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ROBERTO PAES
1ª edição
Autores dos originais eduardo kenedy nunes areas (capítulo 1), ivo da costa
rosário (capítulo 2), mariangela rios de oliveira e ana beatriz arena (capítulo
3), bethania sampaio correia mariani e lucília maria sousa romão (capítulo 4),
vanise gomes de medeiros e silmara cristina dela da silva (capítulos 5 e 6)
Com a colaboração de daniela ferreira reis, flavia oliveira teófilo da silva,
jarcélen thaís teixeira ribeiro
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e
gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão
escrita da Editora. Copyright seses, 2013.
isbn: 978-85-60923-05-2
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Prefácio 7
A linguagem humana 10
Linguagem e língua 12
Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural 15
Aquisição da linguagem 17
Formas e funções linguísticas 21
Arbitrariedade 24
Iconicidade 25
A linguagem humana em ação 27
A enunciação 30
Função referencial x metáfora 32
Para concluir 33
Língua vernacular 55
Propriedades do texto falado 57
Propriedades do texto falado: a fragmentação 58
Propriedades do texto falado: a situacionalidade 59
Propriedades do texto falado: a reiteração 61
Propriedades do texto escrito 62
Propriedades comuns da fala e da escrita 65
4. Gênero, tipologia e sentido 69
O gênero discursivo 72
Do gênero para o funcionamento do discurso 75
Tipologia discursiva 77
Discurso lúdico 77
Discurso polêmico 79
Discurso autoritário 79
Situações de oralidade 80
Homofonia 81
Das tramas orais para a análise da conversação 82
Linguagem em contextos midiáticos: o caso do blog 85
Blog e jornalismo 86
Referência e referenciação 91
Da referência para a coesão 93
Coesão referencial endofórica 95
Coesão por elipse 96
Coesão sequencial 97
Organização da estrutura textual 99
Argumentação e texto argumentativo 101
Argumentação e ironia 104
Intertextualidade 105
7
Linguagem,
1 sociedade
e cognição
eduardo kenedy
1 CURIOSIDADE
Linguagem, sociedade
e cognição
A linguagem humana
Sons da linguagem: A linguagem humana é um fenômeno impressionante. Ela se faz pre-
É com base em apenas três ou quatro sente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa: desde o
dúzias de sons que nós, falantes de seu nascimento, quando recebe um nome e é inserida em uma comu-
uma língua natural qualquer – como o nidade de fala, até a maturidade, quando transita diariamente pelos
português, por exemplo –, consegui-
complexos sistemas de comunicação e interação social modernos.
mos dominar dezenas de milhares de
Concretizada em uma das milhares de línguas hoje existentes no
palavras, as quais, quando combinadas
entre si de maneira ordenada, permi- mundo, a linguagem humana nos surpreende porque é capaz de fazer
tem-nos a produção e a compreensão muito a partir de pouco.
de um número potencialmente infinito A posse da linguagem, com seu ilimitado poder expressivo, faculta
de frases e textos. aos humanos a organização e a veiculação de pensamentos, ideias, con-
ceitos, valores e, dessa forma, insere cada indivíduo que domina (pelo
menos) uma língua no dinâmico e intenso fluxo comunicativo das socie-
CURIOSIDADE dades contemporâneas. Com efeito, os poucos sons da linguagem oral
podem ser substituídos por algumas letras em um sistema de escrita ou
Língua de surdos: por centenas de sinais em uma língua de surdos sem que, com isso, o
O Brasil possui a Língua Brasileira de poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja
Sinais (libras). Ao contrário do que na fala, na escrita ou na sinalização, a experiência humana se faz rica e
muitos pensam, a libras não é uma ilimitada com a linguagem e pela linguagem.
gestualização da língua portuguesa; na
Para que você tome consciência da complexidade social e cogni-
verdade, é uma língua à parte. Tanto é
tiva subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no
que, em Portugal, a língua de sinais é
diferente da brasileira. seguinte exemplo:
EXEMPLO
Um homem caminha distraído pela cidade, aproveitando os momentos que ainda lhe
sobram de seu horário de almoço. Subitamente, ele se dá conta de que pode estar
atrasado para o retorno ao trabalho e diz para si mesmo, com aquela voz interna e
silenciosa que, muitas vezes, ordena os nossos pensamentos: “Devo estar atrasado!”.
Com essa impressão, o homem se dirige a um transeunte e pergunta:
— Com licença. O senhor pode me informar as horas?
O transeunte, por sua vez, compreende o estado mental de seu interlocutor –
sua intenção de ser informado a respeito do horário – e busca o comportamento
adequado para a situação: olha para o relógio de pulso e dele retira a informação
necessária, que é codificada na frase-resposta:
— São doze e trinta!
10 • capítulo 1
realidade sociocultural na tarefa de produzir e compreender estru- CURIOSIDADE
turas e significados linguísticos. Podemos não nos dar conta, mas,
na comunicação humana, o indivíduo que fala executa trabalho so-
ciocognitivo muito complexo. Ele deve codificar os seus pensamen-
tos e as suas ideias em palavras, que, por sua vez, devem ser combi-
nadas entre si em frases, as quais, por fim, são pronunciadas para
um interlocutor em um dado contexto discursivo.
Da mesma forma, a tarefa do indivíduo que compreende é também
engenhosa: ele deve decodificar os sons da fala que lhe são dirigidos
no ato do discurso, de modo a identificar palavras e frases para, assim, Ciências da linguagem:
conseguir interpretar os pensamentos e as ideias de seu colocutor. Essas ciências vêm alcançando um
extraordinário desenvolvimento ao longo
REFLEXÃO
Em circunstâncias normais, fazemos isso de maneira inconsciente e sem esforço
cognitivo aparente. Ora, como somos capazes disso? De que maneira nossas
mentes se tornam aptas a estruturar nossos pensamentos em frases e textos
codificados em sons, socialmente compartilhados?
capítulo 1 • 11
AUTOR Neste capítulo inicial, vamos aprender alguns conceitos funda-
mentais e indispensáveis ao estudo da linguagem. Começaremos
Ferdinand de pelas noções de linguagem e língua. Os termos parecem se referir a
Saussure: conceitos aproximados, mas teremos uma seção inteira para enten-
Saussure (1857-1913) dermos que se trata, na verdade, de duas realidades diferentes. Com
é considerado o base no que estudaremos sobre a noção de língua, seguiremos para
“pai da Linguística”. a seção em que diferenciaremos a dimensão cognitiva da dimensão
Nascido na Suíça, seu pensamento
sociocultural da linguagem. Aprenderemos que uma língua sempre
exerceu grande influência na Litera-
existe simultaneamente no interior do indivíduo que a fala e no seio
tura e nos Estudos Culturais, princi-
palmente para o desenvolvimento do da sociedade em que esse indivíduo se encontra inserido, sendo, por
Estruturalismo no século xx. isso, um fenômeno sociocognitivo (ou cognitivossocial).
Logo em seguida, trataremos do fantástico fenômeno da aquisição
da linguagem. Vamos analisar alguns aspectos da árdua tarefa das crian-
CURIOSIDADE ças, que, de maneira inconsciente e compulsória, devem criar em suas
mentes uma versão do sistema linguístico que a elas se revela indireta-
Linguagem: mente na fala das pessoas que as circundam.
Para entender melhor isso, pensemos Também teremos, neste capítulo, uma seção dedicada às diferenças
no seguinte: você acha que animais não entre as formas e as funções linguísticas. Estudaremos para que serve a
humanos, como cachorros, gatos, maca- linguagem humana e como ela dá conta de seus diversos ofícios.
cos, pássaros etc., possuem algum tipo
Por fim, apresentaremos os principais fatos imbricados no uso da
de linguagem? A resposta é um tanto
linguagem pelos indivíduos adultos que, em tempo real, precisam pro-
óbvia: é claro que sim. A maior parte dos
animais possui algum sistema de co- duzir e compreender frases e textos, codificando e decodificando men-
municação que permite a expressão de talmente informações nas diversas formas de comunicação e expres-
seus estados internos e a interação com são que se tornam possíveis pela língua. Esperamos que você tenha
o seu ambiente. Embora as mensagens apreciado esse roteiro, pois nossa viagem pelo mundo da linguagem
que cães e gatos possam transmitir se-
está apenas começando!
jam um tanto limitadas (com seus ruídos
característicos, com a posição do corpo,
do rabo e com a emissão de certos
odores), não há dúvidas de que se trata Linguagem e língua
de um tipo de linguagem que permite a
comunicação tanto entre os membros Ferdinand de Saussure foi um importante linguista franco-suíço que
daquelas espécies animais quanto entre ainda hoje é considerado o pai das modernas ciências da linguagem.
eles e os seres humanos.
Foi Saussure quem formulou, explicitamente e com grande clareza,
uma importante distinção entre aquilo que compreendemos por
linguagem e por língua. Vamos entender do que se trata.
De acordo com Saussure, “a língua não se confunde com a linguagem,
pois é somente uma parte determinada e essencial dela” (1916: p.17).
O que o mestre genebrino nos ensina nessa passagem é que a lingua-
gem é um fenômeno muito mais geral e abrangente do que uma lín-
Por exemplo, se você possui um cão ou gua. Comparada com a linguagem, diz-nos Saussure, uma língua pos-
gatinho, certamente é capaz de perceber sui um caráter muito mais específico.
o tipo de latido (ou miado) que ele produz Na verdade, alguns animais chegam a possuir sistemas de lin-
quando está com fome, com dor, quando
guagem impressionantemente complexos, como é o caso das abe-
se sente em perigo ou está alegre.
lhas. As abelhas possuem um complicado sistema de dança em zi-
guezagueado que permite a indicação da direção e da distância em
que se encontra uma fonte de néctar que tenha sido descoberta por
12 • capítulo 1
alguma delas. As abelhas que, durante alguns minutos, observam a CONCEITO
abelhinha que localizou o néctar dançar para lá e para cá, chacoa-
lhando o seu corpo de maneira frenética, são capazes de “entender” Léxico:
a informação que está sendo transmitida e, logo ao fim da dança, O léxico pode ser compreendido como
rumam para a fonte do néctar com bastante precisão. Ora, esse o conjunto de palavras e expressões
exemplo ilustra, claramente, a existência de uma “linguagem dos que são socialmente compartilhadas
pelos falantes de uma dada língua.
animais”, ou, mais precisamente, a linguagem específica de cada
espécie animal em particular.
Você já deve ter entendido que a linguagem é um conceito bas-
tante abrangente, que se refere a todo e qualquer sistema de comu- CURIOSIDADE
nicação e expressão. É por isso que podemos falar em “linguagem
dos animais”, “linguagem das cores”, “linguagem dos cheiros”, “lin- Número:
guagem corporal”, “linguagem da arte” (incluindo a “linguagem da A título de ilustração, saiba que um
dança”, “linguagem da moda”) etc. falante escolarizado do português do
Pois bem, se linguagem é qualquer sistema de comunicação e ex- Brasil domina, pelo menos, 50.000
itens, sem contar as formas flexionadas
pressão, então o que é uma língua? Com efeito, língua é um tipo espe-
das palavras (como as diversas
cífico de linguagem, como o próprio Saussure já havia dito. Afinal, uma expressões do verbo “estudar”: estudo,
língua também é um sistema de comunicação e expressão e, assim, é estuda, estudamos, estudava, estudarei,
uma forma de linguagem. Acontece que a língua é uma forma singular estudaria etc.), mas os dicionários da
de linguagem, com características próprias que a distinguem de todas língua portuguesa chegam a registrar
as demais linguagens animais ou humanas não verbais. de 200.000 a 400.000 palavras. Trata-se
de números bem impressionantes, não?
Você deve estar se perguntando que características são essas.
Trata-se de dois fatores sociocognitivos muito importantes. Veja-
mos cada um deles a seguir.
O primeiro fator que distingue uma língua humana qualquer –
como o português, o inglês ou o xavante – dos demais sistemas de lin-
guagem é a existência de um léxico.
No léxico, encontramos uma coleção de formas (significantes) que
são associadas, sistematicamente, a certos conteúdos (significados).
Assim, por exemplo, em português, possuímos o significante [kaza]
(representado na escrita pela grafia “casa”) que será sempre associa-
do ao significado [tipo de moradia] todas as vezes que usarmos essa
palavra. Também temos no léxico de nossa língua o significante [a],
sufixo presente ao fim da forma [menina], ao qual está associado o
significado [pessoa do sexo feminino]. Da mesma maneira, temos o
significante da expressão [dar uma mãozinha] que se associa, em lín-
gua portuguesa, ao significado [oferecer ajuda].
O número total de palavras e expressões existentes em um léxico
é bastante variável de língua para língua. Pois bem, nos sistemas ge-
rais de linguagem, não existe nada parecido com o léxico das línguas
humanas. Afinal, quantos tipos de latido, miado ou canto podem ser
discriminados pelos cães, pelos gatos ou pelos pássaros? Quantas
“palavras” poderíamos transmitir com a linguagem corporal, com a
linguagem dos cheiros ou pela dança? Ainda que consigamos catalo-
gar um grande número delas, não encontraríamos algo tão organiza-
do, sistemático e vasto como o léxico de uma língua.
capítulo 1 • 13
CONCEITO O segundo fator que distingue uma língua dos demais tipos de
linguagem é o mais importante: as línguas humanas possuem um
Sistema combinatório: sistema combinatório, que chamamos gramática.
Esse sistema é capaz de combinar O interessante é que, se o número de itens existentes em um léxico
entre si, de maneira ordenada e contro- qualquer já é consideravelmente grande, ele não é quase nada quando
lada por regras, as unidades do léxico, pensamos no número de expres-
de modo a construir expressões, como
sões que o sistema combinatório Quando falamos
as frases e os textos. Por exemplo,
de uma língua pode gerar utili-
o léxico do português possui unida- uma língua, somos
des como “casa”, “bonita”, “comprar”, zando suas regras computacio-
nais. De fato, o número de frases
capazes de produzir
“você”, “mais”, porém, é a gramática
dessa língua que permitirá a criação de e textos que podemos construir e compreender um
expressões complexas como “que casa em uma língua ao combinarmos número infinito de
mais bonita você comprou!”.
léxico e gramática é ilimitado.
frases e textos.
Se compararmos as línguas
humanas com os sistemas mais gerais de linguagem (humanos ou
CONCEITO animais), poderemos deduzir que a principal diferença entre eles
é a recursividade – também denominada infinitude, criatividade
Recursividade: ou produtividade –, que existe somente nas línguas.
A recursividade é justamente a capa- Neste momento, você talvez tenha curiosidade de saber se existe
cidade de criar um número infinito de algum tipo animal não humano que possua língua (e não apenas
frases e textos com base no número linguagem). Muito bem, os cientistas ainda não conseguiram regis-
finito de palavras existentes no léxico.
trar nenhuma espécie de vida, além dos humanos, que use algum
A recursividade emerge, portanto, da
sistema de comunicação remotamente parecido com uma língua
combinação entre os dois compo-
nentes fundamentais de uma língua: natural. Por tudo o que até hoje sabemos, somente nós, humanos,
o léxico e o sistema combinatório conseguimos usar um sistema de linguagem com recursividade.
(gramática).
RESUMO
É por isso que as línguas parecem ser um verdadeiro patrimônio da humanidade,
algo que nos distingue, claramente, de todas as formas de vida conhecidas pela
ciência. A posse da linguagem, na forma de uma língua, é de fato uma das carac-
terísticas mais distintivas e mais importantes do homo sapiens.
14 • capítulo 1
MULTIMÍDIA CURIOSIDADE
No link abaixo, você verá um exemplo que registra as tentativas de ensino de
línguas entre espécies.
Capacidade linguística:
Essa capacidade permanecerá na
Você provavelmente ficará encantado com as proezas linguísticas desse animal mente da criança no curso de sua vida
raríssimo e genial. Mas acreditamos que não ficará convencido de que ele, de fato, saudável e será modificada, na adoles-
cência e na vida adulta, de acordo com
“aprendeu” a usar uma língua e que demonstra domínio de um léxico e de um sis-
suas experiências particulares.
tema combinatório. O máximo que podemos dizer é que esse adorável bichinho é
capaz de aprender, após intensos anos de treinamento, um sistema de linguagem
bastante complexo e avançado, inspirado no léxico das línguas humanas – algo
fantástico que, por si só, já é merecedor de destaque científico.
capítulo 1 • 15
CONCEITO compreensão de enunciados em português, em uma de suas moda-
lidades socioculturais – se não o português, então, uma das línguas
Línguas humanas: minoritárias do país (por exemplo, uma língua indígena) –, que será,
Sempre que ocorre o fenômeno lin- assim, a língua ambiente dessa criança.
guagem humana, temos, de um lado, o Como maravilha do mundo natural e sociocultural, o fenôme-
indivíduo particular que possui a capaci- no das línguas humanas comporta necessariamente duas dimen-
dade mental de produzir e compreender
sões: uma dimensão individual e mental e uma dimensão coleti-
expressões linguísticas e, do outro, a
va e sociocultural.
sociedade em que esse indivíduo se
insere, a qual lhe forneceu não só os O influente linguista norte-americano Noam Chomsky formu-
contextos de uso da linguagem em lou dois importantes conceitos para dar conta da diferença entre
interação com outros humanos mas a dimensão individual e psicológica das línguas e a sua dimensão
também os sons e as palavras necessá- social e cultural. Chomsky propôs que a dimensão mental e cog-
rios à expressão verbal.
nitiva do fenômeno da linguagem seja sintetizada pelo conceito
de Língua-i, em que “i” significa interna, individual. Já a dimensão
sociocultural das línguas é denominada por Chomsky como Lín-
AUTOR gua-e, em que “e” quer dizer externa, extensional. Vejamos melhor
esses conceitos.
Noam Chomsky: A noção de Língua-e corresponde, grosso modo, ao que comu-
Avram Noam Chomsky mente se interpreta como língua ou idioma no senso comum. Por
(1928) é um linguista exemplo, o português é uma Língua-e no sentido de que é esse fenô-
americano, conside- meno sociocultural, histórico e político que compreende um con-
rado uma das figuras
junto de sons, palavras, regras gramaticais e um sistema de escrita
acadêmicas mais proeminentes (durante
que, juntamente, permitem a comunicação e a interação entre os
12 anos, foi o cientista vivo mais citado
em trabalhos científicos no mundo). É seus falantes. Trata-se de um fenômeno supraindividual, na verdade,
conhecido como o pai da Linguística exterior ao indivíduo.
Moderna, especialmente por sua Teoria da A noção de Língua-i, por sua vez, corresponde ao conjunto
Gramática Universal. de habilidades mentais que permitem ao indivíduo a produção
e a compreensão de um número potencialmente infinito de ex-
pressões na sua língua ambiente. Uma Língua-i diz respeito,
portanto, àquilo existente no interior da mente das pessoas, que
lhes faculta a aquisição e o uso cotidiano de uma língua natural.
Nesse sentido, entende-se que uma língua seja parte do sistema
cognitivo humano.
Uma Língua-i é uma faculdade psicológica ou, por assim dizer, um
órgão mental. Todo indivíduo humano sem deficiências neuropsicoló-
gicas graves é capaz de manipular, em sua língua, diversos recursos
gramaticais e textuais que veiculam significados do indivíduo para o
mundo exterior e desse para a consciência do indivíduo. Essa compe-
tência cognitiva para a manipulação das estruturas e dos significados
da linguagem é individual e inconsciente. É a ela que nos referimos
com o conceito de Língua-i.
Às vezes, quando pensamos sobre a linguagem humana, precisa-
mos ter clareza se estamos discutindo aspectos cognitivos ou aspec-
tos socioculturais da língua – ou mesmo se estamos considerando
ambos os aspectos em interação. Fique, portanto, sempre atento a
esse particular.
16 • capítulo 1
RESUMO CURIOSIDADE
É muito importante que você compreenda que uma língua é, ao mesmo tempo, um Idioma:
fenômeno cognitivo e individual (uma Língua-i) e um fenômeno coletivo e sociocul- Quando dizemos que o russo é a língua
tural (uma Língua-e). Embora nem sempre usemos os termos chomskianos, essa da Rússia ou que o chinês é a língua
dualidade está lá inevitavelmente todas as vezes em que falamos sobre as línguas. da China, entendemos língua como
esse fenômeno desincorporado dos
falantes, a Língua-e. Da mesma forma,
essa língua se refere a um fenômeno
cuja existência é externa às pessoas
Aquisição da linguagem e, nesse caso, do qual elas devem se
apropriar: as línguas do ambiente.
Para que você compreenda a dramática situação sociocognitiva em
que se encontra um bebê na fase de aquisição da linguagem, vamos
liberar a imaginação com a seguinte história fantástica:
EXEMPLO
Suponha que você seja abduzido por alienígenas. Você acordaria em uma galáxia
distante, cercado de criaturas diferentes, cujos comportamentos você não com- Uma criança nascida no Paraguai pro-
preende. Apesar de toda a estranheza inicial, não lhe seria difícil notar que tais vavelmente aprenderá a falar espanhol e
criaturas possuem uma espécie de orifício em sua extremidade superior (algo guarani, ou seja, as línguas do ambiente.
capítulo 1 • 17
AUTOR Talvez tenha sido em razão disso que o famoso psicólogo de Har-
vard, o canadense Steven Pinker, denominou tal fenômeno como instin-
Steven Pinker: to para a linguagem: um bebê humano rapidamente “compreende” que
Steven Arthur Pinker precisa dominar esse sistema para descobrir o que os seres ao seu redor
nasceu em Montreal dizem e também para que ele próprio possa dizer alguma coisa e comu-
(1954), é linguista e nicar-se com as outras pessoas.
psicólogo da Universi-
Mas bebês e crianças estão, em grande parte, quase sozinhos no
dade de Harvard. Escreve sobre lingua-
interior de suas mentes durante a odisseia pela descoberta e pelo do-
gem e ciências cognitivas e foi nomeado
uma das 100 pessoas mais influentes pela mínio da língua do seu ambiente. Eles não possuem um professor
revista Times. particular de “língua humana para bebês recém-nascidos” e, o que é
mais grave, o seu cérebro é ainda um protocérebro, ou seja, apenas
um rascunho do potente processador de informações que é o cérebro
de um indivíduo maduro.
Usamos a palavra “milagre” para descrever a aquisição da lingua-
gem pelos bebês e pelas crianças porque, apesar de todas as dificul-
dades que descrevemos, os pequenos humanos conseguem dominar
a língua de seu ambiente, para a compreensão e a produção da lin-
guagem, com extrema eficiência e em um intervalo de tempo incrivel-
mente pequeno, que não ultrapassa três ou quatros anos.
As crianças pequenas sequer parecem fazer esforço cognitivo
para adquirir a sua língua materna. De fato, a aquisição da lingua-
gem é muito mais algo, que simplesmente, acontece com os bebês e
com as crianças – e não algo que elas façam deliberadamente com o
seu pequeno cérebro em formação.
RESUMO
A par de ser um fenômeno sociocognitivo extraordinário, a aquisição da língua
do ambiente (ou das línguas do ambiente, no caso das comunidades bilíngues ou
multilíngues) é um dos eventos mais importantes na vida de um ser humano. Esse
fenômeno é, ao mesmo tempo, a porta de entrada para as relações sociais huma-
nas, que são quase sempre mediadas pela linguagem, e a janela para o aperfei-
çoamento cognitivo individual, uma vez que grande parte da cognição humana se
utiliza da linguagem como instrumento de desenvolvimento e de complexificação.
