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A propriedade como direito fundamental

Breves notas introdutórias

Roger Stiefelmann Leal

Sumário
1. Introdução. 2. Noções preliminares. 3.
Propriedade e direitos fundamentais. 4. Proprie-
dade e Constituição. 5. Aspectos conceituais do
direito de propriedade. 6. Propriedade e lei. 7.
Propriedade e função social. 8. Propriedade e
indenização. 9. Conclusões.

1. Introdução
A afirmação do direito de propriedade
como direito fundamental é encontrada,
nos dias de hoje, em diversos textos consti-
tucionais e tratados internacionais. Cumpre
observar, no entanto, que tal condição, as-
sim como o sentido e o alcance que lhe são
conferidos, constitui questão que integra o
cerne do debate político-constitucional de
maior repercussão do século XX.
Possivelmente, nenhum outro direito
fundamental sofreu tamanha contestação.
Afirmou-se que seu exercício constituía
roubo e injustiça (PROUDHON, 2008, p.
252). Propôs-se firmemente sua abolição
como solução para todos os males e todas
as alienações (ARON, 2003, p. 171 et seq.).
Outros, por sua vez, sustentaram sua plena
subordinação ao interesse coletivo (BURDE-
AU, 1966, p. 375).
A forte objeção que recaiu sobre o direi-
Roger Stiefelmann Leal é doutor em Dire-
to de propriedade não foi, porém, suficiente
to do Estado pela USP. Professor de Direito para prejudicar ou afastar sua condição de
Constitucional na Faculdade de Direito da USP. direito fundamental da pessoa humana.
Procurador da Fazenda Nacional. Seu sentido e alcance, contudo, não resta-

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ram imunes a tais críticas. Assim, diversos 2. Noções preliminares
textos constitucionais passaram a dispor
A noção de propriedade enquanto direi-
sobre o cumprimento da função social da
to fundamental encontra raízes na própria
propriedade. Outros deixaram de incluir a
ideia de liberdade (BURDEAU, 1966, p.
propriedade entre os direitos individuais
375; ISRAEL, 2005, p. 596-597). Mais pre-
para inscrevê-la na seção dedicada aos
cisamente, no raciocínio que reconhece a
direitos econômicos e sociais (FAVOREU,
liberdade do homem pelo natural domínio
2002, p. 201; MIRANDA, 2000, p. 525).
que exerce sobre seu corpo, sobre si mesmo.
Tal deslocamento pode – dependendo da
Segundo John Locke (1963, p. 20) – para
via interpretativa adotada – determinar
muitos o primeiro autor moderno a proclamar
mudanças no perfil e no regime jurídico
os direitos do homem (OTERO, 2007, p. 187)
aplicável ao próprio direito1.
–, “cada homem tem uma propriedade em
Sobretudo em face da expressiva con-
sua própria pessoa; a esta ninguém tem
trovérsia que marcou o século passado,
qualquer direito senão ele mesmo.0”2
faz-se oportuno examinar os fundamentos
Segue-se, então, a ideia de que o tra-
que tradicionalmente suscitaram o reco-
balho exercido pelo homem constitui sua
nhecimento da condição de direito funda-
propriedade, assim como os frutos que
mental à propriedade, com a finalidade de
dele obtiver. É primariamente a partir do
não apenas compreender sua inserção no
trabalho que o homem consegue sair de sua
âmbito do constitucionalismo, mas tam-
carência inercial para alcançar bens que sa-
bém verificar que elementos de seu con-
ciem suas necessidades básicas. Constitui,
teúdo remanescem nos dias atuais. Nessa
portanto, atividade inerente ao seu processo
perspectiva, o presente trabalho pretende
vital (ARENDT, 2004, p. 122-123). Mais
discutir algumas noções conceituais sobre
que liberdade, é condição da vida humana
o assunto. Inicialmente, a análise recairá
(LOCKE, 1963, p. 24).
sobre os principais aspectos referentes
Desse modo, infere-se que o resultado
à concepção do direito de propriedade
que o homem obtém mediante o legítimo
como direito fundamental no contexto do
emprego de sua força de trabalho é seu, é
constitucionalismo liberal. Cuidar-se-á, em
sua propriedade. Ou seja, o trabalho de seu
seguida, de algumas questões relativas à
corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se, são
definição constitucional da propriedade. E,
propriamente dele e nenhum outro homem pode
numa terceira parte, o estudo será dedicado
ter direito ao que foi conseguido (LOCKE, 1963,
ao papel desempenhado pelo legislador na
p. 20), ao menos sem o consentimento do
disciplina do direito de propriedade, bem
proprietário. O direito de propriedade, em
assim à sua função social e ao dever de
sua origem, importa no domínio sobre o
indenizar que dele decorre. Em diversos
resultado obtido pelo trabalho.
desses pontos, especial atenção será con-
Assim considerada, a garantia da pro-
ferida à disciplina reservada ao tema pela
priedade acaba por configurar o principal
Constituição brasileira e à interpretação que
móvel e estímulo à produção e, portanto,
lhe confere o Supremo Tribunal Federal.
ao desenvolvimento econômico. Em termos
1
Exemplo dessa questão é a disciplina normativa jurídicos, sua segurança e estabilidade
da Constituição portuguesa, que reserva a cláusula promovem, nessa linha, a necessária va-
de aplicação imediata apenas aos direitos, liberdades e lorização do trabalho enquanto atividade
garantias. Outro caso é o da Constituição espanhola
que, ao assegurar a propriedade como direito econô-
mico e social, não o inclui entre aqueles tutelados por 2
Segundo Hanna Arendt (2004, p. 123), Locke fun-
instrumentos específicos de proteção das liberdades, damentou a propriedade privada naquilo cuja propriedade
como o recurso de amparo (FAVOREU, 2002, p. 201; é a mais privada de todas, “a propriedade (do homem) no
FERNÁNDEZ-SEGADO, 1994, p. 231). tocante a si mesmo”, ou seja, o seu próprio corpo.

