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Revisão Técnica de Antonio Marcos Pereira. SP: Martins Fontes, 2007. Ironia privada e esperança liberal
Capítulo 04: Ironia privada e esperança liberal.
Definirei o "ironista" como alguém que satisfaz três condi- termos do vocabulário final a que eles e aqueles que os cercam es-
ções: (1) tem dúvidas radicais e contínuas sobre o vocabulário fi- tão acostumados. Aderir ao senso comum é tomar por certo que
nal que usa atualmente por ter sido marcado por outros vocabu- as afirmações formuladas nesse vocabulário final são suficientes
lários, vocabulários tomados como finais por pessoas ou livros para descrever e julgar as crenças, os atos e a vida dos que empre-
com que ele deparou; (2) percebe que a argumentação enuncia- gam vocabulários finais alternativos. As pessoas que se orgulham
da em seu vocabulário atual não consegue corroborar nem desfa- do senso comum acharão desagradável a linha de pensamento
zer essas dúvidas; (3) na medida em que filosofa sobre sua situação, desenvolvida na primeira parte deste livro ("Contingência").
essa pessoa não acha que seu vocabulário esteja mais próximo Quando se questiona o senso comum, seus adeptos reagem,
da realidade do que outros, que esteja em contato com uma for- a princípio, generalizando e explicitando as regras do jogo de lin-
ça que não seja ele mesmo. Os ironistas que se inclinam a filoso- guagem que estão acostumados a jogar (como fizeram alguns so-
far vêem a escolha entre vocabulários como uma escolha que não fistas gregos, e como fez Aristóteles em seus escritos sobre ética),
é feita dentro de um metavocabulário neutro e universal, nem mas, quando nenhum chavão formulado no antigo vocabulário
tampouco por uma tentativa de lutar para superar as aparências é suficiente para enfrentar um questionamento argumentativo, a
e chegar ao real, mas simplesmente como um jogar o novo con- necessidade de responder produz uma disposição a ir além dos
tra o velho. chavões. Nesse ponto, a conversa pode tornar-se socrática. A per-
Chamo tais pessoas de "ironistas" porque seu reconheci- gunta "o que é x?" passa a ser formulada de tal modo que não
mento de que qualquer coisa pode ser levada a parecer boa ou pode ser simplesmente respondida pela apresentação de exem-
má, ao ser redescrita, e sua renúncia à tentativa de formular crité- plos paradigmáticos de "xizice". Assim, pode-se exigir uma de-
rios de escolha entre vocabulários finais coloca-as na posição que finição, uma essência.
Sartre chamava de "meta-estável": nunca propriamente capazes Fazer tais exigências socráticas ainda não equivale, é claro, a
de se levarem a sério, por estarem sempre cônscias de que os ter- nos tornarmos ironistas, no sentido em que utilizo o termo. É ape-
mos em que se descrevem são passíveis de mudança, e sempre nas um tornar-se "metafísico", no sentido desse termo que adap-
cônscias da contingência e fragilidade de seus vocabulários fi- to de Heidegger. Nesse sentido, o metafísico é alguém que acolhe
nais e, portanto, de seu eu. Tais pessoas simpatizam naturalmen- por seu valor aparente a pergunta "Qual é a natureza intrínseca
te com a linha de pensamento desenvolvida nos dois primeiros de (por exemplo, a justiça, a ciência, o saber, o Ser, a fé, a moral, a
capítulos deste livro. Quando também são liberais - pessoas para filosofia)?". Ele presume que a presença de um termo em seu vo-
quem (usando a definição de Judith Shklar) "a crueldade é a pior cabulário final garante que tal termo se refira a algo que tem uma
coisa que elas fazem" -, aderem naturalmente às idéias ofereci- essência real. O metafísico continua preso ao senso comum, na
das no terceiro capítulo. medida em que não questiona os chavões que envolvem o uso
O oposto da ironia é o senso comum. Este é o lema dos que, de um dado vocabulário final e, em particular, o chavão que diz
sem nenhum embaraço, descrevem tudo o que é importante em existir uma única realidade permanente a ser descoberta por trás
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lento poético, todas as mentes originais que tiveram um dom de a de que trazemos a verdade dentro de nós, temos critérios in-
redescrição - Pitágoras, Platão, Milton, Newton, Goethe, Kant, trínsecos que nos facultam reconhecer o vocabulário final cor-
Kierkegaard, Baudelaire, Darwin, Freud -, como material a ser reto quando o ouvimos. O valor corrente dessa teoria está em
processado no mesmo moinho dialético. Os metafísicos, ao con- que nossos vocabulários finais contemporâneos são suficiente-
trário, querem começar por saber ao certo quais dessas pessoas mente próximos do vocabulário certo para permitir que convir-
foram poetas, quais foram filósofos e quais foram cientistas. jamos para ele - para formularmos premissas a partir das quais
Consideram essencial discernir corretamente os gêneros - orde- cheguemos às conclusões corretas. O metafísico acha que, em-
nar os textos em referência a uma grade predeterminada, uma bora possamos não ter todas as respostas, já temos bons crité-
grade que, independentemente do que mais possa fazer, pelo rios para as respostas corretas. Assim, ele acha que "correto"
menos estabeleça uma distinção clara entre as reivindicações do não significa apenas "adequado aos que falam como nós fala-
conhecimento e outras reivindicações de nossa atenção. Já o iro- mos", mas tem um sentido mais forte: o sentido de "apreender
nista prefere evitar a adulteração dos livros que lê pelo uso de a essência real".