18 • capítulo 1
O outro tipo de aquisição da linguagem é muito mais específico e, CURIOSIDADE
por isso mesmo, denomina-se aquisição em sentido restrito ou aquisição
da linguagem stricto sensu. Em seu sentido restrito, adquirir linguagem Universal:
significa apropriar-se do léxico e do sistema combinatório existentes na Na aquisição da linguagem
língua do ambiente. lato sensu, a criança adquire, na verda-
Esse tipo de aquisição demanda dos bebês e das crianças a habi- de, os fundamentos da interação entre
os humanos: os valores e as ações
lidade de discriminação perceptual e de articulação intencional de
imbricados nos usos da linguagem, a
toda a maquinaria gramatical necessária ao funcionamento da lín- própria noção de si, a percepção do(s)
gua. Na aquisição stricto sensu, a criança adquire, de fato, o aparato outro(s), os modos de interagir social-
linguístico formal que estará a serviço das interações sociais e da or- mente e assim por diante.
ganização cognitiva do indivíduo em desenvolvimento.
Se você já entendeu a diferença entre aquisição da linguagem
lato sensu e stricto sensu, podemos, agora, falar um pouco mais so-
bre a aquisição em sentido restrito.
Um dos fatos mais intrigantes a respeito do processo de aquisição
do léxico e do sistema combinatório da língua do ambiente é que ele
parece ser universal. As fases pelas quais passam os bebês e as crian-
ças durante a aquisição stricto sensu são muito semelhantes em todas Já ao nascer, todas as crianças nor-
as culturas do mundo, seja qual for a língua do ambiente e o nível de mais balbuciam no ritmo da sua língua
inteligência geral da criança. Isso quer dizer que todas as crianças ambiente. Na verdade, algumas pesqui-
sas recentes descobriram que o choro
parecem atravessar as mesmas etapas nos mesmos estágios de de-
de bebês recém-nascidos transcorre
senvolvimento biológico, desde o nascimento até o domínio comple- conforme o ritmo e a melodia da língua
to da língua, estejam onde estiverem, em qualquer classe social e sob que a circunda (Wermke et al., 2011).
qualquer tipo de cultura. Esses fatos parecem indicar que a
Não obstante, o grande salto qualitativo na produção linguística aquisição da linguagem tem início ain-
dos bebês ocorre aos 12 meses, quando eles já são capazes de produ- da no útero materno, quando aspectos
sonoros da língua do ambiente (como
zir suas primeiras palavras reconhecíveis como tais. Essas são, na ver-
o ritmo, a entoação e o acento) já pare-
dade, mais do que simplesmente “palavras”, pois sempre assumem o
cem ser discriminados pelo feto.
valor de uma frase completa inserida em um contexto discursivo. In-
dependente da língua do ambiente, as primeiras palavras produzidas
por uma criança são sempre monossilábicas e seguem uma estrutura
[consoante + vogal]. Em pouco tempo, essa estrutura vai tornando-se MULTIMÍDIA
cada vez mais complexa e caminha em direção à complexidade exis-
tente na fala adulta.
EXEMPLO
Por exemplo, uma criança brasileira pode dizer algo como “bó” para significar uma
frase inteira, como “olhe, a bola”, conforme o contexto permita compreender. Pou-
cos meses depois, “bó” ganhará complexidade fonológica e tomará a forma con- Seu bebê chora
vencional de “bola”. O mesmo fenômeno pode ser observado com as centenas em que língua?
de outras palavras que as crianças adquirem durante essa fase, que os linguistas Roberto Lent – ufrj
nomeiam de fase holofrástica.
capítulo 1 • 19
CURIOSIDADE seu desenvolvimento linguístico, frases com estruturas do tipo sujei-
to e predicado semelhantes às dos adultos começam a ser produzidas
Conteúdo referencial: pelos bebês. São frases como “qué papá”, “mais colinho”, “meia pa-
As partículas gramaticais (como a pai” e “banho não”. O interessante é que os enunciados produzidos
preposição, por exemplo), que pos- pelos bebês durante a fase sintagmática não são apenas uma combi-
suem conteúdo puramente formal, só nação entre duas palavras soltas. Pelo contrário, tal como ocorre na
emergem na fala das crianças, de modo
fase holofrástica, essas palavras também assumem o valor de um ato
consistente, a partir dos 36 meses de
comunicativo completo, cuja interpretação é dependente do contex-
vida – embora haja intensas variações
individuais sem causa aparente regis- to interacional e comunicativo.
tradas pelos cientistas. Por volta dos 30 meses de vida, as crianças já conseguem criar
frases com extensão ilimitada, compostas por três, quatro, seis,
nove, dez palavras... Interessantemente, ao longo dessa fase, cha-
mada de fase telegráfica, artigos, preposições, conjunções e pro-
nomes estão ainda ausentes na fala infantil. Com efeito, até o ter-
ceiro ano de vida, as palavras que as crianças inserem em frases e
textos são sempre itens de conteúdo referencial, como substantivos,
adjetivos e verbos.
É possível dizer que, por volta dos 4 anos de vida, a língua que uma
criança domina para a produção e para a compreensão da linguagem
é indistinguível da língua de um adulto. As únicas diferenças, é claro,
dizem respeito aos aspectos linguísticos que envolvem letramento,
escolarização e certas regras de comportamento social que se desen-
volvem posteriormente, na adolescência e na vida adulta.
PRIMEIROS MESES
1) Na fase inicial, a criança se comunica pelo choro (dor, fome, frio etc.);
2) 6 semanas – choros diferenciados e sons guturais/primitivos, aparecem as primeiras vogais;
3) 18 semanas – aparecem as primeiras consoantes (p, b, k, g) e o balbucio;
4) Até os 8 meses o balbucio se caracteriza pelo dobramento de sílabas (“mama”, p. ex.) e pela
imitação de sons produzidos por ele e por adultos.
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM
DE 12 A 24 MESES
1) Começa a utilizar as primeiras palavras, ainda sem o mesmo formato das pronunciadas por
adultos (“papá”, p. ex.);
2) Reconhece nomes de alguns objetos, compreende ordens simples;
3) Vocabulário passa de 50 palavras, a aquisição de novas é diária;
4) Começa a produzir frases curtas (“qué papá”, p. ex.);
5) Adapta as palavras aos sons que conhece (como “tapéu” para “chapéu”, p. ex.).
DE 24 A 36 MESES
1) Uso constante de linguagem telegráfica;
2) Começa a utilizar partículas gramaticais (artigo, preposição etc.);
3) Forte expansão do vocabulário;
4) Começa a distinguir singular/plural, masculino/feminino;
5) Produz todos os fonemas;
6) Toma consciência do ritmo de fala, entonação (frases interrogativas, p. ex.).
20 • capítulo 1
Infelizmente, parece exis- O conceito de AUTOR
tir um fim para o período da
aquisição opõe-se Eric Lenneberg:
aquisição da linguagem. Isto
é, os humanos não podem ad- ao de aprendizado Eric Heinz Lenneberg
quirir a língua do ambiente porque a aquisição da (1921-1975), alemão,
foi um linguista e
tão rapidamente e sem esfor- linguagem ocorre na neurocientista pionei-
ço em qualquer momento de
infância de maneira ro nos estudos de aquisição da lingua-
sua vida, da infância à velhi- gem e psicologia cognitiva, em especial
ce. O neurocientista alemão espontânea, natural e do inatismo. Curiosamente, residiu no
Eric Lenneberg denominou mesmo involuntária, Brasil durante sua adolescência, quando
período crítico (ou idade críti- enquanto o aprendizado sua família fugia do nazismo.
ca) a fase de desenvolvimento
de línguas estrangeiras
físico e cognitivo humano no
limite da qual a aquisição da demanda do adolescente CONCEITO
linguagem deve acontecer. e do adulto esforço
Há muitas discussões consciente e instrução F
sobre qual seria o fim des-
mais ou menos formal. SN SV
sa fase, mas, como existem
muitas variações individuais no desenvolvimento humano, não é pos- Det N V
sível defini-lo com precisão. A maioria dos estudiosos aponta a puber-
dade, por volta dos 12 ou 13 anos, como o momento em que “a janela o automóvel derrapou
automática” para a aquisição da linguagem se fecha.
A partir de então, a aquisição da linguagem não é mais possível, e Estrutura:
tudo o que podemos fazer para dominar uma (nova) língua é aprendê-la Trata-se da superfície ou do meio
por meio de estudos formais em escolas ou cursos de idioma. A linha concreto, material, pelo qual uma língua
divisora entre aquisição e aprendizado é justamente a idade crítica. se realiza nos atos de fala humanos. Por
exemplo, uma palavra (como “casa”) e
uma estrutura sintática (como “esta é
minha casa”) são ilustrações de formas
Formas e funções linguísticas que usamos quando produzimos e com-
preendemos enunciados em uma língua.
Muito bem, já sabemos diferenciar linguagem e língua, compreende-
mos as dimensões cognitiva e sociocultural de uma língua natural e te-
mos noção da pequena epopeia que cada ser humano atravessa, em ten-
ra infância, ao longo da aquisição da(s) língua(s) de seu ambiente. Mas e
se perguntassem a você para que serve uma língua (como o português),
qual seria a sua resposta? Muito provavelmente, você diria algo como
"para permitir a comunicação entre as pessoas". Em essência, tal res-
posta está correta. Contudo, a pergunta é mais complexa do que parece,
de tal modo que é preciso esmiuçá-la um pouco mais. Façamos isso.
A questão para que serve uma língua pressupõe dois conceitos fun-
damentais: (1º) as línguas possuem um conjunto de formas e (2º) cada
uma dessas formas “serve” para algum fim, isto é, cada forma linguísti-
ca possui uma dada função ou um conjunto de funções. As formas exis-
tentes em uma língua podem ser também denominadas estrutura.
Quando estudamos linguística e falamos dos aspectos formais de
uma língua, estamos fazendo referência exatamente a essa aparato
capítulo 1 • 21
CURIOSIDADE estrutural que precisamos utilizar para que a língua tome vida em um
ato linguístico qualquer. Por outro lado, sabemos que as formas de
Função: uma língua não existem por si mesmas. Com efeito, a razão de ser de
O escritor Graciliano cada forma linguística é desempenhar determinada função.
Ramos (1892-1953) Para que você entenda melhor a dualidade entre forma e função,
compreendeu isso veja o quadro a seguir:
perfeitamente ao
afirmar que “A palavra não foi feita
para enfeitar, brilhar como ouro falso; OCORRÊNCIA FORMA FUNÇÃO
a palavra foi feita para dizer”. No caso,
“o dizer da palavra” é justamente a Contraste na significação
a) Ex.: forma [s]
a) [sorte]
sua função. Em outras palavras, uma
forma linguística não existe senão para
FONÉTICA b) Ex.: forma [f]
b) [forte]
c) Ex.: forma [m]
provocar algum efeito de significado ou c) [morte]
de sentido, isto é, uma forma não existe
senão pela sua função.
a) Formular pergunta
a) Ascendente “João saiu?”
PROSÓDIA b) Descendente b) Formular declaração
“João saiu!”
a) Voz ativa
a) Destacar o
Ex.: “João cometeu erros”
responsável
VOZ VERBAL b) Voz passiva
b) Esconder o
Ex.: “Erros foram
responsável
cometidos”
22 • capítulo 1
ou ainda mais vitais do que a comunicação, tais como a organização do AUTOR
pensamento e a criação do conhecimento individual.
Isso quer dizer que, ainda que a comunicação possa ser a primei- Karl Bühler:
ra e mais fundamental Karl Bühler (1879-
função das línguas, não De fato, muitas vezes, 1963), linguista e
podemos desprezar as nós, humanos, usamos a psicólogo alemão,
sistematizou as
outras funções, tais como língua internamente, em
funções da linguagem tomando como
a metacognitiva, isto é, a
voz alta ou em silêncio, ponto de partida a representação –
função de organização do característica, por excelência, da língua.
pensamento, e a instru- como se falássemos com
mental, ou seja, a função o nosso próprio eu – e
de adquirir e organizar isso, é claro, não pode ser
outros tipos de cognição,
considerado literalmente AUTOR
como o conhecimento ma-
temático, o conhecimento comunicação. Roman Jakobson:
sobre a História, o conhecimento sobre as relações sociais etc. Roman Osipovich
Atento à natureza comunicativa das línguas, Karl Bühler foi um Jakobson (1896-1982)
dos primeiros a tentar sintetizar, de maneira esquemática, as corre- foi um pensador rus-
so que se tornou um
lações entre linguagem e comunicação. Foi ele que destacou que os
dos mais renomados linguistas de todos
usos da linguagem pressupõem (1) um emissor, (2) uma mensagem e os tempos, cujos conceitos ainda são
(3) um destinatário. usados e pesquisados. Jakobson esteve
Esse modelo tripartido de comunicação se tornou mais complexo na no Brasil nos anos 1970.
análise do linguista russo Roman Jakobson, que introduziu as noções de
(4) referente, de (5) canal comunicativo e de (6) código linguístico.
É desse modelo de Bühler e Jakobson que se derivam as famosas
funções da linguagem, que são amplamente estudadas no ensino es-
colar: (1) a “função emotiva”, em que o emissor da mensagem se des-
taca; (2) a “função poética”, em que a própria mensagem transmitida
é destacada; (3) a “função conativa”, na qual o destinatário da mensa-
gem assume a função central; (4) a “função referencial”, em que o re-
ferente é o foco da comunicação; (5) a “função fática”, em que o canal
comunicativo é meramente testado e (6) a “função metalinguística”,
em que se estabelece quando é o próprio código linguístico (a língua) o
fator de destaque na comunicação.
RESUMO
Na realidade, as funções linguísticas, entendidas como as funções que determi-
nadas formas podem desempenhar nos usos da língua, são muito mais nume-
rosas do que essas seis. Todavia, tal modelo parece ser um bom caminho para
começarmos a entender as funções comunicativas e expressivas que as formas
da linguagem humana podem desempenhar.
Se você for uma pessoa curiosa, talvez tenha pensado: será que exis-
te alguma relação natural entre determinada forma e sua respectiva
função? Ou será que formas e funções linguísticas são associadas de
capítulo 1 • 23
uma maneira um tanto imprevisível que precisam ser memorizadas
pelos falantes de determinada comunidade? Boa pergunta.
Arbitrariedade
Dizer que uma forma está arbitrariamente associada a uma função signi-
fica assumir que não é possível deduzir espontaneamente a que função
determinada forma se presta. Sendo assim, torna-se preciso aprender e
memorizar, caso a caso, a correspondência entre cada forma e sua respec-
tiva função em uma dada língua, tal como apregoavam os anomalistas.
24 • capítulo 1
Um bom exemplo disso é a relação existente entre o significante CURIOSIDADE
(forma) e o significado (conteúdo) de cada uma das palavras do léxico
do português. Só sabemos que a forma [kaza] (que escrevemos “casa”) Sequência:
deve ser associada ao conteúdo [tipo de moradia] porque aprendemos De fato, a maioria das línguas do
isso durante a aquisição da linguagem. Mas a relação entre forma e mundo apresenta a ordenação
conteúdo nessa palavra é totalmente arbitrária, isto é, não é natural ou “sujeito > objeto > verbo” (sov) e,
assim, codifica na frase os participantes
motivada por algum princípio lógico.
de uma ação na sequência “quem fez a
Isso tanto é verdade que, em outras línguas, o mesmo significa- quem o quê”, em outro tipo de seleção
do (conteúdo) pode ser codificado por outro significante (forma), tal arbitrária. A título de curiosidade, o japo-
como o termo “house”, que em inglês é a forma correspondente do nês é uma língua sov; o mandarim, svo.
conteúdo [tipo de moradia].
Por exemplo, a aparência física
Em outras palavras,
de uma “casa” não se assemelha ao afirmarmos
em nada à forma [kaza], em portu- que uma forma
guês, ou à forma [hauz], em inglês.
é arbitrária em
Com efeito, a língua portuguesa,
no curso de sua história, poderia
relação à sua
ter escolhido arbitrariamente qual- função, estamos
quer outra forma para expressar o dizendo que
conceito [tipo de moradia]. A esco-
não existem
lha por [kaza] foi arbitrária.
Vejamos outros exemplos de ar-
semelhanças
bitrariedade entre forma e função. entre o feitio de
Em língua portuguesa, a forma determinada forma
de entonação ascendente ao fim
e o seu respectivo
da frase desempenha a função de
formular perguntas. Dizemos que
conteúdo.
a relação entre essa forma e essa função é arbitrária porque não há
nada natural entre uma subida melódica e a “expressão de pergun-
tas”. Trata-se de uma associação arbitrária que todos os falantes do
português precisam aprender e memorizar.
Também a sequência “sujeito > verbo > objeto” (svo) é uma for-
ma arbitrária de codificar, em uma dada frase, a relação entre um
agente, uma ação e um paciente. Embora a nós, falantes de portu-
guês, pareça razoável pensar em codificar os participantes de uma
ação na ordem “quem fez o que a quem”, não existe nada que torne
essa ordem “mais natural” do que outra: trata-se, novamente, de
uma arbitrariedade.
Iconicidade
Pelo que expusemos, você talvez já possa deduzir que a iconicidade é o
justo oposto da arbitrariedade. Sendo assim, uma forma é icônica quan-
do reflete, com clareza, a função a que se destina, conforme pensavam
os analogistas. Um rápido exemplo pode bem ilustrar o conceito.
capítulo 1 • 25
CURIOSIDADE Imagine que uma pessoa lhe tenha apresentado desculpas por
determinado incômodo. Essa pessoa teria discursado por um lon-
Onomatopeias: go tempo, mas, ao fim e ao cabo, não teria dito nada que, de fato,
A forma “tique-taque” possui uma ex- reparasse o problema. Você poderia descrever a tediosa conversa
pressão fonética parecida com o som com essa pessoa dizendo algo como “Fulano falou, falou, falou e
das batidas de um relógio. Da mesma não disse nada”. Ora, nessa frase a repetição do verbo “falar” é pra-
maneira, “miar” é um verbo inspirado na
ticamente um ícone, isto é, um representação evidente do fato de a
forma acústica do miado dos gatos.
pessoa ter falado repetidamente. Trata-se, portanto, de uma forma
(um verbo repetido) que, com clareza, reflete a sua função (indicar
a repetição de um ato).
Outro exemplo de iconicidade é o alongamento de vogais que
podemos usar em determinada palavra quando queremos enfati-
zar o tamanho ou a duração de algo. Se você quer dizer que alguma
coisa é exageradamente grande, pode dizer algo como “Era muito
graaaaaaaaaaande”. Mais uma vez, a forma (alongamento da vogal)
“Tim-tim” é um substantivo que, iconi- reflete, claramente, sua função. Também no plano do léxico, na re-
camente, representa o som produzido lação entre significante e significado, existem casos de iconicidade.
pelo rápido toque entre taças quando Trata-se das famosas onomatopeias: palavras cuja forma se asseme-
se faz um brinde.
lha ao conteúdo representado.
As relações icônicas entre forma e função são bastante regula-
res, tanto que há muitos estudiosos, não por acaso denominados
funcionalistas, que defendem a ideia segundo a qual as formas exis-
tentes nas línguas, em grande medida, refletem as funções a que se
destinam. A motivação funcional para a existência de certas formas
pode ser, de fato, encontrada em todos os domínios de uma língua,
tal como vemos nos seguintes exemplos do português:
EXEMPLO
Fonologia Morfologia Semântica Sintaxe
Pense na palavra Pense, por exemplo, Lembre-se de expres- Tal como se vê na famo-
“sussurrar” que se nas palavras compos- sões como “pé-da-me- sa sequência atribuída
parece com os sons tas, como “saca-rolha”, sa” ou “braço da cadei- ao romano Júlio César,
emitidos quando “guarda-roupa”, cujas ra”, que transferem para “Vim, vi e venci”, que re-
alguém su... ssu... rra. funções são objetos a estrutura do flete, de forma icônica,
rapidamente dedutíveis corpo humano e, assim, a sequência temporal
pela análise de suas iconicamente, permitem com que os atos se de-
formas constituintes. a codificação formal de ram: o general primeiro
suas funções. veio, depois, viu para,
enfim, vencer.
Se você está curioso para saber quem vence a batalha entre analogis-
tas e anomalistas, saiba que temos, aqui, um empate técnico. As línguas
humanas estão repletas de casos claros de arbitrariedade e casos eviden-
tes de iconicidade. Ambos os fenômenos são encontrados em todas as
línguas quando cotejamos formas e funções.
26 • capítulo 1
Com efeito, a análise mais interessante que os cientistas da lingua- EXEMPLO
gem vêm apresentando ao longo dos últimos anos é interpretar a rela-
ção entre arbitrariedade e iconicidade em uma espécie de continuum, Contexto sintático:
isto é, como uma sequência gradual de várias etapas que separam um Vemos isso acontecer na célebre ci-
extremo de arbitrariedade, de um lado, e um extremo de iconicidade tação de Memórias Póstumas de Brás
de outro – mais ou menos como representamos a seguir: Cubas, de Machado de Assis:
em [um autor defunto], “autor” é
substantivo e “defunto” é adjetivo,
[+ icônico] → [+/- icônico] → [+/- arbitrário] → [+ arbitrário]
mas, em [um defunto autor], “defunto”
é substantivo e “autor” é adjetivo. Do
Sendo assim, não devemos pensar que as relações entre forma e mesmo modo, formas como “furado”
função em uma língua sejam sempre uma questão de tudo ou nada; ou podem ser analisadas como adjetivos
temos arbitrariedade ou temos iconicidade. A escalaridade parece ser ou como verbos (na forma de particí-
pio), dependendo de sua função na
uma boa chave para entendermos a dualidade forma e função. Pense, por
frase, tal como vemos acontecer em
exemplo, que, no uso de uma língua como o português, podemos desli-
“isso é papo furado” versus “a roupa foi
zar rapidamente da forma dos substantivos para a forma dos adjetivos, furada pelo alfinete”, respectivamente.
dependendo da função de um item no interior de um contexto sintático. Na verdade, mesmo certas formas
Em suma, você deve ter em mente que a gradiência no mapeamen- verbais, dependendo de sua função na
to entre formas e funções linguísticas ocorre de maneira generalizada frase, podem ser reanalisadas como
tanto no léxico quanto na gramática de uma língua. substantivos, tal como acontece na
expressão “sala de jantar”.
capítulo 1 • 27
Esquematicamente, podemos representar a produção linguística oral pela sequência
ilustrada a seguir:
Você deve ter notado que acabamos de descrever a produção da fala fazendo com
que ela parecesse semelhante à produção da escrita. Pelo que sugerimos, a diferença
entre essas duas modalidades residiria no simples fato de que, na escrita, usaríamos
grafemas para representar a expressão fonética do texto. No entanto, essa descrição é,
na verdade, uma supersimplificação.
De fato, a produção oral é muito diferente da produção escrita. De uma maneira bem re-
sumida, podemos dizer que as pessoas, quando escrevem, estão muito mais conscientes do
uso que fazem da linguagem, sendo, por isso mesmo, bem mais atentas e vigilantes tanto em
relação ao que dizem quanto em relação a como dizem.
28 • capítulo 1
A tomada de consciência e a vigilância, comuns na produção es- LEITURA
crita, estão em flagrante contraste com o caráter mais espontâneo e
automático da fala natural. Não é por outra razão que a escrita fluen- Os neurônios da leitura:
te, típica das pessoas bem escolarizadas e treinadas nessa arte, de-
manda muitos anos de aprendizado formal, desde a alfabetização até
o letramento profundo na vida adulta.