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humana. Trabalho e propriedade, sob essa a liberdade e a busca da felicidade. Também a
perspectiva, são tomados como aspectos Declaração dos Direitos do Homem e do
inerentes à conditio humana, à liberdade Cidadão (Déclaration des droits de l’homme et
pessoal e à dignidade dos direitos humanos du citoyen), de 26 de agosto de 1789, adotou
(HÄRBELE, 2007, p. 393). semelhante orientação. Logo em seu art. 1o
estabelece que os homens nascem e são livres
e iguais em direitos. E, no art. 2o, preceitua
3. Propriedade e direitos fundamentais
que a finalidade de toda associação política é a
Em contraposição aos regimes despó- conservação dos direitos naturais e imprescri-
ticos imperantes nos séculos XVII e XVIII, tíveis do homem. Cumpre observar, ainda,
irromperam, na Europa e na América, que tais documentos são denominados
importantes movimentos revolucionários “declarações” pois não estariam a instituir
inspirados em ideais de defesa e proteção ou criar direitos. Sua finalidade resume-se
da liberdade. Decorre daí o surgimento do a declará-los, reconhecê-los, na medida em
constitucionalismo, cuja plataforma consis- que emanam da própria natureza huma-
tia, em linhas gerais, na introdução de prin- na, constituindo realidade prexistente ao
cípios e mecanismos voltados à limitação Estado e à sociedade (FERREIRA FILHO,
ou contenção do poder estatal de modo a 2006, p. 22).
assegurar as liberdades básicas do homem A propriedade é inserida justamente
(OTTO Y PARDO, 1987, p. 12). no âmbito desses direitos. Considerada,
Nesse sentido, o constitucionalismo a partir das lições de John Locke (1963),
supera a ideia oriunda da Idade Média de como direito vinculado às ideias de liber-
que os direitos constituem prerrogativas, dade e de trabalho, a propriedade passou
privilégios e regalias decorrentes de deter- a constar de tais declarações como direito
minados estamentos, castas ou categorias fundamental, inato à pessoa humana. As-
(GRIMM, 2006, p. 78; MIRANDA, 2000, p. sim, a Declaração da Virgínia, ao anunciar,
14, 19). Passa-se a reconhecer a existência de em seu art. 1o, os direitos certos, essenciais e
direitos que derivam da própria natureza naturais do homem, indica o direito de gozar
humana. Seriam direitos universais, pois a vida e a liberdade com os meios de adquirir e
(a) inatos à condição de pessoa humana possuir propriedades, de procurar obter a feli-
e (b) fundantes da constituição do Estado cidade e a segurança. Por seu turno, o art. 2o
(GRIMM, 2006, p. 78-79). da Declaração dos Direitos do Homem e do
Tais noções encontram-se claramente Cidadão, de 1789, ao discriminar os direitos
consagradas nas principais declarações de naturais e imprescritíveis do homem, estabele-
direitos que marcaram os aludidos movi- ce: esses direitos são a liberdade, a propriedade,
mentos revolucionários. Nessa linha, o art. a segurança e a resistência à opressão. Já o art.
1o da Declaração de Direitos da Virgínia 17 da mesma Declaração reitera a mesma
(Virginia Bill of Rights), de 12 de junho de ideia, agregando, ainda, a seguinte disposi-
1776, dispõe que todos os homens nascem ção: como a propriedade é um direito inviolável
igualmente livres e independentes, têm direitos e sagrado, ninguém dela pode ser privado (...).
certos, essenciais e naturais dos quais não po- Tal orientação concebe a propriedade,
dem, por nenhum contrato, privar nem despojar a exemplo da liberdade, como direito do
sua posteridade. A mesma concepção infor- homem – pois inerente à condição humana
ma, ainda, a Declaração de Independência – precedente, portanto, ao Estado. Comporia
dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776, o conjunto de direitos que se encontram na
ao afirmar que todos os homens são criados base da ordem política, que constituem seu
iguais, que são dotados pelo Criador de certos fundamento, seus direitos fundamentais. Ou
direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, ainda, segundo a doutrina contratualista em