qualquer grade desse tipo (embora, com irônica resignação, reco- Para o ironista, as buscas de um vocabulário final não estão
nheça que dificilmente poderá deixar de fazê-lo). fadadas a convergir. Para ele, frases como "por natureza, todos
Para um metafísico, a "filosofia", tal como definida em refe- os homens têm o desejo de conhecer" ou "a verdade independe
rência à seqüência canônica Platão-Kant, é uma tentativa de sa- da mente humana" são simples chavões usados para inculcar o
ber sobre certas coisas - coisas muito gerais e importantes. Para vocabulário final local, o senso comum do Ocidente. Ele só é iro-
o ironista, a "filosofia", assim definida, é a tentativa de empregar nista na medida em que seu próprio vocabulário final não contém
e desenvolver um dado vocabulário final previamente escolhi- essas idéias. Sua descrição do que faz, ao buscar um vocabulário
do - que gira em torno da distinção aparência-realidade. A dis- final melhor do que aquele que utiliza atualmente, é dominada
cordância entre eles, mais uma vez, concerne à contingência de por metáforas de criação, e não de descoberta, de diversificação e
nossa linguagem - a saber se o que o senso comum de nossa cul- ineditismo, e não de convergência para o que estava presente an-
tura compartilha com Platão e Kant é uma pista sobre como é o tes. Ele pensa nos vocabulários finais como realizações poéticas,
mundo, ou se é apenas a marca característica do discurso de pes- e não como frutos de uma investigação diligente, de acordo com
soas que habitam uma certa porção do espaço-tempo. O meta- critérios previamente formulados.
físico presume que nossa tradição não é capaz de levantar ne- Por acreditarem que já possuímos grande parte do vocabu-
nhum problema que não saiba resolver - que o vocabulário que lário final "correto" e precisamos apenas elaborar suas implica-
o ironista teme ser apenas "grego", "ocidental" ou "burguês" ções, os metafísicos pensam na investigação filosófica como uma
é um instrumento que nos permitirá chegar a algo universal. questão de identificar as relações entre os vários lugares-comuns
O metafísico concorda com a Teoria Platônica da Rememora- que fornecem as definições contextuais dos termos desse voca-
ção, sob a forma como foi reafirmada por Kierkegaard, isto é, bulário. Assim, pensam no aprimoramento ou no esclarecimento
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Defini "dialética" como a tentativa de jogar um vocabulário como auxiliar da cognição, na beleza como subsidiária da verda-
contra outro, em vez de meramente inferir proposições umas das de. O Hegel maduro pensava na "filosofia" como uma disciplina
outras e, portanto, como a substituição parcial da inferência pela que, por ser cognitiva de um modo que a arte não era, tinha pre-
redescrição. Usei o termo hegeliano porque penso na Fenomeno- cedência sobre esta. Com efeito, achava que essa disciplinará ha-
logia de Hegel como o início do fim da tradição platônico-kantia- vendo atingido a maturidade sob a forma de seu próprio Idealis-
na e como um paradigma da capacidade do ironista de explorar mo Absoluto, podia tornar e tornaria a arte tão obsoleta quanto
as possibilidades da redescrição maciça. Nessa visão, o chama- fizera com a religião, mas, irônica e dialeticamente, o que Hegel
do método dialético de Hegel não é um processo argumentativo de fato fez, ao fundar uma tradição ironista dentro da filosofia,
nem uma forma de unificar o sujeito e o objeto, mas uma simples foi ajudar a torná-la não cognitiva e não metafísica. Ele contri-
habilidade literária - a habilidade de produzir mudanças surpre- buiu para transformar a filosofia num gênero literário1. A prática
endentes de Gestalt por meio de transições rápidas e suaves de do jovem Hegel solapou a possibilidade do tipo de convergência
uma terminologia para outra. para a verdade sobre a qual o Hegel maduro teorizou. Os gran-
Em vez de conservar os antigos lugares-comuns e estabe- des comentaristas do Hegel mais velho são autores como Heine
lecer distinções que contribuíssem para sua coesão, Hegel mu- e Kierkegaard, pessoas que o tratavam da maneira como hoje tra-
dava constantemente o vocabulário em que os antigos chavões tamos Blake, Freud, D. H. Lawrence ou Orwell.
tinham sido enunciados; em vez de construir teorias filosóficas Nós, os ironistas, tratamos essas pessoas não como canais
e defendê-las, evitava a argumentação, trocando constantemente anônimos para a verdade, mas como abreviaturas de um certo
os vocabulários e, com isso, modificando o assunto. Na prática, vocabulário final e dos tipos de crenças e desejos típicos de seus
embora não na teoria, ele abandonou a idéia de chegar à verda- usuários. O Hegel maduro tornou-se o nome de um desses voca-
de, em favor da idéia de renovar as coisas. Sua crítica a seus ante- bulários, enquanto Kierkegaard e Nietzsche tornaram-se nomes
cessores não foi a de que as proposições deles fossem falsas, mas de outros. Se nos disserem que a vida real vivida por esses ho-
a de que suas linguagens eram obsoletas. Ao inventar esse tipo mens teve pouco a ver com os livros e a terminologia que cha-
de crítica, o Hegel da juventude rompeu com a seqüência pla- maram nossa atenção para eles, poremos isso de lado. Tratare-
tônico-kantiana e iniciou uma tradição de filosofia ironista que mos os nomes de tais pessoas como os nomes dos heróis de seus
teve continuidade em Nietzsche, Heidegger e Derrida. Esses são livros. Não nos importaremos em distinguir Swift da saeva in-
dignatio, Hegel do Geist, Nietzsche de Zaratustra, Mareei Proust
os filósofos que definem suas realizações pela relação com seus
do narrador Mareei, ou Trilling da Imaginação Liberal. Não nos
predecessores, e não por sua relação com a verdade.
importaremos em saber se esses escritores conseguiram viver à
Uma expressão mais atualizada para o que venho chamando
de "dialética" seria "crítica literária". Na época de Hegel, ainda ] Por esse ponto de vista, a filosofia analítica e a fenomenologia foram reversões
era possível pensar em peças teatrais, poemas e romances como a um modo de pensar pré-hegeliano, mais ou menos kantiano - tentativas de
preservar o que chamo de "metafísica", transformando-a no estudo das "con-
tornando vivido algo que já era conhecido, pensar na literatura dições de possibilidade" de um meio (consciência, linguagem).
