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Psychê

ISSN: 1415-1138
clinica@psycheweb.com.br
Universidade São Marcos
Brasil

Migliavacca, Eva Maria


A consciência no mito: Prometeu e Satã
Psychê, vol. VII, núm. 12, dezembro, 2003, pp. 27-45
Universidade São Marcos
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=30701203

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A consciência no mito: Prometeu e Satã
Eva Maria Migliavacca

Resumo

A autora apresenta um paralelo entre dois personagens mitológicos de origens culturais


distintas, Prometeu e Satã. O argumento principal considera que ambos os mitos, nos
quais eles ocupam o centro, procuram explicar o surgimento da consciência humana
como um evento que traz conseqüências irreversíveis ao lugar do homem no universo.
Apesar de serem dotados de caráter diverso, Prometeu e Satã exercem função semelhante
nesse processo. A autora sugere que os dois mitos em foco revelam-se uma fonte de
ensinamentos sobre a natureza humana de excelente valor para o psicanalista, uma vez
que este se ocupa da investigação do psiquismo.

Unitermos

Mito; mito de Prometeu; mito do paraíso; consciência humana; psicanálise.

ste não é um artigo de cunho clínico. É um texto com a finalidade de

E apresentar algumas idéias inspiradas por dois personagens mitológi-


cos oriundos de tradições diversas e de forte presença no imaginário do
homem ocidental, Prometeu e Satã.
Mitos têm sido um campo de interesse para psicanalistas desde Freud.
Contudo, a psicanálise tem bebido dessa fonte bem menos do que o manancial
disponível oferece. A mente humana ainda é desconhecida, e muito de seu
mistério foi apreendido ou intuído por meio das elaborações mitológicas. Em
princípio supõe-se que o psicanalista use mitos e as figuras que os povoam ora
como modelos ora como sínteses que representam estados de mente observa-
dos em sua clínica, ou em seu cotidiano. Pretende-se, neste texto, oferecer
alguns substratos mitológicos que o psicanalista interessado possa utilizar para
estabelecer as relações que bem lhe aprouverem, ou como tenham sentido em
sua própria experiência.
Considere-se, antes de tudo, que as questões humanas centrais sempre
estiveram na mira dos poetas, dos escritores e de quaisquer pessoas que se

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interessem naturalmente pela mente do homem. Freud – e depois dele os


psicanalistas – apossou-se dessas questões não como propriedade sua, mas
para desenvolver um método que possibilitasse a investigação sistemática,
concentrada e organizada do psiquismo humano e suas manifestações.
O foco central a partir do qual tudo se expande e para o qual tudo
converge é a consciência do homem de sua própria existência, a consciência
subjetiva que o confronta com o fato inarredável de que é um ser finito, e
que seu poder sobre a vida é, em última análise, nulo. Bem, mal, amor,
ódio, medo, emoções, conflitos de toda ordem, as incertezas, o crescimento,
a morte, a ânsia por viver, a dor, o desamparo, o desconhecido que se apre-
senta todo o tempo, são experiências humanas nas quais o homem mergu-
lha, e com as quais aprende a lidar em seu próprio benefício e de sua espé-
cie, mas sobre cuja realidade não tem qualquer poder ou ingerência. Tudo
isso, que é parte do viver mesmo, apresenta-se de forma direta e de fácil
reconhecimento nos mitos.
Como fenômeno, mitos têm sido uma presença invariável nas civiliza-
ções. Eles surgem para preencher lacunas, que se ficassem abertas, provavel-
mente inundariam o homem com uma angústia insuportável. A necessidade
de explicar, e portanto dar sentido às coisas, é presente no espírito do homem
provavelmente desde que, partindo da observação da natureza, começou a se
perguntar: “como foi que isso tudo começou?”. Anterior ao discurso lógico, ao
dialético ou ao retórico, foi primeiro o discurso mítico que ajudou o homem
a se orientar no meio em que vivia. E isso manifesta-se em todas as culturas,
em todos os povos, em qualquer época. O drama humano não leva em con-
ta diferenças culturais e temporais. Ele encontra-se sempre presente, com
as mesmas perguntas nunca respondidas a contento. O mito é a resposta
que se mantém enquanto não surge outra melhor. E nunca desaparece de
todo. Provavelmente sua força reside, mais que tudo, na veracidade daquilo
que ele expressa. Pois apesar de sua aparência fantástica, ele toca em ques-
tões reais e até vitais.
Podemos conjecturar que além de observar a natureza, o homem obser-
vava a si mesmo. E perguntava-se o que se passara com ele em um tempo
remoto que o levou a diferenciar-se de outros seres vivos. Ele descobriu que
precisava e podia cuidar da própria sobrevivência, defender-se de predadores,
inventar instrumentos, cultivar a terra, domesticar animais, proteger a prole,
avaliar as condições do tempo, do solo; e descobriu também que viver só
pelo instinto não bastava, não era suficiente. Ele observava a vida, a morte,

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os sonhos, a dor, o medo. Ficava intrigado. Formulava perguntas. Como foi


