreende u alguma paixão eterna nesse coração Média e do Renascimento , eram ao mesmo tempo os gregos e
em qu e tudo já p a recia conhecido e exp lorado; que mani- os romanos, ou seja, todos os Antigos. O autor antigo, consa-
I festou se u p e nsa me nto , sua observação ou sua inven ção , não grado como uma autoridade, pertence à "dupla antigüidade".14
importa de que forma , mas que é uma forma ampla e grande,
fina e sensata, saudável e bela em si ; qu e falou a todos num
Na junção, encontra-se Virgílio, o clássico por excelência, mais
estilo próprio, mas que é também o ele todos, num estilo novo tarde identificado ao Império, por Eliot, em "What Is a Classic?"
sem neologismo, novo e antigo, facilm e nte contemporâneo de [O que É um Clásico?] (1944), artigo que faz referência a Sainte-
todas as idades. 12 Beuve: n ão h á clássico, segundo Eliot, sem um império.
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S:tinl <..: -lJe uv<..: ai):llldoll:t VS~~ I dl ' lIltI ~':l P 11 :ll>lllI :tI (l o l'I :ú,s'ro , lo' , I,! (~III I I'1 ,111', 1111 111 1'1 "\ " d ,'vl' 111 /11 11 / /1/0/ " 111 " I\/;ri; \ f\l,! lll d,'[1I 1
porque o que lh e inte ressa (; o :ld Vl'lllo d <..: d5ss i<.:os n:ls 111 1,; 1':1 III} I l tI\ ,\/11I 1, ;1 (' l.dllil ild .I, l'vl d vllIl ' lI lI' lll l', p\' 111I1 It'/i jll; It :'I\'I!
turas modernas, em italiano, e m <"::-: I":lnhol é , po r fim , él\l 1'1':111l'0s. 1I C11t! l' IIt1 I'()/l, 1I \IIItHIH .I 11I l'l'I.·.·;SO I\·S , 1'111 pl'I'SI' II Ç I l' VIII r\III ~'rl ll
É assim que as noções de clássico e de tmdiçc7.o lorn :\ I11 - S" lu q \I\' IH' Vll :IIII :1V: I VIII :\() 1'() 1\l ~ 111 !co, ISIO (:, l' llI 1\ 1I1 ~':\ () d(
inseparáveis: "A idéia de clássico implica em si alguma coisa que 1I1 111 1~,.o . " () o nd l..' :1 tk:nnl ~':l o de Sainl <..: - Ik :uv <..: - I..' k: t\\VSIlI P
tem seqüência e consistência, que forma conjunto e tradição, qu e j'l1(1)\ IVs sl. . I:I, Ilbl: l':II - , :1 qu:t! n.:co ncilia a Iradiç;ão e :1 II10V:II,;:lu ,
se compõe, se transmite e perdura."1 5 Se o clássico é serial, / c, jlI V .... L· I1I ..: <..: o e le rn o, não se nd o no fund o muilO diC..: rl: ntv tI :1
genérico por natureza, e não é uma qualidade conferida a um 111 ' "1 11I:li s (":1!110sa "mo d e rnidad e" baude lairiana , l'o rnwl :ld :1
autor isolado (pelo menos desde Homero, o primeiro poeta, •tl WII1 S anos mais tard e , qu e pro pô e e xtrair d o el"ê me ro UnI :1
de início o maior, que obscureceu toda a literatura ulterior), :lll v di g na da Antigüidaele. Para Sainte-Be uv e , um c1:í ss ico ..
se clássico e tmdiçc7.o são duas palavras para a mesma idéia, 11111 esc rito r "qu e falou a toelos num estilo pró prio , ma s qu " li
então a questão inicial - "O que é um clássico?"- estava LIIIlh6 11l o de todo o mundo, num estilo novo se m neolog ismo,
mal formulada . Um clássico é um membro de uma classe, o elo I H )VO e a ntigo, facilmente contemporfmeo ele todas as i<.1:l tiL's" .
de uma tradição. Poderíamos ser tentados a denunciar nesse .;:tinle - Be uv e se entusiasma ao fim dessa longa fra se , na qu :tI
argumento uma apologia sub-reptícia da literatura francesa quis e ncerrar paradoxos demais num único termo - p:trlicul:ll '
que não tem clássicos como Dante, Cervantes, Shakespeare e . unive rsal, antigo e moderno, presente e eterno - , mas p!'Ot'lIl':1
Goethe, esses gênios proeminentes, esses cumes isolados, ho nestamente descrever esse processo singula r, a 1)(.:111 d I i',(" 1
cuja reputação é a de resumir o espírito das outras literaturas 'slranho, pelo qual um escritor, em quem seus le ito res o!'lgl,,:di'
européias, enquanto os clássicos franceses - assim diz o clichê viram um revolucionário, se revela, depois, te r sid o (11)) \'11 1111
- formam um todo, compõem uma paisagem unificada. Mesmo nuador da tradição e ter restaurado "o equilíbri o e m [11'1 IVI ' II , I
que essa justificativa da exceção francesa não seja a intenção la ordem e do belo". O tempada recepção é, po is, 1IIIl'I\ "ltI "
de Sainte-Beuve, este, antecipando o "clássico-centrismo" da :1 essa definição romântica, ou moderna, do cl:íss l('o , \ ' 1\ \.1 1
literatura francesa, que Barthes devia deplorar mais tarde,1 6 nado por excelência, segundo Sainte-Beuve, e l1\ MIII Iv ll' /
encontra no "século de Luís XIV", apesar da querela sobre os 'sse respeito, Sainte-Beuve cita longamente Goelh l', <lI\!' Il'lil
antigos e os modernos, o modelo incontestável dos clássicos :ionava a grandeza de um escritor com o se ntid o tI () 1\ lill ,1\'
compreendidos como uma tradição: "A melhor definição é o lhoso renovado a cada vez que se redescobre o l1l eS II\( ) Il'x ll.l
exemplo: desde que a França teve seu século de Luís XIV e um clássico é um escritor sempre novo para se u \<..:il OI',
pôde considerá-lo um pouco à distância, ela soube o que é ser Sainte-Beuve é consciente da originalidade de sua conc..·L· pt,.':I( I
i~ clássico melhor do que por todos os raciocínios."17 Assim, ele clássico, em contraste com as "condições de regul :lrltl :ld l' ,
uma norma é legitimada. O clássico, ou melhor, os clássicos - de sabedoria, de moderação e de razão"19 habitualme nle reqll v
a tradição clássica, segundo a definição beuveriana - incluem ddas pelos acadêmicos e pelos neoclássicos. Ele recu sa "subo!'
por princípio o movimento, a saber, a dialética de Boileau e dinar a imaginação e a própria sensibilidade à ra zão" lll \.:
de Perrault entre antigos e modernos, com tal ironia que são citando novamente Goethe, reverte o sentido da polarid:td"
os partidários dos modernos, e não os dos antigos, que vão, entre clássico e romântico :
no fim das contas, substituir os antigos, tornando-se eles
mesmos os clássicos franceses. Considero o clássico sadio e o romântico doente . Para mim, O
Compreendemos, então, a quem Sainte-Beuve se opõe, pois poema dos Niebelungen é clássico como Homero; ambo s s:lo
sua definição de clássico é polêmica e contraditória: numa sadios e vigorosos. As obras de hoje são românticas não porqut:
palavra, ela é romântica, ou antiacadêmica. Ele desafia aber- são novas, mas porque são fracas. enfermiças e doentes . As
obras antigas são clássicas não porque são velhas, mas porqu"
tamente o Dicionário da Academia Fmncesa de 1835, em que 21
são enérgicas, frescas e saudáveis.
os clássicos são identificados como modelos de composição
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11 0/1 I I ~ !I' 11 11111" 11 11 111) 111 ' 111 1', . '/< 1>111 ,111 11 '/1 11'/1 11 ('11 1)(1\ ' 1,111 1IIII fl llllku."