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bulário final senão outro vocabulário dessa natureza; não há res- cos os ajudem a realizar o tipo de proeza dialética em que Hegel
L to bom. Em outras palavras, esperam que os críticos os
2 Cf. Alexander Nehamas, Nietzsclie: life ns lüemture, p. 234, onde Nehamas diz
não estar interessado no "homenzinho infeliz que escreveu [os livros de Nietz- ajudemac^uaraadn^
sche]". Interessa-se (p. 8), antes, pelo "esforço [de Nietzsche] para criar uma L vista, mediante a feitura de uma espécie de ^ ^
obra de arte consigo mesmo, um personagem literário que é também um filóso-
fo, [o que é igualmente] seu esforço de oferecer uma visão positiva, sem recair mos de poder admirar Blake e Arnold, Nietzsche e Mül, Marx
na tradição dogmática". Na visão que sugiro, Nietzsche talvez tenha sido o pri- L d e l a l , Trotski e Eliot, Nabokov e Orwell. Assim, esperamos
meiro filósofo a fazer conscientemente o que Hegel fizera inconscientemente.
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intelectuais. Isso aprofundou o abismo entre os intelectuais e o lectual preponderante, de polêmicas como a de Habermas. Mi-
público. É que a metafísica está entremeada na retórica públi- nha defesa depende de estabelecer-se uma distinção rigorosa
ca das sociedades liberais modernas. O mesmo ocorre com a dis- entre o privado e o público. Enquanto Habermas vê a linha de
tinção entre o moral e o "meramente" estético - uma distinção pensamento ironista que vai de Hegel a Foucault e Derrida como
usada com freqüência para relegar a "literatura" a uma posição destrutiva para a esperança social, vejo essa linha de pensamen-
subalterna na cultura e para sugerir que os romances e os poe- to como basicamente irrelevante para a vida pública e as ques-
mas são irrelevantes para a reflexão moral. Grosso modo, a retóri- tões políticas. Teóricos ironistas como Hegel, Nietzsche, Derrida
ca dessas sociedades toma por certa a maioria das oposições que e Foucault me parecem de valor inestimável em nossa tentah-
afirmei (no começo do capítulo 3) terem se tornado empecilhos va de formar uma auto-imagem privada, mas praticamente inú-
para a cultura do liberalismo. teis em matéria de política. Habermas pressupõe que a tarefa da
Essa situação levou a acusações de "irresponsabilidade" filosofia é fornecer uma espécie de cola social que substitua a
contra os intelectuais ironistas. Algumas delas vieram de igno- fé religiosa, e vê o discurso iluminista da "universalidade" e da
rantes - pessoas que não leram os livros contra os quais adver- "racionalidade" como o melhor candidato a constituir essa cola.
tem outros indivíduos, e que apenas defendem instintivamente Assim, vê esse tipo de crítica ao Iluminismo e à idéia de raciona-
seus próprios papéis tradicionais. Entre os ignorantes incluem- lidade como algo que dissolve os vínculos entre os membros das
se os fundamentalistas religiosos, os cientistas que se ofendem sociedades liberais. Ele pensa no contextualismo e no perspect,-
com a sugestão de que ser "científico" não é a mais alta virtude
vismo pelos quais elogie: Nietzsche em capítulos anteriores co-
intelectual, e os filósofos para quem é um artigo de fé que a ra-
mo um subjetivismo irresponsável.
cionalidade exija a utilização de princípios morais gerais, do ti-
Habermas compartilha com os marxistas, e com muitos da-
po formulado por Mill e Kant. As mesmas acusações, porém, são
queles a quem critica, a suposição de que o verdadeiro significado
feitas por autores que sabem do que estão falando e cujas opi-
de uma visão filosófica consiste em suas implicações políticas,
niões são dignas de respeito. Como já sugeri, o mais importante
e de que o quadro de referência supremo em que julgar um es-
desses autores é Habermas, que montou uma polêmica contínua,
pormenorizada e cuidadosamente ponderada contra os críticos critor filosófico, em oposição a um autor meramente "literário',
do Iluminismo (por exemplo, Adorno e Foucault) que parecem é político. Para a tradição dentro da qual Habermas trabalha, e
voltar as costas às esperanças sociais de sociedades liberais. Na tão óbvio que a filosofia política é central para a filosofia quanto
visão habermasiana, Hegel (assim como Marx) tomou o rumo er- é óbvio, para a tradição analítica, que a filosofia da linguagem e
rado ao se ater a uma filosofia da "subjetividade" - ou da refle- central, mas, como afirmei no capítulo 3, melhor seria evitar pen-
xão sobre si mesmo -, em vez de tentar desenvolver uma filosofia sar na filosofia como uma "disciplina" com "problemas nuclea-
da comunicação intersubjetiva. res" ou dotada de uma função social. Também seria melhor evitar
Como disse no capítulo 3, quero defender o ironismo, bem a idéia de que a reflexão filosófica tem um ponto de partida na-
como o hábito de tomar a crítica literária como a disciplina inte- tural - a idéia de que uma de suas sub-áreas, em alguma ordem
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natural de justificação, tem prioridade sobre as outras. Isso por- eleições e as universidades são livres, a mobilidade social é fre-
que, na visão que venho oferecendo acerca do ironista, não existe qüente e rápida, a alfabetização é universal, o ensino superior é
uma ordem "natural" de justificação das crenças ou dos desejos. comum, e a paz e a riqueza já possibilitaram o lazer necessário
Também não há muito motivo para usar as distinções entre lógi- para escutarmos uma porção de pessoas diferentes e pensarmos
no que elas dizem. Compartilho com Habermas a afirmação, no
ca e retórica, ou entre filosofia e literatura, ou entre métodos ra-
estilo de Peirce, de que a única descrição geral a ser dada sobre
cionais e não racionais de fazer os outros mudarem de idéia4. Se
nossos critérios de verdade é aquela que se refere à "comunica-
não existe um centro do eu, há apenas maneiras diferentes de
ção não distorcida" 5 , mas penso que não há muito a dizer sobre o
entretecer novos candidatos a crenças e dos desejos com redes
que figura como "não distorcido", exceto "o tipo [de comunica-
previamente existentes de crenças e desejos. A única distinção
ção] que se tem quando há instituições políticas democráticas e
política importante nessa área é a que se faz entre o uso da força
condições para fazer com que elas funcionem" 6.