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voga à época, integra a propriedade o resí- Assim, pretende-se que os poderes pú-
duo de liberdade natural que restou ao ho- blicos, de ordinário, passem a ter o dever de
mem em face da liberdade sacrificada para a observar os direitos assegurados em sede
construção do Estado (RUFFIA, 1984, p. 517). constitucional. Sua eventual modificação
Consiste em direito anterior às instituições ou superação somente teria cabimento
políticas, que, reconhecido formalmente, quando tais procedimentos especiais fos-
cumpre-lhes o dever de assegurar e prote- sem estritamente observados, formalizando
ger. Ou seja, conforme assinala Locke (1963, genuína reforma constitucional.
p. 77), o grande e principal objetivo, portanto, da Desse modo, conferiu-se, na maior parte
união dos homens em comunidades, colocando- dos países do mundo ocidental, estatura
-se sob governo, é a preservação da propriedade. constitucional ao direito de propriedade,
A garantia de tais direitos, ademais, atribuindo-lhe nível hierárquico superior
busca impor, segundo os pressupostos do aos demais atos legislativos. Na Consti-
constitucionalismo liberal, um dever de tuição brasileira de 1988, a inviolabilidade
abstenção, pois determina uma esfera de do direito à propriedade é proclamada no
autonomia privada imune à interferência caput do art. 5o. O inciso XXII do mesmo
estatal ou de terceiros. Segundo a clássica artigo, por seu turno, preceitua: é garantido
lição de Rivero (2006, p. 9), são direitos o direito de propriedade. O art. 170, ainda,
que repercutem nos outros negativamente. No insere a propriedade privada entre os prin-
entanto, a proteção das liberdades perante cípios da ordem econômica.
terceiros (particulares) supõe necessariamente Isso não significa, todavia, que a pro-
a intervenção do estado, que a impõe por sua priedade assume, em face da ordem cons-
legislação e a sanciona por suas jurisdições titucional, caráter absoluto, que inadmite
(RIVERO, 2006, p. 10). Ou seja, são direitos de restrições. A exemplo de diversos direitos
libertação do poder e, simultaneamente, direitos fundamentais, o direito de propriedade
à proteção do poder contra os outros poderes comporta limitações e abrandamentos em
(MIRANDA, 2000, p. 105). sua aplicação em nome de outros valores
também tutelados pelo texto constitucional.
4. Propriedade e Constituição Da mesma forma, muitos princípios cons-
titucionais também admitem restrição em
Outra solução concebida no âmbito do face do direito de propriedade4. A colisão
constitucionalismo liberal foi a definição entre princípios constitucionais, mormente
dos direitos fundamentais, bem como dos no caso de direitos fundamentais, requer
demais princípios de limitação do poder que uns tenham moderada sua aplicação
estatal, em texto normativo formal e sole- em face de outros.
ne: a Constituição. E, com a finalidade de
Sublinhe-se, no entanto, que eventual
impedir seu comprometimento ou violação
limitação ou o seu cabimento deve ter apoio
por outros diplomas e atos normativos, fo-
no texto constitucional. Não há restrição a
ram estabelecidos procedimentos especiais
direito fundamental sem base constitucio-
mais gravosos para a alteração das cláu-
nal (ALEXY, 1993, p. 277; MIRANDA, 2000,
sulas constitucionais do que os adotados
na elaboração das demais leis. Trata-se do segundo o autor, espécie de sentimento de conserva-
modelo de Constituição rígida3. ção e manutenção de determinado ordenamento cons-
titucional arraigado na cultura de uma comunidade.
3
É, mais especificamente, o que Pontes de Miranda 4
Sobre a estruturação dos direitos fundamentais
(1987, p. 236) denominou rigidez técnica, pois, para o em princípios, isto é, espécie normativa que admite
ilustre jurista pátrio, há de se perquirir a propósito de variação de grau em sua aplicação, ver, dentre ou-
uma segunda modalidade de rigidez constitucional tros, Robert Alexy (1993, p. 89); também Gustavo
promovida por razões de mentalidade primitiva ou pa- Zagrebelsky (1992, p. 171) e J. J. Gomes Canotilho
leopsíquica, ideológicas ou até religiosas. Configuraria, (1998, p. 1056).