Daí r~sLllta qLl ~, ~ 111 se u klllpO , 11 ,1 PI () !l( )I\ ':l O til.: I' U: IS l' ll v l i\ II I", i '/III '/I 11 ~t! 11 11 111 1' 11111 dlll ,lll k 1111 11 111 1I' II1PO i)-\ II \) I':ld l)~ I)()l' 11 6:4, <.:
os futuros clflssicos alle r3r~lttl e .'l lll'pt't: ~ nd ~ rat11 os d no ll l.,;.'l tia '1 11. ' 111. ' 1\1 111 , I ,I !III H' III l' k :; , p :II':1 li SO d u:; :ll1li gos p ovos (\ :1 ÁS i ;I ,
beleza e da conveniência. Só os c:I :íss icos no se nLid o ; 1("; 1t! I' I HI I Il' I:11l 111 1\, 11:1,1:< v Vt ' III: l'; I(\ ;IS, o s P 0 cl ;I S Vall1liki c Vya sa, d os
mico, sensatos e medíocres, são imediatame nte ace itos pe lo I I\ III ~ , t ' 1,' I l'd o ll:; I, ti os p e r sas ."
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'oclh u é l1 ov: lnl c nl u t'l 1:1t! IJ , S; tl llI v I h:uvc I'VI':iY, dll : I ,~ d,i . ( 111111 111 .1111111 II I ,I'. lill l'III I'.1 1,',11 II!I 1I I.I \ ;lfl di " .111 111,,') ",_, ,11 '.
três c itações cio poe ta, cuja tI :II :1 \.: I W;O, mas CSS: IS (' 11 : 1 ~'(kS .1, 1111111.1 ·I~dl (1 /1. 11111-, I' !I Ili lll ,) III I!!! 11 111' 111 1' . ,", ~;. illIll ' 111 ' 11\1 '
soam diferente e lh e permite m uni rec uo . O Parnaso é :t1lld :1 11 \1' ,III1I HII t! n l.I\" IIII !' 11111:1 IIIIIv X: \11 dlkll' llI v , Nu ,IIII }',II Ik
descrito como uma paisagem pitoresca e cômoda, o n(/ u os IlI'i () , !I t · I ~ I I . ~, lrtl , /VIoll v rv p:lrtl n d:lrlll c l)( L:, \.: 1':1 l': II':IClvl'l:t:ldll
minores ta mbé m têm seu lugar, cada um seu Kamchalk~l, ma s IHII 1' 11 :1 Il :lllIrL'Y,: 1 !Ill pre vis!:\. /VI :IS, na :lul :1 d L: IH"iH, :1 rl': l ~v ti "
Sainte-Beuve desconfia doravante dessa ima ge m rococó: I :111' 111 1: I: l'0 l1lprl'c ndid :1 co mo se <.:Ia :Ilribuíssc S: llld c :IS IIIL"
"[Goethe) a mplia o Parnaso, escalona-o L..); torna-o semelhante, / I';III II':IS r l(tss iC: ls d ev id o ao falO d e essa s lil c r:tlur:ls l'S I:lI'V III
semelhante demais, talvez, ao Mont-Serrat, na Catalunha (ess 1i " 11I pk:no :Ico r<.! o C harmo nia co m sua é p oca, co m su u QU :I<1 1'1l
monte m a is d e ntado que a rredondado)."31 Com essas três lI()rl: iI , co m os princípios e os pod e res dirige ntes da soc i (;d : l ~ k ".1
palavras - "semelhante d e m a is , ta lvez" - , dentre as quais IIIL'r:tlura cl::íss ica (: e se sente ~I vontade, e la "não se I:III WI\I :I,
dois advé rbi os acentuam o excesso e a dúvida, Sainte-Beuve 11 :\0 gu me, não se entedia. Algumas vezes vai -se m:li s IOIl IW
agu ça suas restrições ao unive rsalismo de Goethe: 11 :1 d o r, mas a b e leza é m a is tranqüila." A b e leza ~ s6 1Id :l,
Ii1'111 e , legítima; e la ig no ra o spleen. A temporal idade d o clrtss lc()
Goethe, sem seu gosto pela Grécia, que corrige e fixa sua indi- 11 :10 (: mais a d e 1850, defasada em rela ção ao seu pr6 pl'Io
feren ça, ou, se se prefere, sua cu riosidade unive rsa l, p oderia Il'mpo; mas Sainte-Beuve a descreve agora em te rm os (k r:lc lo
se perder no infinito, no ind eterminado: de ntre tantos cumes l1ais, respe itáve is e medíocres, termos de qu e, o ulro ra, :w
que lhe são famili ares, se o Olimpo não fosse ainda seu cume mantinha a distâ ncia: " O clássico L.,) inclui, e ntre () I1tí lll l ' !t1
de predileção, ao nd e iria e le - aonde não iria e le, o mais I<.: s uas características, amar a pátria, o seu te m po , 11 :1n \'C I
aberto dos home ns. o mais avançado do lado do Ori ente?32
nada mais desejável nem mais belo." 36 O crítico n:IO 1:1:1. 111 ,11 :
:tlu são ao futuro para resga tar os grandes esc ril ()I'~' S d l'I.I! I
Sainte-Beuve absolve Goethe porque, apesar de tudo, o ele- nh ecidos de seus contemporâneos, e o cláss ico, p:lc tll t (I, IH' III
m e nto clássico dominava ainda seu espírito, mas, perante os adaptado a seu tempo , contente consigo e co tn S\I .I \'1" 11 ,I,
jovens normalistas , o Oriente torna-se um lu ga r de perdição: n ão compromete mais sua posteridade. A rel"c r0 I1 c l:l, d l"I"I11
"Suas peregrinações em busca das variedades do Belo n ão vez, é exclusivamente ao passado, e a devoç;lo 1'0 111 :) 111 11';1 li
teriam fim. Mas ele volta, mas ele se assenta, mas ele sabe o e le dirigid a é o sintoma de uma doença: "O ro mnl1l l\'11 11' 111
ponto de vista de onde o universo contemplado a parece e m nostalgia , como Hamle t; ele procura aquilo que n:IO 1(' 111 , .11 1
sua mais bela forma. "33 E esse ponto fixo, esse cume m a is alto p a ra além das nuve ns [... J. No século XIX, el e adora :1 Id ildl '
que todos os outros encontra-se, evidentemente, na Grécia, no Média; no XVIII, ele já é revolucionário como Rou ssl':llI ,""
f" ~: Soumion cantado por Byron:
melancolia de Rousseau s ugere que uma aspira ç~lo revo lll t" 1(1
nária remete a uma utopia das origens. E o parale lo c nll'V 1i
Place me on Sunium 's marbled steep. saúde clássica e a agonia romântica desemboca numa otiL' :t
(De ixai-me nas encostas de mármore do Soumion .) "nossa b e la p á tria", "nossa cidade principal, cada v ez Illa I...