que o homem humanizou-se? De onde vem a centelha especial que o torna
diferente de todos os animais não-dotados do mesmo grau de razão e de cons-
ciência? Perguntas que o levaram a conceber deuses; deuses que aplacam
terrores, iluminam o escuro, explicam com sua existência tudo o que, sem
eles, seria incompreensível. Deuses que vivem em mitos...
Os dois seres que concentram este texto, mitológicos e ao mesmo tempo
reais no que representam – Prometeu e Satã –, surgem de duas tradições
completamente diferentes, e que nunca se reconheceram mutuamente por
seus valores na Antigüidade remota: a grega e a judaica. Segundo fontes
arroladas por Momigliano (1975), os gregos não registraram a existência dos
judeus, apesar de terem tido contatos comerciais com eles desde mais ou menos
o século XII a.C. Por seu lado, os judeus eram um grupo fechado, que não
tinha interesse em trazer estranhos para seu meio, nem em expandir suas
crenças a outros povos. Essas duas culturas, das quais a civilização moderna
herdou grande parte do que hoje a constitui, teriam feito trocas significati-
vas somente na Antigüidade tardia, na época Helenística, que vai do século
III ao século I a.C1. Mesmo com todo esse distanciamento – que parece ter
sido mais do que geográfico, mental –, ambas as tradições apresentam em
seus mitos questões de interesse humano alheias a fronteiras. Uma provável
razão disso é o fato de que as mitologias de diferentes culturas e épocas,
apesar de múltiplas variações na aparência, sempre se ocupam do mesmo
objeto, que é o homem, sua relação consigo mesmo e com o universo no qual
está inserido. Isso significa que apesar do mito ser expressão da mente de
um povo específico, é também acessível a qualquer homem, pois por mais
diversas que sejam as culturas e as épocas em que surgiram e desaparece-
ram, todos podemos pensar o humanamente pensável e apreender o modo
de ver de um outro, ainda que distante de nossa realidade atual, simples-
mente porque somos de mesma natureza. É evidente que isso requer um
grau de liberdade de pensamento desprendido de compromissos com tudo
que se encontra pré-estabelecido.
É possível traçar um paralelo entre Prometeu, que é uma figura forte
da mitologia grega, e Satã (na re-elaboração do mito do Paraíso feita por
Milton no poema O paraíso perdido), uma vez que se identifique em ambos a
mesma função em relação ao homem, apesar de suas características diver-
sas. Ambos são figuras altamente complexas e ricas de significados, sendo
que nos dois mitos a questão do conhecimento tem sido, de longe, a mais

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destacada. Pretende-se aqui incluir esse aspecto, mas centrar a atenção em


um problema anterior – o da consciência – trazido tanto por Prometeu quanto
por Satã como algo que provoca uma ruptura em um status quo, tendo como
conseqüência a alteração no rumo dos acontecimentos e uma mudança com-
pleta no lugar do homem no universo.

Prometeu
Como é freqüente em mitos, o de Prometeu tem um argumento central
e muitas variantes que o enriquecem, sem jamais desfigurá-lo. As versões
mais conhecidas encontram-se na obra de Hesíodo (séc. VII a.C.), Teogonia e
Os trabalhos e os dias, e na de Ésquilo (séc. V a.C.), em uma trilogia da qual só
restou a tragédia Prometeu acorrentado2. Apesar de inegáveis diferenças apa-
rentes, tanto Hesíodo quanto Ésquilo preservam as qualidades essenciais que
fazem de Prometeu um deus singular na mitologia grega.
Esse mito, que apresenta uma querela entre deuses, da qual decorre
não só a sobrevivência da humanidade, mas também a qualidade dessa sobre-
vivência, conta que na aurora do mundo eram tempos terríveis, com lutas por-
tentosas entre deuses, lutas que abalavam o universo, o homem lá existia –
talvez por distração divina, talvez por um engano da natureza – como um ser
alienado de si e sem qualquer relacionamento com deuses. Viviam pela so-
brevivência, eram autóctones, não tinham serventia, eram mortais e sem
poder algum, portanto sem valor. O início do mundo, na visão grega, era
pulsante de vida, povoado por inumeráveis seres com as mais diversas feições
e qualidades. O homem era apenas mais um de tais seres, mas sua vida nada
significava para os deuses; estes não precisavam dos mortais, o mundo era
um mundo de deuses.
Ora, Zeus, o grande vencedor das batalhas contra as divindades mais
antigas e violentas – como relata Hesíodo –, estava propenso a exterminar a
raça humana. Ela não tinha lugar na nova ordem que ele presidia. No entanto,
para aqueles seres desvalidos, um titã – divindade primordial, nomeado Pro-
meteu – volveu seu olhar compassivo, certamente o único na mitologia grega
com tal qualidade. Por conta de um amor desinteressado dirigido aos fracos
homens, Prometeu opôs-se a Zeus.
Ele era sábio e de previdente pensar. Seu nome revela sua principal carac-
terística: aquele que vê com antecedência3. Conhecendo os desígnios de Zeus,

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armou-lhe uma cilada, sacrificando um boi e dividindo suas carnes em duas


partes: uma delas ele cobriu com brilhante gordura, mas seu conteúdo eram
ossos e pelancas; a outra ele cobriu com vísceras e pele, e seu conteúdo eram
as carnes mais comestíveis do animal. Ofereceu então a Zeus a primazia na
escolha, destinando a segunda porção aos mortais. Zeus notou o ardil, e
disposto a perder os homens, escolheu a primeira porção, enfurecendo-se ao
confirmar o engodo. Neste ato em comum institui-se o sacrifício, que põe em
contato íntimo o deus e o homem, e os ligará para sempre em uma relação
indissolúvel de mútua dependência.
Furioso, Zeus nada fez contra Prometeu, mas subtraiu o fogo aos homens,
que assim estavam perdidos, condenados à noite, à vida animalesca, à idiotia,
ao desaparecimento. Mas o titã rouba uma faísca do divino lume e a entrega
aos mortais, que passam a ter a posse definitiva desse elemento transforma-
dor. Este ato de Prometeu, acentuado por Ésquilo, traz conseqüências
irreversíveis ao desenrolar da vida humana. Uma delas será a esplendorosa
mulher Pandora4 enviada aos mortais – no dizer de Hesíodo, como “um mal
amável” –, trazendo sua jarra de males, que incluem a geração de filhos, as
doenças, a velhice, a consciência da mortalidade, a dor, o suor, o ventre insa-
ciável, o trabalho... e o dom da esperança, bem ambíguo e aparentemente
necessário para a sobrevivência. Por este o homem mantém-se em um estado
de constante busca da realização de seus anseios, e ao mesmo tempo, de amea-
ça de concretização de seus temores. A partir da ação de Pandora de abrir a
jarra, os homens começaram a viver plenamente sua humanidade, com a
labuta diária pela sobrevivência, gerando filhos na dor, negociando com a di-
vindade, descobrindo passo a passo o alcance de sua influência sobre os deu-
ses, e aprendendo a lidar com a imposição dos limites divinos sobre a vida e o
mundo. O fogo prometéico abriu as portas para a significação do homem na
terra. Ou, como diz o titã pela pena de Ésquilo: “abri seus olhos para o signifi-
cado das chamas, até então velado” (v. 499).
Qual é o significado das chamas? O simbolismo do fogo é rico e extenso.
Pode-se, contudo, suspeitar que pouco se acrescentou ao que sintetiza Ésquilo.
O efeito imediato da ação prometéica é deslocar o homem de seu esta-
do anterior, é a desacomodação. O homem vivia no escuro e é despertado
para a luz. O dom do titã é o fogo concreto. Ele recebe, sim, o fogo perecível,
única qualidade acessível ao homem, pois o homem é perecível! Não é o fogo
do esplendor divino, pois este é inatingível. Contudo, mesmo sendo um fogo
que se apaga, é um elemento passível de domesticação, e isso descortina um