e o uso da persuasão.
A cola social que liga a sociedade liberal ideal descrita no ca-
Habermas e outros metafísicos que desconfiam de uma con-
pítulo anterior consiste em pouco mais que o consenso de que
cepção meramente "literária" da filosofia acham que as liberda-
o objetivo da organização social é permitir que todos tenham a
des políticas liberais requerem um certo consenso sobre o que é
oportunidade de criar a si mesmos, segundo o melhor de sua ca-
universalmente humano. Nós, ironistas que também somos libe-
pacidade, e de que essa meta requer, além de paz e riqueza, as
rais, cremos que tais liberdades não precisam de consenso quanto "liberdades burguesas" de praxe. Essa convicção não se basea-
a nenhum tópico mais básico do que sua própria desejabilidade. ria numa visão de objetivos humanos universalmente partilha-
Visto por nosso ângulo, só o que importa para a política liberal é dos, de direitos humanos, da natureza da racionalidade, do Bem
a convicção amplamente compartilhada de que, como afirmei no para o Homem nem de qualquer outra coisa. Seria uma convic-
capítulo 3, chamamos de "verdadeiro" ou "bom" o que quer que ção fundamentada em nada mais profundo do que os fatos histó-
resulte do debate livre - a convicção de que, se cuidarmos da liber- ricos que sugerem que, sem a proteção de algo como as institui-
dade política, a verdade e o bem cuidarão deles mesmos.
"Debate livre", aqui, não significa "livre de ideologia", mas 5 Isso não quer dizer que "verdadeiro" possa ser definido como "aquilo em que
se acreditará no fim da investigação". Para uma crítica dessa doutrina peircia-
apenas o tipo que acontece quando a imprensa, o judiciário, as na, cf. Michael Williams, "Coherence, justification and truth", Review o/Mcta-
physics, 34,1980, pp. 243-72, e seção 2 de meu ensaio "Pragmatism, Davidson
and truth", em Ernest Lepore (org.), Truth and interpretation: perspectives cm the
4 Quando essas redes de crenças e desejos são basicamente as mesmas para
philosophy o/Donald Davidson (Oxford, Basil Blackwell, 1986), pp. 333-55. [In-
um grande número de pessoas, torna-se realmente útil falar de "apelo à ra-
cluído também em Objetivismo, relativismo e verdade: escritos filosóficos, vol. 1,
zão" ou à "lógica", pois isso simplesmente significa o apelo a um terreno co-
trad. Marco A. Casanova, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1997).]
mum largamente compartilhado, relembrando às pessoas as proposições que
6 Em contraste, Habermas e os que concordam com ele em que a Ideologiekritik
fazem parte desse terreno. Em linhas mais gerais, todas as distinções metafísi-
[crítica da ideologia] é central para a filosofia acham que há muito a dizer. A
cas tradicionais podem receber um sentido ironista respeitável, mediante sua
questão gira em torno de se achar ou não que é possível dar um sentido in-
sociologização - mediante seu tratamento como distinções entre conjuntos de
teressante à palavra "ideologia" - fazer com que ela signifique mais do que
práticas que têm uma existência contingente, ou estratégias empregadas den-
"má idéia".
tro dessas práticas, e não entre espécies naturais.
152 Contingência, ironia e solidariedade Ironia privada e esperança liberal
ções da sociedade liberal burguesa, as pessoas ficam menos ap- seres humanos, enfraqueceria e desarticularia as sociedades libe-
tas a elaborar sua salvação pessoal, criar sua auto-imagem priva- rais É possível que essa previsão esteja certa, mas há pelo menos
da e tecer de novo suas redes de crenças e desejos, à luz das no- uma razão excelente para considerá-la errada. Trata-se da analo-
vas pessoas e dos novos livros com que lhes suceda encontrar-se. gia com o declínio da fé religiosa. Esse declínio - mais especifi-
Nessa sociedade ideal, a discussão das questões públicas giraria camente, o declínio da capacidade de as pessoas levarem a serio
em torno de (1) como equilibrar as necessidades de paz, riqueza a idéia de recompensas depois da morte - não enfraqueceu as
e liberdade, quando as condições exigem que uma dessas metas sociedades liberais mas, efetivamente, as fortaleceu. Muita gen-
seja sacrificada a uma das outras, e (2) como igualar as oportuni- te dos séculos xvni e xix previu o inverso. Tais pessoas achavam
dades de automação e deixar as pessoas em paz para usarem ou que a esperança do Paraíso era necessária para suprir a fibra mo-
desprezarem suas oportunidades. ral e a cola social - que de nada adiantava, por exemplo, fazer
A sugestão de que essa é toda a cola social de que necessitam um ateu jurar dizer a verdade num tribunal de justiça. Como se
as sociedades liberais está sujeita a duas grandes objeções. A pri- constatou, entretanto, a disposição de suportar o sofrimento em
meira é que, como questão prática, essa cola simplesmente não é nome da recompensa futura mostrou-se passível de ser transfe-
espessa o bastante; a retórica (predominantemente) metafísica da rida das recompensas individuais para as recompensas sociais,
vida pública nas democracias é essencial para a continuação das das esperanças pessoais do Paraíso para as esperanças referem
instituições livres. A segunda é que é psicologicamente impossí- tes aos netos 7 .