magnífica, que nos representa tão bem"38 -louvor compar::ívc l
Introduzindo a famosa "Prece sobre a Acrópole" em seu ao qu e Baudelaire fazia a Paris, por exemplo, em "Le Cy g nc ",
Souvenirs d'Enfance et dejeunesse [Recordações da Infâ ncia e no decorrer dos mesmos a nos - , num sonho de "eq uil íbr io
da Juventude) (1883), Renan descreverá ainda o "milagre grego" entre os talentos e o meio, entre os espíritos e o regime socia l".;\')
como "uma coisa que só existiu uma vez, que nunca fora vista A visão do valor do clássico é, assim, muito clife re nt "
antes, que n ã o será vista mais, mas cujo efeito durará eterna- daquela primeira conversa: mostra-se quase antagônica "
mente, quero dizer, um tipo de beleza eterna, sem nenhuma muito mais próxima do clichê escolar sobre o classicis m o ci o
mancha loc a l ou nacional ".34 Comparado a esse idea l, o Grande Século, do nacionalismo lingüístico e cultural promo-
exotismo não é mais oportuno. vido pela UI República, esse "clássico-centrismo" mesquinh o
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24 1
d e nun c iad o po r 1J:lrllt t::-; . S:i11l1 1' III 'iIVl" ()sei l:1 l" llIl l' () III )l'I.1 .. 111i1) I ~ IJ III I IIII I , ,. 1'11 h 1i 11 1,11 111 111', 11 11 ', 111 11 IJI II 1 111111.1 11
lismo e o auto ritari s mo , co nl'o n1l 1: (.'SC I'(.! vt: p:lra :1 II1IPI\ 'I1 . . :1 11:1 , ;1j"lH 'o'i\· liI .1 111.1 11111 IH' II'I II IIH' I.t1 , 111 .111111 pvtl Jl tl ng lll,11 111I
ou se dirige aos estudantes, p o is o cláss ico st: ddin c sC lllpr" l,wh wlltl l) di' 111I1 J'J 1(,>s() l'o l'() lll l' lll!ln rnlll'() r OIII () (;:1 <1:11111'1,
pelo uso que se faz dele . No primeiro texto , o p o nto d t: viSla 1111'1 0I 1i() <j lll' P:lI l\ ': 1 111:ll s (..'o lnpli t':ld o L' :ll>slr:llO , l1 ;lo ,.. , II I!
era o do escritor, para quem os clássicos, na s ua dive rs icl acl t: , rillld !), Illllll O d ll'l: l'(.; l1ll: . O o bj t: li vo é () l11 t:s 111 () : sal v:lr () r nll () lll '
na sua originalidade, no seu frescor incessante, se rve m cI 11,1 .111:1rq li 1:1. No séc ul o XIX, co m a a:-;cc n s ~I O d o h iSlo ri r ls lll () ,
estímulo; mas, na Escola Normal, é o professor quem fala, e o / 1'01i.',1:1I :1 C :ld :1111(: 1', o "cl :Í:-isi co" , alé e ntão noção a p~1 rc nl L' llI l'll1 ('
critério de valor não é mais o mesmo: não é mais a admira ção Ill vlllj)o r:t1 , co meço u a d es ig nar uma fa se histó ri ca, um cSlll o
fecunda do escritor-aspirante por seus predecessores, mas a Itl s l() ri co , COI11 um iníc io e um fim ass inaláve is : a J\nti g Did :ld· '
aplicação da literatura à vida, sua utilidade na formação dos d .lss ic l. No e nlanto, segund o o mes mo fil ósofo, esse: <ks li z:1
homens e dos cidadãos.
Il ll' nl o d e se ntid o não te ria comprome tido o va lo r no rm :lli vo
: .<; upra -hi s tó ri co do "clássico". Muito ao contrário , O hi slo rl
'ls l11 o te ria e nfim permitido justificar o fato ele um estil o Itisl()
SALVAR O CLÁSSICO 11<:0 le r se tornado uma norma supra-histórica, e mbo r:l, : II ' ~
'1II iio, o cará te r desse estilo normativo tenha se mos lr:ld ()
A reflexão de Sainte-Beuve sobre o clássico, isto é, sobre o :Irbilrário. Eis como Gadamer opera esse restabe lec il11 <': J1l o :lgl l
valor literário, é exemplar pela tensão, ou mesmo pela contra- 'xplica como o historicismo pôde relegitimar o cI :íssil'() :
dição de que é testemunho, entre os dois sentidos que a
palavra adquiriu pouco a pouco a partir do fim do século o pensa me nto histórico queria faze r crer q ue o jUl g:IIII I'1I1 1I d,;
XVIII: os clássicos são obras universais e intemporais que valor qu e identifica algo como "clássico " se ria vc rd :ldv1r ;III I1 ' 1I1 1
constituem um bem comum da humanidade, mas são também, anulado p ela reflexão histórica , e sua críti ca do.; 10(1 :11- 01 ,'1 11111
na França do século de Luís XIV, um patrimônio nacional. cepções teleológicas do curso da históri a, ma s ahso l\ll.lIl lI 'II II '
Assim, Matthew Arnold, universalista à maneira de Sainte- não é assim. O julgamento de valor prese nl o.; no cO!lVl '111I di
"clássico" ga nha, ao contrário, com uma tal c ríli C:l, \1111 .1 h'H II
Beuve, tem a reputação (má, em nossos dias) de haver fundado
mação nova , sua verdadeira legitimação: é cl (lss ico Ili do ( 11 11' /11
o estudo escolar e universitário da literatura inglesa sob uma mantém fre nte à crítica histórica, porque sua fo rça, qll v 111111111
perspectiva moral e nacional. Tal como o entendemos desde camente subjuga, a força de sua autoridade, que se tr:ll1sln llV (' /11 ;
o século XIX, o classicismo apresenta, ao mesmo tempo, e com conserva, ultrapassa toda reflexão histórica e assim pCrI1WW\'i' . '11
'1 ' 1
l~:!
o mesmo peso, um aspecto histórico e um aspecto normativo;
é uma associa ção entre razão e autoridad e . Sainte-Beuve Assim, apesar do historicismo e depois dele, Gadamer rec upl.: r:1
reproduz uma argumentação freqüente desde as Luzes, com o conceito de clássico para qualificar precisamente a arl<.: qll "
a qual se tenta, apesar do relativismo do gosto, doravante resiste ao historicismo, a arte que o próprio historicism o l't:C()-
reconhecido, legitimar a norma através da história, a autori- nhece como uma arte que lhe opõe resistência, o qu e ate sl ;1
dade através da razão . Daí esses dois textos divergentes em que seu valor é irredutível à história. Reexaminado, o cláss ico
função do público ao qual se dirigem: numa palestra, Sainte- não é apenas um conceito descritivo, que depende da co ns-
Beuve se faz o apologista de uma literatura mundial , na qual ciência historiográfica, mas uma realidade ao mesmo tempo
a imaginação tem seu lugar, mas, numa aula, ele defende a histórica e supra-histórica:
literatura nacional em nome da razão. O desafio para amadores
ponderados como Sainte-Beuve e Arnold, ou mais tarde T. S.