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mundo antes insuspeitado, que propiciará ao homem o desenrolar de uma


evolução ininterrupta. Pois aos mortais diz Prometeu: “de parvos que eram,
tornei-os racionais e dotados de inteligência” (v. 444), e com o fogo “apren-
derão artes sem conta” (v. 254). Há uma qualidade divina no fogo dado aos
homens, e que revela justamente aquilo que antes lhes era desconhecido:
passam a aprender. Eles aprenderam, revela o poeta, a sair das tocas subter-
râneas em que viviam e a construir casas; aprenderam a iluminar as trevas
noturnas, a prolongar a vida, a tratar de doenças, a inventar variados instru-
mentos, descobriram o ouro do fundo da terra, subjugaram animais, apren-
deram a lidar com números, aprenderam a escrita e a interpretar sonhos...
Assim, “todas as artes os mortais devem a Prometeu” (v. 505).
Porém, das artes maiores, uma foi cozinhar. Cozinhando a carne, o
homem diferencia-se dos animais, que comem cru, e assume um status mais
elevado em relação às espécies que se espalham pela terra. O cozinhar revela
o aspecto envenenado do presente de Prometeu, pois é um fogo que evidencia
a condição efêmera do homem; a carne que alimentará um ventre para sem-
pre faminto lembra-o incessantemente que é mortal, que não tem acesso ao
que é perene, assinalando o atrelamento humano às necessidades básicas de
sua natureza. No entanto, a partir daí amplia-se a cozinha: o homem também
cozinha... idéias. O cru equivale àquilo que irrompe de seu ser, sem qualquer
reflexão. Domesticando o fogo, o homem cozinha: reflete, pensa, conjectura,
avalia, analisa. Os elementos transformam-se e se dissolvem, re-agrupam-se
e se reconfiguram. Fazem-se sínteses com o fogo do espírito. Bem diz o poeta:
“eles antes olhavam à toa, sem ver, escutavam sem ouvir; por toda sua longa
existência, tudo confundiam sem tino, como vultos vistos em sonho” (v. 447-
449). A posse do fogo representa o deslumbramento do homem para sua rea-
lidade, a saída das trevas, o dom da consciência da condição humana. Pois a
capacidade culinária de discernir, transformar, elaborar – consciente de que o
faz – é um atributo próprio da humanidade. Assim, abrem-se olhos humanos
simultaneamente para a realidade física e psíquica. Com a domesticação do
fogo, o homem civiliza-se. Pode ser criativo, experimentar o novo, juntando
e ampliando seus recursos com o que aprende experimentando. O homem
civilizado não se contenta com seu estado primitivo, ele transforma os ele-
mentos disponíveis, a começar por si mesmo: o bruto em beleza, em alimento
para o corpo e para o espírito!
A partir de então, o homem mortal passa a existir de modo significativo,
mas incluído naturalmente no estado de coisas anterior, construindo um espaço

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próprio e ampliando sua relação com a divindade por meio de sacrifícios e de


rituais sagrados. A mudança se dá no status assumido pelos mortais frente
às divindades, que passarão a depender deles e de seus sacrifícios para serem
e se sentirem honradas em suas posições5. Tudo isso evolui na mitologia
grega, elaborada ao longo de séculos.
Assinale-se que com o titã o homem é salvo da perdição, sim, mas
recebe com isso considerável carga de sofrimento, e sua tarefa será para
sempre a de se equilibrar frente a violentas forças opostas, a contradições
internas. O homem é iluminado pela consciência e seus recursos começam a
crescer e a se ampliar, ao mesmo tempo em que se descobre capaz de des-
truir e devorar seu semelhante. Pandora simboliza bem esse aspecto: nada
mais humano do que o conteúdo de sua jarra, tanto o que salta para fora
quanto o que é retido nela, e Prometeu é indiretamente responsável por esse
belo presente de horrores. O fogo e a jarra de Pandora, portanto, são com-
plementares. A labuta humana é cheia de contradições, estendida para bem
além da sobrevivência biológica, até tudo que concerne à consciência de
uma vida interior, à percepção de si como um ser que pensa e evolui e é
consciente disso, com impulsos e necessidades, frustrações e conflitos; com
tudo o que traz ao homem o ônus de ter que lidar com o próprio psiquismo.
O fogo representa a luz que se acende no espírito do homem e que nunca
se apaga. Nela ele constrói sua humanidade, amplia sua consciência, aprende
com sua experiência no mundo, em um movimento que reinicia a cada
instante em que alguém nasce.
Esse é um dos mais belos mitos que procuram responder à onipresente
pergunta a respeito da origem da consciência humana, alvo constante tanto
de pesquisas científicas quanto de especulações religiosas.

