Você está na página 1de 5
a arte de viver como gente em condic¢ées negadoras da humanidade Bader Burihan Sawaia No livro Os Sertées, escrito por Euclides da Cunha em. 1902, encontra-se a seguinte passagem: “As favellas, an6- nymas ainda na cienscia, ~ ignoradas pelos tabaréos (. néo podendo revidar isoladas, disciplinam-se, congregam- se, arregimentam-se, (...) unem-se, intimamente abraga~ des, transmudadas em plantas sociaes |...). Alli se asso- ciam. E, estreitamente entrancadas as ralzes, no sub-solo, em apertada trama |...), vencem (...) a sucgéo insaciével dos estractos e das areias. E vive. Vivem 6 0 termo~ por- que he, no fecto, um traco superior & passividade da evolu- ¢40 vegetativa ...""(1). Neste trecho, Euclides da Cunha no estava se referindo ‘208 nticieos habitacionais subumenos de nossas grandes metrépoles, mas estava descrevendo a favela, ser do reino vegetal, "... que ndo estavam bem armadas para a reacco vietoriosa...” (2) contra o meio ambiente inéspito, um tipo de caatinga (mato ruim) baiana. ‘Mas 6 fantéstica coincidéncia entre relatos para ca- racterizar este género de leguminosa e os atuais niicleos ha~ bitacionais. Coincid@ncia que tem seu efeito corraborado pelo estilo euclidiano de animizacéo sistemética das forcas naturals, vistas como proje¢éo dos conflitos humanos, pelo fato de a Guerra dos Canudos ter dado origem néo s6 8 tat Burhan Sain Pomora cov om Palelace «ceed Doar raters nes net BES Sa cacatt Almas savant ieee Aisa hericeeaha as 46 palavra favela, como também a condigdo de favela. Como afirma Walnice Galvéo, autora da edigéo crf de Os Sertées, o local onde os soldados faziam acampa- mento em torno de Canudos para combater Anténio Con- selheiro e seus seguidores ers chamado morro da Favela, por cause da planta existente em abundancia na regio. Quando os soldados voltaram da Guerra, 0 governo doou-Ihes, no Rio de Janeiro, lotes de terra como prémio por terem vencido. Eram terras que néo tinham velor co- mercial, nos morros da periferia da cidade. O primeiro morro ‘ocupado pelos soldados foi chamado Morro da Favela. De- pois vierem outros com o mesmo nome. Em 1948, 0 nimero de favelas do Rio atingia 105. A partir dos anos 50/60, comegam a extrapolar os limites de cidade invadindo todas as grandes cidades, principalmente 4s industrislizadas, como S8o Paulo (pélo de atragdo de flu- xo migrat6rio). Hoje, oxistem cerca de 1.500 favelas paulis- tanas, com uma populago em torno de 820 mil pessoas (2). ‘Assim, a palavra favela, que adquiriu fungo de locugéo adjetiva, por aco dos combetentes transformou-se em substantive, agora com um novo significado, n8o mais refe- findo-se a um género de leguminose, mas @ um estilo he- bitacional. Serd que a escolha do nome favela pelos soldados pare © morro onde irism morar foi movido exclusivamente por sentimentos saudosistas? Esta escolha parece revelar uma sensibilidade visionéria dos soldados vencedores, capaz de prever, em tom de de- nndncia, as condigSes de vide subumana @ que seriam rele- gados. E al, nestas condig6es, se véem iguais aos vencidos, que 2 eles se juntarao mais tarde com o movimento mi- gratério ~ “aqueles rudes patricios indoméveis"” que néo eram monerquistas ou fanéticos religiosos, mas sertanejos, expropriados da cidadania e das condigées de sobrevivencie digna. Agora juntos, vencedores € vencidos, soldados e sert nnejos, como a planta favele, sentem que precisam associar- soliderizar-se para enfrenter as condigdes indspitas de sobrevivéncia que os une. Compartitam seus recursos és- ‘cass0s ¢ intermitentes para lograr impor-se em grupo as circunsténcias que certamente os fariam sucumbir