vel ser um ironista liberal - ser alguém para quem "a crueldade A razão de o liberalismo ter se fortalecido com essa mudança
é a pior coisa que fazemos" - e não ter crenças metafísicas sobre foi que, enquanto a crença em uma alma imortal foi sendo açoi-
o que todos os seres humanos têm em comum. tada pelas descobertas científicas e pelas tentativas dos filóso-
A primeira objeção é uma previsão sobre o que acontece- fos de acompanhar o ritmo da ciência natural, não está claro que
ria se o ironismo substituísse a metafísica em nossa retórica pú- nenhuma mudança de opinião científica ou filosófica possa pre-
blica. A segunda é uma sugestão de que a cisão público-priva- judicar o tipo de esperança social que caracteriza as sociedades
do que defendo não pode funcionar: ninguém é capaz de se di- liberais modernas - a esperança de que um dia a vida seja mais
vidir num criador privado de si mesmo e num liberal público livre, menos cruel, mais ociosa e mais rica em bens e experiên-
- uma mesma pessoa não pode, em momentos alternados, ser cias, não apenas para nossos descendentes, mas para os descen-
Nietzsche e J. S. Mill. dentes de todos. Se você disser a alguém cuja vida extrai sentido
Quero descartar bem depressa a primeira dessas objeções, a dessa esperança que os filósofos estão ficando irônicos quanto a
fim de me concentrar na segunda. A primeira eqüivale à previ- essência real, à objetividade da verdade e à existência de uma na-
são de que o predomínio de idéias ironistas no público em geral,
a adoção generalizada de concepções antimetafísicas e anties-
sencialistas sobre a natureza da moral, da racionalidade e dos sa idéia.
154 Contingência, ironia e solidariedade Ironia privada e esperança liberal 155
tureza humana anistórica, é pouco provável que desperte °ran- por um conjunto de contingências históricas. Essas contingên-
de interesse, e muito menos que cause algum prejuízo. A idéia de cias têm facilitado a visão das últimas centenas de anos da histó-
que as sociedades liberais são unidas por crenças filosóficas me ria européia e norte-americana - séculos de esperança pública e
parece ridícula. O que une as sociedades são os vocabulários co- ironismo privado crescentes - como uma ilha no tempo, cercada
muns e as esperanças comuns. Os vocabulários costumam ser pela miséria, pela tirania e pelo caos. Como disse Orwell, "as pai-
parasitários das esperanças - no sentido de que sua função prin- sagens democráticas parecem terminar no arame farpado".
cipal é contar histórias sobre resultados futuros que compensem Voltarei a essa questão da perda da esperança social ao dis-
os sacrifícios do presente. cutir Orwell no capítulo 8. Por ora, tento apenas desvincular a
As modernas sociedades seculares e letradas dependem da pergunta pública "A ausência da metafísica é politicamente pe-
existência de cenários políticos razoavelmente concretos, otimis- rigosa?" da pergunta privada "O ironismo é compatível com o
tas e plausíveis, em contraste com cenários de redenção depois sentimento de solidariedade humana?". Para tanto, talvez seja
da morte. Para conservar a esperança social, os integrantes de útil distinguir a aparência que têm hoje o nominalismo e o his-
tais sociedades precisam poder contar a si mesmos uma histó- toricismo, numa cultura liberal cuja retórica pública - a retórica
ria sobre como as coisas podem melhorar, sem ver obstáculos em que os jovens são socializados - ainda é metafísica, da apa-
intransponíveis à materialização dessa história. Se a esperança rência que eles poderão ter num futuro cuja retórica pública seja
social tornou-se mais difícil ultimamente, não é porque os cléri- retirada dos nominalistas e historicistas. Tendemos a presumir
gos venham cometendo uma traição, mas porque, desde o fim da que o nominalismo e o historicismo são propriedade exclusiva
Segunda Guerra, o curso dos acontecimentos tornou mais difícil dos intelectuais, da cultura superior, e que as massas não podem
contar histórias convincentes desse tipo. O cínico e inexpugnável ser tão sofisticadas a respeito de seus vocabulários finais, mas é
Império Soviético, a miopia e a ganância contínuas das democra- bom lembrar que houve época em que o ateísmo também era
cias sobreviventes e as populações famintas e explosivas do he- propriedade exclusiva dos intelectuais.