Por sua vez, a produção fluente da fala emerge já em crianças bem
pequenas e se torna visível em qualquer conversa oral entre humanos,
independente da escolarização ou do letramento dos sujeitos falantes.
RESUMO
Portanto, atente para essa ressalva: apesar de os mecanismos básicos envolvi-
dos na produção oral e escrita serem semelhantes, falar e escrever são fenôme-
nos sociocognitivos dramaticamente diferentes.
capítulo 1 • 29
AUTOR EXEMPLO
Émile Benveniste:
A B
Émile Benveniste
(1902-1976) foi um
linguista francês, cuja
principal obra, Problè-
mes de linguistique générale, ressalta a
ideia de ocorrência de dois planos de
enunciação – o da história e o do dis-
curso –, através dos quais demonstra a
oposição entre a “não pessoa” (terceira)
e as “pessoas” (eu-tu).
Note que as setas que correm da esquerda para a direita indicam que o “plano con-
ceitual” presente na mente de A é transformado na informação linguística veiculada
para B. Por sua vez, B recebe essa informação linguística e, rapidamente, consegue
interpretar os conceitos ali representados. A figura é interessante, também, porque,
nela, podemos perceber que a produção e a compreensão da linguagem são auto-
maticamente intercambiáveis no fluxo da fala normal. Pelas setas que correm da
direita para a esquerda, notamos que, agora, é B quem produz a informação linguís-
tica que será veiculada para A.
A enunciação
Na dinâmica da produção e da com-
A enunciação deve
preensão da linguagem, o intercâm-
bio de posições entre aquele que fala ser compreendida
e aquele que ouve dá origem ao fenô- como o ato
meno conhecido como enunciação. de criação de
Na enunciação, a pessoa que pro-
um enunciado
duz a fala (ou a escrita) é o enunciador
– a primeira pessoa do discurso. Já a linguístico.
pessoa que compreende a fala (ou a escrita) é o enunciatário – a segunda
pessoa do discurso, a quem a fala (ou a escrita) se destina. Chamamos
de terceira pessoa, ou de não pessoa – em um termo interessante formu-
lado pelo linguista francês Émile Benveniste –, os objetos e as pessoas
sobre os quais falamos (ou escrevemos) durante a enunciação.
Em termos linguísticos e comunicativos, é interessante notar que,
na enunciação explícita na produção da linguagem, as chamadas
pessoas do discurso (os pronomes pessoais que você, certamente,
conhece das aulas de português) são, justamente, categorias linguís-
ticas que indicam a figura da primeira pessoa (eu, nós), da segunda
pessoa (você, vocês) e da terceira pessoa (ele, ela, eles, elas e todas as
expressões referenciais, como os substantivos).
30 • capítulo 1
ATENÇÃO CURIOSIDADE
É com base na existência do enunciador, do enunciatário e dos referentes do Tempo futuro:
discurso que diversas expressões linguísticas são colocadas sob perspectiva du-
rante a enunciação.
EXEMPLO
Para que você tenha uma boa noção de como pessoa, espaço e tempo são ca-
tegorias linguísticas cujas referência e interpretação dependem, crucialmente, da
enunciação, imagine que você esteja andando pelo centro de sua cidade, quando, de
repente, encontra um bilhete que flutua em sua direção.
Como pessoa curiosa, você abre o bilhete e encontra a seguinte mensagem:
“Eu estive aqui hoje.” Ora, você será capaz de compreender o significado básico
dessas expressões (afinal, é possível depreender do bilhete que “alguém esteve
em algum lugar, em algum dia”), mas não será possível identificar o sentido do
enunciado, justamente porque você não participou da enunciação – e, portanto,
não conseguirá encontrar o referente da primeira pessoa (eu) nem poderá deduzir
o lugar (aqui) que ela ocupava ao produzir o bilhete, tampouco descobrirá qual foi
o tempo presente (hoje) naquela enunciação.
Algo totalmente diferente aconteceria se o bilhete contivesse uma frase como
“A presidente Dilma esteve na Prefeitura do Rio de Janeiro em 04 de maio”. Nesse
caso, a identificação referencial da pessoa, do espaço e do tempo do enunciado
não são totalmente dependentes do contexto estabelecido na enunciação. Sabemos
apenas que a produção dessa frase ocorreu depois da visita da Presidente à Prefei-
tura – e deduzimos isso em função do tempo verbal passado expresso em “esteve”.
capítulo 1 • 31
CONCEITO Das pessoas do discurso que são acionadas sempre que usamos a lin-
guagem para a produção e a compreensão, a mais curiosa, em termos
Referente discursivo: científicos, é a terceira. Como dissemos, a terceira pessoa é, na verdade,
O já citado linguista Roman Jackob- a não pessoa, isto é, é a ausência da primeira e da segunda pessoas. Tra-
son havia destacado a existência da ta-se do referente discursivo de um dado uso da língua.
não pessoa ao batizar com o termo A função referencial é, muitas vezes, considerada a mais pro-
“referencial” a função da linguagem
eminente dentre as funções da linguagem, já que os humanos ti-
que privilegia a terceira pessoa como o
picamente usam a língua para falar do mundo, seus objetos, suas
referente do discurso.
ações e pessoas. Todavia, a proeminência da “função referencial”
pode nos passar a falsa ideia de que a linguagem humana, quando
colocada em ação, seja essencialmente referencial. É bem verdade
que muitos usos linguísticos são objetivos, isto é, focam-se no obje-
to (terceira pessoa) de maneira puramente referencial. Entretanto,
grande parte da experiência linguística humana é metafórica. Vejamos
o que isso quer dizer.
32 • capítulo 1
A linguagem metafórica é, na verdade, generalizada nos usos linguísticos. Podemos di-
zer que ela é a regra, e não a exceção, quando produzimos e compreendemos a linguagem
humana. Um uso de linguagem estritamente objetivo e referencial é raro. Só o encontra-
mos em abundância no discurso científico das áreas da natureza, como a Física, a Química
e a Biologia. Mesmo em outras áreas da ciência, como a Economia, encontramos fartos
exemplos de linguagem metafórica em frases como “O mercado está aquecido”, “Os preços
estão nas alturas”, “Esperamos uma queda brusca na taxa de juros” etc. Para os cidadãos
comuns, em seu cotidiano linguístico, a metáfora é muito mais do que uma mera figura de
estilo: ela é um produtivo recurso natural de pensamento e de linguagem.
Para concluir
Neste primeiro capítulo, começamos nossa pequena incursão pelo fantástico e complexo mun-
do da linguagem humana. Aprendemos, aqui, diversos conceitos importantes, como a dife-
rença entre linguagem e língua, a distinção entre Língua-i e Língua-e, as noções e as fases da
aquisição da linguagem, a oposição entre formas e funções linguísticas e os fundamentos da
linguagem em ação. Nosso objetivo, ao longo do capítulo, foi apresentar a você uma visão pano-
râmica dos principais temas e figuras do estudo científico da linguagem, o qual tem em conta a
interação dinâmica entre sociedade e cognição. Você terá boas oportunidades de ampliar seus
conhecimentos sobre o assunto ao consultar os vídeos e os livros que indicamos. Bons estudos!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHOMSKY, N. O conhecimento da língua. Sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1986.
PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
WERMKE, K. et al. Cry Melody in 2 Month Old Infants With and Without Clefts. The Cleft Palate-Craniofacial Journal,
v. 48, n. 3, p. 321–330, 2011.
IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 11 Cloud p. 19 Bebês p. 23 Roman Jakobson
Tainara Oliveira · Estácio Paulo Vitor Bastos · Estácio Autor desconhecido · Wikimedia · cc
capítulo 1 • 33
Língua e
2 variação
linguística
36 • capítulo 2
RESUMO CURIOSIDADE
Em outras palavras, só existem as línguas porque existem seres humanos que as
falam em sociedade, com propósitos diversos. E, ao estabelecer relações sociais
– no trabalho, na escola, na igreja, no sindicato, na conversa informal e em várias
outras instâncias –, a língua vai se moldando às necessidades comunicativas dos
falantes e ao contexto da fala.
RESUMO
Entende-se por modalidade os recursos da língua utilizados para expressar a
atitude do locutor, nos conteúdos, em relação ao interlocutor. Há dois tipos prin-
cipais de modalidades: a epistêmica e a deôntica.
EXEMPLO
O estudante foi aprovado na disciplina.
CERTEZA
o locutor se compromete com a veracidade da informação
capítulo 2 • 37
CURIOSIDADE Na modalidade deôntica, um locutor exprime juízos, procurando
agir sobre o seu interlocutor, impondo, proibindo ou autorizando a
Mudança: realização de algo em um tempo necessariamente posterior ao dis-
A expressão vossa mercê, como curso. Estabelece-se uma relação hierárquica entre locutor e interlo-
sabemos, não é mais utilizada no cutor. Tradicionalmente, a modalidade deôntica divide-se em valores
português atual. Atualmente utiliza- de obrigação e valores de permissão. Veja:
mos o pronome você para substituir
essa expressão. Portanto, houve um
processo de mudança, transformando, EXEMPLO
ao longo do tempo, a expressão vossa “Saia daqui agora!”
mercê em você.
“Agora você não vai sair.”
O valor modal de obrigação ocorre quando o locutor impõe
ou proíbe a realização de uma ação ao interlocutor.
RESUMO
Usamos a língua não só para nos comunicarmos e articularmos informações
mas também para agirmos sobre nossos interlocutores e até mesmo para con-
trolar o nível de comprometimento ou de verdade usado nas declarações que
fazemos cotidianamente.
38 • capítulo 2
Pesquisadores vêm estudando já há muito tempo essas transfor- CURIOSIDADE
mações na trajetória da língua, gerando um número bastante expres-
sivo de publicações acerca desse assunto. Esses estudos, que têm
como objetivo analisar as mudanças da língua ao longo do tempo,
são chamados estudos diacrônicos. Veja o exemplo a seguir:
EXEMPLO
“Este rrey Leyr nõ ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amaua-as Português do Brasil:
mujto. E huu dia ouuve sas rrazõoes com ellas e disse-lhes que lhe dissessem Nossas favelas são
uerdade quall dellas o amaua mais”. conhecidas como
bairros de lata em
Portugal. Em Angola,
Você conseguiu ler o texto anterior? Qual foi a sua sensação? Se você ima-
que também tem a
gina que se trata de um texto antigo, acertou! Esse texto, cujo título é Lenda do língua portuguesa como oficial, utiliza-
Rei Lear, é datado do século XIII ou XIV. Ele serve para ilustrar como a língua se o termo musseque. Para saber mais
muda ao longo do tempo, basta verificar como era a escrita séculos atrás… sobre diferenças entre o português
brasileiro e o português europeu,
recomendamos uma visita ao site do
Variação linguística Instituto Camões.
capítulo 2 • 39
CURIOSIDADE Em busca de uma língua essencialmente marcada por traços da
cultura brasileira, os modernistas costumeiramente defendiam, de
Escolarização formal: forma ávida, usos linguísticos característicos do Brasil, mesmo que
Somente após 300 anos, com a che- não estivessem de acordo com o “português correto”. É por isso que
gada da família real, que a educação Manuel Bandeira afirma que a “a língua errada do povo” era a “língua
superior começou a fazer parte da nossa certa do povo”. Parece paradoxal, mas não é.
realidade: em 1808, surge o Colégio
Médico-Cirúrgico da Bahia. A elite bra-
sileira (membros da Corte, membros da RESUMO
Igreja e filhos de grandes latifundiários),
até então, só tinha por opção estudar O português vivo falado pelos brasileiros é, na opinião do modernista, a verdadeira língua
na Europa. A primeira universidade do Brasil, que traduz um falar “gostoso”, segundo suas palavras. Enfim, mesmo que sem
brasileira surgiu em 1920, e foi chamada os termos técnicos que utilizamos, defendia-se a legitimidade da variação linguística.
de Universidade do Rio de Janeiro (hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Voltando ao nosso tema, os estudos de variação linguística são sempre
feitos dentro de um recorte temporal específico, ou estudos sincrônicos.
Sincronia, portanto, designa um estado específico da língua.
CURIOSIDADE
EXEMPLO
Mudanças:
Um bom exemplo para vermos as Se um pesquisador se ocupar do estudo do pronome você no português do Brasil atual
mudanças é a inserção de palavras (ou até mesmo em todos os lugares da comunidade lusófona onde esse item é utilizado),
estrangeiras, como shopping. O uso dizemos que esse é um estudo sincrônico. Por outro lado, se analisa um determinado
da forma original (em inglês) dessa
uso linguístico ao longo de décadas ou séculos, com o objetivo de descrever transfor-
palavra é tão disseminado entre nós que
mações do item ao passar do tempo, então estamos diante de um estudo diacrônico.
praticamente não se utiliza uma forma
correspondente em português (como
“centro comercial”, por exemplo). Em
outros casos, uma palavra estrangeira
acaba sendo incorporada à língua. É o Por que a mesma língua é, também, diferente?
famoso “aportuguesamento”, como na
forma ballet (francês) para balé.
A língua portuguesa era a língua falada/escrita pelas classes escolariza-
das de Portugal. Aqui encontrou as línguas indígenas que, na fase inicial
da colonização, formaram uma “língua de intercurso”: mistura de por-
tuguês e línguas indígenas, que promovia a comunicação entre o coloni-
zador europeu e os nativos indígenas.
Em seguida, o povo que aqui se encontrava – índios, negros escraviza-
dos e mestiços, praticamente todos sem acesso à escolarização formal –
ia adquirindo o idioma de Portugal. Esse idioma, aqui no Brasil, tornou-se
também “mestiço”, sendo passado de pai para filho, com gerações apren-
dendo e ensinando, de forma empírica, a língua portuguesa.
Como se pode perceber, por falta de um ensino sistematizado para to-
dos, grande parcela da população utilizava a língua oficial conforme suas
próprias “regras”, de acordo com suas necessidades, e foi, pouco a pouco,
promovendo variações na língua portuguesa. Surgia, assim, uma variante
daquele português das elites escolarizadas: a língua falada pelo povo.
Após mais de 500 anos de uso do português no Brasil, nada mais na-
tural que a língua tenha passado por mudanças e apresente variações
40 • capítulo 2
conforme a região, a classe social e, até mesmo, conforme a idade dos falantes.
Nesse contexto de mudanças e variações, há palavras e construções linguísticas que,
embora ainda em uso, são cada vez mais escassas ou restritas a uma situação de alta for-
malidade. Mesmo assim, tais usos são ensinados nas escolas, estão presentes em todas
as gramáticas, são cobrados em exames, concursos etc. Vamos a um exemplo:
Por outro lado, há momentos em que estamos com nossos amigos, nossos familia-
res, nossos grupos sociais. Nessas situações, é comum haver um uso menos formal da
língua, que comumente é acompanhado por gírias, expressões populares etc. Esse uso,
ao contrário do que muitos pensam, não é errado. Trata-se apenas de um uso diversifi-
cado do idioma. Portanto, esses usos são naturais, seguem uma lógica própria e preci-
sam ser respeitados, já que são igualmente úteis à comunicação.
Assim como as culturas são diversas, as línguas (que são parte da cultura) também
o são: os diversos domínios sociais atestam e influenciam o modo de fala e de escrita
dos cidadãos. Assim, podemos afirmar que, em geral, os eventos de uma sala de aula
ou de uma reunião de trabalho costumam ser mais monitorados do que as conversas
espontâneas no seio familiar, por exemplo. Nessas situações práticas do dia a dia,
invariavelmente se atesta o fenômeno da variação. Pense em como você se comunica
com o professor na universidade e como você conversa com seus amigos ou com seus
familiares. Não é diferente?
EXEMPLO
Imagine um cartão de apresentação profissional com erros gramaticais. Inconcebível, não é? Pois então, em con-
textos “monitorados”, o uso que um falante faz da língua oral ou escrita é “analisado” pelo ouvinte/leitor, como parte
de um processo de legitimidade, de adequação e de pertinência do conteúdo ao sujeito que fala/escreve.
capítulo 2 • 41
CONCEITO Explorando mais o tema: variações dialetais
Dialetos: Para nos aprofundar- Para o estudo científico da
Dialeto é a forma como uma língua mos no conceito de
é falada em uma região específica.
linguagem, a variação é um
variação, falaremos
Podemos considerar, por exemplo, que o agora das variações
fenômeno normal, natural,
dialetais. Dentre os inerente a todas as línguas.
português brasileiro e o português euro-
peu são variedades dialetais. O mesmo
dialetos que mais chamam a atenção dos estudiosos da língua, estão
pensamento vale dentro do Brasil, onde
temos subvariedades: o grupo dialetal os usos que se dão conforme a região (diatópicos) e conforme o estrato
carioca, gaúcho, baiano etc. sociocultural (diastráticos).
Variação diatópica (dialetal)
No Rio de Janeiro,
chama a atenção o Pessoas que residem em
“chiado” caracterís- localidades diferentes,
tico da população ao distantes, tendem a ter
pronunciar o “s” em
pronúncia e vocabulário
determinadas posi-
ções na palavra, como também diferentes.
em “misto” ou “mais” (com som de x). Por outro lado, é próprio do fa-
lar nordestino a abertura das vogais “e” e “o” antes da sílaba tônica, em
palavras como “receita” e “morena”. Em São Paulo, o uso da palavra
“guia” corresponde ao uso de “meio-fio” no Rio de Janeiro. Todos es-
ses são exemplos de variação diatópica.
42 • capítulo 2
ATIVIDADE
Vamos fazer um teste? Veja as frases e as associe a um determinado perfil:
Você provavelmente respondeu a seguinte sequência: 6, 5, 1, 3, 7, 4, 2. Repare que há, inclusive, certo
determinismo na resposta, pois nem toda mulher fala usando diminutivo ou exageros e não há pessoa de
alta escolaridade que não use gírias eventualmente. Mas podemos considerar que todas essas frases são
bem características de alguns perfis de usuários da língua. Alguns usos são muito estigmatizados, como o
exemplo 6, outros são considerados mais “neutros”, outros despertam ternura, despojamento, informalida-
de etc. Todos esses usos linguísticos são continuamente praticados e avaliados pela sociedade.
De forma consciente ou não, nós reconhecemos essas variantes. Afinal, sempre que queremos nos
dirigir a alguém, refletimos acerca da situação (se é apropriado ou não falar naquele momento), do
interlocutor (não falamos com nossos amigos da mesma maneira como falamos com nosso chefe) e
do ambiente (há lugares mais apropriados para piadas, para conversa espontânea, para ensinamentos
morais etc.). Em outras palavras, utilizamos variantes distintas dependendo dos nossos propósitos e
objetivos, em cada situação particular.
Teria o mesmo sentido se usasse as regras gramaticais e a ortografia oficial na letra da música?
ASA BRANCA Luiz Gonzaga
Quando oiei a terra ardendo Inté mesmo a asa branca Quando o verde dos teus óio
Qual fogueira de São João Bateu asas do sertão Se espalhar na prantação
Eu perguntei a Deus do céu, ai Intonce eu disse: adeus, Rosinha Eu te asseguro, não chore não, viu
Por que tamanha judiação Guarda contigo meu coração Que eu voltarei, viu
Meu coração
Que braseiro, que fornaia Hoje longe, muitas léguas
Nem um pé de prantação Em uma triste solidão
Por farta d’água perdi meu gado Espero a chuva cair de novo
Asa Branca foi composta por Luiz
Morreu de sede meu alazão Pra mim vortá pro meu sertão Gonzaga e Humberto Teixeira em 1947.
capítulo 2 • 43
AUTOR Em Asa Branca, temos um claro exemplo de como a língua varia.
Poeticamente, Luiz Gonzaga canta as características de sua terra, em-
Luiz Gonzaga: baladas pelo linguajar local. O uso da língua padrão, no caso dessa
Luiz Gonzaga do Nas- música, continuaria comunicando a mesma emoção que ela nos traz
cimento (1912-1989) quando cantada em seu estilo original? Certamente, não!
nasceu no interior de Um fato curioso sobre a variação é que os usos fortemente de-
Pernambuco. É consi-
fendidos como corretos, no passado, muitas vezes invertem-se e
derado um dos grandes divulgadores da
passam a ser condenados. Por exemplo: nos século xvi e xvii, era
música e cultura nordestinas.
comum registrar, em obras escritas na língua padrão, os vocábulos
frauta, frecha, molher, entre outros. As variantes flauta, flecha, mu-
lher, que hoje designam o padrão formal dessas palavras, eram
fortemente estigmatizadas.
ATENÇÃO
A variação linguística nos faz pensar em algumas questões: as regras gramaticais
são frequentemente usadas pelos falantes do português contemporâneo? São
mais comuns na fala ou na escrita? São empregadas apenas por pessoas escolari-
zadas? Qual seria a forma usada por aqueles com pouca escolaridade?
44 • capítulo 2
ATENÇÃO CURIOSIDADE
A gramática tradicional – aquela usada em instituições de ensino – enquadra-se Gramáticas normativas:
no domínio do normativo, isto é, que define “certo” e “errado”, que prescreve Gramática é um estudo, não um livro.
como a língua deve ser empregada e proscreve o que não deve ser dito. Existem outras gramáticas além da
normativa, como a descritiva (não
determina regras, mas procura des-
A escola e a universidade precisam investir no ensino e aprendi-
crever como a língua se dá para fins
zagem da língua padrão, pois é esperado que falantes escolarizados a de investigação), a histórica (estuda a
dominem nas situações em que seu uso for necessário ou valorizado. origem e a evolução de uma língua), a
Quanto a isso, não há discussão nem divergência. comparada (compara línguas de mes-
Nesse cenário, a gramá- ma origem, como as oriundas do latim,
A gramática normativa por exemplo), entre outras.
tica normativa se afigura
como grande pilar da lín- contempla usos que, por
EXEMPLO
“Vi-os felizes a todos quatro” (Machado de Assis, in CUNHA E CINTRA, op.cit., 1126).
capítulo 2 • 45
Até mesmo fenômenos linguísticos já consagrados, presentes na fala e escrita de pes-
soas escolarizadas, são tratados com reservas pela tradição gramatical. O uso do “você”
combinado com pronomes de segunda pessoa, por exemplo, ou o emprego do “tu” com
pronomes ou verbos de terceira pessoa, são alvos de críticas por parte dos puristas.
Porém, no português brasileiro, o pronome “você” é de ampla aceitação, predomi-
nando em praticamente todo o território brasileiro e ocupando, cada vez mais, o lugar
do “tu”. Entretanto, por causa da sua origem como pronome de tratamento, a norma
gramatical prescreve que “você” seja sempre acompanhado por verbos e outros prono-
mes na terceira pessoa.
EXEMPLO
A regra gramatical prescreve que...
Não sei mais o que fazer com você! Vou lhe dar um castigo exemplar.
Não sei mais o que fazer com você! Vou te dar um castigo exemplar.
Partindo desse exemplo, muito do que é falado e ouvido nas ruas, dentro de
casa, nas repartições públicas e até mesmo nas escolas e universidades, margeia
a gramática normativa, posto que incorpora variantes linguísticas no seu uso.
Você sabia que, segundo a visão normativa, um famoso comercial veiculado pela mídia
comete erros gramaticais? Vamos explorar?