Satã
John Milton, o poeta d’O paraíso perdido, nasceu em Londres em 1608 e
morreu em 1674. Só a partir dos 52 anos começou a escrever seu maior
poema, um projeto da juventude, após uma vida política movimentada. Ele
ditou os versos a parentes e pessoas contratadas, pois foi acometido de
cegueira desde os 43 anos.
Milton é geralmente considerado pelos historiadores que examinam seu
papel na história da Inglaterra (Hill, 1972) como um homem de grande valor,

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consciencioso e ponderado. Não que tenha sido consenso, ele também teve
seus desafetos e foi perseguido. Ele era um homem de seu tempo, partici-
pante nas questões religiosas que agitaram o século XVII. Adepto do Puri-
tanismo6, austero e moralista, ao mesmo tempo suas opiniões religiosas
beiravam a heresia, vivendo conflitos com o corpo puritano oficial. Com
freqüência o retrato de Satã em seu poema é visto como uma indicação da
existência desse conflito.
Muitas vezes O paraíso perdido é comparado e até equiparado às epo-
péias homéricas ou a Dante. A fonte inspiradora original é o mito do Éden,
contado nos primeiros capítulos do Gênesis. Contudo, Milton o re-elabora,
dando ênfase à figura de Satã e a seu conflito particular com Deus criador,
cujo resultado será a corrupção do homem, ou a introdução de um elemento
novo na criatura homem.
Milton coloca Satã no centro. Ele é o personagem principal, e em torno
dele e de sua ação gira quase todo o poema. Ele é o mais luminoso dos anjos do
Senhor. Ele rebela-se dominado pela inveja e ressentimento contra Deus, por
este ter dado a seu próprio filho um lugar de destaque cobiçado para si. Ele só
desaparece de cena quando o homem nela se destaca, porém já corrompido
pelas artimanhas do demônio. Esse argumento e suas decorrências são des-
critos verso a verso, em uma retrospectiva mais ou menos sistemática nos
diálogos entre os demônios, e principalmente quando o arcanjo Rafael conta
o sucedido a Adão, para preveni-lo da ameaça de corrupção.
Satã é apresentado como um verdadeiro herói e é, fora de dúvida, a
figura mais interessante do poema; ele é dotado de grandeza, é majestoso,
admirável, mesmo com seus pensamentos mesquinhos, virulentos e odio-
sos. Chefe que acima de todos “se sublima, soberbo em forma, em atitude,
em porte” (p. 47), parte de seu caráter revela-se nas palavras orgulhosas:
“reinar no Inferno preferir nos cumpre – à vileza de ser no Céu escravos”
(p. 33). O sentimento com que tal afirmação é feita, porém, é de enorme
desespero. Na segunda metade do poema, Milton ameniza a grandeza des-
se anjo-demônio, apresentando-o como um sapo, uma serpente abjeta, um
monstro sem qualquer poder sequer sobre sua aparência física.
Quando a tragédia Prometeu acorrentado começa, o titã está sendo
aprisionado com invencíveis cadeias à sua rocha, lá lançado por Zeus, deus mais
forte. A catástrofe, ou seja, a reviravolta já se dera e não havia retorno possível.
O início d’O paraíso perdido também descortina uma catástrofe: Satã acorda

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atordoado, e depois dele as legiões de anjos rebeldes, nas profundezas abissais


e escuras, frias e medonhas do Inferno, lá lançado pela força divina por ter
desafiado Deus e seus anjos, na insana tentativa de apossar-se de um lugar
que não era seu e nunca poderia ser – o do Criador.
Grande parte do poema é dedicada aos esforços de Satã em reverter a
situação. Decaído, ele quer encontrar um meio de derrubar Deus de seu lugar.
Mas em qualquer confronto de forças em que se empenha, descobre-se aba-
tido, no chão, vencido e cada vez mais cheio de ódio, fúria e medo. Inte-
ressantíssimos no poema são os momentos em que Satã reflete a respeito de
si mesmo, do que sente; ele observa-se, avalia-se, conjectura, analisa-se...
Sucumbe sempre à própria ira e desespero, porém, como quando se flagra
deslumbrado na contemplação do Paraíso, e sofre intenso ódio e inveja frente
à suprema beleza do mundo, a qual não pode negar. Compara a luz da força
divina criadora, que antes compartilhava, com o estado a que sua rebeldia o
lançou e só encontra desesperação:
Maldito eu seja porque injusto
Livremente escolhi contra meu senso
O que tão justamente agora eu sofro!
Quanto sou infeliz! Por onde posso
Fugir de sua cólera infinita
E de meu infinito desespero?...
Só o Inferno essa fuga me depara:
Eu sou Inferno pior! O outro, cavando
No fundo abismo, abismo inda mais fundo,
E ameaçando-me engolir em tais horrores,
Para mim fora um céu se o comparasse
Com este Inferno que em mim mesmo sofro! (p. 134).

Em suas buscas, Satã descobre um ponto vulnerável pelo qual pode agir:
a criação mais perfeita de Deus, o homem no Paraíso e seu veio mais fraco, a
mulher. O Paraíso e o casal vivendo nele são apresentados por Milton como
totalmente perfeitos na sua ingenuidade, beleza, pureza de atos e pensamen-
tos, um estado da mais pura graça, a mais absoluta ausência de conflitos de
qualquer ordem, inclusive no plano sexual; a natureza humana isenta de qual-
quer perturbação afetiva, física, moral, de relacionamento, uma felicidade com-
pleta. Nesse lugar e nessa condição vivia o que seria o homem, criado, apesar
de tudo – como afirma o Deus do poema – com liberdade de escolha.
Satã descobre essa criação e decide atacá-la traiçoeiramente, ludibrian-
do os anjos que montavam guarda no Éden. Insidioso, entra no Paraíso, e

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escondido ouve um diálogo entre Adão e Eva, pelo qual descobre a interdição
divina. Eles poderiam alimentar-se dos frutos que brotavam no Éden, mas não
deviam pretender os de uma certa árvore. Satã reflete, perplexo:
De uma árvore fatal comer não podem,
E essa... Árvore da Ciência se intitula.
Vedar a ciência? Absurdo suspeitoso!
E Deus, por que lha veda? É culpa da ciência?
Da ciência pode germinar a morte?
Só na ignorância lhes é dada a vida!
(...) Já lhes vou excitar a fantasia de ciência
Com desejo incontrastável... (p. 155).