o que é clássico é subtraído às flutuações do te mpo e às variações
Eliot, consiste em encontrar uma forma de justificar a tradição de seu gosto ; o que é cl ássico é acessíve l de uma mane ira
literária depois de Hume e Kant, depois das Luzes e do roman- imediata [... l. Quando qualificamos uma obra como "clássica",
tismo. Sainte-Beuve, como alguém que recusa denunciar o é muito mais pela consciência de s ua permanência, de sua
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U (;( 1111 '1.: 11 11 di I I ,í ~~ lul :l ti'l l lll I t' l1l.lll1 11 111, I: 11:111 d l l ll ll llll l,11I11
sig nifi caç:i o Ill1p(.; l'(.:dvl:i , IlId l ' p l ' lI l k' lIl ~' d v qu :dqu v l' 1'111'1 111 11
tânc ia tempo ra l - nUllla (,;s pú 'k dv pl'I..:S(.; II ~': 1 1I1I I..:III po r:lI , CO IlI (' 11l
jH:k, 11 .1\'1. 1 lli d ll ,
Itl ll l f ll lll tl ll lll 111\ rll "ll tl ll )\ I X, 11.111 11 1\1 11 ' 1I q \ l l '
p o rânea de todo prese nle," I tll~ ItI . ,I()I 11'11111 \ ' 1111 '
1; 111 [1 11, 1'!I I\ ,', III I ' I ;l d o \1111.1 IH )I'I" :I I VVI' IIH I I-i V
j'l l l d u, I:~ I : I V: I pl( )I\11 1 p:II':1 :t VX ll' l\s:10 urtl v\.' rs: tI qu e Il v)',v l
Essa última expressão não deixa de lembrar Sainte-13e uv <.;, /\ 11 1\' ,111'I\)u lrl :l: svg llnd o I k g<.; l, todo (.\<.;se l1 vo lvit11 <.: nt o <.: sll' II!'1)
I pl l' 1< 1111:1 ,SU:I unid :t<.k: d I,; um lelos im:lne nt e ll1 <.; rece () I\ (l lll "
palavra clássico tem duas acepções, uma normativa e o utra
temporal, mas elas não são forçosamente incompatíve is. Ao 111' ('1(ISS il'O, I,; n:lo ap e na s a AnLi güid:ld e cláss iGI. O cO I\ ('(,; lt o
/
contrário, pelo menos segundo Gadamer, o fato de o clássi co '1lIlllIWll vo uni ve rsal LOrna -se , atra vés de sua reali i'.:I ç~10 IIl sto
ter se tornado o nome de uma fase histórica determinada e ti !':! p:\ rt ieula r, u 111 co nce ito ig ua Ime nte u niv e rsa I na 11 1st() rI :1
isolada salva a tradição clássica da aparência arbitrária e injus- lo ,'" l'stil os. O clássico designa a prese rva ção atrav6 da ru ín:t
tificada que poderia ter até então, e torna-a, por assim dizer, In te mpo. É c\ (\ss ico, segundo Hegel, "aquilo qu e é par:\ s i
aceitável. Pois "essa norma é aplicada retrospectivamente a IIII.:s mo sua pró pria significação e , por isso, sua pró pria inl l' r-
uma grandeza única do passado, que a ilustra e realiza". Do prl,; t:l ção", pro posta que Gadamer comenta nos seguintes Lermos:
normativo extraiu-se um conteúdo que designa um ideal de
estilo e um período que cumpre esse ideal. É clássico, d efinitivamente , [, .. 1 o que fala el e tal 1l1:ln (,; ir:1 <[ll l '
Ora, chamando de "clássico" ao conjunto da Antigüidade não se r edu z a lima simples declara ção sobre :tl g UIll :1 l' ol ~ .1
que d esa pareceu Oll a um simples testemunho ele :tl gllnl:1 COI.',; 1 .t
clássica , retoma-se, segundo Gadamer, o que era de fato o
ser interpretada; é, ao contrário , o que em qualq u(,;r prn'l'III I' d ll
antigo uso da palavra, obliterado por séculos de tradição al g uma coi sa, com o se o elissesse unica m ente :r si Il1 I'HIIII i 11
dogmática ou neoclássica: o cânone clássico, tal como a Anti-
güidade tardia o havia instituído, já era histórico, isto é , retros-
Novamente, o fim dessa formulação se apro xim:I 11Hl ltt) d.1
pectivo; ele designava ao mesmo tempo uma fase histórica e
um ideal percebido posteriormente, a partir de um momento lefinição beuviana; entretanto, Gadamer nã o qU l,; r [ll'1tl l ' l 1I
de decadência. Assim foi para o humanismo, que redes cobria be nefício da passagem pela história e acresce nt :l qll l' " 11 'I IIt
o cânone clássico do Renascimento simultaneame nte como é 'clássico' é incontestavelmente 'intemporal', ma S IqII V\ ( '11/ •• 1
história e como ideal. Na realidade, o conceito de clássico intemporalidade é uma modalidade do ser h ist6 rk'o ", I\ AI J
teria sido sempre histórico, mesmo quando parecia normativo: mesmo tempo histórico e intemporal, historical11 e nt l' 1111 1'111
conseqüentemente, a norma teria sido sempre justificada, poral, o clássico torna-se, pois, o modelo admissíve l dv 11)( 1,1
mesmo quando se apresentava como um dogma autoritário e re lação entre presente e passado.
não como avaliação fundamentada. Não se pode imaginar procedimento mais habilidoso pnr:1
"\
A argumentação sutil de Gadamer acabou por fazer coincidir fazer o clássico coincidir consigo mesmo, como co nCl: lto
o sentido milenar de clássico, como norma imposta, e o simultaneamente histó rico e supra-histórico, logo in co nt <.;s-
conceito historicista de clássico, como estilo determinado. tavelmente legítimo, ]auss, contudo, que deve muito ~I he rt1l e
No primeiro sentido, o clássico parecia , sem dúvida , supra- nêutica moderada de Gadamer - ela está no princípio <.k:
histórico a priori, mas ele resulta, na verdade, de uma avaliação sua estética da recepção, como última tentativa para subLrair
retrospectiva do passado histórico : o clássico é reconhecido a interpretação da desconstrução - resiste a essa prestid i-
após uma decadência ulterior. Os autores definidos como clás- gitação final, graças à qual se salva o próprio clássico. ]auss
sicos constituem, todos , a norma de um gênero, não arbitra- não pede tanto, ou então, teme que esse furor em re sgatar
riamente , mas porque o ideal que exemplificam é visível ao o clássico denuncie o objetivo verdadeiro da hermenêuti ca
olhar retrospectivo do crítico literário, Portanto, o clássico gadameriana e comprometa a estética da recepção, que não se
teria designado sempre uma fase, o apogeu de um estilo, entre empenha em aparecer como uma última rendenção do dnone ,
um antes e um depois; o clássico teria sido sempre justificado, mesmo que esse seja seu resultado mais claro . De qualqu e r
produzido por uma apreciação racional.