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p. 307). Significa dizer que eventual abran- termos do art. 190 da Constituição, a regu-
damento, restrição ou privação da pro- lar e limitar a aquisição ou o arrendamento de
priedade somente é admissível se houver propriedade rural por pessoa física ou jurídica
inequívoco fundamento na Constituição. estrangeira, bem como a estabelecer os casos
Tais limitações podem advir, desse que dependerão de autorização do Congresso
modo, (a) de previsão expressa do texto Nacional.
constitucional ou mesmo (b) da própria Mesmo sem expressa autorização
proteção constitucionalmente atribuída constitucional, cabe à legislação impor
a outro bem jurídico (MARTÍN-RETOR- limitação a direito fundamental em razão
TILLO BAQUER; OTTO Y PARDO, 1988, de outro preceito constitucional, que, in-
p. 108). As restrições podem, ainda, ser (I) clusive, pode ser conformador de outro
diretamente fixadas pelo texto constitucio- direito constitucionalmente assegurado.
nal – restrições diretamente constitucionais Nesse caso, o legislador acaba por exercer
– ou (II) impostas por lei infraconstitucio- juízo de ponderação entre um direito fun-
nal devidamente autorizada, expressa ou damental e outros valores constitucionais
tacitamente, pela Constituição – restrições que se lhe oponham, optando por solução
indiretamente constitucionais5. que aplique em maior grau os valores
As restrições diretamente constitucionais contrapostos e em menor grau o direito
são as decorrentes de normas de nível (MARTÍN-RETORTILLO BAQUER; OTTO
constitucional que estabelecem, sem a ne- Y PARDO, 1988, p. 108). Institui, assim,
cessidade de complementação normativa, restrição indiretamente constitucional em face
restrições ao direito fundamental (ALEXY, de outros bens constitucionalmente tutelados. O
1993, p. 277). A limitação, nesse caso, não direito de propriedade não fica, por certo,
requer mediação por nenhuma outra norma imune a essa categoria de restrições. Esse é
ou ato, além do próprio preceito consti- o caso do disposto no art. 1.285 do Código
tucional. O texto constitucional de 1988 Civil, que, em nome do direito à liberdade
apresenta, é certo, restrições dessa natureza de locomoção (art. 5o, XV, da Constituição),
ao direito de propriedade, a exemplo do reconhece ao dono do prédio que não tiver
disposto no art. 243, que determina o con- acesso a via pública, nascente ou porto o direito
fisco – expropriação imediata, sem direito de constranger o vizinho a lhe dar passagem,
à indenização – das glebas de qualquer região mediante pagamento de indenização cabal.
do País onde forem localizadas culturas ilegais Determina, ainda, o § 1o do art. 1.285 que
de plantas psicotrópicas. sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel
As restrições indiretamente constitucionais mais natural e facilmente se prestar à passagem.
por expressa reserva legal, por sua vez, ca- Desse modo, a lei, com fundamento em
racterizam-se pela atribuição ao legislador outro direito fundamental, impõe regime
do poder de limitar o exercício do direito. restritivo específico à propriedade.
Verifica-se, no caso, cláusula constitucio-
nal expressa em que se autoriza o Poder
5. Aspectos conceituais do
Legislativo a estabelecer normas restritivas
ao exercício de determinado direito funda- direito de propriedade
mental. Submete-se o direito de proprie- A propriedade constitui – cumpre
dade a essa modalidade de restrição, por destacar – modalidade de direito real com
exemplo, ao se autorizar o legislador, nos definição e regime jurídico determinados
pela legislação civil. No caso do ordena-
5
Esta última classificação de restrições a direitos
fundamentais – restrições diretamente constitucionais e mento brasileiro, o art. 1228 do Código Civil
indiretamente constitucionais – é adotada por Robert estatui os elementos nucleares da proprie-
Alexy (1993, p. 276 et seq.) dade, definindo-a como a faculdade de usar,