Ele não se aproxima de Adão, incorruptível em si mesmo, mas da mulher


Eva, primeiro por meio de um sonho perturbador, e depois na forma de ser-
pente, dentro da qual ele penetra pela boca. Com sua lábia serpentina, con-
vence a pobre Eva de que ele tinha o dom da linguagem humana por ter
comido o fruto proibido. Comê-lo, na palavra da serpente-Satã, significava abrir
os olhos, conhecer o que existe com olhos divinos, ultrapassar a condição
humana. Eva fica impressionada e se deixa convencer de que comer tal fruto
não a levaria à morte, como fôra prevenida, mas sim à divinização. Esquece
todas as recomendações dos anjos, enfaticamente reforçadas por Adão, e delicia-
se com aquele fruto encantador, enquanto a serpente retira-se, sorrateira. Eva
corre até Adão, conta seu feito e convida-o a fazer o mesmo. O homem es-
tarrecido vê sua doce mulher perdida para sempre e reflete que tem a possibi-
lidade de não se juntar a ela. Milton dá um andamento original ao argumento:
Adão decide comer o fruto proibido por amor à mulher. Ele sabe que está a
ponto de cometer a transgressão decisiva para seu destino, mas ao considerar
a fragilidade dela, fala mais alto seu amor a Eva do que seu amor a Deus, e ele
decide perder-se com ela. E come do fruto.
A partir de então, tudo muda: o primeiro sinal é um abalo na natureza,
mas o casal nem percebe. Eles entreolham-se, cheios de desejos, são tomados
pela mais intensa luxúria, espojando-se na grama como dois animais, imersos
na lascívia e usufruindo desmedidamente dos prazeres carnais, até ficarem
prostrados pelo sono. Milton faz do atordoamento pelo sexo a consolação de
seu pecado. O sono, contudo, não é reparador, mas sim perturbado. Ao acor-
dar, toda a relação de mútuo entendimento, cooperação, ternura e inocência
esvaíra-se. Eles são tomados pela vergonha, pelo remorso e medo, e passam a
se agredir mutuamente, acusando-se e ofendendo-se, destilando fel e ódio,
apavorados com o castigo que virá.

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O homem se dá conta de seu estado, seus olhos abrem-se para tudo o


que ele nunca vira antes. A partir de agora ele terá que enfrentar a si mesmo
e lidar com sua existência em um outro plano; ele precisará incluir tudo o
que nele é resultado de sua conivência com a ação satânica: “cólera, rancor,
suspeitas, ódios, raivas, discórdias, hórridas tormentas que furibundas se
lhes lançam na alma” (p. 356). Franquearam-se as portas do Paraíso para a
entrada da Fúria-Pecado, filha de Satã e incestuosa mãe com ele do Mons-
tro-Morte. De agora em diante, o homem terá que lidar com ambos, frutos
do pai do Mal.
É notável acompanhar as reflexões de Adão a respeito de seu ato e
das conseqüências de sua nova condição. Equivalem às de Satã assinaladas
há pouco, pois ele se auto-observa, auto-analisa. Adão observa-se e reconhe-
ce sua interioridade, suas opções, seu tumulto interno, seu caráter íntimo.
Diferente do demônio, porém, ele não chega ao desespero, mas sim a um
estado de profundo entristecimento e melancolia – o que hoje chamaría-
mos de depressão – com a qual terá que lidar para não sucumbir à culpa.
Percebe-se vivendo dolorosa experiência de perda irrecuperável da anterior
bem-aventurança:
Depois de tão feliz... que penas curto!
Deste mundo glorioso, apenas feito,
Eis o fim! E eu, que há pouco me contava
A glória desta glória, estou maldito...
De bem-aventurado que antes era! (p. 392).

Nesse novo que se descortina, Adão percorre, com a mulher, o caminho


do furor e da agressão recíproca até o sentimento de solidariedade no sofri-
mento, a reconciliação um com o outro e com a vida. Por meio da experiência
da dor e da profunda pena pela perda da graça, chorando sentidas lágrimas
com sua companheira de infortúnio, ele percebe-se capaz de coisas belas, de
construir, de inventar, de amar, de perdoar e se compadecer... Contudo, devi-
do à sua ação inteiramente avessa às prescrições divinas, não há mais lugar
para o homem no ambiente perfeito do Criador. A humanidade no seu todo
não cabe no Éden. Adão, desamparado, necessita da intervenção divina, e a
ação benigna de Rafael apresenta-lhe os recursos disponíveis para evoluir em
sua nova condição, e transformar a experiência em um conhecimento cres-
cente. Adão e Eva são expulsos, não sem esperança de retorno porém – espe-
rança essa que Deus, em sua infinita bondade, ajuda o homem a reter dentro
de si, e que o leva a uma incurável nostalgia do Paraíso: desde que saiu do
Éden, ele busca voltar a um estado de não-consciência de sua natureza, ou