misfério sul fazem com que os problemas enfrentados por nossos Na sociedade liberal ideal, os intelectuais continuariam a ser
pais na década de 1930 - o fascismo e o desemprego - pareçam ironistas, mas não os não intelectuais. Estes últimos, entretanto,
quase tratáveis. As pessoas que tentam atualizar e reescrever o seriam nominalistas e historicistas pelo senso comum. Assim, ver-
roteiro social democrático padrão sobre a igualdade humana, se-iam como inteiramente contingentes, sem sentirem qualquer
aquele que seus avós escreveram mais ou menos na virada do dúvida particular sobre as contingências que eles porventura apli-
século, não vêm tendo muito sucesso. Os problemas que os pen- cassem. Não seriam livrescos nem recorreriam a críticos literários
sadores sociais de inclinação metafísica acreditam ser causados como conselheiros morais, mas seriam sensatamente não metafísi-
por nossa incapacidade de encontrar o tipo certo de cola teórica cos, tal como mais e mais pessoas das democracias ricas vêm sen-
- uma filosofia que possa impor um vasto assentimento em uma do não teístas, com base no senso comum. Não sentiriam maior
sociedade individualista e pluralista - são causados, a meu ver, necessidade de responder a perguntas como "por que você é libe-
,., , 157
156 Contingência, ironia e solidariedade Ironia privada e esperança liberal
soa inapta para ser liberal, e de que a simples cisão entre os inte-
ral?", ou "por que se importa com a humilhação dos estranhos?"
do que o cristão quinhentista médio sentia necessidade de respon- resses privados e públicos não basta para superar a tensão.
der à pergunta "por que você é cristão?", ou do que a maioria das Pode-se tornar plausível essa afirmação, dizendo que há no
pessoas de hoje sente necessidade de responder à pergunta "você mínimo uma tensão à primeira vista entre a idéia de que a orga-
está salvo?"8. Uma pessoa desse tipo não precisaria de justificativa nização social visa à igualdade humana e a idéia de que os seres
para seu sentimento de solidariedade humana, pois não teria sido humanos são simples vocabulários encarnados. A idéia de que
criada para jogar o jogo de linguagem em que se indaga e se obtém todos temos a obrigação primordial de reduzir a crueldade, de
a justificação desse tipo de crença. Sua cultura seria tal que as dú- igualar os seres humanos com respeito a seu risco de sofrimento,
vidas sobre a retórica pública da cultura não seriam enfrentadas parece presumir que há algo nos seres humanos que merece res-
por solicitações socráticas de definições e princípios, mas por soli- peito e proteção, independentemente da linguagem que eles fa-
citações deweyanas de alternativas e projetos concretos. Tal cultu- lem Sugere que uma capacidade não lingüística, a capacidade
ra, pelo que posso ver, seria tão autocrítica e tão dedicada à igual- de sentir dor, é o que importa, e que as diferenças vocabulares são
dade humana quanto nossa cultura liberal conhecida e ainda me- muito menos importantes.
tafísica - se não mais até. A metafísica - no sentido de uma busca de teorias que che-
Contudo, mesmo que eu tenha razão em achar que uma cul- guem à essência real - procura dar sentido à afirmação de que os
tura liberal cuja retórica pública seja nominalista e historicista é seres humanos são mais do que redes de crenças e desejos, des-
possível e desejável, não posso fazer também a afirmação de que providas de um centro. A razão por que muitas pessoas conside-
poderia ou deveria haver uma cultura cuja retórica pública fos- ram essa afirmação essencial para o liberalismo é que, se de fato
se ironista. Não posso imaginar uma cultura que socializasse seus os homens e mulheres nada mais fossem do que atitudes senten-
jovens de um modo que os fizesse duvidar continuamente de seu ciais - nada além da presença ou ausência de predisposições para
próprio processo de socialização. A ironia parece ser uma ques- o uso de frases formuladas num vocabulário historicamente con-
tão intrinsecamente privada. Por minha definição, o ironista não
dicionado -, não apenas a natureza humana, mas também a soli-
pode arranjar-se sem o contraste entre o vocabulário final que
dariedade humana, começariam a parecer idéias excêntricas e duvi-
herdou e aquele que tenta criar para si mesmo. A ironia, se não
dosas Isso porque a solidariedade com todos os vocabulários pos-
intrinsecamente ressentida, é ao menos reativa. Os ironistas têm
síveis parece impossível. Os metafísicos nos dizem que, a menos
que ter algo de que duvidar, algo de que possam se alienar.
que haja algum tipo de vocabulário primitivo comum, não temos
"razão" para não ser cruéis com aqueles cujos vocabulários finais
Isso me traz à segunda das duas objeções que listei aqui e,
são muito diferentes dos nossos. A ética universalista parece in-
com isso, à idéia de que há algo em ser ironista que deixa a pes-
compatível com o ironismo, pelo simples fato de que é difícil ima-
8 Nietzsche disse, com um sorriso desdenhoso: "A democracia é o cristianismo ginar a enunciação de tal ética sem uma doutrina sobre a natureza
tornado natural" (WUI to power, Nova York, Vintage, 1968, p. 215). Tirando-se do Homem. Esse apelo à essência real é a antítese do ironismo.
o desdém, ele tinha toda a razão.