como in- dividuos isolados. Mas, quando se faz tal comparagéo, & preciso ressaltar que estas condigées também adversas nos queis 0s mora- dores da favela tém que sobreviver no so apenas naturais, como es enfrentades pelas plantas faveles, as condigdes so FistOricas, regidas pela légica capitalista de produgdo e ex- ploragdo da mais-valia que transforma a terra em mercado- ria, Este légica & contréria & vide coletiva e essociativa e que les precisam recorrer para sobreviver, 0 que explica uma das contradigdes das favelas. Na lute pela sobrevivéncia em situaydo miserével, 6 pre- ‘iso socializar a desgraca, solidarizer-se na troca de favores entre os pares. Por ser uma lute pela sobrevivencia no capi- mo, carece, porém, pensar em si mesmo, & “preciso tirar vantagem pessoal de tudo”, Assim, a vitima é também algoz de seus pares, reavivando a competicso entre vencedores € vencidos. (© que se tem na favela & a unidade ne miséria e néo solideriedade entre igus. “E a unidade 6 a contrafacréo da igualdade © sua marca 6 2 indiferenca'” (4). © cesemprego, uma renda ~ além de baixe - irregular € 2 inexisténcia de servicos assistenciais geram uma depen- déncia interpessoal muito forte, Os favelados trocam favores coisas como recurso de sobrevivéncia, mas n&o entre vizi- rnhos ou quéiquer vizinho, indiscriminadamente. Formam-se ‘orupos de intercémbio, identificado pelo status de compadre € comadre, E esse intercémbio & sempre uma relagdo de ‘roca e, assim como toda relagdo desse tipo, traz em seu bojo a exploracéo. Na verdede, @ elude métus, tal como aqui a entende- mos, Se inscreve nume perspectiva orgénica em que todos 0s elementos, por sua sinergia, fortificam 0 conjunto da vie de, Desse modo, a ajuda miitua seria a resposta animal, nBo consciente do querer viver social, Espécie de ritualismo que sabe, através do saber incorporado, que “a unicidade 6 a melhor resposte 20 dominio da morte, que & de elgume forma um desafio a esta” (5). (Boer. (e) WeFFESDUT HS tempo (0) med: Sg. a souevntncia no capo 028 cidade segue mato do mie Theres ce perf Sus Sous, abe 2. ese!eNeooconls, eeRIo Be Sob Sich, Unveridace do Sto Patio, 1) eam som. erie Volntra, 19 I: CHAU, Mor.) Petts ola de Px ‘Sfo Paulo em Perspective, 4246-50, abivjunho 1980, Na favola, as pessoas vivem muito préximas, trocam fa- vores, todas se conhecem, mas nem sempre se gostam. Néo se entreamam, se entredependem e muites vezes entrete- mem. De algumas relagdes tem medo € € perigoso falar, po- dom sofrer vinganca. E as relagdes passem a ser informadas por um cédigo de ética que dé a impresséo de consenti mento, mas que, na verdade, 6 uma estratégia para se pro- ‘tegerem, sem o conseguir efetivamente, Dissimulam a raiva contida frente aos crimes que ocor- rem na favela pera néo interferirem nos negécios dos ban- didos, evitando assim torner-se alvos de vingance, pois sa bem que s80 muito vulnerdveis, seus barracos so frégels. No tém @ protego que o dinheiro pode dar, nem mesmo 8 protegéo do aparato policial, Mas sonham com a possibilidade de obter maior tran aiilidede, Veledemente, defendem o pena de morte € # re- presséo policial. ‘Alguns snalistes defendem que as pessoas das classes menos favorecidas desejam a repressdo e aderem & pena de morte para estabelecer uma diferenga entre os pobres (ban- didos) © os pobres (honestos) e, assim, defender-se 20s cothos da classe dominante, para nao serem confundidos, j8 que ser pobre significa set suspelto. Na favela de Vila Dalva, outros elementos interferem nessa relago, tornando-a contradit6ria, pelo que se pode observar. A defesa da pena de morte ¢ de maior represséo 0s bandidos deve-se antes