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então foge da percepção de uma natureza que não é divina nem é puramente
animal, e que lhe cobra atenção constante.
Esse mito no poema apresenta o vigor da persistência de Satã em se
tornar significativo e não aceitar ser apenas um anjo decaído. Para ele sobre-
viver faz-se necessário deixar sua marca e exercer uma influência decisiva no
rumo dos acontecimentos. Satã desafia e insiste até encontrar meios de trans-
formar sua contestação em uma ação concreta. Ele não se conforma com a
submissão, delineando suas características próprias por meio do mais radi-
cal protesto. E imprime no espírito humano a rebeldia (que a tradição cristã
transformará em pecado, ainda que a noção de pecado contemple mais...).
A ação satânica traz conseqüências irreversíveis ao curso da vida huma-
na, e a primeira delas é a consciência. O homem percebe-se de um modo
novo; ele desperta para o fato de que sua realidade ultrapassava aquilo que
estava ao seu alcance antes perceber. É um despertar avassalador, e desse
deslumbramento resulta tudo o mais. A criatura divina, que é movida do
paraíso da não-consciência para o inferno da consciência, é um ser que tem de
se enfrentar, tem que se haver com sua agressividade, sua violência, sexua-
lidade, medo, necessidades corporais, com suas contradições, com sua exis-
tência, enfim. Ele passa a lidar com os conflitos da vida, incluindo-se aí a
possibilidade de matar e de matar-se.
Ele descobre também que em seu íntimo reside um potencial transfor-
mador, do qual poderá se utilizar para tornar mais leve seu fardo e extrair
satisfação do resultado de seus esforços. A natureza humana apresenta-se ao
homem matizada por contrastes que se contradizem, ao mesmo tempo em
que se complementam, desvelando-se a complexidade de sua nova condição.
O homem passa a experimentar e a experienciar tudo aquilo que é próprio do
humano. O que ele não conhecia – “vergonha, desespero, crimes, malícia,
obstinações, furores” (p. 379) – passou a ser parte de seu cotidiano. A dor de
conviver com tal descoberta é bem exposta nas palavras de Adão:
Ó consciência! Em que abismo de terrores
Me tens lançado? Para fora dele
Nenhum caminho encontro, e nele giro
De golfo em golfo, cada vez mais fundo (p. 397).

E quem propicia toda essa mudança não é Deus. É Satã. É por ele – pelo
príncipe das trevas – que o homem sai das trevas. Pois vivia nas trevas, ainda
que sob um claro sol. Quem dá a possibilidade de ciência7 ao homem, quem

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lhe tira a venda dos olhos é Satã, o diabo, não é Deus. Este é um aspecto
deveras interessante, pois Deus é onisciente, mas é pelo demônio que o
conhecimento da condição humana chega ao homem. O conhecimento acessí-
vel ao homem é o demoníaco, não é o divino. É Satã quem mostra a luz, esse
antigo Lúcifer, espírito de luz, estrela da manhã! É ele quem provoca uma
ruptura no estado de coisas anterior, é sua interferência que – parafraseando
Feuerbach (1841) – contrapõe à beatitude celeste as barreiras da realidade.
E Adão responde de acordo com as sugestões de Satã, por possuir dentro de si
e fora de sua apreensão imediata, o anseio por ir além.
Satã inocula no homem – ou faz com que venha à tona – o desejo de
igualar-se ao Criador. O homem é um desconhecido para si mesmo, e a partir
do contato com a força do demônio, desperta-se nele um desejo oculto à sua
própria consciência: não mais ser criatura, mas sim Criador, algo que está fora
do alcance da realidade humana. Este era o desejo do próprio Satã, que não
consegue realizá-lo e se corrói em sua própria inveja, levando-o a pôr seu
plano em ação. Deus havia posto sua criação em um estado tal que ela poderia
ficar para sempre presa ao nada. Por meio de uma transgressão inaceitável, o
homem sai do nada para o deslumbramento, mas ao preço da expulsão do
Paraíso. Essa transgressão tem um caráter criativo, e sobretudo libertador,
pois a partir daí o homem pode se apossar do conhecimento de si e do mundo
e deles fazer uso. Inclui-se algo inteiramente novo e desconhecido à criatura
de Deus, que no entanto encontrava-se dentro dele no plano potencial, em
gérmen... Satã deu ao homem a percepção de sua humanidade: um presente
dúbio, inestimável e aterrorizante, que o homem modificará de acordo com
suas características naturais.
Curiosamente, a consciência e a possibilidade de discernir bem e mal
chegam ao homem como um mal e não como um bem. A fonte do discernimento
– isso que é a seiva da mente, o alimento da vida mental – é dada como
maligna e maléfica. Ela chega ao homem com o fim de destruí-lo e ele toma-
se de angústias ao ver-se inundado pela luz. Sempre se pode indagar o porquê:
talvez por desacomodar, exigir reformulações, despertar medo e hostilidade,
provocar sofrimento, exigir novas atitudes... talvez por tudo isso e ainda mais.
O poema é realmente maravilhoso. O poeta expressa nele a evolução
natural da humanização. O preço é o suor de teu rosto. Que pode ser entendido
em um plano não concreto: “hás de suar para compreenderes a ti mesmo e
descobrires como lidar com o vasto mundo desconhecido que há dentro de ti e
que despertará ainda maior angústia do que o mundo externo que observas”.

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Contraponto
Olhando-se para a antigüidade desses mitos – indefinível no tempo –
percebe-se como desde muito cedo o homem captou e procurou dar expressão
a seu impasse trágico, a seu destino humano, a sua contradição básica, a sua
natureza no que ela tem de essencial: os pés fincados na terra e o espírito
aspirando os céus.
O drama maior de Satã é o de ser criatura – ele não é criador. Ele se
corrói de inveja e ódio por não poder jamais alçar-se à condição do Criador,
que é inatingível. Seu ataque ao homem é um deslocamento da ira virulenta
que sente contra o Todo-Poderoso. Prometeu não tem esse problema. Ele nem
tem a quem invejar a capacidade de criar. O deus grego não é criador, nem
eterno. Imortal sim, mas não eterno. Ele tem sua origem, como tudo o mais no
universo, no Caos indiscriminado. A divindade grega nasce e é gerada pelo en-
contro entre deuses de sexos diferentes, à semelhança dos homens. O próprio
Zeus, por exemplo, é terceira geração...
Essa condição contribui para fazer de Prometeu um espírito livre. Ele é
livre e não se intimida diante de ameaças a sua integridade corporal.
Acorrentado no Cáucaso, ameaçado por Zeus, ele não vacila e se mantém
coeso, íntegro, dono de seu espírito, mesmo sofrendo dores físicas e os ter-
rores da noite. A idealização desse deus pelos gregos talvez seja o melhor
modelo de liberdade jamais concebido, pois acentua o fato de que as reais
peias são menos as impostas pelo mundo externo e mais as que nascem no
interior da alma.
Diferente de Satã, um outro tipo de modelo: Satã é escravo. Por não
aceitar ser quem é, torna-se escravo de sua fúria, de seu ódio, de seu medo e
sobretudo de sua inveja. Ele é conduzido pelo desespero, não tendo qualquer
autonomia em relação às paixões que o assolam e atormentam. Satã não é um
espírito livre, apesar de ter inadvertidamente libertado o homem.
Com tudo isso, ambos têm funções semelhantes, mas não iguais em
sua motivação ou em seu objetivo. O caráter de Prometeu distingue-se
pela compaixão. O de Satã, pela crueldade. A motivação de Prometeu é
amor desinteressado pelos homens; a de Satã é ódio e ressentimento con-
tra Deus e sua criação. A intenção de Prometeu é preservar; a de Satã é
destruir. O objetivo do titã é salvar o homem, é equipá-lo para viver; o do
demônio é corrompê-lo e perdê-lo. O resultado final é o mesmo: ambos