46 • capítulo 2
Língua culta AUTOR
Você pode estar se perguntando qual seria a diferença entre língua pa- Oswald de
drão e língua culta. A língua padrão, como vimos, é aquela preconizada Andrade:
pelas gramáticas normativas. A língua culta, por sua vez, representaria José Oswald de
o português utilizado por pessoas letradas, das camadas mais escolari- Souza Andrade
zadas da sociedade. Estes, (1890-1954) per-
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
capítulo 2 • 47
AUTOR o que dizer de Guimarães Rosa? Há diversos trechos de suas obras que
também não estão em acordo com a língua culta. Seria ele um “falante
Guimarães Rosa: inculto” ou um mau escritor? Não se defende algo dessa natureza…
João Guimarães Além dos casos trazidos à discussão, outros usos condenados pela
Rosa (1908-1967) norma padrão são considerados como próprios entre falantes esco-
foi um dos mais larizados. Até mesmo um professor de língua portuguesa, ciente das
importantes escri-
regras prescritas pela tradição gramatical, dificilmente declararia seu
tores brasileiros de todos os tempos,
amor com um “Amo-te!”. O muito mais romântico e brasileiríssimo
eleito por unanimidade à Academia
Brasileira de Letras (apesar de eleito “Te amo!” é a preferência nacional.
em 1963, assumiu somente em 1967,
pouco antes de morrer). Veja como RESUMO
ele “brinca” com a língua em Grande
Sertão: Veredas (1956): “Enfim, cada um
A essa altura, você já deve estar percebendo que a língua culta é a variedade
o que quer aprova, o senhor sabe: pão
em uso por aqueles que têm acesso à variedade padrão, por aqueles que
ou pães, é questão de opiniães”.
provavelmente tiveram detalhadas lições sobre a gramática normativa, nas
aulas de língua materna, mas que não apresentam, na sua fala, o mesmo rigor
gramatical que têm quando escrevem ou quando falam em contextos formais,
monitorados. Ou seja, são usuários que sabem ajustar seu texto/fala à situ-
ação comunicativa.
48 • capítulo 2
RESUMO CURIOSIDADE
Se uma perspectiva prescritivista é adotada, bem ao gosto dos famosos “consul- Falante idealizado:
tórios gramaticais” a que temos assistido na TV e em outros meios de comunica- Sirio Possenti aponta divergências no
ção, todos os empregos linguísticos, em desacordo com a norma padrão, passam tipo de tratamento gramatical para
a ser combatidos, como se fossem um mal à sociedade. erros sociais, como se fossem erros
estruturais. Segundo o autor, a varia-
ção de [l] com [r], como em “flamengo/
Um fato curioso é que, dentro da própria língua padrão, também framengo”, estruturalmente se situa
há variação, ou melhor, posturas divergentes. Assim, os gramáticos as- em um processo histórico que derivou,
sumem posições distintas quanto ao uso do infinitivo flexionado, da entre outras, palavras como “praia”
colocação pronominal (próclise, mesóclise e ênclise), dos conceitos de e “prata” (se compararmos ao espa-
sujeito, da lista de orações adverbiais, da classificação de advérbios, nhol, por exemplo, teremos “playa”
e “plata”). Mesmo explicáveis, tais
entre tantos outros pontos.
pronúncias são socialmente estigma-
Na prática, não existe o falante idealizado pelas gramáticas e pe-
tizadas. Para Possenti, “dizer que é um
los puristas, já que ninguém segue 100% as prescrições normativas erro (em língua) equivale a dizer que
em todos os momentos de sua vida. Embora a língua padrão seja a va- uma saia curta é um erro no campo
riedade linguística ensinada nas escolas, especialmente nas aulas de da moda (ou em moralidade!). É uma
português, em que se prioriza o ensino das normas gramaticais e da avaliação social, não linguística (…).
língua escrita, não se deve concebê-la como melhor ou superior às de- Às vezes, alguém diz que o som [fra] é
horrível, mas ninguém o acha horrível
mais variedades.
em [fraco]. No entanto, trata-se do
Além disso, se considerarmos que os usuários do português de- mesmo som, e no mesmo contexto.”
vam falar, ou até mesmo escrever, seguindo somente os modelos da (Coluna Palavreado, Instituto Ciência
gramática normativa, estaremos diante de uma língua artificial, dis- Hoje/uol, janeiro de 2012)
tante da realidade dos diferentes falares presentes em toda a exten-
são do Brasil. E o nosso pais é muito grande, comportando muitas
variedades linguísticas.
RESUMO
Em síntese, o modo diferente de fala das classes menos escolarizadas e, normal-
mente, menos abastadas, passa a ser alvo de preconceito por parte das classes
mais escolarizadas; portanto, mais influentes na sociedade. Assim, o poder da-
queles que gozam de mais prestígio, por conta de fatores políticos, econômicos e
culturais, transfere-se para a variedade linguística que utilizam. Essas variedades
passam a ser consideradas mais corretas, mais dignas.
capítulo 2 • 49
CURIOSIDADE Essa associação, se pensarmos bem, é muito perversa. Afinal, a lín-
gua é um fator de identidade, um meio de acesso aos bens culturais
e o principal modo como nos comunicamos. Se assumirmos que há
pessoas que falam errado, que utilizam uma variante indigna, auto-
maticamente podemos estender à ideia de que essas mesmas pessoas
não têm direito aos bens culturais produzidos pela sociedade como
Variante indigna: um todo. Afinal, se elas “não sa-
Um erro na grafia da placa causou bem sequer falar corretamente”, Na prática, uma
estranheza aos policiais que pararam como vão ter acesso à cultura? variedade linguística
o veículo em questão. Resultado: o
erro mostrava, na verdade, um crime
Assim, a variedade culta é acaba tendo o mesmo
mais valiosa porque é falada por
de estelionato. Mas não podemos es- valor que as pessoas
pessoas também mais prestigia-
quecer que há bandidos que também
dominam a norma padrão… das. As variedades não padrão, que a adotam.
por sua vez, acabam sendo estigmatizadas porque as pessoas que as fa-
lam também o são. O uso da língua, portanto, reflete o poder e a autori-
CURIOSIDADE dade (ou a falta deles) nas relações econômicas, políticas e sociais.
O que fica mais claro ao longo dessas constatações é que, de fato,
Relações econô- o preconceito linguístico encontra espaço até mesmo em veículos que
micas, políticas e gozam de prestígio na sociedade. Muitas vezes, o que é ainda pior, não
sociais: há espaço para opiniões divergentes, o que cria a falsa imagem de um
No livro Triste fim de consenso em torno das questões levantadas. Sem dúvida, o espaço na
Policarpo Quaresma, mídia e a grande aceitação dessas questões pelo público em geral difi-
escrito por Afonso Enriques de Lima cultam o trabalho de esclarecimento sobre questões da língua, fazendo
Barreto (1881-1922), a questão do na-
permanecer o preconceito linguístico.
cionalismo é discutida. A personagem
A existência do preconceito linguístico é uma das maiores provas do
principal do livro, Policarpo Quares-
ma, em um dado momento, propõe à quanto língua e sociedade são imbricadas. Afinal, esse tipo de preconceito
Assembleia Legislativa que a língua está diretamente relacionado ao status dos interlocutores na comunidade
nacional deveria ser o tupi, a verdadeira linguística. Nesse contexto, a escola e a universidade devem integrar esfor-
língua nativa do país. Algo parecido ços para que o preconceito linguístico seja paulatinamente combatido.
ocorreu recentemente, mas na vida
real. O então deputado federal Aldo
Rebelo propôs um projeto que comba- CONCEITO
tesse o estrangeirismo, para “proteção,
promoção, defesa e uso da língua Preconceito linguístico:
portuguesa” (cf. Faraco, 2001). Essa Marcos Bagno é, no Brasil, um dos maiores estudiosos do pre-
proposta, por exemplo, revela o quanto conceito linguístico. Um dos seus livros mais conhecidos é Pre-
as nossas elites estão desinformadas conceito linguístico: o que é, como se faz?, obra que já conta
em termos de língua, uso e variação.
com dezenas de edições. Nele, o autor sintetiza em oito pontos
os principais equívocos veiculados quanto ao português do Brasil. A esses pontos,
o autor chama mitos, os quais você poderá ver mais detalhadamente no artigo.
50 • capítulo 2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009.
______. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2009.
FARACO, C. (Org.) Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001.
LYONS, J. Linguagem e Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981.
MARTINS, A. Evidencialidade no discurso dos media. In: Estudos Linguísticos/Linguistic Studies. Lisboa: Edições
Colibri/cluni, 2010.
OLIVEIRA, M. R. Preconceito linguístico. In: PERES, Deila Conceição; et al. (Org.) 1º seles – Seminário sobre Leitura e
Escrita. Avaliação da redação no vestibular da uff. Niterói: EdUFF, 2006.
SCHERRE, M. M. P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005.
TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. São Paulo: Cortez, 2003.
IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 36 Patativa de Assaré p. 45 O escritor Eça de Queirós em 1882 p. 50 Frorianópolis
Autor desconhecido · O Nordeste.com Photographia Contemporanea Paulo Vitor Bastos · Estácio
Domínio Público
p. 37 Mensagem p. 50 Lima Barreto
Tainara Oliveira · Estácio p. 45 Machado de Assis Autor desconhecido · Wikimedia . cc
Autor desconhecido · abl
p. 39 Favela
Eduardo Trindade · Estácio p. 47 Oswald de Andrade
Auto desconhecido · Domínio Público
p. 39 Manuel Bandeira
Autor desconhecido · abl p. 48 Guimarães Rosa
Revista Pájaro de Fuego – nº18 –
p. 44 Disco Forró do Gonzagão
agosto 1979
Divulgação · Sony/BMG
capítulo 2 • 51
Linguagem,
3 unidade e
diversidade
RESUMO
Afinal, que português é esse que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala?
Para refletirmos sobre tal assunto e chegarmos a uma resposta consistente e
objetiva, neste capítulo, vamos tratar dessas questões, abordando a variedade
mais estigmatizada, popular: a língua vernacular. Abordaremos, também, as di-
ferenças e as correspondências entre fala e escrita, considerando os recursos
linguísticos específicos a cada uma dessas modalidades.
54 • capítulo 3
Língua vernacular CURIOSIDADE
Se você consultar o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portugue- Vernáculo:
sa, encontrará a seguinte abonação para vernáculo: “a língua própria A palavra vernáculo deriva da forma
de um país ou de uma região; língua nacional, idioma vernáculo”. latina verna, cujo significado é
Nos estudos linguísticos, vernáculo é todo uso linguístico conside- “escravo nascido na casa do senhor,
em cativeiro; nativo”. Veja só que
rado popular, incluindo gírias, regionalismos, e também aquilo que a
interessante! Podemos até fazer uma
tradição gramatical considera “erro”, como a falta de concordância, por analogia com a relação existente
exemplo, ou ainda o emprego de palavras socialmente desprestigiadas. entre o português brasileiro – que
Variações no léxico (vocabulário), na prosódia (forma de pronun- nasceu “escravo” – e o português
ciar) e na sintaxe (concordância, emprego dos pronomes oblíquos áto- lusitano – idioma da casa do “senhor”,
nos, por exemplo), são comumente alvos de análise não só por parte de o colonizador.
EXEMPLO
EXEMPLOS DE VARIAÇÕES DESPRESTIGIADAS (não padrão)
Variação no léxico “arribar”, em lugar de “melhorar de saúde”
Normalmente, essas variações são mais frequentes entre as camadas mais pobres, menos
escolarizadas, não urbanas, e os falantes costumam sofrer forte preconceito linguístico.
EXEMPLO
Filho de Marquezine Perdeu, Fani se
Constância curte show Albertinho! empolga e
manda o e reclama de Gilda se dá selinho
funcionário do ‘excesso’ de encanta pelo em Aslan na
clube entregar namorados: capoeira piscina
um bilhete para ‘Encalhada?’ Chico
a morena, e
rola um clima
Exemplos retirados da página do jornal online Globo.com.
entre os dois Acesso em 19 de janeiro de 2013.
capítulo 3 • 55
Os exemplos listados reproduzem usos bastante atuais, em que gírias e co-
loquialismos, como “perdeu”, “rola”, “curte” e “dá selinho”, ajudam a transmi-
tir a mensagem com bastante propriedade, sem incorrer em inadequação de uso.
A proposta do jornal – de enfocar assun-
tos voltados à programação televisiva e es-
Trata-se de uma linguagem
portiva – pode justificar o emprego des- adequada ao perfil do jornal
sas variantes linguísticas. e à situação comunicativa
Como se pode ver, até mesmo a im-
de menor formalidade.
prensa escrita usa termos tratados, nor-
malmente, com discriminação. Então, por que não são comuns críticas direcionadas
aos jornalistas que escrevem tais matérias? Por que somente a fala dos jovens, dos la-
vradores ou das domésticas, por exemplo, são consideradas “erradas”?
Linguistas têm outra compreensão desses fenômenos. Vejamos o que dois deles afir-
mam em relação ao uso popular e ao ensino de língua:
Para Dante Lucchesi (2006, p. 88), a norma Para Roberto Camacho (2013): “A tradição da
popular “emerge do uso da grande maioria da instituição escolar consiste em não apenas ignorar
população do país, desprovida de educação formal a legitimidade da variação linguística, mas também
e dos demais direitos da cidadania, com os submeter as variedades linguísticas ao critério de
previsíveis reflexos na língua da pluralidade étnica correção, como uma peneira fina. O que passa é
que está na base da sociedade brasileira”. um conjunto de expressões vinculadas ao registro
formal da modalidade escrita e o que sobra é
estigmatizado como realizações incorretas e
deficientes em confronto com a matriz de valores
eleita como a variedade-padrão”.
Voltando ao preconceito linguístico, é importante lembrar que ele veicula uma ideia
desfocada – esta, sim, um erro com tudo de negativo que a palavra pode significar – so-
bre as variedades linguísticas do Brasil. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, em todas as
regiões, temos falares diversos.
Concluindo esta primeira seção, po-
São falares regulares,
demos considerar respondidas aque- sistemáticos, acatados
las perguntas iniciais, suscitadas pela por toda a comunidade
menção ao português do ex-Presidente
linguística a que o
Luiz Inácio Lula da Silva. É muito prová-
vel que as críticas feitas à sua expressão
usuário pertença.
verbal estejam diretamente relacionadas à origem humilde de Lula, já que o próprio
ex-Presidente nunca escondeu sua difícil história de vida, nem, em consequência,
sua baixa escolaridade. É importante deixar claro, também, que normalmente temos
contato, por meio da televisão, com a fala de Lula, e a modalidade falada de qualquer
usuário de qualquer língua é menos formal do que a escrita. É sobre este assunto que
vamos tratar a partir de agora.
56 • capítulo 3
Propriedades do texto falado
Na análise das marcas constitutivas do texto falado, vamos partir da transcrição do
relato de opinião de uma aluna universitária do Rio de Janeiro, a Valéria. Ela deu seu
depoimento ao Grupo de Estudos Discurso & Gramática, no final da década de 1990,
tratando da situação política do Brasil, em uma escolha temática a partir das suges-
tões apresentadas pelo entrevistador.
Como se trata de texto falado, o fragmento é transcrito de acordo com critérios específi-
cos e consensuais na área dos estudos linguísticos, assim definidos:
capítulo 3 • 57
Propriedades do texto falado: a fragmentação
Um rápido olhar na transcrição do relato falado de Valéria já nos aponta traços constituti-
vos próprios dessa modalidade. Uma de tais propriedades diz respeito à relativa fragmen-
tação do texto falado. Dizemos “relativa” por comparação ao formato dos textos escritos em
geral, com os quais nossos olhos já estão muito acostumados, pelos anos de escolarização
envolvendo escrita e leitura que acumulamos até hoje.
Observamos na transcrição, por exemplo, uma profusão de frases curtas margeadas por pausa (no caso,
cada sinal de reticência representa uma parada ou quebra no fluxo da informação). São sequências como
por exemplo: tudo o que está acontecendo a gente está vendo... não é o que era antigamente... onde... a
gente não... sabia de nada... ficava tudo escondido..., em que registramos seis dessas frases curtas.
COMENTÁRIO
Esse é um traço muito típico de textos falados – via de regra, emitimos pequenos “jatos” de in-
formação, e o conjunto desses fragmentos, proferidos em sequência, é que acaba por compor a
totalidade da informação veiculada, tal como no fragmento aqui ilustrado.
Além de frases curtas, outra marca contextual da fala que concorre para a proprieda-
de de fragmentação é a presença explícita da hesitação. Como se trata de modalidade
falada, o tempo de planejamento de que dispomos para a elaboração de textos, compa-
rado ao tempo para a produção da modalidade escrita, é bem menor. Alguns especialis-
tas chegam a considerar que, na fala, o planejamento é quase online, no sentido de que
temos pouquíssimo tempo, por vezes menos de um segundo, para pensarmos, selecio-
narmos o conteúdo e nos expressarmos oralmente. Vamos voltar ao texto de Valéria:
Ao ser apresentada pelo entrevistador às opções de tema para dar sua opinião (agora eu queria
que você me dissesse a sua opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da edu-
cação... no Brasil...), a universitária inicia seu relato com alguma hesitação –
eh... só se/ política...,
parecendo não ter muita certeza, nesse momento inicial, se de fato queria escolher a política
para opinar. Valéria está diante do entrevistador e é chamada a elaborar seu depoimento: a hesi-
tação é considerada, em ambientes de fala, como traço constitutivo dessa prática discursiva. Não
se trata de erro ou defeito; é simplesmente a manifestação da relativa insegurança e do pouco
tempo de planejamento de que todos nós dispomos ao nos expressarmos oralmente.
RESUMO
A hesitação pode ser usada como estratégia, entre outras motivações, para que o locutor ganhe algum
tempo, enquanto (re)formula seu texto. No caso de Valéria, o tema da falta de liberdade de expressão
e da censura pode a ter levado a produzir os alongamentos aqui ilustrados.
58 • capítulo 3
Uma terceira característica da fala que concorre para a impressão CURIOSIDADE
geral de fragmentação é o que chamamos de ruptura ou truncamento
(marcado na transcrição pela barra inclinada /). Trata-se de uma estra- Marcas de fragmentação:
tégia que, tal como a hesitação, tem muito a ver com o pouco tempo Pense nas situações de fala a que você
de planejamento do texto falado. É comum, nesse sentido, mudarmos é exposto no dia a dia, no certo grau de
nossa rota de expres- tensão, de insegurança e de hesitação
são, trocarmos de as- Ao falar, estamos de certa que esses contextos motivam. Veja
como é “natural” a fragmentação de
sunto em meio ao que forma mais “autorizados” nossas produções faladas e como tal
já havíamos iniciado. a fazermos correções de propriedade é inerente a esse tipo de
As correções de prática discursiva. Observe o número
rumo, que são explicitadas
rumo dependem de de frases curtas, hesitações, alonga-
muitos fatores, desde no próprio texto. mentos e rupturas que caracterizam
nossas produções faladas.
a mudança de nosso planejamento e das escolhas pessoais, até altera-
ções das condições de recepção do interlocutor, entre muitas outras.
COMENTÁRIO
A referência temporal agora diz respeito à época em que a aluna elaborou o
texto – o final dos anos 1990, momento em que o Brasil entrava mais efeti-
vamente no regime democrático (relativo ao termo abertura maior), inclusive
com o plebiscito sobre o regime de governo (parlamentarista, presidencialista
capítulo 3 • 59
CONCEITO ou monárquico). A menção ao que está acontecendo com o país relaciona-se
novamente ao momento de transição rumo à redemocratização no Brasil, que
Marcadores discursivos: é retomado a seguir com a inversão dos termos (tudo o que está acontecendo
Marcadores discursivos são itens, a gente está vendo...). Essas referências ao momento presente contrastam
em geral tomados de empréstimo com a declaração não é o que era antigamente, em alusão ao período anterior
de outras classes gramaticais do aos anos 1990 no Brasil.
português, que são articulados com
o intuito de provocar a adesão e a
Outra estratégia muito ancorada na situação contextual é a utili-
anuência do interlocutor ao que está
sendo dito. Estamos nos referindo a zação de pronomes. No caso de textos falados, esses pronomes, mui-
termos como né?, pô e sei lá, ilustra- tas vezes, não são aqueles listados nos compêndios gramaticais do
dos no texto de Valéria. português; trata-se de usos meio “marginais”, que surgem e se con-
sagram na fala, conferindo a este tipo de produção um traço de maior
informalidade se comparado aos textos escritos.
Valéria utiliza muito a gente (tudo o que está acontecendo a gente está
vendo; a gente está sabendo), para se referir não só a ela como ao povo
brasileiro em geral. A aluna usa ainda termos genéricos, que têm seu senti-
do preenchido no texto (fulano roubou; não sei quem foi preso; o pessoal
também está... com medo disso...; ficava todo mundo mais alienado).
COMENTÁRIO
Esses termos, aparentemente imprecisos e vagos, são usados com toda a
propriedade em produções faladas, uma vez que a situação comunicativa
trata de preencher seu sentido.
60 • capítulo 3
Propriedades do texto falado: a reiteração CONCEITO
A terceira propriedade que caracteriza a fala é a reiteração. Se, em Ressonância:
textos escritos, o que declaramos pode ser lido e relido, o que evita Segundo esse postulado, quando
repetições ou paráfrases, na fala; pelo contrário, é mesmo pertinente falamos utilizamos recursos linguísti-
e necessária a reiteração, o reforço do que dizemos. cos que foram usados pelos interlo-
cutores; assim, nossa fala acaba por
“ressoar”, repetindo e reiterando o
RESUMO que foi dito imediatamente por outro.
Tal reforço tem a ver não só com a necessidade de clareza, ênfase e convenci-
mento como também com a preocupação em relação ao interlocutor, com sua
capacidade de memorização de informações em curto prazo.
Assim, a afirmativa inicial de que agora está tendo uma abertura maior é logo
retomada na paráfrase (a gente) está vendo o que está acontecendo, na
sequência reformulada em tudo o que está acontecendo a gente está vendo.
Ao longo do texto, Valéria vai retomando a tese inicial, o que vem reforçar
sua opinião e garantindo, por tabela, o convencimento de seu interlocutor.
capítulo 3 • 61
Inicialmente, sua pergunta das três? configura-se como retomada dos três eixos sobre os quais
poderia falar e que foram propostos pelo entrevistador: agora eu queria que você me dissesse a sua
opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da educação... no Brasil... A resposta
do entrevistador, por sua vez, ressoa e retoma também a pergunta da Valéria: não... de uma... das
três... Na sequência final do relato, novamente o entrevistador intervém como a declaração você...
é a primeira otimista [que eu entrevisto]; logo após, inclusive sobrepondo-se à fala do entrevistador
(como marcado pelos colchetes), Valéria reitera essa referência com [eu tenho... ] eu tenho espe-
rança, em uma declaração que posteriormente ainda é retomada em que se eu não acreditar... fica
um pouco sem sentido e, por fim, em vamos tentar lutar para melhorar isso aí.
Ficou claro, até agora, como no texto falado as informações são retomadas, seja de
forma literal, seja como paráfrase; observa-se também como nos apropriamos de per-
guntas e declarações de nossos interlocutores a fim de elaborarmos criativamente nos-
sas produções faladas.
RESUMO
Somos menos originais do que podemos supor; nossa fala tem mais expressão do que propriamente con-
teúdo novo... Enfim, falar é retomar, reelaborar e repetir, sejam as próprias declarações, sejam as de outros.