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1'01'1)):1, Jau s,.; t'O ll k . . I:1 quI.' :1 n lll il II ItH IVI'll:l, IIl :II'l':id:1 l'SI'I' II I'i ;!I 111. 1'1 M t\ I >I ': I<I ':S A 1) ) I \ I 1':' 1'\ V I ~ I " I
me nte por s ua negalividad (:, pW'S:1 S~ all :IJ) I:11' :10 I,.7SqU l' 111:1
hegeliano, re tomado por G:l tI:!I11 CI', qu <.: (ksc l'~ v ~ :1 o hl':1 li " 111 1.1 Illllv , 11( '111 Itldw< l'S I:l() pro11I n,.. :1 :ldllll111' o I'vl:ll lvl:ll\l ll
valor como aquela que é em si mes ma sua p ró pria s ig nil'i c:l r: lo , tllI Il d g :IIII \.' II! (I d o gosto (,'0 1\\ SU:I co n s~ ql\ 0 n c i:l dl'a ll1 :illl':I : (I
Esse esquema não seria ele mesmo inspirado, segund o Ullla I 1'liI' lri ll l() qll :II)\ O :10 v: do l' lit ~ r:lri o. CI:íss icos S: IO c\ :ISSil'O:-':
circularidade que observamos muitas vezes, nas ob ras qu " d,'/,(\(' 1\ :1111 , S: lint ~ - l.k u ve, até Gadam e r, num <.:rOS: IS 1'01':1111 :11
Gadamer pre tende valorizar, ou salvar da desvalori zação, o u / Ii '11\.lll v: IS, um pouco desesperadas, para resguardj-Ios :1 qU:dqll l' I'
seja, as obras clássicas, no sentido habitual do te rm o, e m 11I l'<,,' O , p:lr:1 <.: viLar passar do s ubj etivism o ao re lativi sn) () ~ d n
oposição às obras modernas? 1l 'lntlv isl11 o ao a na rq uismo, Foi a fil osofia a nalíti ca, ~ m pl'ill
Para Jauss, essa visão teleológica da obra-prima clássica .- Iplo dcsco nriada e m re lação ao ceticismo a qu e co ndu ;t,ir:lIll :1
mascara sua "negatividade primeira" , a negatividade sem a 11\' 1'1 t)~ nêuli ca desco nstrutora e a teoria literária, que e mprt:~ntk: lI
qual não haveria a grande obra. Nenhuma obra escapa ao Ii \'111 Imo co mbate a favor do cânone. Genette faz o se u r~ l a l o
trabalho do tempo , e o conceito de clássico, herdado de Il lI g:l-o se ve ramente , Em termos não somente de conh ecilll <.: 111t
Hegel, é limitado demais para dar conta da obra digna desse I' de moral, mas també m de estética, os filó sofos an :d íllvw.
nome, em todo caso, da grande obra moderna . Aliás, esse ;~ m, um perigo niilista num relativismo resultante do SlIl>jl '
' 1· conceito depende demais, para isso, da esté ti ca da mimesis, tl vismo. Invalidando os critérios objetivos, os val o res \.'st:IV('\:,
i sendo que o valor da literatura e da arte em geral não está , :1 discussão racional, a teoria literária afastou-se da lingll:I)',\'111
ligado exclusivamente à sua função representativa, mas ")tidi ana e do senso comum, que continuam, (; nlrVI:III! () , ,I
provém tamb é m de sua dimensão experimental, ou "exp e- 'o mpo rtar-se como se as obras não contasse m e l)\ 11:ld:1 li( I
riencial " (medindo-se a experiência que ela proporciona), carac- Ju lgamentos que se fa zem a seu respeito, e a filoso l'l:l :11 1. 1111 11 ,
terística da literatura moderna, 44 O conceito de clássico em se dedica a explicar a linguagem cotidiana e o st:nso {'O I""1 1I
Gadamer, como em Hegel, hipostasia a tradição, ao passo qu e Mo nroe Beardsley, que havia outrora denun ciado :1 I I\I :I~\( I
essa não se manifestava ainda como "clássica " no momento inte ncional - que foi, por assim dizer, a certicl ão til' 11:1/11'
de seu aparecimento. "Mesmo as grandes obras literárias do me nto da teoria, pelo menos em solo americano - , tlc~' ldlll
passado não são recebidas e compreendidas pelo fato de 11 50 manter como ilusão paralela o julgamento do va lo r cstt'
possuírem um poder de mediação que lhes seria inerente", t ico. Ele tentou, pois , refazer, se não um objetivislll O, p<.: lu
salienta Jau ss .45 me nos o que ele chamou de instrumentalismo esté ti co . Por
um outro caminho, recai-se aqui na definição da obra co mo
I'
I 'I t~
'q ',!
1 Entretanto, se Jauss se separa de Hegel e de Gadamer
quanto à definição de clássico, e parece, portanto, colocar instrumento ou como programa, como partitura, defini ç;lo :1
I 'I
o clássico em perigo, o critério de valor alternativo que ele que se apegavam as teorias moderadas da recepção, a fim dr'
propõe também resgata o cânone. A própria negatividade, preservarem a dialética entre texto e leitor, entre coerção IJ
reivindicada pela obra-prima moderna, pode, retrospectiva- liberdade : se o sentido não está integralmente na obra, se s"
mente, ser lida nas obras que se tornaram clássicas como o tornava difícil sustentar o contrário, essa interpretação , o u
motivo autêntico de seu valor. Toda obra clássica contém, essa solução de compromisso (a obra é instrumento, programa ,
na verdade, uma fissura , o mais das vezes imperceptível aos partitura), permite afirmar que o sentido tampouco é inte ira-
seus contemporâneos, mas que não deixa de estar na origem mente da responsabilidade do leitor. Assim como é preciso
de sua sobrevivência . Não se nasce clássico, torna-se clássico, admitir que os julgamentos estéticos são subjetivos, não será
o que tem, portanto, como conseqüência, qu e não se perma- legítimo sustentar que a obra, como instrumento ou programa ,
nece forços amente como tal degradação cuja possibilidade não seria indiferente a esse fato? Afinal, sem obra não haveria
Gadamer procurava conjurar. julgamento.