de mais nada & realidade objet Ve da violéncia criminosa, sliada a0 abandono & que estio relegados pela pollcia, Por outro lado, apeser de defender # represséo policial, sebem que néo & a solugso e sentem-se unidas aos band dos ~ seus pares na miséria- e com medo da pollcis, Mello (6) retrata @ ambiglidade presénte no cédigo de ética que orienta 2 relacdo com os bandidos da favela, De tum lado, @ raiva contida frente os crimes que I6 ocorrem, 0 medo de vinganca, de outro a cumplicidade entre os pares (a consciéncis em si” - nBo de classe, mas de pares). Num releto pungente e vivo, @ autora mostra que existe outra violéncia meior, que leva 0s favelados a se calerem, prote- gendo os bandidos que tanto os prejudicam. E a violéncia que vern “de fore", de forma multifacetada. Nao estaria af a demonstracSo de uma cumplicidede, de rebeliéo © de resisténcia a um poder, que Ihe & estranho hostil, © que nfo esté al pare protegé-Io? O favelado & 0 ci- dado mais sujeito & violéncia policiel. A violéncia esporédica do tiro e da faca néo & a sua face mais cruel. “A viol8ncia no e apenes conjuntural, ele & e- trutural” € se favelados ainda no entenderam isso racio- nalmente, a0 menos a sentem (7). A violéncia no esté apenes no espancamento da mu- Iher, na faca do bandido, no estupro da mocinha, ete. Esté 1no Estado, nas condig6es de trabalho, de moradia, de assis- téncia, e 6 prosonte, passado @ futuro. Trata-se de uma violencia multo maior que @ dos ban- didos. E uma violéncia “de mil faces”, que vem de todos os a7 lados, do homem, dos bandidos, dos vizinhos, do governo, do patrio, do entorno e recai sobre qualquer um @ sobre sous filhos. Nosso propésito, a0 iniciar as reflexdes sobre a favela, a partir desta introducao que aponta a contradicao entre a vi- da associativa © a competitiva, foi dosmistificar ums visio romantica que aparece, muitas vezes, no apenas na mdsica, na literatura, como também nos compéndios cientificos ~ 0 da vida solidéria, ilica, coletiva, de préticas e crengas co- muns ¢ de interctmbio reciproco de favores, a proximidede fisica e a homogeneidade, a vida comum de caréncia, a au- séncia de propriedade privada -, e mostrar que a favela ad- quire os contornos, a estrutura € © movimento antagénico das relagées capitalistas que singulariza, ‘A auséncia de propriedade privada da moradia no sig- nifica uma vide comunitéria, mes uma vids insegura, sob ameaga permanente de remogdo, de acordo com: a légica dos especuladores e da administrago piblica. Oficiaimente, a favela é definida como uma forma inte~ gral de ocupag3o do solo, quo no se bascia na propriedade da terrae nem em seu eluguel. Pelo entorno, é vista como foco de sujeira e banditismo que desvaloriza o bairro. Pelos favelados, é vista como uma moradia mais barata, a nica @ Ultima opcio de moradia para o trabalhador pobre que & espoliado no processo de trabalho. © proceso da ocupacéo da favele ocorre em geral de dues formas: 1) a invaséo planejada, coletiva, e 2) a invasio gradativa, promovida individualmente por cada interessado. Essa titime 6 @ mais comum, embora em So Paulo existe um ntimero de invas6es orgenizadas e programadas (com a colaborayao de partidos politicos e técnicos da prefeitura). A maioria se concentra em terrenos particulares (69,9%) e p= blicos (37,19). ‘A favela que se constitui no universo empfrico da minha pesquisa situa-se em terreno de duple ceracteristica. A parte que pertence 8 Séo Paulo da prefeitura; a que fica em Osasco 6 particular. ‘A Favela de Vila Dalva esté situada ne regio do Butan- 1, zona sudeste da cidade de Sao Paulo. Data de 20 anos, aproximadamente, © hoje conta com mais