A respeito da situação política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando deque
cada um, é, de algum modo, responsável pela “vida” do País. Os meios de comunicação per-
ceberam a arma que tem nas mãos e com a dita democracia ficou mais fácil deles desempe-
nharem a função de informantes, que informam o que as pessoas estão interessadas em ser
informadas e não aquela “incheção de linguiça” que não nego ainda existi, mas que a cada dia
que passa vem sendo mais criticada, acho que as pessoas estão mais acordadas, principal-
mente os jovens, que foram às ruas e tiveram a sensação de tirar um Presidente do governo.
Hoje, a sujeira está mais às claras, todos ficam sabendo. Antes quando tudo era mais censu-
rado, as coisas aconteciam, mas ninguém ficava sabendo.
Tenho esperança de que um dia as coisas entrem nos eixos, que esta tão falada moralização,
definitivamente impere e tenho certeza de que se todos fizessem sua parte seria bem mais fácil,
faço a minha, mas sei que posso fazer mais. Acho que é por aí.
62 • capítulo 3
A primeira leitura do texto escrito já indica que estamos diante de CURIOSIDADE
outra prática discursiva. Comparadas as três propriedades básicas da
fala (fragmentação, situacionalidade e reiteração), tratadas na subseção
anterior, temos aqui marcas distintivas. Levando-se em conta que se tra-
ta da mesma pessoa, Valéria, discorrendo sobre o mesmo tema, no mes-
mo tipo de texto, de caráter dissertativo, as distinções aqui destacadas
são entendidas como efetivamente ligadas às condições de produção de
modalidade distinta, no caso a escrita.
Uma dessas implicações reside no formato mais compactado da
escrita, em comparação à fragmentação da fala. Na versão escrita,
Valéria utiliza frases mais longas e encadeadas. A disposição do tex- Condições de produção:
to, organizado em torno de períodos compostos por coordenação e Essa constatação evidencia que todos
subordinação, distribuídos em três parágrafos, concorre para que se nós, ao falar e escrever, portamo-nos
instaure essa marca de maior condensação da escrita. linguisticamente de modo diferencia-
do, dadas as características inerentes
a cada tipo de produção. Nesse caso,
Já no primeiro período, destaca-se tal característica: A respeito da situação
não se trata da nossa escolha ou von-
política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando de que cada tade, mas simplesmente de outro tipo
um é, de algum modo, responsável pela “vida” do país. Após anunciar o tema de contextualização que nos impõe
sobre o qual discorre (a respeito da situação política do país), a aluna formula comportamento diverso, o que tem
sua opinião valendo-se do encadeamento de três estruturas oracionais, mar- fortes implicações do ponto de vista
linguístico, entre outros.
cadas pelos usos verbais eu acho que, se conscientizando e é responsável.
RESUMO
Se, no texto falado, a unidade é obtida por intermédio da continuidade de frases
curtas, hesitações e rupturas, no texto escrito o caráter unitário se consegue por
meio de outras estratégias, como a maior integração de frases, organizadas em
períodos maiores e distribuídos em parágrafos.
capítulo 3 • 63
CURIOSIDADE CONTINUIDADE NA FALA CONTINUIDADE NA ESCRITA
Articula-se pela justaposição de Maior integração de sentido e
Reiteração: frases curtas, entremeadas por forma, organizada em torno de
Esse menor recurso aos elementos hesitações e rupturas. frases e períodos mais longos e
reiterativos tem a ver com as condi- parágrafos.
ções da escrita, em que tanto escrito-
res como leitores podem, a qualquer
Em termos de situacionalidade, a segunda propriedade abordada
momento, retomar o texto, ler nova-
na subseção anterior, também as condições de produção apresentam
mente o que está escrito.
distinções. Enquanto, no texto falado, Valéria confere com o entrevis-
tador o tema sobre o qual vai discorrer, no texto escrito, ela já parte
dessa definição anterior (A respeito da situação política do país).
Tal característica aponta o maior tempo de planejamento da escrita, a preparação
RESUMO
que se dá previamente e que evita, na elaboração das produções escritas, que
essas marcas sejam expressas. Se ainda temos referências ao momento em que
se dá a produção escrita, como o uso de hoje e antes, por exemplo, por outro lado,
estas referências são mais esporádicas do que no texto falado.
RESUMO
Embora não sejam muito formais, as referências pronominais da escrita podem
ser consideradas mais convencionais e próximas do que descreve e prescreve a
tradição gramatical do português.
64 • capítulo 3
Sintetizando o que vimos até agora: podemos dizer que fala e es- CONCEITO
crita apresentam distinções em termos de:
Centralidade temática:
PRINCIPAIS DISTINÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA Significa dizer que falamos e es-
crevemos “sobre” um assunto, um
- Fala é mais fragmentada;
Distribuição das informações - Escrita é mais compactada.
tema geral, ainda que, como no caso
da fala, possamos nos desviar da
- Fala é mais apoiada nos elementos da proposta inicial, com hesitações e
situação comunicativa (contexto imediato); rupturas em relação ao que começa-
- Escrita é baseada na utilização de código mos a declarar.
Contextualização
específico (ortografia, acentuação,
pontuação, paragrafação).
MULTIMÍDIA
Para fecharmos esta subseção, vamos assistir ao vídeo a se-
guir, em que os professores e linguistas Angela Dionísio e
Luiz Antônio Marcuschi tratam das modalidades falada e es-
crita como “multimodais”. Que característica é essa? Do que
falam esses especialistas? Vamos lá!
capítulo 3 • 65
CONCEITO deve responder a perguntas como: de que trata esse texto? Qual o tema
desenvolvido? O que aborda? Se essas respostas não puderem ser da-
Organização sintática: das, estamos diante de produções com falha ou deficiência, em termos
Em português, a ordem/organiza- de articulação de sentido.
ção mais comum e regular é aquela Assim posto, os relatos de Valéria são entendidos como compe-
sintaticamente referida como svo tentes produções, na medida em que manifestam, efetivamente, a
(sujeito + verbo + objeto), chamada
opinião da aluna acerca da situação política do Brasil. Ao final de
“ordem padrão”. É essa ordem que a
cada relato, é possível ao interlocutor saber a opinião referida.
comunidade linguística mais facilmen-
te produz e recebe as manifestações
linguísticas. RESUMO
Dizemos, assim, que se trata de produções com centralidade temática, com foco
sobre aquilo que efetivamente se quer desenvolver e se desenvolve.
Assim, tanto nas muitas frases curtas do texto falado de Valéria (como
em fulano roubou... a gente está sabendo... eh:: não sei quem foi preso...),
quanto nos períodos maiores e mais complexos de seu texto escrito
(como em as coisas entrem nos eixos... se todos fizessem sua parte seria
bem mais fácil... faço a minha...), a ordenação svo está presente.
66 • capítulo 3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALAMBERT, Francisco. A Semana de 22: a aventura modernista no Brasil. Rio de Janeiro: Scipione, 1992.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do português contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
DU BOIS, John. Discourse and Grammar. In: TOMASELLO, M (ed). The New Psychologie of Language: cognitive and
functional approaches to language structure. v.2. London: Lawrence Erlbaum, 2003, p. 47-87.
LUCCHESI, Dante. Parâmetros sociolinguísticos do português brasileiro, Revista da ABRALIN, v.V, nº 1 e 2, 2006, p. 83-112.
ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática normativa da língua portuguesa. 28 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1987.
TEYSSIER, Paul (Tradução Celso Cunha). História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 54 Presidente Lula
Ricardo Stuckert · Planalto
p. 63 Agendando compromisso
Autor desconhecido · Office
capítulo 3 • 67
Gênero,
4 tipologia
e sentido
70 • capítulo 4
Três textos servirão de começo para nossos estudos. O primeiro é um poema-música de
Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes, denominada Contato imediato (disco
Qualquer, de Arnaldo Antunes, 2007):
Peço por favor / Se alguém de longe me escutar / Que venha aqui pra me buscar / Me leve para
passear / No seu disco voador / Como um enorme carrossel / Atravessando o azul do céu /
Até pousar no meu quintal / Se o pensamento duvidar/ Todos os meus poros vão dizer / Estou
pronto para embarcar / Sem me preocupar e sem temer / Vem me levar / Para um lugar / Longe
daqui / Livre para navegar / No espaço sideral (...)
“Estou pronto para embarcar / Diz estar preparado para mudar sua vida
radicalmente, sem medo do novo, aberto para
sem me preocupar e sem temer” novas experiências.
COMENTÁRIO
O poema-música aponta um modo de dizer ao outro, lançar um pedido, fazer um contato, não por
um meio tecnológico, mas pela poesia; e o seu contexto nos diz do deslizamento de sentido que a
poesia permite, qual seja, da viagem espacial para a viagem amorosa.
capítulo 4 • 71
AUTOR Seriam as maravilhas do fantástico, do sonho e dos delírios mais
estranhos que a personagem vive na ficção maravilhosa, ou seriam
Lewis Carroll: as maravilhas de uma Alice que tem lá seu cotidiano cheio de graça?
Charles Lutwidge A abertura de sentidos, ou seja, a possibilidade de surgirem novos
Dodgson (1832-1898) sentidos onde antes só existia um, está aqui fazendo funcionar dados
sempre foi mais de um contexto: o da cidade imensa (talvez sem tantas maravilhas de
conhecido por seu
inventar) e o da obra literária.
pseudônimo, Lewis Carroll. Estudou
Matemática na Universidade de Oxford
e lá se tornou professor. Em suas
obras, há presença de enigmas, jogos O gênero discursivo
matemáticos e desafios de lógica,
ainda que implícitos. Sua obra mais Os dois exemplos que vimos colocam-nos diante de um conceito impor-
famosa é Alice no país das maravilhas,
tante para compreender o funcionamento dos textos: o gênero discursivo.
publicada em 1865.
Refletindo sobre o termo, notamos que é muito amplo, sendo em-
pregado em vários campos do saber. Vejamos alguns exemplos:
AUTOR Neste capítulo, o objeto é o gênero discursivo, e ele tem longa história.
Para começarmos a falar de gênero textual, vamos partir de um
Mikhail Bakhtin: filósofo russo da linguagem, Mikhail Bakhtin (2003), que fundou al-
Mikhail Mikhailovich guns conceitos importantes, como:
Bakhtin (1895-1975)
foi um filósofo e Processo de interação entre textos orais e escritos,
pensador russo, des- Dialogismo posto que eles sempre se remetem e continuam em
tacando-se por seus estudos nas áreas outros textos posteriores.
de crítica literária, filosofia da linguagem
e antropologia, entre outras. Atribui-se Termo emprestado da música que significa as várias
a ele o pioneirismo nas pesquisas sobre Polifonia vozes que percorrem os textos e os discursos.
polifonia e gêneros do discurso.
Manifestação da cultura popular e, a partir da leitura e
análise da obra de François Rabelais, na Idade Média e
Carnavalização no Renascimento, define-se tal termo como um processo
de desestabilização, subversão e ruptura do mundo oficial
e das convenções estabelecidas.
72 • capítulo 4
Bakhtin debruçou-se de modo mais alentado sobre o tema e definiu que CURIOSIDADE
gênero são formas “relativamente estáveis” de um enunciado, determina-
das historicamente, com as quais nos comunicamos, falamos e escrevemos. Formas infindáveis de gêneros:
Não há possibilidade de enunciar e/ou tomar a palavra sem mo- Você já teve um diário ou ao menos
bilizar as formas infindáveis de gêneros com os quais lidamos desde se lembra de um? A maioria já teve
que aprendemos a falar e escrever. diversos desses livros em que se re-
gistram ideias, opiniões, sentimentos,
utilizando uma linguagem mais infor-
REFLEXÃO mal, tendo o uso do vocativo presente
(“querido diário”). Pois então, assim
“A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as pos- como em qualquer gênero discursivo,
sibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera o diário possui características linguís-
de atividade contém um repertório inteiro de gêneros discursivos que se diferen- ticas específicas.
PRIMÁRIOS SECUNDÁRIOS
EXEMPLOS EXEMPLOS
As conversas de elevador, a carta, o Roteiro de uma peça de teatro, uma
bilhete, chat etc. tese, uma palestra etc.
capítulo 4 • 73
que se originam muitos dos relatos, nar- No fundo, o que marca
rativas e enunciados levados a termo pela
a diferenciação entre os
literatura, jornalismo etc.
Essa teorização nos coloca diante de dois gêneros é o nível de
um impasse: como definir o fio que separa complexidade em que os
um gênero de outro? Como classificar, enunciados se apresentam.
sem dúvidas, algum texto? De que modo
teríamos condições de fixar as fronteiras entre gêneros se o próprio Bakhtin observou a
porosidade entre eles? Vamos ver um exemplo:
EXEMPLO
Fonte: ROSA, João Guimarães. Ooó do Vovô. São Paulo: Edusp, 2003.
COMENTÁRIO
Esse ponto de brincar com a língua da netinha, de desenhar, o jeito de estar com ela a despeito da
distância, de adaptar a escrita esbarrando na oralidade, como vimos, traça um modo de funcionamento
mais próximo da informalidade, um registro espontâneo e sem preocupação com a complexidade –
embora isso seja extremamente trabalhoso, diga-se de passagem.
74 • capítulo 4
Porém, as mesmas características estão em passagens de romances AUTOR
e contos de Rosa, como marcas de informalidade e do dizer espontâ-
neo para caracterizar personagens, por exemplo. Eni Orlandi:
Pesquisadora,
RESUMO professora universi-
tária e introdutora,
no final dos anos
No entender de Bakhtin, no romance, tais marcas de espontaneidade ganham
1970, da Análise do
corpo de gênero secundário, posto que o estatuto de complexidade do discurso
Discurso no Brasil. Eni Orlandi é au-
é maior e está mediado pela escrita. De certo modo, elas derivam de situações tora de diversas obras relacionadas à
menos formais em que a língua foi posta à prova na cotidianidade e desdobrada teoria do discurso. Em 1993, venceu o
em situações menos compromissadas com o rigor de uma formalização. prêmio Jabuti em Ciências Humanas,
com o livro As Formas do silêncio.
ATENÇÃO
Esquerda:
Preocupada em discutir a interação entre sujeitos, a autora aposta que “todo fa- Na política, o termo "esquerda" deriva
lante, quando diz algo a alguém, estabelece uma configuração para seu discurso”. da Revolução Francesa. Durante uma
(ORLANDI, 1996, p. 153) votação na Assembleia Nacional
Constituinte, em 28 de agosto de 1789,
deputados que se opunham à proposta
Como exemplo podemos citar, a título apenas de passagem, que de “veto do rei” sentaram-se à esquer-
dizer "esquerda", em diferentes momentos da vida política nacional, da do assento do presidente, o que
teve implicações muito diferentes. Ou seja, essa palavra (e qualquer tornou-se um costume na demarcação
outra) colocada em um discurso reclama que olhemos as condições entre o apoio à República e o apoio
de produção em que foi proferida, o modo como as relações de poder à Monarquia. Na imagem você vê um
dos símbolos artísticos da Revolução
estão estabelecidas na trama social, o lugar que o sujeito ocupa e de
Francesa, o quadro A liberdade guiando
onde fala historicamente.
o povo (1830), de Eugène Delacroix
Tal pressuposto faz cair por terra a máxima da neutralidade absolu- (1798-1863).
ta, isto é, de que haveria uma relação direta, isenta de posicionamento
capítulo 4 • 75
e correspondente entre palavra-mundo, que o sujeito A palavra é sempre um
deveria preservar em sua fala para ser fiel à realidade.
ato político no sentido
Por exemplo, ao dizer “terra”, não tomamos
essa palavra como neutra e dicionarizada, isenta do
mais amplo do termo.
político; dizer “terra” implica tomar o sujeito que a diz e de onde ele se situa para fazê-lo.
EXEMPLO
RESUMO
Não é de acreditar que uma palavra será dita e significada do mesmo modo por todos igualmente, visto
que os sentidos, na trama social, são distribuídos de modo heterogêneo, desigual e contraditório. Por
isso, dizer “terra” tem como implicação assumir-se em uma posição e produzir sentidos a partir dela.
A dinâmica da interlocução, por sua vez, é o modo como a troca de papéis entre lo-
cutor e ouvinte se materializa no discurso.
ATENÇÃO
No momento de dizer, os sujeitos atribuem uma imagem do lugar social que ocupam, ou seja, fazem uma
representação para si mesmos desse lugar. Também fazem uma imagem, uma representação do lugar
ocupado pelo interlocutor. E, finalmente, também atribuem sentidos ao objeto que está em discurso.
Por ora, interessa compreender que essas imagens, ou representações, estão me-
diando os movimentos de interlocução e isso produzirá maior ou menor abertura à
polissemia, à troca de turnos, à poética e ao deslizamento de sentido.
76 • capítulo 4
Tipologia discursiva CONCEITO
Entendemos, assim, que o estudo da tipologia discursiva sinaliza a Paráfrase e polissemia:
possibilidade de analisarmos o movimento tenso entre a paráfrase Paráfrase é, em resumo, dizer o mesmo
– repetição e manutenção dos sentidos legitimados – e a polissemia – com outras palavras, conservando as
possibilidade do novo e emergência do sentido outro. ideias trazidas no enunciado original.
Eventualmente, na paráfrase acrescen-
Eni Orlandi define, então, uma tipologia discursiva com três mo-
tam-se comentários ou informações
dos de funcionamento: novas, mas sempre com o intuito de
ratificar o texto original. A polissemia,
• Discurso lúdico;
por sua vez, é o fenômeno natural em
• Discurso polêmico; que qualquer palavra adquire sentidos
• Discurso autoritário. múltiplos, múltiplas interpretações, de
acordo com as condições de produção
e as posições de sujeito assumidas,
COMENTÁRIO entre outros.
Em cada um deles há “uma atividade estruturante de um discurso determinado, para
um interlocutor determinado, por um falante determinado, com finalidade específica”.
(ORLANDI, idem, p. 153)
Discurso lúdico
EXEMPLO
Assum preto
Tudo em vorta é só beleza / Sol de abril e a mata em frô / Mas Assum Preto,
cego dos óio / Em um vendo a luz, ai, canta de dor (bis) / Tarvez por ignorança /
Ou mardade das pió / Furaro os óio do Assum Preto / Pra ele assim, ai, / cantá
de mió (bis) / Assum Preto véve sorto / Mas em um pode avuá / Mil vez a sina
de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse oiá (bis) / Assum Preto, o meu
cantar / É tão triste como o teu / Também roubaro o meu amor / Que era a luz,
ai, dos óio meus / Também roubaro o meu amor / Que era a luz, ai, dos óios meu
Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (1950)
capítulo 4 • 77
AUTOR No poema, o eu poético e o pássaro não conseguem ver que “em
vorta é só beleza”. Nesse discurso, não há interesse em ser dono de
uma verdade sobre o pássaro ou sobre os efeitos de vida, prisão e li-
berdade. Busca-se trazer um sentimento, a partir de uma analogia,
que permite a qualquer interlocutor interpretar, aplicar em sua reali-
dade, ser atravessado por aqueles sentidos.
COMENTÁRIO
José Miguel Wisnik:
José Miguel Soares Wisnik (1948) A cantoria brinca com a cegueira dos “óio” que veem sem enxergar o amor, e
é professor de Literatura Brasileira isso coloca em jogo uma polissemia aberta, produzindo novas significações em
na Universidade de São Paulo, além virtude do efeito paradoxal ali estabelecido (“ver” e “não ver” ao mesmo tempo).
de músico e compositor de discos e
trilhas sonoras. Publica regularmente
Continuando nessa concepção, veremos na música a seguir que
textos sobre música e literatura.
um diálogo se estabelece pelo nome do pássaro e pela forma como o
sujeito se coloca diante dos sentidos de amor e liberdade.
EXEMPLO
Assum Branco
Quando ouvi o teu cantar / Me lembrei nem sei do quê / Me senti tão só / Tão
feliz tão só / Só e junto de você / Pois o só do meu sofrer / Bateu asas e voou /
Para um lugar / Onde o teu cantar / Foi levando e me levou / E onde a graça de
viver / Como a chuva no sertão / Fez que onde for / Lá se encontre a flor / Que
só há no coração / Que só há no bem-querer / E na negra escuridão / Assum
preto foi / Asa branca dói / Muito além da solidão
José Miguel Wisnik (álbum Pérolas aos poucos, 2010)
REFLEXÃO
O primeiro texto, de Luiz Gonzaga, possui polissemia tão marcadamente aberta que
permite, inclusive, outros efeitos de sentido para outros poetas, como visto no texto
de José Miguel Wisnik. Esses dois textos, que consideramos de tipo lúdico, abrem
caminho para que sentidos fluam e a dinâmica de interlocução se materialize.
78 • capítulo 4
Discurso polêmico
COMENTÁRIO
O que tal voz coloca em cena é a cidade como lugar prioritário para a circulação de carros, ou seja,
daqueles que possuem carros e consequentemente outros bens (casa, por exemplo).
A resposta de um dos muitos que estão vivendo nas ruas aponta outra voz e coloca a
cidade em disputa tensa pelos sentidos não de circulação, mas de moradia. Obras como
viadutos e elevados são discursivizados como locais de ocupação e como promessa do
fim dos problemas da casa própria.
ATENÇÃO
As vias públicas da cidade são tomadas pelos interlocutores a partir de diferentes posições e, ao modo de
uma disputa, cada um responde pela posição que ocupa e pela imagem que traça do espaço que habita.
Discurso autoritário
capítulo 4 • 79
“A verdade é imposta”, afirma Orlandi (1996, p. 155), e a paráfrase se estabelece
como única via possível. Repetir o mesmo e copiar o estabelecido sem questionamento
e sem que o interlocutor possa se posicionar.
Outra ilustração aponta para o que estamos explicando. Ele faz falar a assimetria e a
voz de comando que sustentam o discurso autoritário.
ATENÇÃO
Embora a fantasia faça parecerem próximas ou iguais as duas pessoas, o dizer de uma delas silencia qualquer
possibilidade de semelhança, inscrevendo a voz de autoridade na relação patrão e empregado. No tempo
presente, não há caminho aberto para colher a resposta do empregado, pois a reversibilidade é zerada.
Situações de oralidade
A tipologia proposta por Orlandi traz a possibilidade de compreensão, em cada
texto, seja falado ou escrito, dessa tensão inscrita na língua em uso. Vamos seguir
adiante com esse tópico da língua em uso
pensando, agora, exclusivamente em situa- “A palavra é irreversível,
ções de oralidade. tal é a sua fatalidade.”
Para Barthes, não se pode retomar o que Roland Barthes
foi dito, “a não ser que se aumente: corrigir
é, nesse caso, estranhamente, acrescentar. Ao falar, não posso usar a borracha, apa-
gar, anular; tudo o que posso fazer é dizer: ‘anulo, apago, retifico’, ou seja, falar
mais”. (1988, p.90)
80 • capítulo 4
Que tal exemplificarmos? Acompanhemos, a seguir, uma conver-
sa entre uma avó e seus netinhos:
CONCEITO
EXEMPLO Homofonia:
Homofonia são palavras pronuncia-
“Vamos, Julinha, vamos Pedrinho, está na hora de ir para a caminha. Hoje temos das de maneira semelhante, mas que
de dormir com as galinhas. Amanhã vamos bem cedo para a praia”, disse a vovó são escritas de maneiras diferentes e
possuem significações distintas.
para os netinhos de 6 e 4 anos, respectivamente. “Dormir com as galinhas? Que
esquisito!”, exclamou Pedro. “Por que vamos dormir com as galinhas? Eu não
quero!”, estranhou Júlia fazendo uma careta. A vovó riu muito e explicou para os
netos o que a expressão “dormir com as galinhas” queria dizer.