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101 1111\ 1, '1"1 III I H,I I ~ I 111 11 1,1 di' 1lI '; ll lh h Y 1!lIIH 11111 ,-', l~ q~I \l 11I11I
I '; m J1 esl bel fCS: fJJ'O/)/('III S /11 111" I 'li flo,l'olll.Jy q/ (,','/11 cI,I' /1I 1I ':,~ I! ' 11111 ,\ 11 ,1)1, 11 111111 .tlII ,1 1'111 III IIH ) di) \ :11\!l liI ', 11111,\'1V. I 11 11 1', I 1I1 111'U I
tica: Proble mas na Filosof'ia d:1 Crit k :tI ( 19'5 8), um :1 Vl''/, :lprvsvll 1111 ' 1\1 1'1 1111 l'tll (' llw\ di ' v, do l' :-1 \1 :41\' 111 :111 0:1 1'0 1' Ik. lltI ",II'Y 11 ;111
ta das as duas teorias adve rsa s, o o bj <.: livismo de uni lad o , o dl'''(.I\'' ti l' 11'IIII II ,II' :lS 1I'{'os :lIll lg:IS ro ntll ~'()~'s tIL: ill' k Y,:1 Sq \\1I1t! 11
1111" :\14 tk Aqull\ o : 1 /l1 ( ',~ J'II(/S, COII SO /l(//lI/tI el c/ar/los: 1\ SV\I ,
liI
subjetivismo ou mesmo o relativismo de outro, 13eardsk:y rejdt:1
ambas e propõe uma terceira via. Afasta, da avalia ção est é t ica , fdll llll, l'SS:1 p ro xlntid:ld e leva à co nt"u sflo, e o o bj<.: li visll1 o , :\lIHI:t
ao mesmo tempo as razões genéticas (a origem e a inte nção d:1 I p I\' ('OI" o 1\0 lne d<.: inslrume ntalismo e dist"arç~l d o <.( 1)\ len l'i:1 d:1
obra) e as afetivas (o efeito sobre o espectador ou le itor), /
\I '\T p~':1(), p:lrece de finitivam e nte compro me tid o . I\li 5s , os Irn '
voltando-se para as razões fundamentadas nas propriedad es I 11I l' r1 oS COllluns ~I escolústica e ~I fil osofi a analíti ca teste mllnlt:lll l,
observáveis do objeto. O objetivismo restrito choca-se, eviden- Olll( ) .J ~IUSS provava a Gadame r, a permanê ncia do gosto d :íss!co,
temente, com a diversidade dos gostos, mas o subjetivismo I ', :Iss im , d e nun ciam uma pre ferê ncia extralite rária . l~ :1 ( 1)1':1
radical acarreta a incapacidade, em caso de desacordo, de arbi- d (lss ica, no sentido corrente, que é caracterizada po r il/ le,~ rll(/s.
trar julgamentos contraditórios (de avaliar as avaliações). Entre ((l l/so l/ cmtia et cict1'Uas, e é a experiência da obra <.:I:í ss it'!I
os dois extremos, 13eardsley encontra um meio-termo que batiza IlI e é d escrita pela unidade, pela complexidade e pe la inl e nsl
com o nome de teoria instntmentalista. Segundo essa teoria, o bd e. Contrariamente, a obra moderna contestou a unid :ltk ,
valor estético se mede pela magnitude da experiência propor- privil egiou as organizações fragmentárias e d esestrulur:ld:11
'1' cionada pelo objeto estético ou, mais exatamente, pela magni- o u , seguindo um outro caminho, atacou a complex id:ltk , p l ll
tude da experiência estética que ele tem a capacidade de propor- 'xe mplo, nas obras monocrômicas ou seriais. Os c ril ( ri o:, di'
cionar, segundo o ponto de vista de três critérios principais: a unidade, de complexidade e de intensidade, qu e i<.:lllhl':t l ll ,I
unidade, a: complexidade e a intensidade dessa experiência "t"o rma orgânica" elogiada por Coleridge e retomada ~'O lll () 11" 1
potencial. 46 Essas três qualidades permitem fundar - pelo menos g rama pelos escritores da American Renaissct l/ CC', 11 0 1, ( ' ( Idll
é a tese de Beardsley - um valor estético intrínseco, isto é, um XIX (Matthiessen, 1941), sào claramente confo rm es :\ I' ~HI · I I I. I
meio racional de convencer um outro intérprete de que ele está d o New Criticism, reivindicada por 13eardsley. U11l:1 d:I:1 (,\11,\
errado. Em caso de desacordo, poderei explicar por que gosto mais conhecidas produzidas por essa escola , dI.: CII',IIIIII
ou não gosto, por que prefiro ou não prefiro, e mostrar que há I3rooks, intitula-se The Well Wrougbt Urn [A Urna lk l1l I.:IVI,I\\ II\
razões melhores para gostar ou não gostar, para preferir ou não (947) e compara o poema a um vaso bem trabalhad o , :ld11111 .1
preferir. A referência à unidade, à complexidade e à intensi- velmente confeccionado, estável, cujos paradoxos e :11111
dade como medidas da experiência estética me permite explicar dades são resolvidos na unidade intensa : um vaso grego qll\'
I por que as razões pelas quais escolhi x e não y são I'nelhores proporciona uma experiência mensurável pela unidad e , pvl:t
\. ~;!i do que as razões pelas quais poderia escolher y e não x. complexidade e pela intensidade, e não um readY-11lClc/e dv
Assim, haveria, na obra, uma capacidade disposicional de Duchamp. O filósofo Nelson Goodman, já citado por sua re:lh l
proporcionar uma experiência; e a unidade, a complexidade litação do estilo, recaía, também ele, nos mesmos crité ri O."'
e a intensidade dessa experiência serviriam para medir o tradicionais de gosto, quando, procurando uma mane ira d e
valor da obra .47 Para livrar-se dos dilemas da teoria, a saída é escapar ao subjetivismo, suste ntava que os "três sintomas d :1
a recepção. Como Iser, para salvar o texto, como Riffaterre estética podem ser a densidade sintática, a densidade sem~tnti c:t
quando queria salvar o estilo, como Jauss para salvar a histó- e a plenitude sintática" .49 Ora, do modernismo ao pós-mod e r-
ria, 13eardsley recorre a esse remédio ambíguo a fim de ultra- nismo, os critérios de Tomás de Aquino e de Coleridge , d "
passar a alternativa entre objetivismo e subjetivismo. Entre Beardsley e de Goodman, não cessaram de ser satirizados .
texto e leitor, a obra-partitura é o meio-termo . Mas em que Face à alternativa entre objetivismo (hoje insustentável) e relati -
consiste essa capacidade viltual da obra? E como poderia nào ser vismo (para muitos, entretanto, intolerável), é surpreendente
ela uma propriedade objetiva da obra? Aliás, como concebê-la que sejam sempre os partidários do gosto clássico que procurem
de outra maneira?
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Ill1a improv1ívl.! l 1 l: l'cl.!i l'~1 VI. I, /1( ' 111 VI'I' qllV, !l()I' pl'il1('lplo , vl,l
exclui a arte 11l0de.:rna.