158 Contingência, ironia e solidariedade Ironia privada e esperança liberal 154
Portanto, o fato de a maior abertura, o espaço maior para a antiliberais. Uma porção de pessoas, de Julien Benda a C. P. Snovv,
criação de si mesmo, ser a demanda-padrão feita pelos ironis- considerou quase evidente a ligação entre o ironismo e o antilibe-
tas a suas sociedades é contrabalançado pelo fato de que essa ralismo. Hoje em dia, muitos presumem que o gosto pela "des-
demanda parece ser, meramente, a de liberdade para falar uma construção" - uma das atuais palavras de ordem dos ironistas - é
espécie de metalinguagem teórica irônica que não faz sentido um bom sinal de falta de responsabilidade moral. Presumem que a
para o homem da rua. Podemos facilmente imaginar um iro- marca do intelectual moralmente fidedigno é uma espécie de pro-
nista que queira intensamente uma liberdade maior, um espa- sa direta, desenvolta e transparente - exatamente o tipo de prosa
ço mais aberto para os Baudelaires e os Nabokovs, sem pensar que nenhum ironista criador de si mesmo quer escrever.
minimamente no tipo de coisa que Orwell queria: por exemplo,
Embora algumas dessas inferências possam ser falacio-
introduzir mais ar puro nas minas de carvão, ou tirar o Partido
sas e alguns desses pressupostos, infundados, há algo acertado
das costas dos proletários. Essa sensação de que o vínculo entre
na desconfiança que o ironismo desperta. O ironismo, tal como
o ironismo e o liberalismo é muito frouxo, ao passo que é muito
o defini, resulta da consciência do poder da redescrição, mas a
estreito entre a metafísica e o liberalismo, é o que faz com que as
maioria das pessoas não quer ser redescrita. Quer ser aceita em
pessoas desconfiem do ironismo na filosofia e do estetismo na li-
seus próprios termos - levada a sério tal como é e da maneira
teratura como "elitistas".
como fala. O ironista lhes diz que a linguagem que falam está aí
E por isso que escritores como Nabokov, que dizem despre-
para ser posta em questão por ele e por outros como ele. Há nes-
zar o "lixo local" e almejar um "êxtase estético", parecem moral-
sa afirmação algo de potencialmente muito cruel. É que a melhor
mente duvidosos e, quem sabe, politicamente perigosos. Filóso-
maneira de causar um sofrimento duradouro às pessoas é humi-
fos ironistas como Nietzsche e Heidegger muitas vezes parecem
lhá-las, fazendo com que as coisas que lhes parecem mais impor-
iguais, ainda que esqueçamos o uso que os nazistas fizeram de-
tantes se afigurem fúteis, obsoletas e impotentes 9 . Consideremos
les. Em contraste, mesmo quando atentamos para o uso feito do
o que acontece quando as posses preciosas de uma criança - as
marxismo por gangues de bandidos que se denominaram "go-
pequenas coisas em torno das quais ela tece fantasias que a tor-
vernos marxistas", para o uso feito do cristianismo pela Inquisi-
nam um pouco diferente de todas as outras crianças - são redes-
ção e para o uso feito do utilitarismo por [Thomas] Gradgrind,
critas como "porcaria" e jogadas no lixo. Ou então, pensemos no
não podemos mencionar o marxismo, o cristianismo ou o utili-
tarismo sem respeito. É que houve época em que cada um deles que acontece quando essas posses são ridicularizadas, na com-
serviu à liberdade humana. E não é óbvio que o ironismo jamais paração com as posses de outra criança mais rica. É presumível
o tenha feito. que aconteça algo parecido com uma cultura primitiva, quando
O ironista é o típico intelectual moderno, e as únicas socieda- 9 Cf. a discussão de Judith Shklar sobre a humilhação, na p. 37 de seus Ordínanj
des que lhe dão a liberdade de articular sua alienação são as libe- vices ["Vícios comuns"] (Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1984),
e a discussão de Ellen Scarry sobre o uso da humilhação pelos torturadores,
rais. Assim, é tentador inferir que os ironistas são naturalmente no capítulo 1 de The body in pain ["O corpo dolente"].
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160 Contingência, ironia e solidariedade Ironia privada e esperança liberal
crição da pessoa ou da situação dela a torne mais capaz de domi- distinguir entre a redescrição para fins privados e para fins pú-
nar as forças que se juntam contra ela. A seu ver, essa capacidade blicos. Para meus objetivos privados, posso redescrever você e
é uma questão de armas e de sorte, e não de ela estar do lado da todas as outras pessoas em termos que nada têm a ver com mi-
verdade ou haver identificado o "movimento da história". nha postura perante seu sofrimento real ou possível. Meus obje-
Há, portanto, duas diferenças entre o ironista liberal e o me- tivos privados e a parte de meu vocabulário final que não é per-
tafísico liberal. A primeira concerne ao sentido do que a redescri- tinente a meus atos públicos não são da sua conta, mas, como sou
ção pode fazer pelo liberalismo; a segunda, ao sentido da ligação liberal, a parte de meu vocabulário final que é pertinente a esses
entre a esperança pública e a ironia privada. A primeira diferen- atos exige que eu me conscientize de todas as várias maneiras em
ça é que o ironista julga que as únicas redescrições que servem aos que outros seres humanos sobre os quais eu aja podem ser hu-
propósitos liberais são aquelas que respondem à pergunta "que é milhados. Portanto, o ironista liberal precisa de toda a familiari-
que humilha?", ao passo que o metafísico também quer respon- dade imaginativa possível com vocabulários finais alternativos,
der à pergunta "por que devo evitar humilhar?". O metafísico li- não só para sua própria edificação, mas para compreender a hu-
beral quer que nosso desejo de sermos bons seja fomentado por um milhação real e potencial das pessoas que usam esses vocabulá-
argumento, um argumento que implique uma auto-redescrição rios finais alternativos.