No diálogo entre a avó e os netos, fica claro que, diante de uma pa-
lavra ou expressão nova, ainda desconhecida, ou ao ouvir metáforas
e provérbios, as crianças não se acanham e logo perguntam sobre o
que parece bizarro, sem sentido.
Lembremos que, como vimos, as situações de discurso muitas ve-
zes são do tipo autoritário, quase impedindo que nos manifestemos,
seja para perguntar, seja para pedir mais exemplos, seja para discor-
dar, seja para propor outras formas de explicação.
Homofonia
Avancemos mais um pouco. Um fenômeno linguístico específico da lin-
guagem oral que muitas vezes causa
interferência na compreensão do que As homofonias,
está sendo dito é a homofonia. assim como
Em todas as línguas há palavras ho-
mófonas. Como exemplo, vejamos o
outras formas de
seguinte diálogo, que resulta da trans- ambiguidade, estão
crição de parte de uma entrevista dada na língua.
pela escritora Clarice Lispector:
capítulo 4 • 81
Homofonicamente semelhantes, sobretudo quando faladas no
REFLEXÃO
Por outro lado, poderíamos nos perguntar se entre árbitro de futebol e jogadores há
prática conversacional. Ou, ainda, em julgamentos, haveria alguma conversa ali entre o
juiz e o réu? De um modo geral, o que importa é compreender o que permite que a con-
versa prossiga ou, por outro lado, o que determina uma interrupção ou mal-entendido.
Imagine o seguinte diálogo entre dois alunos: “Que horas são?” E o outro
responde: “Hora de ir embora, já vai tocar o sinal.” Nesse diálogo, a respos-
ta é dada a partir da pressuposição de que ambos partilham um mesmo
conhecimento sobre o horário de término da aula. Por isso, um não se pre-
ocupa em responder exatamente a partir da indicação do relógio.
COMENTÁRIO
Tal diálogo nos remete ao traço polissêmico da linguagem, qual seja a
abertura para uma resposta da ordem do inesperado, já que se pode an-
tecipar de uma pergunta como aquela (“Que horas são?”) uma resposta
direta e relacionada à pergunta (“São xx horas“).
82 • capítulo 4
Quando analisamos os processos conversacionais, podemos aprender mais sobre
o funcionamento geral da linguagem, sobretudo em contextos específicos das situa-
ções de interlocução.
RESUMO
Grice quer demonstrar aquilo que é efetivamente dito e o que não é dito na constituição de uma con-
versação, de tal modo que, muitas vezes, uma pergunta ou uma resposta é dada em função de algo
que foi implicado, sugerido, significado.
A partir dessa constatação, Grice afirma que algumas implicaturas são conversa-
cionais, ou seja, estão conectadas a certas características gerais da conversação. Nesse
sentido, quando falamos não emitimos frases desconexas, mas sim esforços cooperati-
vos para gerarmos aceitação do interlocutor sobre o que e como falamos.
REFLEXÃO
“Cada participante reconhece (...) um propósito comum ou um conjunto de propósitos ou, no mí-
nimo, uma direção mutuamente aceita. Este propósito ou direção pode ser fixado desde o início
(...) ou pode evoluir durante o diálogo; pode ser claramente definido ou ser bastante indefinido a
ponto de deixar aos participantes considerável liberdade (como em uma conversação casual) .”
(GRICE, 1982 [1967], p. 86)
Para Grice, como vimos, alguns princípios gerais devem ser observados em uma conver-
sação. Em outras palavras, o autor formula um conjunto de princípios gerais, ou máximas
conversacionais, que podem funcionar como elementos para um uso cooperativo e eficaz
da linguagem, como se fossem uma espécie de guia para uma conversação bem sucedida.
ATENÇÃO
As máximas conversacionais se inserem em um princípio geral: o princípio da cooperação. Sendo
assim, podem ser divididas em quatro categorias:
Para Grice, se uma conversa é uma troca de informações, então é importante seguir a má-
xima da quantidade, por exemplo. Da mesma forma, é importante que a informação que da-
mos seja verdadeira. Assim, estaremos de acordo com a máxima da qualidade.
A cooperação entre os interlocutores na conversa também precisa ser relevante. Por
fim, se de fato temos a intenção de cooperar em uma situação de conversa, é importante
o modo de dizer.
Para que você compreenda melhor as máximas conversacionais de Grice, analise o
trecho de letra da música Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, lançada no disco Sinal
Fechado (1974), de Chico Buarque.
capítulo 4 • 83
EXEMPLO
– Olá! Como vai? / – Eu vou indo. E você, tudo bem? / – tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu
lugar no futuro... e você? / – Tudo bem! Eu vou indo em busca de um sono tranquilo... Quem sabe?
/ – Quanto tempo! / – Pois é, quanto tempo! / – Me perdoe a pressa – é a alma dos nossos negócios!
/– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem! / – Quando é que voê telefona? Precisamos nos
ver por aí! / – Pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?
REFLEXÃO
Comecemos pensando na máxima da cooperação. Houve cooperação nesse diálogo? Nesse caso, po-
demos afirmar que os dois amigos de fato investiram, no curto espaço de tempo que havia, em buscar
um princípio cooperativo a fim de estabelecerem algum intercâmbio conversacional.
COMENTÁRIO
Se avaliarmos as repostas dadas à pergunta “Como vai?”, ambos dizem que estão bem. Porém, acres-
centam que “Eu vou indo... correndo pegar meu lugar no futuro”, e “Eu vou indo em busca de um sono
tranquilo...”. Seriam essas informações necessárias, verdadeiras e relevantes? Teria havido alguma
cooperação conversacional aqui? Essas expressões são claras?
Uma conversa é, como nos diz o referido linguista, repleta de implicaturas e de re-
ticências que vão sendo significadas de várias maneiras. Assim, devemos assinalar o
quanto o estabelecimento de concatenações na modalidade oral da língua depende do
contexto de uso, ou seja, depende da situação de interlocução e das representações que
fazemos de nosso interlocutor.
RESUMO
Embora a contribuição de Grice seja extremamente relevante para os estudos da conversação, não é
possível seguir à risca as exigências das máximas conversacionais.
84 • capítulo 4
relação dos interlocutores entre si e com os objetos aos quais fazem CONCEITO
referência, relação esta que se aproxima do que estudamos anterior-
mente sobre a tipologia e o gênero discursivos. Blogs:
Blogs são páginas da internet nas
quais são publicados conteúdos de
Linguagem em contextos midiáticos: diversos tipos e finalidades, sejam
textos, imagens, músicas, vídeos etc.
o caso do blog Normalmente apresentam espaço para
comentários dos leitores.
Partimos dos conceitos já apresentados nesse capítulo para anali-
sar o uso da linguagem em contextos midiáticos; mais especifica-
mente, os blogs.
CURIOSIDADE
Os blogs são uma forma de textualização que colocam em frontei- Denise Schittine:
ra os gêneros que estudamos, já que comportam marcas da oralidade Denise Schittine, autora do livro
e de um tratamento considerado menos sofisticado dos enunciados Blog - comunicação e escrita íntima na
(gênero primário), e também materializam certo tratamento mais internet (2004), investiga o fenômeno
dos blogs, principalmente na forma
elaborado pela escrita (caracterizando o gênero secundário).
como eles substituem os velhos diá-
rios de papel.
ATENÇÃO
capítulo 4 • 85
CURIOSIDADE Blog e jornalismo
Discurso jornalístico: Sabemos que os jornais, em sua ampla maioria, dependem dos
Os manuais de redação e estilo de anunciantes e dos assinantes, ficando, desse modo, subditos aos
jornais são exemplo de certa ordem a jogos de relações de poder vigentes, bem como buscam se adequar
ser mantida, não apenas no modo de a um imaginário de liberdade e de práticas/concepções valorizadas
tratar os acontecimentos, ilusoriamente
pelos leitores/usuários do jornal.
com a certeza de uma narrativa neutra,
mas também no modo de dizer e dese-
nhar os enunciados, pasteurizados por RESUMO
regras e convenções de escrita.
Na produção do discurso jornalístico, tais relações funcionam de modo a não
permitir que certos sentidos se inscrevam, circulem ou produzam outros efeitos.
CURIOSIDADE
No entanto, no jornalismo online, algumas brechas se abrem para
Blogs informativos: a circulação de outros sentidos, para a emergência de outras posi-
Muitos jornalistas, com empregos nas ções e para o aparecimento de dizeres que não podem nem devem
grandes empresas de comunicação, ser postos em circulação nas páginas impressas, especialmente nos
mantêm em funcionamento blogs nos ditos blogs informativos.
quais postam artigos e notícias que não
teriam e não têm espaço fora da rede.
RESUMO
Tais blogs (informativos ou jornalísticos) são marcados por uma medida de tem-
po real, estabilizam dizeres sobre a realidade de modo quase contínuo, são
suscetíveis a deslizamentos quase instantâneos, abrem espaço para o discurso
do tipo polêmico e contam com a palavra do leitor internauta tão logo uma
palavra seja postada.
86 • capítulo 4
1. Juca parte da premissa de que todos viram a renúncia do Papa Bento XVI (2007-2013), que co-
nhecem o assunto, o que dispensa um relato sobre o sabido. O que se tem aqui é uma suposição, uma
torcida, uma anunciação. “Vai que” sinaliza algo que aconteceu e que poderia ser deslocado para as
autoridades do futebol e dos esportes nacionais.
2. Ao citar uma estatística de quase cem por cento e sinalizar o papa como exemplo de uma “escola”,
Kfouri sugere que as referidas autoridades deixem seus cargos, o que é uma provocação que muitos
jornais impressos não sustentam.
COMENTÁRIO
Tal polissemia é marca da rede digital e dos blogs, e sinaliza um modo de produzir um funcionamento
discursivo em que a abertura a novos dizeres é latente.
capítulo 4 • 87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
______. Speech genres & other late essays. Austin: Univ. of Texas, 1986.
BARROS, M. Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008.
GRICE, Herbert Paul. Lógica e conversação. In: Dascal, Marcelo (org.) Pragmática: problemas, críticas, perspectivas,
bibliografia da linguística. Campinas: Instituo de Estudos da Linguagem da unicamp, 1982.
LEVINSON, Stephen C. Grice’s theory of implicature. In: Pragmatics. Cambrigde: University Press, 1983.
SCHITTINE, D. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 70 Memórias inventadas p. 72 No cinema p. 76 Mãos segurando planta
Divulgação · Editora Planeta M.Zacharzewski · stock.xchng · rf Autor desconhecido · Office
88 • capítulo 4
Texto:
5 coesão e
coerência
vanise medeiros e
silmara dela silva
5 CURIOSIDADE
Texto: coesão e coerência
Alcir Pécora, em seu clássico livro Problemas de redação (1983), diz que “um texto não é o produto
de uma justaposição de elementos linguísticos sem referência entre si: não se trata, por exemplo,
de uma soma de orações fechadas ou completas em si mesmas, ocupando um espaço vizinho no
papel ou na enunciação oral. Pelo contrário, quando se reconhece uma determinada manifestação
verbal como sendo constitutiva de um texto, está implícita a ideia de que existem nexos, nós,
ligas (ties) entre seus componentes e que, dessa forma, conferem-lhes uma mútua depen-
dência de significação”. (PÉCORA, 1983, p. 49, grifo nosso)
Ampliando a definição de Pécora, ao incorporar os fatores relativos ao uso, Ingedore Koch (1989)
afirma: “Poder-se-ia, assim, conceituar o texto como uma manifestação verbal constituída de ele-
mentos linguísticos selecionados e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a
permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decor-
rência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou
atuação) de acordo com práticas socioculturais”. (KOCH, 1989, p. 23, grifo nosso)
90 • capítulo 5
A partir das duas definições vistas anteriormente, pode- Um texto,
mos chegar à ideia de textualidade, ou seja, uma qualidade portanto, não
que podemos atribuir a qualquer manifestação verbal que
é uma simples
seja compreensível, legível.
Logo, um texto supõe o manuseio de estratégias linguís- superposição
ticas e algum compartilhamento social e cultural da parte de frases.
de falante/ouvinte ou autor/leitor. Vejamos, abaixo, uma pequena e verídica história.
Em uma roda de leitura, a professora anunciou para seus pequenos ouvintes de seis anos que
iria contar uma história: “O sítio do Picapau Amarelo”. Com olhares atentos e respiração suspen-
sa, as crianças ouviram as aventuras de Pedrinho, de Narizinho, do Visconde de Sabugosa, de
Emília, alguns dos personagens do mundo encantado de Monteiro Lobato. Ao final da narrativa,
a professora perguntou se haviam gostado da história. Apesar do “sim” coletivo, uma delas ba-
lançou negativamente a cabeça e disse, para espanto da professora: “Não gostei. Você disse que
era sobre o sítio do picapau amarelo, mas não apareceu nenhum picapau amarelo na história!”.
Essa inusitada reclamação infantil incide sobre uma importante característica das
línguas humanas: as palavras de uma língua, qualquer que seja essa língua, estão vol-
tadas para o mundo exterior e dizem respeito a um objeto desse exterior, ao mesmo
tempo em que constituem esses objetos. Vejamos uma análise:
Como o picapau não aparece na história, a criança aponta o paradoxo da comunicação linguís-
tica: como é possível que uma mesma história constitua um objeto e não fale dele? Ou seja, a
criança não reconheceu que “picapau amarelo” determina/nomeia “sítio”.
Referência e referenciação
Chama-se referência a característica das línguas naturais de necessariamente estabele-
cer uma orientação, uma indicação para o mundo exterior. Chama-se referente o obje-
to que, na língua, é nomeado, descrito, indicado, enfim, constituído discursivamente,
instituído em palavras.
capítulo 5 • 91
COMENTÁRIO
Oswald Ducrot afirma: “Desde que haja um ato de fala, um dizer, há uma orientação necessária para
aquilo que não é o dizer. É a esta orientação que podemos chamar ‘referência’, chamando ‘referente’
ao mundo ou objeto que ela pretende descrever. (O referente de um discurso não é, assim, como
por vezes se diz, a realidade mas sim sua realidade, isto é, o que o discurso escolhe ou ins-
titui como realidade)”. (DUCROT, 1984, p. 419, grifo nosso)
Vejamos, agora, esse outro fragmento de texto, no qual se percebe um tecido de re-
missões entre as duas frases presentes:
Suco de laranja faz bem para sua saúde – essa história é velha. A nova é que em breve ele
deve se tornar ainda melhor para nosso corpo. (revista Galileu, fevereiro 2013, número 259, p. 20)
CURIOSIDADE
Quando o referente é um substantivo, ou um sintagma nominal, o sistema de remissões endofóricas
que vai sendo construído ao longo do texto irá agregar e produzir modificações na significação inicial.
“Isto é, o referente é algo que se (re)constrói textualmente”. (KOCH, op. cit., p. 31, grifo nosso)
Vejamos nesse pequeno texto, que tem como título Cidade-desejo, o tecido de remis-
sões endofóricas que agrega sentidos.
Cidade-desejo
O Rio de Janeiro não só continua lindo como está mais badalado do que nunca. Sede da
final da Copa do Mundo de 2014 e cidade anfitriã das Olimpíadas de 2016, tem recebido
muitas atenções e lojas de marcas gringas. (revista Claudia, janeiro de 2013, pg. 120)
92 • capítulo 5
“CIDADE-DESEJO” CONCEITO
... é um título cujo sentido é construído pelos sintagmas nominais que o substituem:
RESUMO
“[a coerência] está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sen-
tido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os
usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabi-
lidade, ligada à inteligibilidade do texto em uma situação de comunicação e à
capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto”. (TRAVAGLIA
e KOCH, 1990 p. 21)
capítulo 5 • 93
CONCEITO ATENÇÃO
Endofóricos: Há distintas maneiras de estabelecer a coesão de um texto. São dois os princi-
Como já vimos, a referência é situacio- pais procedimentos linguísticos que constroem textualmente essa totalidade se-
nal (exofórica) e textual (endofórica). mântica: “a coesão referencial (referenciação, remissão) e a coesão sequencial
(sequenciação)”. (KOCH, op.cit., p. 27)
A primeira noite
Era uma viagem de núpcias. O trem seguia para a Suíça trivial: sen-
tados no compartimento reservado, eles se davam as mãos. Um
silêncio pesava entre os dois. (YOURCENAR, 1995, p. 51)
COMENTÁRIO
Observemos que o título e a primeira frase referem-se mutuamente, estabele-
cendo correferência, ou seja, estabelecem uma identidade de referência e uma
proximidade semântica.
ATENÇÃO
Quando falamos ou escrevemos, esse jogo referencial precisa ser estabelecido e
partilhado com nossos interlocutores a fim de evitar as ambiguidades, as frases
truncadas e sem continuidade.
94 • capítulo 5
De início, precisamos planejar o que vamos escrever, o que significa que devemos
ter em mente o tipo de texto que pretendemos e qual nosso objetivo ao escrevê-lo.
Lembremos que nosso interlocutor não estará na nossa frente para fazer perguntas ou
tirar dúvidas. Por isso precisamos conectar as ideias que queremos transmitir em um
todo coeso e coerente; afinal, um texto não é uma mera sequência de frases.
ATENÇÃO
Isso pode ser feito de duas formas. Quando ocorre a retomada de um item lexical já colocado no texto,
temos uma anáfora; quando, ao contrário, ocorre a antecipação, temos uma catáfora.
Cidades históricas e turísticas, Angra dos Reis e Paraty convivem, desde o início
do ano, com um problema diário de 270 toneladas. Ambos os municípios estão
despejando seus resíduos em locais inapropriados, segundo o Instituto Estadual do
Ambiente (inea) . (jornal O Globo, 24/01/2013, pg. 13)
O maior poeta vivo brasileiro da atualidade, Manoel de Barros, ou, como seus leitores
tocados pela magia de seus versos o definem, “o poeta do pantanal”, “o Guimarães
Rosa da poesia”, “o grande poeta das pequenas coisas.” (HENRIQUES, 2012, p. 58)
capítulo 5 • 95
Temos, aqui, um conjunto de substituições que estabelecem equivalências semânticas em torno
do sintagma nominal “o maior poeta vivo brasileiro da atualidade”.
EPÍTETOS
“Manoel de Barros”
Substantivo, adjetivo ou expressão
(nome próprio)
que qualifica um nome
Se você voltar ao texto, verá ainda que o pronome possessivo “seus”, em “seus versos”, também
é um elemento substitutivo: “magia dos seus versos [do Manoel de Barros]”.
De acordo com Fávero e Koch (1983, p. 40), a substituição pode ser: a) nominal,
feita por meio de pronomes, numerais, indefinidos; b) por nomes genéricos (hipe-
rônimos), como “coisa, gente, pessoa”; c) por substitutos, como “respectivamente, o
mesmo, também, sim, não”.
COMENTÁRIO
Ponto importante a observar: a substituição referencial deve considerar o gênero e a flexão de número
do termo que será substituído.
Manoel de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do rio Cuiabá, em 1916. (Ø)Mudou-
se para Corumbá, onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumba-
ense. Atualmente (Ø)mora em Campo Grande. É advogado, fazendeiro e poeta. (site da
Fundação Manoel de Barros – www.fmb.org.br – acesso em 20/01/2013)
96 • capítulo 5
CURIOSIDADE AUTOR
Para nós, falantes do português, não é necessário que um nome seja repetido, como Affonso Romano
vimos no exemplo, pois podemos inferir que estão todos relacionados entre si. de Sant'anna:
Affonso Romano de
Sant’anna (1937) é
escritor e cronista
CONCEITO
RESUMO
Em seu conjunto e na maneira em que estão organizados, os itens lexicais for-
mam, de modo adequado, coerente e progressivo, a descrição de uma pescaria.
capítulo 5 • 97
COMENTÁRIO
Por causa da atuação de uma frente fria, todo o Estado do Rio en-
Causalidade: trou em estágio de atenção, ontem. (jornal Metro, 06/02/2013)
A causalidade pode ser expressa
por diferentes conjunções: "porque”, Essa frase poderia ser reescrita de várias maneiras. Vejamos algu-
“já que”, “visto que” etc. E também mas possibilidades de substituição:
podemos expressar causalidade em-
pregando determinados substantivos
(“motivo”, “razão”, “pretexto”, “o porquê”)
POSSIBILIDADES DE SUBSTITUIÇÃO
ou verbos, como “causar”, “acarretar”, “por causa da” ... por... “em função da”
“motivar”. (cf. GARCIA, 1977, p. 49)
“presença de massa
“atuação de uma frente fria” ... por...
de ar frio”
“todo o Estado do
... por... “o Rio de Janeiro inteiro”
Rio de Janeiro”
“entrou em estágio
... por... “ficou em alerta”
de atenção”
ATENÇÃO
Nesse processo de substituição, é fundamental manter o sentido estabelecido
pelo operador “por causa da”, que estabelece um nexo coesivo de causalidade
entre as duas orações.
RELAÇÕES LÓGICO-SEMÂNTICAS
“porque”, “visto que”, “em virtude de”, “devido a”,
Relação de causalidade “por motivo de” etc.
98 • capítulo 5
Relação de mediação “a fim de”, “com o propósito de”, “para”, “com o objetivo de” etc.
Além dos operadores citados, Garcia (1977, p. 265–71) enumera outras possibilida-
des de sequenciação. Vejamos os encadeadores apresentados por esse outro autor, a
partir de exemplos:
EXEMPLO
a) relações de adição, continuação (“Tom Jobim, além de maestro, era compositor também.”);
b) relações de dúvida (“O avião já aterrisou? Quem sabe? É provável, mas ainda não apareceu qual-
quer registro no painel.”);
c) relações de certeza ou ênfase (“Sem dúvida, o avião já pousou.”);
d) relações de surpresa (“Inesperadamente, ouvimos a notícia sobre o atraso do avião.”);
e) relações de esclarecimento (“O avião pousou, em outras palavras, ele já se encontra no pátio.”);
f) relações de recapitulação ou conclusão (“Em suma, vimos o conjunto de possibilidades de estabe-
lecer relações sequenciais coesivas.”).
ATENÇÃO
O que se observa no modo de construir a sequenciação também é válido quando temos a produção
de um texto maior.
“Elemento poderoso de unificação ideológica da política imperial foi a educação superior. E isso por três
razões. Em primeiro lugar, porque quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com
pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos. Em segundo lugar,
capítulo 5 • 99
porque a educação superior se concentrava na formação jurídica e fornecia, em consequência, um
núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar, porque se concentrava, até a
Independência, em quatro capitais provinciais, ou duas, se considerarmos apenas a formação jurídica. A
concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes das várias capitanias
e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas su-
periores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil.” (CARVALHO, 1996, p. 55)
Nesse texto de José Murilo de Carvalho, a progressão textual é realizada com a utilização
de operadores que ordenam a sequência dos motivos que justificam a afirmativa de que foi
a educação superior a responsável pela unificação ideológica durante o período do império.
As “três razões” estão justapostas, não há predominância de qualquer uma delas.
Por outro lado, quando queremos escrever um texto em que a progressão se dá por rele-
vância, ou prioridade, devemos nos valer de outros nexos coesivos, como, por exemplo, “antes
de mais nada”, “acima de tudo”, “sobretudo”, “primordialmente”(cf. GARCIA, 1977, p. 263).