'I''' \
,tI _II ;1 1' 110 111 ,11" 11\ ,1 dll 11 ' 1111 111' ti 1)\11 .1 tl lJ tll ll lll , U /W II
1IIIllIlIl "" ,1 .I ·'~I I jl,1I 1.loIl1 1'lltI" III II:' 11' 1 I 'IIIII , III ~I I II U 111111 111 pl\l ll
k!PII'11.11 ;I 11111,1 qlll ' ,1)',I ,ld ,IV:I :1 lI lI l IHill lku l.lc ll (,111111 ,1 11 111 '
1IIII Iill d ly, 1. 1 ,'WI (Iv ' ·() ll . . llIll O o u ti l' dl vL' ll llll VI1I O) v , 111 V\·I. . :1
VALOR E POSTERIDADE 1111 '111, ', P:II':I : q )l'V~' I : lr l" r 0 l1 s:lgr:lr :1 ob r:l qUl: po r . . vl' dili l' i1 , \I
I ,,11I'V1f'() publi co rl: ie il:rv:1. Ik lOIll:rndo os e.:xl: mplos til' J:llI HS,
As duas teses extremas - o objetivismo e o subjetivi~lllo / II Ir Ir/r 11111' IJo/)(//yd eslro no u po uco a po uco FClllI/y , qu e.: <': 11('01111.1 ,
- são mais fáceis de defender, mesmo que nem ullla ne m II'p()is de Ulna ge.: r:l ç::io, o purgat ó ri o ou me.:s mo o infe rn o d :I,',
outra correspondam ao sensus communis, que demanda uma I11)I':IS "c ul in:'í ria s ", el e o nel e só os h istoriadores (os fi 16 Io!\os,
estabilidade dos valores pelo menos relativa. Todo compro- tI"pois os eS Le La s da rece pção) irão tirá- la para co nt ex lu :r1I y,:II'
misso, inclusive aquele que Kant aceitava, mostra-se frágil e ;1 o l>r:l-pri ma d e Fia u bert.
muito fácil de refutar. E, se Genette pode anunciar, com tranqüi- :Irg um e nto da posteridad e "restaurad o ra d e e rro s"
lidade, um relativismo estético tão intransigente, é porque '() 1I1 0 dizia Baucle laire - é o que Jauss aelota, cl e finitiv:III1l:III (· ,
ele não se pergunta nunca que relação há entre a apreciação \11\1:\ vez que re futou o conceito cle clássico segunel o Gn d:lIlll!l'
individual e a avaliação coletiva ou social da arte, nem por (:1 e.:s Lé tica cla rece pção é indiscutivelmente uma hiSlórla tI :1
que a anarquia não resulta efetivamente do subjetivismo. Se pos Le ridade literária), pois tal conceito satisfaz tant o :IOS p.1I ti
" a teoria é tão sedutora, é porque, muitas vezes, ela é também I:írios cio classicismo como aos do moderni s mo. Do plllllt I
verdadeira, mas é sempre apenas em parte verdadeira; e nem Ic vista clássico, o tempo liberta a literatura ci os raIsos V:I! (lII '!
por isso seus adversários não estão errados. Entretanto, conci- ·rê me ros, eliminando os efeitos da moda. Do ponto dv ,, 1001.1
liar as duas verdades não é, nunca, confortável. Ill o d e rno, ao contrário, o tempo promove os V(; rd :ld vllll,1
Por falta de argumentos teóricos, os observadores ponde- va lores, reconhece pouco a pouco autênticos c1úss icos 11.1 'I
rados, que se voltam para o subjetivismo do julgamento do o hras árduas que inicialmente não encontram p CIbl ico . N:1I1
gosto, mas resistem ao relativismo do valor que teoricamente Icse nvolverei essa dialética bem conhecida desd e sua Il1 sll
decorre dele, valem-se dos fatos, no caso, do julgamento da lu ição no século XIX: a doutrina do "romantismo cios c1:'íssico1"
posteridade, como testemunhos a favor, se não da objetivi- - os clássicos foram românticos no seu tempo, os ro mflnli t'o.'·
dade do valor, pelo menos de sua legitimidade empírica. Com se rão clássicos amanhã - , esboçada por Stendhal em Na c i 1/('
o tempo, dizem, a boa literatura expulsa a má. Est vetus atque e Shakespeare (1823) e retomada num sentido militante pe la s
va nguardas, a ponto de se considerar que é um mal s in :I!
I: ~~:j! probus centum qui perficit annos, "aquilo que atravessou cen-
tenas de anos é velho e sério", escrevia Horácio em carta a para uma obra e ncontrar sucesso imediato, agraciar a se u
Augusto (Cartas, II, 1, v.39), na qual ele defendia, entretanto, primeiro público. ;1 Proust afirma que uma obra cria ela meS I11 :1
os modernos contra a hegemonia dos antigos e já ironizava a sua posteridade, mas constata também que uma obra ex puls:1
poesia que supunha tornar-se melhor com o passar do tempo, o utra. Na tradição do novo, o argumento da postericlacl e le m,
como o vinho (Cartas, II, 1, v.34). Genette, que também não infelizmente , duas faces.
acredita nesse argumento tradicional, caracteriza-o e ridicu - Segundo Theodor Adorno, uma obra torna-se cl áss ica
lariza-o nestes termos : quando seus efeitos primários se amainam ou são ultrapas-
sados, sobretuelo parodiados .52 Segundo esse raciocínio, o
primeiro público se engana sempre: ele aprecia, mas por falsas
Passados os entusiasmos superficiais da moda e as incom-
preensões momentâneas, devidas às rupturas de hábitos, as obras razões . E apenas a passagem do tempo revela as boas razões,
realmente belas L.,) acabam se mpre por impor-se, de mod o as quais se elaboravam obscuramente na escolha do primeiro
que aq uelas que vitoriosamente passaram pela "prova do tempo" público, mesmo que esse não compreendesse a razão ci os
tiram dessa prova um selo incontestável e definitivo ele qualiclacle.íO efeitos. Adorno, diferentemente de Gadamer, não tem por
250 251
11111[1 1' !'~II I , .ld , ld l , '1 111 ' ,I 1'/II 'dl l' di' 1'.,ld u l\ tl l'líll OI\, II ,1 11111
o bJ e liv o ju stif'l c.: :lr :1 tr: ldl ~' :\ (I I I.I Wdl': I, III:IS :1 v x pl l r: I ~' ; lt l d ,l 11 1,1 IHI,I !l v, i! , A \ 1111 ,1 di' 11111',\ o llr:1 :to l'n ll (1 ll1':, o u Sll :1 ('lll ra da 11;1
mod e rnidad e pe la din â mi C;1 tI :1 Il l'g:ltl vltl:ld c o u tI:1 (k;Sf':1111111:i 1" 111 ,1 (\ u !vI Hlndl) 1Ii1 I! ',: II ( )1' IO 11:10 111<.; (.\:"1 0 n<.:nhuma garanlia de
rização: a inovação precede nt <.:, sug<.: re ele, só é co mpl'I..' l' I\(ild :t l'II' lll lt lnt k: , Sl.'g lll Hlo Coo<.l111an , "uma o bra po d e ser sucess i-
posteriormente, à luz da inovação seguinte . O ara stam e nt o 1)( ,1I111'1I1 1.: o r<.; ns iv: l, ra sc inante, confortável e entediante".53 O
tempo desembaraça a obra do seu quadro conte mpo râ neo I.: \1 'dl o t.:s pr<.: ita , quase se mpre , as obras-primas banalizadas
dos efeitos primários que impediam que ela fosse I id :1 la I jlur SU:I rece pção. Ou, então, as únicas autênticas obras-primas
como é em si mesma . A Recherche, recebida prime iro ~I lu z eb / n:\o os te xto s qu e jamais causarão tédio, como as peças de
biografia de seu autor, do seu esnobismo, da sua asma, d ~1
Mo li c re, seg undo Sainte-Beuve.