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possibilitam à mais pelada criatura do universo evoluir e aprender a ves-


tir-se, ainda que a um alto preço.
O homem prometéico conserva suas características primitivas acresci-
das de um novo equipamento para lidar com elas. Ele vivia em um estado
ausente, inconsciente de sua existência, e poderia ter sido fulminado sem
jamais se dar conta de ter existido. No homem edênico concentram-se as qua-
lidades divinas, anteriores ao fruto, e as qualidades demoníacas, posteriores à
transgressão. E com isso descobriu o que é comer o pão com o suor de teu
rosto – ou o pão que o diabo amassou!
Isso poderia ser dito em outros termos: com Prometeu, o homem era
um bruto e humanizou-se; com Satã, o homem era perfeito e humanizou-se!
No efetuar dessa mudança, a participação dos homens difere: na tradi-
ção grega, a ação do homem no que diz respeito a seu nascimento para a
consciência é praticamente inexistente. A mudança na condição humana re-
sulta de conflito entre divindades, e das maiores: Zeus Olímpio e Prometeu
Onividente. O homem não tem qualquer influência no seu próprio destino
antes de receber o fogo esclarecedor. Até mesmo a escolha do boi sacrificado
cabe a Zeus, aos mortais fica o que sobra. O efeito das querelas divinas, que
incluem medida de forças, incide diretamente na qualidade da existência
dos mortais na terra. Só a partir do domínio do fogo – esse grande mistério –
é que o homem passa a ter alguma influência sobre seu próprio destino.
Nisso revela-se um aspecto da esplêndida sabedoria grega, ao admitir que
existem perguntas cujas respostas estão além da capacidade humana, e que
nada mais resta ao homem do que aprender a conviver com esse fato. Adão,
por outro lado, escolhe, decide. Ele tem uma ação participante, ativa e não
passiva. Ele é prevenido, a ele é dada uma opção, ele pode decidir seu desti-
no. O resultado é moralmente condenado, não é encarado como uma de-
corrência natural da existência em um mundo inóspito, que precisa ser
conhecido e em alguns aspectos dominado. Se entre os gregos a escolha é
do deus que vê o homem à beira da perdição, no Éden a intenção é lançar o
homem na perdição, e este a escolhe, só se dando conta depois. São diferentes
respostas ao mesmo problema.
É de se notar que em ambos os mitos a mudança na condição humana
não só é fruto do conflito entre seres da esfera divina, mas também se esta-
belece por meio de figuras secundárias no poder, e isenta o deus maior de
responsabilidade; este não se compromete com acontecimento tão decisivo,

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e ao homem cabe arcar sozinho com a angústia que o assola ao longo de toda
a vida. De qualquer forma, os mitos deixam claro que o homem nada sabe de
si, de sua origem. Sem a intervenção divina ele é nulo de significação no
mundo. Talvez delineie-se aí uma das grandes questões humanas não passí-
veis de resposta segura. E o espírito sopra onde quer...

As conseqüências morais divergem. A condenação de Adão alimenta


um sentimento acabrunhante de culpa, pela qual ele e seus filhos responderão
em vida e também após a morte. É um jugo e tanto, do qual é difícil libertar-
se. Ele vive nostálgico, espera o Messias prometido, anseia a recuperação do
Paraíso perdido. Eis aí algo totalmente alheio à tradição grega. Nesta o homem
é lançado para frente e não existe o espírito do retorno a um estado des-
provido de sofrimento, nem há um dano culposo a ser reparado. O homem
grego não é sobrecarregado da culpa por uma transgressão contra deuses,
ele ocupa-se com a vida, com o que ela vai apresentando. Nem por isso os
gregos foram menos éticos, ou deixaram de ter seu código moral e seus
valores elevados.

A história cultural mostra que a noção das faltas humanas evolui


`
para campos diferentes. A tradição grega nos dá a hybris, e a tradição cris-
tã o pecado. O pecado é uma ação má perpetrada pelo homem, com a in-
tenção de causar o mal, e ofende a Deus; portanto é a Deus que ele terá de
prestar contas – ainda que a sociedade tenha seus próprios meios regula-
dores. Do arrependimento dependem a absolvição e o perdão divinos. O
destino pode ser a danação eterna, o sofrimento ininterrupto das penas do
inferno após a morte – que pode ser entendido como a mais absoluta au-
sência de Deus ou da graça divina para a alma perdida em uma noite sem
`
fim. A hybris é definida, em geral, como ação desmedida, arrogância inso-
`
lente do homem. No entanto, hybris é mais complexa. Ela é uma ação ex-
cessiva, portanto danosa, que traz embutidas as conseqüências funestas
que o homem terá que enfrentar – absolutamente inevitáveis – daquela
ação. O despedaçamento do homem encontra-se atrelado à própria ação
transgressora do métron, de forma indissolúvel. É a imoderação, é o exa-
gero que leva naturalmente à destruição do indivíduo ou da cidade. Ela
ofende homens e deuses por ofender a ordem natural das coisas. O deus
grego jamais perdoa um ato de hybris,
` mas seu castigo não se dá por uma
condenação pela consciência moral propriamente dita. O castigo é uma
realidade no presente concreto, no cotidiano, pois está entranhado na pró-
`
pria ação realizada, da qual é conseqüência inevitável. O ato de hybris traz

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em si o castigo, mas nela não estão incluídas as noções cristãs de absolvição


e condenação, perdão ou castigo eterno, muito menos após a morte8. A hybris
`
perturba a ordem do universo, e tal ordem precisa ser restaurada neste
mundo. É, portanto, mais do que um conceito ou uma noção, é uma reali-
dade viva para a mente grega.