A utilização desses operadores introduz uma hierarquia semântica entre os elementos
que compõem o texto. Vamos a outro fragmento extraído de A construção da ordem, de José
Murillo de Carvalho. O texto é construído por contraste. Vejamos:
“O exame da política de terras permite aprofundar a análise das relações entre governo e pro-
prietários rurais. Como a política abolicionista, a política de terras, sobretudo seu ponto alto, a lei
de 1850, atingia de maneira profunda os interesses dos proprietários, ou pelo menos de parcela
deles. Mas ela possui valor analítico distinto por ter provocado alinhamento de proprietários di-
ferente daquele provocado pelo abolicionismo e por não ter sofrido interferência direta da coroa.
Sua especificidade se manifesta ainda com mais clareza quando se examinam os resultados ob-
tidos. Em contraste com a política de abolição, a política de terras quase não saiu do debate
legislativo e dos relatórios dos burocratas dos ministérios do Império e da Agricultura, Comércio
e obras Públicas. Ela foi vetada pelos barões.” (CARVALHO, 1996, p. 303)
100 • capítulo 5
Argumentação e texto argumentativo CONCEITO
Normalmente, quando pensamos em argumentação e em textos ar- Texto dissertativo:
gumentativos, costumamos associá-los a um tipo específico de texto, Diferentemente de outros tipos textu-
o chamado texto dissertativo. ais, como o narrativo ou o descritivo,
É o que fazemos, por exemplo, quando escrevemos uma redação o texto dissertativo teria como função
principal discorrer sobre uma determi-
para o vestibular: argumentamos sobre uma dada questão, como so-
nada questão a partir de um ponto de
bre o trânsito nas grandes cidades ou a influência da tecnologia na vista e, consequentemente, ganhar a
educação, dentre outras, e, se formos bem sucedidos, teremos como adesão do leitor a esse ponto de vista
resultado um texto coerente e coeso, com boa argumentação e bem ali expresso, através de argumentos.
aceito pelo leitor que, nesse caso, é um avaliador.
Esse tipo de texto dissertativo/
argumentativo é também muito fre- COMENTÁRIO
quente em jornais impressos: logo
nas primeiras páginas, costumamos Lugares diferenciados:
encontrar o editorial, destinado a emi- As análises do discurso jornalístico
tir a opinião do periódico sobre um têm discutido muito essa ilusão de
determinado assunto. objetividade que é construída pela
imprensa. Você pode não ter percebido,
mas a própria seleção do que será ou
COMENTÁRIO não noticiado na imprensa já é uma
escolha e diz ao leitor o que deve ser
O que faz o jornal nesse espaço é justamente argumentar, na tentativa de mostrar considerado importante em um dado
ao leitor como a questão em pauta pode e deve ser compreendida. Também nos momento histórico. Em outras palavras,
jornais são comuns os artigos assinados, que são textos opinativos nos quais jor- entendemos que o discurso jornalístico
agenda o que será tema de discussão
nalistas e especialistas, em diversas áreas, argumentam sobre uma dada questão.
na cidade e no país. Logo, todo ele é,
por natureza, argumentativo.
No discurso jornalístico, a presença desses textos declaradamente
argumentativos, em seções específicas, tem um funcionamento particu-
lar: marcar lugares diferenciados para a opinião e para a informação,
mantendo esta última sob
o rótulo da objetividade, do Sob essa perspectiva
simples relato dos fatos. teórica, toda linguagem
De modo análogo ao que
se dirige ao outro e,
ocorre no discurso jornalís-
tico, a classificação dos tex-
nesse sentido, todo
tos em tipos diversos tam- ato linguístico é
bém produz os seus efeitos: argumentativo.
por ela, somos levados a
pensar que somente alguns textos são argumentativos, ou seja, são des-
tinados a “ganhar” a cumplicidade dos leitores. Vejamos algumas afir-
mações de Koch a respeito da relação entre argumento e discurso:
ATENÇÃO
“A simples seleção das opiniões a serem reproduzidas já implica, por si mesma,
uma opção. Também nos textos denominados narrativos e descritivos, a
capítulo 5 • 101
AUTOR argumentação se faz presente em maior ou menor grau (...) O uso da lingua-
gem é inerentemente argumentativo.” (KOCH, 1987, p. 19–20, 104)
Oswald Ducrot:
Oswald Ducrot De um modo geral, a argumentatividade na linguagem está relacio-
(1930) é um linguista nada à persuasão do outro, ao agir sobre o outro em termos linguísti-
francês cujas obras cos. Além disso, há textos e enunciados que têm como característica
e estudos versam,
marcante uma formulação construída para levar o leitor a certos tipos
especialmente, sobre
de conclusão, ou de eliminação de opiniões divergentes. Esses textos
a semântica da enunciação. Em seus
estudos semânticos, uma das questões se marcam por lançar mão de diferentes estratégias que orientam a
abordadas é justamente a argumenta- argumentação. Compare, por exemplo, os dois enunciados a seguir:
ção. Para Ducrot, a argumentação não
é uma propriedade de certos tipos de Meu time está preparado para o jogo.
texto e não está meramente condicio-
nada à intenção do sujeito que busca
persuadir o outro com o seu dizer. Trata-se de uma afirmação, de limitado poder de
argumentação/persuasão, depende de o interlocutor acatar ou não a
afirmação como verdade.
2 Ele não só leu como também fichou tudo para fazer a monografia.
RESUMO
Para a linha teórica de Ducrot, a argumentação está na própria língua, “especificamente
no léxico”, como nos explica Zoppi-Fontana (2006). Assim, os enunciados e as palavras
que compõem o léxico de uma língua em particular já trariam consigo valores argumen-
tativos específicos, que conferem certa direção ao que é dito (orientação argumentativa).
102 • capítulo 5
Alguns elementos linguísticos teriam então maior valor argumen- CURIOSIDADE
tativo que outros, o que permitiria dispô-los em uma escala argumen-
tativa (dos termos com menor valor argumentativo para aqueles com
maior “poder” de argumentação).
EXEMPLO
Quer outro exemplo de como os próprios termos empregados no dizer funcionam
argumentativamente? Você já deve ter ouvido a metáfora do copo, geralmente Imperativo:
utilizada para diferenciar as pessoas otimistas daquelas consideradas pessimistas: Você se lembra daquele anúncio em
que uma meninha ficava dizendo de
forma encantadora “compre Baton?”
Pois é, reparou que o verbo encon-
tra-se em uma forma imperativa? É
o mesmo funcionamento que vemos
“Meio vazio” “Meio cheio” em slogans famosos, como “Beba
Coca-Cola” e em dizeres correntes
Pessimista Otimista
em propagandas das mais diversas,
como “Compre agora”, “Assine já” ou
“Compre um e leve dois”.
Diante de uma mesma quantidade de água em um copo, é possível afirmar que ele
está “meio cheio” ou “meio vazio”. Dependendo do enunciado emitido, podemos che-
gar a conclusões diferentes, apesar de a quantidade de água no copo ser a mesma.
COMENTÁRIO
Como afirma Zoppi-Fontana (2006), nesse exemplo, “meio cheio” e “meio va-
zio” possuem valores argumentativos, e nos permitem entender a argumentação
como “direcionamento para uma possível continuação” (p. 196); ou, como nos diz
Guimarães (2002, p. 78), “argumentar é dar uma diretividade ao dizer”.
capítulo 5 • 103
CONCEITO outro de forma a impeli-lo a preferir um produto a outro, a substituir um
produto por outro mais moderno. Para isso, a comparação, o verbo e os
Ironia: adjetivos (como “novo” produto) têm força argumentativa.
Segundo o dicionário Houaiss (2009),
ironia é: “1. ret figura por meio da qual
se diz o contrário do que se quer dar Argumentação e ironia
a entender; uso de palavra ou frase
de sentido diverso ou oposto ao que
Até aqui mostramos e destacamos a importância dos elementos coesi-
deveria ser empregado, para definir ou
denominar algo [A ironia ressalta do vos na construção de um texto; e como, dentre eles, alguns têm maior
contexto.] 1.1 lit esta figura, caracteri- força argumentativa que outros. É hora de pensar em outro mecanis-
zada pelo emprego inteligente de con- mo que também tem força argumentativa: trata-se da ironia.
trastes, usada literariamente para criar Estudada desde a retórica, a ironia é do interesse do campo lite-
ou ressaltar certos efeitos humorísticos
rário, do filosófico, e, como veremos, também da linguística. Vamos
(...) 3. uso de palavra ou expressão
pensar um pouquinho sobre isso. Leia o fragmento abaixo retirado
sarcástica; qualquer comentário ou
afirmação irônica ou sarcástica 4. fil do romance O amor, de Julian Barnes:
disposição fingida de aprender com
Deus é perfeito; nada no mundo é perfeito; portanto, nada no
outrem, a quem se interroga habilmen-
te, fazendo-o entrar em contradição e
mundo foi feito por Deus. (Barnes, 2000, p. 33)
evidenciando o caráter errôneo de suas
concepções.
Podemos ver aí um uso oposto, sarcástico e inteligente do silogismo
servindo à argumentação de um discurso não religioso.
104 • capítulo 5
Observe a figura a seguir: CONCEITO
Intertextualidade:
Para Ingedore Kock (1990), a inter-
textualidade é um fator que confere
coerência aos textos, uma vez que para
ser interpretado, é necessário que ele
guarde alguma relação com textos que
o antecederam. Mas alguns textos de
fato retomam, explicitamente ou não,
outro texto, o que permite ao leitor
reconhecer esse diálogo entre textos.
Segundo Indursky, a intertextualidade
consiste na “retomada/releitura que
um texto produz sobre outro texto, dele
apropriando-se para transformá-lo e/ou
assimilá-lo.” (INDURSKY, 2006, p. 70)
No caso da figura, a ironia coloca em confronto a expectativa que
é gerada a partir do estereótipo de “surfista”, contrastada pela forma-
lidade que ele emprega no uso da língua.
RESUMO
Por fim, é preciso lembrar que a ironia é, sobretudo, relacional, isto é, depende
da relação daquele que diz com aquele que a escuta ou a lê. Da conivência ou do
repúdio. Sua força corrosiva – e, portanto, argumentativa – está em desdizer um
dizer outro, em expô-lo para destruí-lo, em fazer rir do outro.
Intertextualidade
Até aqui, tratamos do funcionamento do texto de um modo geral, bus-
cando mostrar os modos como ele se organiza. Para isso, falamos so-
bre noções importantes, como referência, coesão, textualidade e argu-
mentatividade. Para fecharmos esta nossa conversa sobre texto, vamos
abordar apenas mais um de seus aspectos: a intertextualidade.
Da mesma maneira que podemos observar, em qualquer texto, os
modos como os seus elementos internos se organizam e a maneira
como esse objeto linguístico estabelece referências com a exterioridade,
também podemos perceber um diálogo constante com outros textos,
que geralmente se faz por retomadas, remissões e releituras.
ATENÇÃO
Veja o que afirma Bentes (2003, p. 269), ao tratar da intertextualidade: “Em nossas
práticas cotidianas de linguagem, não percebemos o quanto os produtores utili-
zam-se dessa rede de relações entre os textos, ao elaborarem os seus próprios
capítulo 5 • 105
textos, e o quanto nós, leitores ou destinatários, não percebemos que, ao processarmos o que lemos ou
ouvimos, muitas vezes nos utilizamos de nosso conhecimento sobre outros textos, para atribuir sentido
global às diversas formas textuais com as quais temos contato”.
[...]
Do que a terra, mais garrida,
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
"Nossos bosques têm mais vida",
"Nossa vida" no teu seio "mais amores." [...]
Observou como os dois últimos versos comparecem grafados entre aspas? É justamente um indicativo
de que se trata de uma citação de dois versos da famosa Canção do Exílio, poema de Gonçalves Dias:
[...]
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Nesse caso, a letra do hino nacional marca explicitamente o emprego de dois dos versos do
poema de Gonçalves Dias, incorporando, assim, parte desse texto.
COMENTÁRIO
Quando o então presidente utilizou a palavra “cruzada”, intencionalmente ou não, provocou ira e pro-
testos. Isso porque a palavra remete a um contexto de perseguição de cristãos contra muçulmanos,
na Idade Média, o que resultou em uma jornada de extermínio àquele povo. Muitos interpretaram o
discurso de Bush como uma convocação de cristãos para uma guerra santa contra o universo islâmico.
106 • capítulo 5
Outra forma de intertextualidade é a paródia. São vários exem- CONCEITO
plos, como as do quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, e são tam-
bém várias as paródias do poema Canção do Exílio, que já menciona- Paródia:
mos. Uma delas, analisada por Sant’anna (2007), é o Canto de regresso Na paródia, geralmente, o que ocorre
à Pátria, de Oswald de Andrade: é a reescritura de uma obra conhecida,
de forma bem humorada, seja obra
literária, filme, música, pintura etc. As
Minha terra tem palmares
paródias normalmente são reconheci-
Onde gorjeia o mar dos pelo leitor, mesmo ao contar com
Os passarinhos daqui uma nova escrita ou nova linguagem.
Não cantam como os de lá [...]
capítulo 5 • 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BENTES, A.C. Linguística textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e
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CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Editora da ufrj & Relume dumará, 1996.
GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Geúlio Vargas, 1977.
GUIMARÃES, E. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. 2. ed. Campinas: Pontes, 2002.
Halliday, M. A. K., and Ruqaiya Hasan. Cohesion in English. London: Longman, 1976.
HENRIQUES, Claudio Cezar. Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira, Curtiba: Appris, 2012.
INDURSKY, F. O texto nos estudos da linguagem: especificidades e limites. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES,
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KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986.
SANT’ANNA, A.R. Paródia, paráfrase & cia. 8 ed. São Paulo: Ática, 2007.
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YOURCENAR, Marguerite. Conto azul e outros contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 28. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1987.
TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 93 Connect with Central Hub p. 103 Wine Glass
Salman Ali Ehsan · stock.xchng · rf Andrzej Gdula · stock.xchng · rf
108 • capítulo 5
Texto,
6 discurso e
interpretação
La bella luna
Herbert Viana
110 • capítulo 6
consegue expressar os seus pensamentos, comunicar-se e interagir CONCEITO
socialmente, utilizando-se, para isso, de textos também.
Contudo, por mais que a gente diga, sempre fica “alguma coisa Possibilita interpretar:
por dizer”, como nos lembram os versos de Herbert Viana. Por mais Ao estudar a linguagem, a analista
que a gente se aproprie dos “conceitos” e “nomes” oferecidos pela de discurso Eni Orlandi nos lembra
linguagem, Ferreira Gullar nos diz que: “o gosto da fruta/ só o sabes que a interpretação é inerente ao ser
humano, o que quer dizer que “diante
se a comes”. Daí podermos pensar que a relação humana com a lin-
de qualquer fato, de qualquer objeto
guagem não se esgota, não tem fim. simbólico, somos instados a interpretar.”
(2001, p. 10) Orlandi nos diz ainda:
ATENÇÃO “Não temos como não interpretar”
(2001, p. 9), ou seja, não temos como
Como sempre resta algo a dizer, podemos entender que um texto, que é uma não atribuir sentidos diante de qual-
quer texto, diante de qualquer prática
manifestação de linguagem, nunca está completo em si mesmo: é preciso um
de linguagem.
sujeito que, diante dele, possa atribuir sentidos, possa interpretar.
Os cegos e o elefante
Seis homens sábios do Industão, uma terra bem distante / Ouviram atentos
os boatos sobre um animal gigante / E, apesar de serem cegos, foram ver o
elefante. / O primeiro passou as mãos sobre a barriga dura e falha / E explicou
bem confiante: / minha análise não falha / Esse tal de elefante mais parece
uma muralha. / O segundo tocou as presas e proclamou com confiança: /
Esse tal de elefante não é brinquedo pra criança / Tão pontudo e afiado, mais
parece uma lança. / O terceiro chegou à tromba, elogiando a bela obra / Tão
comprido e gelado, vejam só, ele até dobra. / O flexível elefante mais parece
uma cobra. / O quarto sentiu a pata e teve logo a recompensa / Percebendo as
semelhanças, anunciou com indiferença: / Esse animal mais parece com uma
árvore imensa. / O quinto tocou as orelhas e sugeriu conservador: / Mas que belo
utensílio nessas tardes de calor / Esse tal de elefante mais parece um abanador.
/ O sexto subiu às costas, despencando na outra borda / E pendurado ao rabo
disse: Não sei se alguém discorda, / mas para mim esse animal se parece
com uma corda. / E então os sábios homens discutiram inconformados
/ Cada um com seu discurso, sem ouvir os outros lados / Pois estavam
certos em partes, mas completamente errados.
Fonte: Versão para o português do poema Six blind men and the elephant,
de John Godfrey Saxe (1816-1887), traduzido livremente por Josadarck To-
maz Coutinho, a partir de transcrição de vídeo disponível no YouTube.
capítulo 6 • 111
COMENTÁRIO Nesse texto, que é uma parábola, lemos a história dos cegos sá-
bios em suas experiências diante da novidade ali representada pela
Interpretações: presença de um elefante. Podemos observar, de imediato, esse dese-
Por exemplo, na atitude dos cegos que jo humano de atribuir sentidos a tudo o que o cerca: os sábios que-
tentam dizer o que é o elefante, consi- riam entender o que era aquele ser tão diferente de tudo o que conhe-
derando apenas uma parte do animal, ciam e buscaram interpretar o elefante, tocando cada um em uma
podemos interpretar a necessidade de
parte específica do animal.
se considerar sempre uma visão geral
As interpretações e, consequentemente, os sentidos que cada um
sobre qualquer fato, antes de tirarmos
conclusões precipitadas. Nessa mesma vai atribuindo ao elefante, são bem diversos: uma lança, uma cobra,
linha, podemos interpretar que os um abanador, uma muralha... Os cegos vão conferindo sentidos à me-
cegos que se apressaram em dizer do dida que reconhecem nas partes do animal características semelhan-
que se tratava o elefante não conse- tes a coisas já conhecidas, com as quais já tinham tido um contato.
guiram chegar a boas conclusões, o
que nos faria entender, na parábola, um
sentido semelhante àquele que temos COMENTÁRIO
no provérbio popular: “o apressado
come cru”. É assim também que nós, sujeitos da linguagem, reagimos diante de qualquer
texto: tentamos interpretá-lo, buscando dar sentido a ele a partir de tudo
aquilo que já ouvimos e lemos. E, muitas vezes, o fazemos por partes, sem a
visão da totalidade.
Ao ler o texto dos cegos e o elefante, certamente você deve ter en-
tendido que essa história não trata apenas de cegos em seu primeiro
contato com um elefante, não é mesmo? Quando lemos a parábola,
podemos extrair dela vários sentidos.
ATENÇÃO
Isso nos mostra mais um ponto importante quando consideramos o texto a partir
dos efeitos de sentido que ele produz: um texto sempre se abre à interpretação,
o que quer dizer que o seu sentido pode sempre ser outro, já que o sentido de um
texto também se produz, como estamos vendo, na relação com o sujeito que o lê.
112 • capítulo 6
Quando passamos a considerar o texto a partir dos efeitos de sentido que ele pro-
duz, levando em conta o modo como ele significa para nós, sujeitos de linguagem, esta-
mos pensando na relação entre texto e discurso.
Do texto ao discurso
No capítulo anterior, vimos as estratégias necessárias para a construção da coesão textual,
as quais asseguram, na superfície linguística, a suposta unidade de um texto, a tessitura
das partes de um texto. Agora, passamos
do conceito de texto para o de discurso.
Podemos entender o
Já começamos a perceber que a pro- discurso como os efeitos de
dução dos efeitos de sentido está rela- sentido que se produzem a
cionada aos sujeitos e às circunstân-
partir da leitura de um texto.
cias sócio-históricas em que o texto é
produzido e interpretado, ou seja, em relação às suas condições de produção.
Para entendermos melhor a relação entre o texto, os sujeitos e as circunstâncias na
produção dos efeitos de sentido, vamos ler os dois fragmentos textuais a seguir. Eles
tratam de uma mesma questão – o casamento –, mas os efeitos de sentido que se pro-
duzem em cada um deles aparentemente são bem diversos. Vejamos:
Você está prestes a começar a sua vida de casada e, certamente, o seu maior desejo é que o seu
casamento dure. Não existe receita exata para isso, entretanto, alguns conselhos podem te ajudar.
1. Respire fundo e pense no quanto você o ama antes de começar uma discussão.
2. Cumprimente-o todas as manhãs carinhosamente, como se tivessem acabado de se encon-
trar e despeça-se dele com um beijo toda vez que ele for sair. [...]
5. Seja sensível, compreensiva e otimista.
6. Mantenha sua casa organizada, nada melhor do que a limpeza. [...]
13. Toque-o constantemente. Dê a mão para ele ao andarem na rua.
14. Comemore datas especiais como o aniversário de namoro, o seu próprio aniversário e qual-
quer outra data que possa ser importante. [...]
Fonte: Portal Terra, editoria Mulher-Comportamento. Autor não informado. Acesso em 21/04/2013.
RESUMO DO TEXTO 1
Para quem é o texto? É dirigido à mulher recém-casada, que deseja que seu casamento dure.
capítulo 6 • 113
Desabafos de um bom marido
Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por semana, vamos
a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo.
Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha em São Paulo.
Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. "Em algum lugar que
eu não tenha ido há muito tempo!", ela disse. Então eu sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. [...]
Eu me casei com a "Sra. Certa". Só não sabia que o primeiro nome dela era "Sempre".
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas tenho que
admitir: a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: "O que tem na TV?" E eu disse "Poeira". [...]
Fonte: Desabafos de um bom marido. Crônica atribuída a Luis Fernando Veríssimo, disponível em
vários sites na internet, fonte primária desconhecida.
RESUMO DO TEXTO 2
Quem é o sujeito São dizeres produzidos a partir da imagem do lugar social atribuído aos
representado no texto? maridos em geral.
Uma crônica, um gênero que traz traços dos textos literários, normalmente
Qual é o gênero textual? tratando de questões cotidianas.
Qual é o contexto Destinado à circulação livre, com o objetivo de provocar humor, quase uma
de produção? paródia a textos como o primeiro, destinados a aconselhar sobre relacionamentos.
114 • capítulo 6
PAPEL ATRIBUÍDO À MULHER CURIOSIDADE
Atribui-se à mulher as tarefas domésticas, como em
NO TEXTO 1 “mantenha a casa organizada”.
COMENTÁRIO
capítulo 6 • 115
CONCEITO EXEMPLO
Condições de produção: Para prosseguir, tomemos de imediato um enunciado muito comum em teorias
Compreender discurso como efeito de linguísticas: trata-se da exclamação – “Que calor!” – dita em uma sala de reunião
sentidos significa que “o sentido não por um diretor e que tem como contrapartida o gesto de um funcionário se le-
está (alocado) em lugar nenhum, mas vantando e ligando o ventilador do teto. Volte ao enunciado e reflita: será que, se
se produz nas relações: dos sujeitos,
tivesse sido proferido pelo funcionário, o chefe teria se levantado? Ou será que
dos sentidos...” (Orlandi, 1983, p. 229).
o chefe teria dado ordem para ligar o ventilador?
