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Giovanni Pietro Bellori (1613-1689) Vidas dos pintores, escultores, e arquitetos modernos (1672) Ao abrir seu livro com um texto exclusivamente dedicado a Idéia, Giovanni Pietro Bellori! dirigia a seus contemporaneos uma espécie de manifesto em favor de uma nova teoria da arte. A idéia do pintor, tal como a entende o autor, remete, em primeiro lugar, a idéia de Belo. A alianca dessas duas palavras nao deixa de im- plicar um equivoco, pois 0 que o texto mostra € a transformacao progressiva dessa idéia permeada de platonismo (“as primeiras for- mas chamadas idéias") em um ideal do qual Cicero dé uma defi- nigdo bastante clara.? A transicdo da teoria das idéias de Platao, reinterpretada pelos Pais da Igreja, para a idéia no sentido cicero- niano, isto é, fortemente impregnada de modelos visuais, repre- senta ja uma verdadeira reviravolta, uma vez que ela rebaixa 0 ar- quétipo na esfera da beleza ideal. Por certo, em O orador, Cicero deixa bem claro que o que caracteriza essa perfeicdo € 0 fato "de escapar ao nosso olhar". Ora, todo o resto do discurso de Bellori tende a exaltar a perfeicdo da beleza, que cintila através das for- mas visiveis. Essa leitura do platonismo, gue resulta no “nobilissi- mo simulacro da Idéia”, e a de Cicero nao implicavam de maneira alguma um erro de interpretagdo, nem tampouco uma falsifica- cdo por parte de um autor que conhecia muito bem os textos clas- 1 Sobre Bellori, ver o volume 1, O mito da pintura. 2.0 texto completo de Cicero se encontra reproduzido no volume 4, O belo. 69 Giovanni Pietro Bellori sicos. Tal abordagem é comum entre os tedricos do século XVII, que recorriam aos pensadores da Antiguidade quando queriam demons- trar idéias por vezes estranhas, até mesmo opostas as dos classi- cos. A citacdo de Proclus, assim como a anedota de Zéuxis, s4o cla~ ramente reinterpretadas e obedecem a uma Unica e mesma fina- lidade: a determinacdo do belo ideal. Com este texto, a doutrina académica reencontrava um rigor de pensamento e uma atencdo aos modelos classicos (os antigos, mas principalmente Rafael, os Carracci e Poussin) que seréo lembrados até o século XIX. Idéia do pintor, do escultor e do arquiteto Aquele sumo eterno intelecto, autor da natureza, ao criar suas obras maravilhosas, estreitamente ligadas a si mes- mo, constituiu as primeiras formas chamadas idéias, de mo- do que toda e qualquer espécie foi expressa daquela primeira Idéia, formando-se 0 admirdvel contexto das coisas criadas. Mas os corpos celestes que estao acima da Lua, nao subme- tidos a mudangas, permanecerao para sempre belos e orde- nados, tal como na harmonia das suas esferas e no esplen- dor de seus aspectos vimos a conhecé-los perpetuamente justos e formosos. O contrdrio ocorre com os corpos sub- lunares sujeitos as alteragdes ¢ a feitira; e embora a nature- za tenda sempre a produzir os seus efeitos excelentes, pela desigualdade da matéria, alteram-se as formas e a beleza hu- mana particularmente se confunde, como vemos nas infin- das deformidades e desproporgées que existem em nés. Eis por que os nobres pintores e escultores, o primeiro artifice imitando, formam também na mente um modelo de bele- za superior e, nele se espelhando, emendam sem culpa a natureza em cores e tragos. Essa Idéia, ou deusa da pintura 70 Vidas dos pintores, escultores e arquitetos modernos e da escultura, abertas as sacras cortinas dos elevados enge- nhos de homens como Dédalo e Apeles, desvela-se a nds € desce sobre os mérmores e sobre as telas; tem sua origem na natureza, supera-a e se faz ela mesma origem da arte; medida pelo compasso do intelecto, torna-se medida da mao e animada pela imaginacao, dé vida 4 imagem. Estao certamente, segundo os maiores fildsofos, as causas exem- plares nas almas dos artistas, onde residem sem incerteza perpetuamente belas e perfeitas. A Idéia do pintor e escul- tor é este exemplo mental perfeito e excelente, ao qual, imi- tando a forma imaginada, se assemelham as coisas que es- tao diante dos nossos olhos; tal é a definicgéo de Cicero no livro do Orador a Bruto: Ut igitur in formis et figuris est ali- quid perfectum et excellens, cujus ad excogitatam speciem imi- tando referuntur ea quae sub oculis ipsa non cadunt, sic per- fectae eloquentiae speciem animo videmus, éffigiem auribus quaerimus.> Assim a Idéia constitui a perfeigao da beleza natural e une o verdadeiro ao verossimil das coisas coloca- das sob os nossos olhos, sempre aspirando ao 6timo e ao maravilhoso, onde nao somente emula, mas faz-se superior 4 natureza, revelando-nos suas obras elegantes e completas, formas perfeitas que mesmo a natureza nao costuma apre- sentar. Este valor, Proclo confirma no Timeu, dizendo: “se tu pegares um homem feito pela natureza e um outro for- mado pela arte estatudria, o natural se destacar4 menos, 3 “Portanto, assim como nas formas ¢ figuras existe algo de perfei- toe excelente e, de acordo com a imagem que dele concebemos, reprodu- zem-se, por imitagao, as coisas que nao estao sob os nossos olhos, em es- pirito vemos a imagem da cloqiiéncia perfeita, buscamos com os ouvidos sua efigie.” Cicero, O orador a Bruto, Il, 7 (tradugao de Paulo Sérgio de Vasconcelos).

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