que destaque uma essência humana comum, uma essência que
O metafísico liberal, em contraste, quer um vocabulário fi-
seja algo mais do que nossa capacidade compartilhada de sofrer
nal que tenha uma estrutura interna e orgânica, que não seja di-
humilhações. O ironista liberal quer apenas que nossas probabi-
vidido ao meio por uma distinção público/privado, que não seja
lidades de sermos bons, de evitarmos humilhar o outro, sejam am-
apenas uma colcha de retalhos. Acha ele que o reconhecimen-
pliadas pela redescrição. Ele acha que o reconhecimento de uma
to de que todos querem ser aceitos em seus próprios termos im-
susceptibilidade comum à humilhação é o único vínculo social ne-
põe-nos o compromisso de encontrar um mínimo denominador
cessário. Enquanto o metafísico considera que o aspecto moral-
comum desses termos, uma descrição única que seja suficiente
mente relevante dos outros seres humanos é sua relação com um
para os fins públicos e privados, para a autodefinição e para as
poder comum m a i o r - a racionalidade, Deus, a verdade ou a his-
relações do sujeito com outros. Seguindo Sócrates, ele reza para
tória, por exemplo -, o ironista considera que a definição moral-
que o homem interno e o externo sejam um só - para que a iro-
mente relevante de uma pessoa, de um sujeito moral, é ser "algo
nia já não seja necessária. Seguindo Platão, é propenso a acredi-
passível de ser humilhado". Seu senso de solidariedade humana
tar que as partes da alma e as do Estado correspondem umas às
baseia-se no sentimento de um perigo comum, e não de uma pos-
outras, e que distinguir o essencial do acidental na alma nos aju-
se comum ou de um poder compartilhado.
dará a distinguir a justiça da injustiça no Estado. Essas metáforas
Como fica, então, a afirmação que fiz antes, de que as pes- expressam a crença do metafísico liberal em que a retórica meta-
soas querem ser redescritas em seus próprios termos? Como já física pública do liberalismo deve permanecer central no vocabu-
sugeri, o ironista liberal enfrenta isso dizendo que precisamos lário final de cada liberal, por ser a parte que expressa o que ele
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verdadeiras sobre grandes temas, mas o outro acha que essa ta- perar que a filosofia realize uma certa tarefa - a de responder a
refa é aumentar nossa habilidade de reconhecer e descrever os perguntas como "por que não sermos cruéis?" e "por que ser-
diferentes tipos de pequenas coisas em que os indivíduos ou as
mos bons?" - e acham que qualquer filosofia que recuse essa
comunidades centram suas fantasias e sua vida. O ironista enca-
atribuição deve ser desalmada. Essa expectativa, porém, resulta
ra as palavras fundamentais da metafísica e, em particular, da re-
de uma formação metafísica. Se pudéssemos livrar-nos da ex-
tórica pública das democracias liberais como sendo apenas mais
pectativa, os liberais não pediriam à filosofia ironista para fazer
um texto, apenas outro conjunto de coisinhas humanas. Sua ca-
um trabalho que ela não pode fazer, e que se define como inca-
pacidade de compreender como é fazer a vida centrar-se nessas
paz de fazer.
palavras não se distingue de sua capacidade de apreender como
A associação que o metafísico faz entre teoria e esperança
é fazer a vida centrar-se no amor a Cristo ou ao Grande Irmão.
social e entre literatura e perfeição privada inverte-se na cultu-
Seu liberalismo não consiste em sua devoção a essas palavras es-
ra do ironista liberal. Numa cultura metafísica liberal, as disci-
pecíficas, mas em sua capacidade de captar a função de muitos
plinas encarregadas de penetrar nas muitas aparências privadas
conjuntos diferentes de palavras.
e chegar a uma realidade comum geral - teologia, ciência, filoso-
Essas distinções ajudam a explicar por que a filosofia iro- fia - eram as que deveriam unir os seres humanos e, desse modo,
nista não fez nem fará muito pela liberdade e pela igualdade, ajudar a eliminar a crueldade. Em uma cultura ironista, ao con-
mas explicam também por que a "literatura" (no sentido anti-
trário, as disciplinas especializadas na descrição densa do priva-
go e mais estrito), assim como a etnografia e o jornalismo, têm
do e do idiossincrático é que recebem a atribuição dessa tarefa.
feito isso. Como eu disse antes, a dor é não lingüística: é aquilo
Em particular, os romances e as etnografias que sensibilizam
que temos, nós, os seres humanos, que nos liga aos animais não
para o sofrimento dos que não falam nossa linguagem devem
usuários da linguagem. Assim, as vítimas da crueldade, as pes-
fazer o trabalho que se esperava que fosse feito pelas demonstra-
soas que estão sofrendo, não têm grande coisa em termos de lin-
ções de uma natureza humana comum. A solidariedade deve ser
guagem. É por isso que não existem a "voz dos oprimidos" nem
construída a partir de pequenos fragmentos, e não já encontrada
a "linguagem das vítimas". A linguagem antes usada pelas víti-
à espera, sob a forma de uma linguagem primitiva que todos re-
mas já não funciona, e elas estão sofrendo demais para juntar no-
conheçamos ao ouvi-la.
vas palavras. Portanto, a tarefa de transformar sua situação em
Inversamente, em nossa cultura cada vez mais ironista, a filo-
linguagem tem que ser executada para elas por outras pessoas. O
sofia tornou-se mais importante para a busca da perfeição priva-
romancista, o poeta ou o jornalista liberais são bons nisso. O teó-
da que para qualquer tarefa social. Nos próximos dois capítulos,
rico liberal geralmente não o é.
afirmarei que os filósofos ironistas são filósofos privados - filóso-
A suspeita de que o ironismo na filosofia não contribuiu fos interessados em intensificar a ironia do nominalista e do his-
para o liberalismo é correta, mas não porque a filosofia ironis- toricista. Seu trabalho presta-se mal aos fins públicos e não tem
ta seja intrinsecamente cruel. É que os liberais passaram a es- serventia para os liberais qua liberais. Nos capítulos 7 e 8, forne-
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Contingência, ironin e solidariedade