Diremos, portanto, que quando toma-
mos a palavra, o fazemos de “lugares
determinados na estrutura de uma Pois é esse o ponto ao qual queremos chegar. A produção dos efei-
formação social” (Pêcheux, 1997, p. 82). tos de sentidos está vinculada à imagem que se faz do lugar social
A tais lugares atribuem-se imagens. ocupado por aquele que diz “que calor!”. E isso faz toda a diferença:
É por isso que tomamos o imaginário
se era o chefe ou o funcionário... É aí que entra em cena uma noção
como parte integrante do funciona-
muito importante para entender a produção de efeitos de sentidos:
mento da linguagem: as imagens que
fazemos dos lugares sociais são atra- trata-se da noção de condições de produção.
vessados por sentidos – já existentes, Em outras palavras, há representações, imagens sobre o lugar so-
em conflito, possíveis ou não – em uma cial ocupado (sobre ser chefe ou funcionário, por exemplo). Tais ima-
sociedade. gens implicam posições de linguagem, visto que são definidas por
uma relação com o que pode ou deve ser dito a partir de um lugar
socialmente marcado. Estamos sinalizando para algo que faz parte
das condições de produção: as formações imaginárias.
CURIOSIDADE
“Todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da significa-
ção. Os mecanismos de qualquer formação social têm regras de projeção que estabe-
lecem a relação entre as situações concretas e as representações (posições) dessas
situações no interior do discurso: são as formações imaginárias.” (Orlandi, 1988, p. 18).
ATENÇÃO
Condições de produção é um conceito que agrega os interlocutores e a situação, ambos
materializados no jogo imaginário das relações sociais de uma sociedade. A noção de
condições de produção abarca ainda outros elementos, como a memória e a historicidade.
116 • capítulo 6
Vejamos, então, outros exemplos, como o fragmento a seguir retirado do livro Amor,
etc., de Julian Barnes:
O amor em um bairro arborizado e democrático, com uma renda de seis dígitos por ano, é dife-
rente do amor em um campo de concentração stalinista. (Barnes, p. 33).
EXEMPLO
Nesse trecho, como podemos ler, o autor está opondo duas condições sociais para significar o amor –
“renda de seis dígitos” e “bairro arborizado e democrático” versus “campo de concentração stalinista”.
Em outras palavras, os sentidos para amor decorrem do contexto histórico e social.
Vamos observar dois outros exemplos, que dizem respeito à história da língua portuguesa:
“E entre nós e os latinos há esta diferença: eles fazem comparativos de todos os seus nomes
adjetivos que podem receber maior ou menor significação, e nós temos mais comparativos que
estes: maior, que quer dizer mais grande; menor, que quer dizer menos grande; melhor para mais
bom; pior, para mais ruim.” (Adaptação nossa do original)
“E antre nós e os latinos há ésta diferença: eles afazem comparativos de todolos seus nomes ajetivos
que podem receber maior ou menor sinificaçám, e nós nam temos mais comparativos que estes:
maior, que quer dizer mais grande; menor, por mais pequeno; millór por mais bom; pior, por mais máo.”
(João de Barros, Gramática da língua portuguesa, 1540, apud Quental, 1995)
Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandro e
de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / A quem Netuno
e Marte obedeceram: / Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta.
(Trecho da obra Os Lusíadas, publicada em 1572, por Luiz Vaz de Camões, 1524-1580)
ATENÇÃO
Na gramática, está em jogo a língua portuguesa, que, neste momento, é significada como sendo
do mesmo quilate que a língua latina e até mais completa que ela (tem mais comparativos que a
língua latina). No poema estão em jogo, como já é sabido, os feitos portugueses: feitos marítimos,
conquistas, e também a língua portuguesa que, nesse momento, “se alevanta” frente a uma antiga
musa: a língua latina.
Você deve estar se perguntando: O que isso tem a ver com condições de produção?
Pois bem, pense e responda: será que sempre a língua portuguesa foi posta como supe-
rior à língua latina? Não é o caso.
capítulo 6 • 117
COMENTÁRIO Ora, o que está em jogo é que as condições de produção são outras:
no século xvi, das descobertas, os portugueses estavam percorrendo
Língua portuguesa: o mundo; e a sua língua – uma língua de uma nação que se mostrava
No século xix, por exemplo, o que se extremamente forte – estava no mesmo patamar que seus feitos: maio-
dizia da língua portuguesa, nas gramá- res que os latinos... Já no século xix, as condições de produção são ou-
ticas, era que ela valia tanto quanto a tras: a língua portuguesa já possuía literatura expressiva, gramáticas e
língua latina. Não se tratava de dizer
dicionário; não precisava mais se impor frente ao latim, que também
que tinha mais comparativos ou não,
deixa de significar ameaça à portuguesa para poder ser exemplo e mo-
mas de destacar a origem latina da lín-
gua portuguesa. Buscavam-se, assim, tivo para a dignificação da língua pela semelhança.
exemplos nas duas línguas que fizes-
sem a portuguesa valer tanto quanto COMENTÁRIO
o latim. Então, no século xv, a língua
portuguesa era posta como sendo mais
A partir desse exemplo, já podemos entender a definição de condições de produ-
completa que a latina; já no século xix,
ção como compreendendo “o contexto histórico-social, ideológico, a situação, os
o português era visto como equivalente
à língua latina. interlocutores e o objeto do discurso, de tal forma que aquilo que se diz significa
em relação ao que não se diz, ao lugar social, para quem se diz, em relação aos
outros discursos etc.” (Orlandi, 1988, p. 95).
118 • capítulo 6
não tem uma moradia digna. O cenário e os lugares atribuídos aos sujei- AUTOR
tos ali presentes denunciam o sentido de que “moradia”, “comida”, “saú-
de” e tantos outros direitos básicos do cidadão brasileiro não passam de Italo Calvino:
um sonho para muitos cidadãos que, naquele momento histórico, viviam Italo Calvino (1923-
na pobreza, apesar de a lei já ter sido promulgada. 1985) nasceu em
No texto da charge, como vemos, a família ali representada ocupa Cuba, filho de pais
italianos. Logo após
um lugar social específico na sociedade brasileira: o lugar daqueles
o nascimento, sua família retornou à
que esperam ser amparados pelo Estado, mas que raramente o são, Itália. Foi um dos escritores contem-
não possuindo, de fato, condições sociais dignas de subsistência. porâneos mais traduzidos, além de
ter sido indicado ao Prêmio Nobel de
EXEMPLO Literatura.
A crítica ao Estado se marca justamente na fala da mulher, que ao dizer “aquele
pedaço bonito que fala de comida, saúde...”, denuncia justamente que as leis, de um
modo geral, são mesmo bonitas no papel, mas não se efetivam para todos os brasilei-
ros igualmente. E aí temos mais um exemplo do funcionamento da memória do dizer,
um dizer já-dito: as leis são muito boas na teoria, e não necessariamente na prática.
“A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias (...) mais do que pelas
coisas que todos os dias são fabricadas, vendidas, compradas, a opulência
de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para
dar lugar às novas. (...) O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele,
mais coisas acumula (...). A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o
mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lado de lá de
sua cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem
para longe montanhas de detritos.” (Calvino, As cidades invisíveis, p. 105).
RESUMO
Em outras palavras, a cidade de Leônia, como lembra Bauman (2010), inscreve-se
em um estágio do capitalismo em que o acúmulo implica um incessante descartar
que joga contra a durabilidade das coisas. Não é mais a durabilidade que vale.
capítulo 6 • 119
CONCEITO Tais constatações remetem à ideologia, ou seja, é a ideologia que
permite o efeito, imaginário, de se supor o mundo como já tendo ou
Ideologia: fazendo sentido, como “sendo assim”.
“É a ideologia que fornece as evidên- Leia agora outro fragmento que exemplifica ainda mais o que
cias pelas quais ‘todo mundo sabe’ o estamos tomando como ideologia:
que é um operário, um patrão, uma
fábrica, uma greve etc., evidências que
“ (...) pegue esses fenômenos migratórios que observamos nas nossas es-
fazem com que uma palavra ou um
tradas, por ocasião do que chamamos férias. É, de certo modo, espanto-
enunciado ‘queiram dizer o que real-
mente dizem’: e que mascaram, assim, so. Para estar seguro de que se trata de férias, é preciso que você faça
sob a ‘transparência da linguagem’ como todo mundo, sofrer, passar por engarrafamentos, pela dor. A situação
aquilo que chamaremos de o caráter que descrevi sem dúvida é paródica, mas todo mundo já pôde observá-la.
material do sentido das palavras e do Quando você ouve o rádio anunciar um ‘domingo infernal’ nas estradas, ele
enunciado.” (Pêcheux, 1988, p. 160).
diz que o seu comportamento é perfeitamente inscrito e previsto. Antes
mesmo que você aja, sabe-se o que vai fazer. O grande irmão, Big Brother,
está lá, nesse discurso benevolente; ele diz: atenção, domingo, vocês vão
todos cair na estrada. Você vive sem surpresa, você não vai voltar três dias
mais cedo, nem um dia depois.” (Melman, 2003, p. 98).
COMENTÁRIO
É por isso que podemos afirmar que os sentidos são ideologicamente marcados
porque eles não são naturais, mas estão relacionados às posições que os sujei-
tos ocupam em um dado contexto sócio-histórico.
SALÁRIO
Os sentidos da palavra “salário” O sentido da palavra “salário”
para um assalariado podem ser... para um patrão pode ser...
120 • capítulo 6
São as posições ideológicas de trabalhador e de patrão que, nesse CONCEITO
caso, determinam que uma mesma quantia em dinheiro signifique
diferentemente. Não é dito:
Se é verdade que não podemos dizer
RESUMO tudo, também é verdade que nem
tudo precisa ser dito para ser signi-
ficado, para ser compreendido. Um
Como viemos mostrando até aqui, os efeitos de sentido se constituem na relação
exemplo disso nós já vimos quando
da materialidade textual com as suas condições de produção, que incluem desde
falamos sobre o funcionamento de
as circuntâncias imediatas em que um texto é produzido até o contexto sócio enunciados como “que calor!”, que
-histórico de disputa e tensão pelo poder, que é sempre ideológico. podem fazer com que alguém ligue o
ventilador, ainda que esse pedido não
No jogo dos sentidos, entram em cena a memória do dizer, que, tenha sido expresso textualmente.
Pois bem, o pedido não foi dito, mas
como vimos, é composta por dizeres já–ditos que permanecem em
foi significado em função de questões
circulação, e também as imagens dos lugares ocupados pelos sujei-
contextuais, como vimos.
tos que, por sua vez, decorrem de práticas ideológicas.
Logo, como você já deve estar percebendo, o sentido não depende
somente daquilo que é dito, isto é, da materialidade linguística pre-
sente em um texto. O que é dito significa sempre na relação com o
já-dito, que é a memória do dizer; e significa também na relação com
o não-dito, mas que, de diferentes modos, se marca no dizer, partici-
pando da produção de efeitos de sentido.
Por essa você não esperava, não é mesmo? Você deve estar se per-
guntando: como aquilo que não é dito pode significar no dizer? De
fato, é uma questão bastante intrigante... Mas isso apenas a princí-
pio. Observando mais atentamente, vamos ver que a questão não é
tão complicada assim.
O não-dito e os sentidos
O não-dito pode se marcar no dizer de diferentes modos, como nos
mostram os trabalhos de vários estudiosos de linguagem. O seman-
ticista francês Oswald Ducrot (1972), por exemplo, dedicou parte de
seus estudos à compreensão do funcionamento dos implícitos, que
são justamente um modo de manifestação da relação entre o dizer e
o não-dizer na linguagem.
RESUMO
Na base dessa sua reflexão está o entendimento de que não é somente aquilo que é dito
textualmente que pode ser compreendido a partir de um texto. Algumas informações
que ficam implícitas participam igualmente do processo de constituição de sentidos.
capítulo 6 • 121
Do amoroso esquecimento (1945)
No segundo verso do poema, o poeta afirma o esquecimento daquela pessoa que ele
amava. Nesse dizer do poeta, o emprego do advérbio “mais” marca o funcionamento de
um implícito. Vamos ver como isso acontece?
Ao afirmar que deixou de fazer alguma coisa, o sujeito que enuncia marca em seu dizer
que essa mesma coisa era feita anteriormente, em um tempo passado.
CONCEITO
O pressuposto é um tipo de implícito, que está relacionado ao funcionamento da instância da lingua-
gem, ou seja, àquilo que é dito propriamente. Como afirma Orlandi (2001, p. 82): “O posto (o dito) traz
consigo um pressuposto (não-dito, mas presente).”
COMENTÁRIO
Nesse caso, temos outro tipo de implícito: o subentendido, que não está diretamente ligado àquilo
que é dito, à instância da linguagem, mas que pode ser interpretado em função do contexto em
que foi enunciado.
122 • capítulo 6
relacionados à instância do discurso, na relação com o funcionamento CONCEITO
da memória do dizer e da ideologia.
Implícitos:
RESUMO Como afirma Eduardo Guimarães
(2006, p. 135), ao tratar do implícito:
Na relação com a memória do dizer e a evidência do sentido, que é um trabalho da “Há algo que está significado no
que se diz que não está diretamente
ideologia, o não-dito significa justamente pela sua ausência no dizer, pela relação
dito, é preciso que um certo tipo de
entre o que é dito e aquilo que poderia igualmente ser dito, mas que não o foi.
raciocínio (um procedimento de inter-
pretação) seja feito para se retirar da
Vejamos um exemplo de produção de sentidos na imprensa. Ao relatar língua, com suas regras de combina-
a ação de movimentos como o dos trabalhadores rurais sem terra (mst), a ção e das condições específicas de
grande imprensa geralmente designa tal ação de “invasão”, enquanto os funcionamento dos enunciados no
acontecimento, o que eles significam.”
membros do movimento costumam falar em “ocupação”, como afirma
Indursky (1999), após várias análises dos discursos do/sobre o mst.
INVASÃO OCUPAÇÃO
Quando se opta pela palavra
“INVASÃO”, marca-se na língua uma
oposição ao termo “OCUPAÇÃO”,
adotado pelo MST.
COMENTÁRIO
Os dois enunciados tratam de uma mesma ação: a denúncia feita pelo Ministério Públi-
co do Estado de São Paulo contra funcionários e alunos da Universidade de São Paulo
(usp), que, em protesto, ocuparam a reitoria da universidade em 2011. Nesse exemplo,
dizer “ocupação” é não-dizer “invasão”, e vice-versa, e esse não-dito também irá produ-
zir os seus efeitos no dizer, marcando uma posição ideológica, dentre outras, e fazendo
com o que os sentidos sejam filiados a certas memórias do dizer e não a outras.
capítulo 6 • 123
CONCEITO Desse modo, podemos observar que o não-dito é mesmo constitu-
tivo do dizer: dizer uma palavra é necessariamente não dizer outra. É
Censura: justamente entre o dito e o não-dito que os efeitos de sentido se pro-
Censura é uma prática adotada por um duzem. Ou, como nos diz Orlandi (2001, p. 82): “... ao longo do dizer,
grupo no poder para impedir ou punir a há toda uma margem de não-ditos que também significam.”
circulação de informação não autori-
zada. Atualmente, pode ser entendida
como qualquer tentativa de cercear
a liberdade de expressão. Durante o
O não-dito e o silêncio
período da ditatura militar no Brasil,
entre 1964 e 1985, a interdição ao dizer Do mesmo modo que para dizer de um jeito é necessário não di-
resultou no exílio de muitos artistas e zer de outro, o não-dito também pode funcionar de modo a apa-
intelectuais brasileiros, que insistiam gar outros sentidos, ou seja, fazendo com que alguns sentidos não
em dizer aquilo que, segundo o governo
compareçam no que é dito, sejam silenciados, enquanto outros
militar, não podia ser dito.
são privilegiados.
CURIOSIDADE
Para além desse silêncio que constitui mesmo os sentidos, Orlandi (2002), ao
estudar as formas do silêncio, apresenta-nos outros dois modos de seu funcio-
namento diretamente ligados ao não-dito: o silêncio fundador, que é condição da
linguagem, e o silenciamento ou política do silêncio, que se divide em dois tipos:
o silêncio constitutivo e o silêncio local.
124 • capítulo 6
Meu caro amigo
[...]
Aqui na terra tão jogando futebol / Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll / Uns dias chove,
noutros dias bate sol / Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui / tá preta
[...]
COMENTÁRIO
No caso do silêncio local, a interdição ao dizer leva à busca por possibilidades outras de fazer com-
parecer o não-dito naquilo que ainda pode ser dito. Conforme nos diz Orlandi (2001, p. 83): o “silêncio
local, que é a censura (...) faz com que o sujeito não diga o que poderia dizer: em uma ditadura não se
diz a palavra ditadura não porque não se saiba, mas porque não se pode dizê-lo.”
O dizer e o já-dito
Uma vez que todo dizer traz consigo um já-dito e um não-dito, que, como vimos, são
trabalhados via memória do dizer, podemos afirmar que todo dizer retoma em si sen-
tidos já-ditos, ao mesmo tempo em que permitem que sentidos outros se constituam,
possibilitando assim novos processos de significação.
ATENÇÃO
Uma consequência disso é que todo dizer retoma dizeres ditos previamente e que são atualizados ao
serem ditos de novo, em novas condições sócio-históricas e ideológicas, por e para outros sujeitos.
capítulo 6 • 125
CONCEITO Vamos ver um exemplo para entendermos melhor esta relação en-
tre o dizer e o já-dito? Têm circulado muito na internet, de um modo
Funcionamento da paráfrase: geral, quadrinhos que trazem novas versões de ditados populares
Como afirma Orlandi (2001, p. 36), bem conhecidos. Vejamos dois deles:
“em todo dizer há sempre algo que
se mantém, isto é, o dizível, a memó-
“Amigos, amigos, senhas à parte.”
ria. A paráfrase representa assim o
retorno aos mesmos espaços do dizer. O já-dito é “Amigos, amigos, negócios a parte”, sendo o termo “negócios”
Produzem-se diferentes fomulações do substituído por “senhas”, muito requeridas no espaço digital. Mas um dos
mesmo dizer sedimentado”. Logo, a pa- sentidos do ditado tradicional permanece: as relações de amizade devem
ráfrase tem como marca a repetição, a ser separadas das negociações, sejam elas no mundo real ou virtual.
reiteração de certos dizeres que fazem
parte da memória discursiva e que são “Não adianta chorar sobre o arquivo deletado.”
mobilizados pelos sujeitos.
O já-dito é “Não adianta chorar sobre o leite derramado”. No dito, a
expressão “leite derramado” é substituída por “arquivo deletado”.
AUTOR O sentido do ditado original, no entanto, permanece: em algumas
situações, não há nada que possa ser feito, daí ser inútil chorar.
Lavoisier:
Antoine Laurent de COMENTÁRIO
Lavoisier (1743-1794)
é considerado o pai Em casos como esses, apesar de termos uma formulação original nos ditados,
da Química moder-
que aparecem repaginados em relação a novas condições de produção do espa-
na. Apesar da excepcional contribui-
ço virtual, temos uma retomada de dizeres já-ditos, o que quer dizer que discursi-
ção científica que deu à humanidade,
especialmente nos estudos da maté- vamente temos o funcionamento da paráfrase.
ria e sua conservação, foi condenado
à guilhotina. Agora, veja mais um exemplo de ditado popular da era digital:
Na informática nada se perde, nada se cria. Tudo se
copia…. e depois se cola.
RESUMO
Nesses dois casos, temos a possibilidade de sentidos outros, um deslocamento
de sentido, apesar da aparente retomada de uma frase famosa. Desse modo,
temos o funcionamento da polissemia. Segundo afirma Orlandi (2001, p. 36), “na
polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação.
Ela joga com o equívoco.”
126 • capítulo 6
É na relação entre paráfrase e polissemia que os dizeres se assentam, uma vez que
eles sempre retomam dizeres já-ditos, mas também promovem deslocamentos, que
fazem com que o sentido possa sempre ser outro.
Sujeito e sentido
Até agora, pensamos no funcionamento da linguagem e nos modos como os processos de
sentido se constituem, observando a relação entre texto e discurso do lado da interpretação.
Mas como será que podemos pensar todas essas características da linguagem do lado da sua
produção? Qual a relação do sujeito com a linguagem, com os seus enunciados e textos?
Se compreendemos que os sentidos sempre se constituem na relação entre a lin-
guagem e as suas condições de produção, e que assim fatores sócio-históricos e ideo-
lógicos determinam o modo como os discursos produzem os seus efeitos de sentido,
é preciso também entendermos que, nessa mesma relação de linguagem e de senti-
dos, está imerso o sujeito da/na linguagem.
ATENÇÃO
O sujeito ocupa sempre uma posição discursiva ao abrir a boca para falar, e essa posição traz suas
marcas ideológicas, o que equivale a dizer que o sujeito diz sempre de um lugar, produzindo sentidos
que para ele aparecem como se fossem evidentes e naturais.
É por isso que, quando pensamos o texto da perspectiva de sua produção, em sua
relação com o discurso, pensamos que o sujeito, autor de seu texto, constitui-se por um
efeito imaginário, que coloca o sujeito na origem de seu texto, apesar de seu dizer se
constituir sempre a partir de uma memória discursiva, a partir do já-dito. O mesmo irá
se dar com o sujeito-leitor.
Vejamos um episódio verídico: uma criança com quase 7 anos, já alfabetizada, recém-ingressada em
uma nova escola, que, no caso, era católica, em um dos exercícios a serem feitos, em que aparecia
“Qual é o nome do papa?”, acrescenta um “i” ao nome “papa” e escreve, então, o nome do seu pai.
COMENTÁRIO
Ora, de imediato temos aí um exemplo do que dissemos no início: somos instados a dar sentido e o
fazemos. Para ela, era evidente que faltava um “i” para papai; o “i” de “papai” inscreve-a como leitora.
Disso resulta que a leitura, então, não é aqui considerada como decodificação de um
código; ao contrário, como explica Orlandi (1988, p. 39), “o leitor traz para sua leitura a
sua experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de linguagem”.
Tal como a função-autor, a função-leitor tem condições de produção que produzem cer-
tos sentidos e não outros, o que produz, por fim, a evidência de que só pode ser assim...
Terminamos, então, essa nossa jornada que foi do texto ao discurso, introduzindo no-
ções teóricas novas que estabelecem relação de continuidade com conceitos já estudados
capítulo 6 • 127
em capítulos anteriores, tais como posição-sujeito, polissemia e tipologia discursiva.
É justamente assim que julgamos ser importante proceder aos estudos da linguagem:
acrescentando, ao dispositivo de análise, novos desafios e teorizações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARNES, J. O amor. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
GUIMARÃES, E. Semântica e pragmática. In: GUIMARÃES, E.; ZOPPI-FONTANA, M. G. (Orgs.). Campinas: Pontes,
2006. p. 113-146.
INDURSKY, F. De ocupação à invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST. In: INDURSKY, F.; LEANDRO-
FERREIRA, M. C. (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 173-186.
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed. Campinas: unicamp, 2002.
______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (aad-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do
discurso. 3. ed. Campinas: unicamp, 1997.
______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
QUENTAL, V. As gramáticas do século xvi: a questão da norma. In HEYE, J. (Org.) Flores verbais. Rio de Janeiro: 34, 1995.
IMAGENS DO CAPÍTULO
p. 110 Resmungos p. 119 Italo Calvino
Divulgação · Imprensa Oficial do Autor desconhecido · Wikimedia
Estado de São Paulo
p. 126 Antoine Lavoisier
p. 115 Wedding cake Louis Jean Desire Delaistre ·
Olah Beata · stock.xchng · rf Wikimedia · cc
p. 118 Constituição
Victor Maia · Estácio
128 • capítulo 6