sua homossexualidade, segundo uma ilusão (intencional e
genética) que impedia a lucidez quanto a seu valor, encontra Na histó ria da arte, um ramo desenvolveu-se considera-
enfim leitores livres de preconceitos, ou melhor, leitores cujos vt.: lm c nte nas últimas décadas, permitindo apreender melhor o
preconceitos são outros, e menos estranhos à Rechel"che, I<.:slino aleatório das obras: a história do gosto. Sua premissa
porque a assimilação da obra de Proust, seu sucesso cres- inquie tante, formulada por Francis Haskell, seu mais eminente
cente, tornou-os favoráveis a essa obra ou mesmo dependem re presentante, é a seguinte: "Dizem-nos que o tempo é o árbitro
dela para ler todo o resto da literatura. Depois de Renoir, diz s upre mo. Eis uma afirmação impossível de confirmar-se ou
ainda Proust, todas as mulheres tornaram-se Renoir; depois de lesmentir [. .. ]. Também não se pode ter como certo que um
Proust, o amor de Mme de Sévigné por sua filha é interpretado artista arrancado do esquecimento não volte a ele."54 A história
u como um amor de Swann. Assim, a valorização de uma obra, lo gosto estuda a circulação das obras, a formação das gran-
uma vez começada, tem todas as chances de acelerar-se, pois des coleções, a constituição dos museus, o mercado da arte.
ela faz dessa obra um critério de valorização da literatura: Investigações semelhantes seriam bem-vindas na literatura,
seu sucesso confirma, pois, seu sucesso. mas os enigmas subsistirão. Um verdadeiro clássico seria uma
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É o afastamento no tempo que é, em geral, considerado o bra que nunca se tornaria tediosa para nenhuma ge ra ção?
I Não haveria outro argumento em favor do cânone a não se r a
como uma condição favorável ao reconhecimento dos verda-
deiros valores. Mas um outro tipo de afastamento propício à autoridade dos especialistas?
seleção dos valores pode ser fornecido pela distância geo-
gráfica ou pela exterioridade nacional, e uma obra é muitas
vezes lida com mais sagacidade, ou menos viseiras, fora das POR UM RELATIVISMO MODERADO
I fronteiras, longe de seu lugar de surgimento, como foi o caso
l~ti!, l de Proust na Alemanha, na Grã-Bretanha ou nos Estados Contra o dogmatismo neoclássico, os modernos insistiram
Unidos, onde o leram muito mais cedo e muito melhor. Os num relativismo do valor literário: as obras entram e saem do
termos de comparação não são os mesmos, não tão restritos, cânone ao sabor das variações do gosto, cujo movimento não
são mais tolerantes, e os preconceitos são diferentes, sem é regido por nada de racional. Seria possível citar inúmeros
dúvida menos pesados. exemplos de obras redescobertas depois de cinqüenta anos,
O argumento da posteridade ou da exterioridade é mais como a poesia barroca, o romance do século XVIII, Maurice
tranquilizador: o tempo ou a distância fazem a triagem; Sceve, o marquês de Sade. A instabilidade do gosto é uma
tenhamos confiança neles. Mas nada garante que a valorização evidência desconcertante para todos aqueles que gostariam
de uma obra seja definitiva, que sua apreciação mesma não de repousar em padrões de excelência imutáveis. O cânone
seja um efeito da moda. Certamente a Phedre de Racine relegou literário é função de uma decisão comunitária sobre aquilo
por vários séculos a de Pradon. A diferença parece estável. que conta em literatura, hic et nunc, e essa decisão é uma
Mas seria definitiva? Nada impede pensar, mesmo que a proba- self-fulfilling prophecy, como se diz em inglês: um enunciado
bilidade pareça cada vez mais fraca - desde que se instaurou
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midade , pois a decisão é, C Il1 1'1 1 1\1\,;1'1 1)1: 1, sc u pró pri o t'l' 11 ~ rI () . ( HI,IIIt! \'ll vs ptrlt o:1I.V v r lt'()rllr: lln'~ C0\110 sc cSlabelece m co nsensos
cânone tem o tempo a seu fav o r, a me nos qu e haja nx us: ls viu- \'1.1 I('I:ds 1,; 11\1'1.: :IS :1ui o l'id :lcJ es e ncarre gadas de zelar pela lite-
lentas, antiautoritárias como se conhe ceram també m, Icvand o 1.IIIIr: I '~ \':sses co nse nsoS, como a língua, como o estilo, se
à rejeição de valores já consagrados . É impossíve l ir ~tl é l11 II ' v~ l:tnl n:1 fo rma de um conjunto de preferências individuais,
deste depoimento: eu gosto porque me disseram assim . /
" rll es d e se to rnare m normas por intermédio de instituições:
;1 I.:sl'o la, LI publicação, o mercado. Mas "as obras de arte",
Mas a alternativa a que nos leva o conflito entre a te oria e
1'1l 1l1 0 le mbrava Gadamer, "não são cavalos de corrida: sua
o senso comum não é, novamente, rígida demais? Ou há um
IIIl :didad e principal não é apontar um vencedor".S6 O valor
cânone legítimo, com uma lista imutável e uma ordem rígida ,
Ilt e r{\I'io não pode ser fundamentado teoricamente: é um limite
ou, então, tudo é arbitrário . O cânone não é fixo, mas também
não é aleatório e, sobretudo, não se move constantemente. É tI :1 le oria, não da literatura.
uma classificação relativamente estável, e, se os clássicos
mudam, é à margem, através de um jogo, analisável, entre o
centro e a periferia . Há entradas e saídas, mas elas não são
tão numerosas assim, nem completamente imprevisíveis. É
verdade que o fim do século XX é uma época liberal, em que
tudo pode ser reavaliado (inclusive o design, ou a ausência
de design, dos anos cinqüenta), mas a bolsa de valores lite-
rários não joga ioiô. Marx formulava o enigma nestes termos:
I~ "A dificuldade não é compreender que a arte grega e a epo-
I! péia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social.
A dificuldade é a seguinte : elas ainda nos proporcionam um
gozo estético e, sob certos aspectos nos servem de norma,
são para nós um modelo inacessível."55 O surpreendente é
que as obras-primas perduram, continuam a ser pertinentes
para nós, fora de seu contexto de origem. E a teoria, mesmo
d e nunciando a ilusão do valor, não a lterou o cânone. Muito
ao contrário, ela o consolidou, propondo reler os mesmos
textos, mas por outras razões, razões novas, consideradas
melhores .
Não é possível, sem dúvida, explicar uma racionalidade das
hierarquias estéticas, mas isso não impede o estudo racio-
nal do movimento dos valores ; como fazem a história do
gosto ou a estética da recepção. E a impossibilidade em que
nos encontramos de justificar racionalmente nossas prefe-
rências, assim como de analisar o que nos permite reconhecer
instantaneamente um rosto ou um estilo - Individuum est
ineifabile -, não exclui a constatação empírica de consensos,
sejam eles resultado da cultura, da moda ou de outra coisa.
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