Delineiam-se aí paradigmas diversos. Os gregos, mais realistas; e os


filhos de Adão, mais visionários, mais imersos no mito. Na verdade, tudo
isso pode ter sido apenas um modo de dizer que a espécie humana teve
muita sorte em sobreviver e evoluir. O fato é que os mitos expressam dra-
mas comuns à humanidade, e também os primeiros caminhos para a orga-
nização de modos de lidar com esse drama, sendo que um dos primeiros a
se apresentar é o da consciência de si – que o mito ora chama Prometeu,
ora chama Satã. Para a criança que nasce, chama-se mãe. Na psicanálise
chamamos desconhecido, esse que é o objeto central da sondagem psica-
nalítica da mente humana.

Notas
1. Arnaldo Momigliano, em admirável ensaio, e baseado em minuciosa pesquisa, comenta
que “os gregos viviam contentes em sua era clássica sem reconhecer a existência dos
judeus”, enquanto que para os judeus “os gregos são conhecidos, mas parecem bastante
remotos e insignificantes”. Isso é notável, sobretudo diante do fato de que ambas as nações
estabeleceram laços comerciais em tempos bem antigos (1991, p. 74-75).
2. Além dessas, é célebre a versão de Platão, no diálogo Protágoras.
3. O prefixo pro tem o sentido de previsão, de antevisão do futuro; e métis é uma palavra que
designa a sabedoria astuciosa, artimanhosa. Para aprofundamento, ver Marcel Detienne
and Jean-Pierre Vernant, Cunning intelligence in Greek culture and society.
4. Significa “todos os dons”.
5. A esse respeito, há a hilariante comédia de Aristófanes, As aves, na qual há uma rebelião
dos homens que se recusam a sacrificar aos deuses, que entram em pânico com a idéia de
não mais receberem honras, obrigando-os a novos acordos com os mortais.
6. Puritanismo segue padrões morais extremamente rígidos e pretende dar a correta interpre-
tação aos textos bíblicos. Práticas consideradas pecaminosas, como beber, jogar ou desres-
peitar o sábado eram alvo da censura desta seita que surgiu no século XVI na Inglaterra,
como um partido político que queria reformas religiosas radicais e lutou pela queda do poder
dos bispos. Sofreu reveses ao longo de décadas, reformulando sua posição de interferência
na organização da Igreja, para outra na qual enfatizava a importância da moral e do caráter,
exercendo influência nos costumes. Teve seu auge entre 1640/50. Considere-se que nesse
período Igreja e Estado formavam uma unidade aos olhos de seus contemporâneos.

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7. A palavra consciência vem de uma tradução literal da palavra grega syneidysis para o latim
con-scientia. O prefixo syn refere-se originalmente a algo que se dá no encontro com o
outro, o estranho, o não-eu. O sentido é o de que consciência é a ciência adquirida no
contato do homem com aquilo que não é ele mesmo.
8. O homem grego, após a morte, está destinado ao Hades, sem exceção, qualquer que tenham
sido seu status ou seus atos em vida. Nada iguala tanto os homens quanto a morte, seja ele
um herói, seja ele um obscuro. Existem alguns grandes criminosos, que ultrapassaram
todas as medidas e sofrem no Tártaro, que é uma região mais tenebrosa e profunda do que
o Hades, como Tântalo, Sísifo ou Íxion, mas são prováveis soluções encontradas pela tradi-
ção para dar conta de ações momentosas de heróis que conviveram muito proximamente
com os deuses e não souberam manter seus lugares.

Referências Bibliográficas
ARISTÓFANES. As aves. Lisboa: Edições 70, 1989.

DETIENNE. M.; VERNANT, J-P. Cunning intelligence in Greek culture and society. Chicago:
University of Chicago Press, 1991.

ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. In: Teatro grego. São Paulo: Cultrix, s.d.

________. Prométhée enchaine. In: Théâtre. Paris: Garnier Fréres, 1946.

FEUERBACH, L. (1841). A essência do cristianismo. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. São Paulo: Iluminuras, 1990.

________. Teogonia. São Paulo: Massao Ohno-Roswitha Kempf, 1981.

HILL, C. (1972). O mundo de ponta-cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

MOMIGLIANO, E. (1975). Os limites da helenização: a interação cultural das civilizações


grega, romana, céltica, judaica e persa. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

MILTON, J. (1667). O paraíso perdido. Belo Horizonte: Vila Rica, 1994.

PLATÃO. Protágoras. Fortaleza: UFC, 1986.

Consciousness in the Myth: Prometheus and Satan


Abstract

The author presents a comparison between two mythological figures of different cul-
tural origins, Prometheus and Satan. The main topic states that both myths in which
they play the main role try to explain the rising of human conscience as an event that
brings irreversible consequences to man’s place in the Universe. Although they have

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opposing characters, Prometheus and Satan have similar roles in this process. The
author suggests that these two myths reveal themselves as a source on lessons about
human nature of excellent value for the psychoanalyst, since his main focus is the
investigation of human mind.

Keywords

Myth; myth of Prometheus; myth of paradise; human consciousness; psychoanalysis.

Eva Maria Migliavacca


Professora no Instituto de Psicologia da USP; Psicanalista do Instituto de Psicanálise da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Rua Joaquim Antunes, 490 / 12 – 05415-001 – Pinheiros – São Paulo/SP


tel: (11) 3062-3177
e-mail: emiglia@usp.br

– recebido em 24/03/03 –
– aprovado em 03/04/03 –

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