ou menos 800 barracos e 7.000 habitantes. Suas condigdes geogréficas so excelentes: terreno pla- no, sem declive ou cérregos. © Butants 6 uma das regides onde o incremento de nimero de barracos tem sido maior Nos ditimos anos, segundo © Boletim Habi Copede ~ 0 pe- rfodo de 1963/1975 6 0 de maior concentragéio. ‘A apropriacao da rea também néo teve nade de coleti~ vista. La ocorre um process de legalizagao capitalista (compra, venda ¢ aluguel). (@ LOMB, Ge. Game aabrvivn ios marginos. bie, Sg Venso, DURHAN, E.R. @ CARDOSO, f. Elaborecso cuturl pareiacte sees! naz no- alge So bua rds, Cdn Gt. 88 Puy 286) 1, "a oe ‘ieee ee runcelogtreta, 2 st meee reba On Ste Velacte GitnelseGutra- 880 Paulo, 31} 20:28, 9079, Conseguir um pedaco de terra para construir um barra- co na favela 6 muito diflcil. Todos t&m dono. Os primeiros ‘ocupantes se outorgam uma espScie de poder sobre o solo por eles demarcado @ pessam a usé-lo como mercadoria, vendendo ou alugando terrenos @ barracos (nas favelas formadas por invasées coletives ¢ organizadas, esta andlise posse, talvez, ser diferente, mas parece, por relatos infor mais, que a populagdo tem muita dificuldade em superar a ideologia de propriedade privada e agir enquanto comuni- dade dentro da propriedade coletiva). © espaco da favela & hierarquizado e diferenciado. Na parte da frente esto as construpSes melhores e de maior extenséo; no meio, coi a quelidade e quantidade do m? por berraco, que vai diminuindo gradativamente - 6m?, 3m, até 2m? -, chegando a um cémodo s6. “Os da frente séo cercados, bem fechados. Tém gela- doirs, fog80 2 gSs, TV, cachorro bravo acorrentado e quintal na frente e atrés para protegerem-se dos assaltos constan- tes" (depoimento da presidente de Associeréo dos Mora- dores da Favele da Vila Dalva). Os barracos médios néo tém cerca alta e suas portasfi- cam abertas durante 0 dia, Tém fogdo a lenha, Tém dois a teés cOmodos. Um quarto onde dormem todos da casa e, 8s vezes, em uma dnice cama. (Os barracos do “fundo” tém urn Ginico e6modo ~ cozi- nha, quarto e sale. No tém fog8o e cozinha-se sobre dois tijolos. Todos tém cachorto, s6 que neste caso, os animais no ficam acorrentados. Unidade extensa de solar 0 nimero de barracos tem crescide muito rapidamente e, como & diffcil encontrar &res livre, os berracos vao sendo construfdos em terrenos cedidos por amigos e parentes, on- de antes era quintal usado para @ cultura da horte ou de al- gum animal (pre8] para completar a alimentagdo. Esta tendéncia tm geredo 0 aparecimento de uma es- trutura habitacional denominada por Lomnitz (8) de unidade extensa de solar ~ lugar onde os membros vivem egrupados num embiente comum, um mesmo lote, mas n8o sob 0 mesmo teto. Tal disposicao arquitetdnica reflete uma es- trutura familiar que vem se tornando freqiente na favela, onde a avé (0 av6 j6 morreu, constitulu outra femilia ou & al- codlatra) & figura respeitada. E sustentada pelos filhos, mas, em troca, divide sua casa,ou seu terreno com eles, que vEo constituindo noves famfias e no tém possiblidade de pa- gar aluguel ou mesmo comprar um barraco na favela. A avé cuide das criangas pare que os filhos trabalhem. Esta estrutura vém reforgsndo e 6 reforgada (determi- nente/determinads) pele estrutura familiar matritocal ~ mulher 86 com os filhos e 2 avé, onde o homem 6 figurs termitente (9). © ndmero de filhos &, em média, quatro. So vistos co- mo “riqueza de pobre”, Mas essa expressio, “riqueza de pobre 6 filhio”, n8o pode ser analisada apenas por seu lado ‘material, pois riqueza af nao significa bens econémicos, mas bens espiritusis, provedores de alegria e emogéo.

Você também pode gostar