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gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la CORREIA, 1998, p. 477, 530; FERREIRA
do poder de quem quer que injustamente a pos- FILHO, 2008, p. 309; MENDES, 2004, p. 150-
sua ou detenha. Nos termos do direito civil, 151) ou, como ensina Hesse (1998, p. 341), o
em regra, é titular da propriedade em sua aproveitamento privado de um direito de valor
plenitude aquele que detém o poder para patrimonial. Desse modo, compreende-se o
exercer todos os atributos definidos no direito inscrito no art. 5o, caput e inciso XXII,
preceito legal: ius utendi, fruendi et abutendi da Constituição, de forma mais alargada,
(PEREIRA, 2008, p. 92). como o direito fundamental de não ser alguém
Indaga-se, porém, se a definição civilista despojado de direitos de seu patrimônio, sem
de propriedade condiciona ou limita o âm- justa indenização (FERREIRA FILHO, 2008,
bito de proteção da norma constitucional p. 309). A própria doutrina civilista clássica,
que assegura o direito fundamental de pro- como aponta Caio Mário da Silva Pereira
priedade. Isto é, a proteção do art. 5o, XXII, (2008, p. 89), também exprimia concepção
da Constituição de 1988, alcança apenas a mais generosa sobre o tema, considerando
propriedade tal como definida no art. 1.228 a propriedade como todos os direitos que se
do Código Civil ou estende-se, também, a traduzem numa expressão pecuniária.
outros direitos de natureza patrimonial? A interpretação que reconhece maior
Há, certamente, quem entenda – com extensão à noção constitucional de pro-
bons argumentos – haver identidade en- priedade encontra, ainda, desenvolvimento
tre a definição do direito civil e o alcance no âmbito da própria legislação brasileira.
da norma constitucional. Nesse sentido, É o que se depreende, por exemplo, de
afirma-se que as normas de direito privado algumas disposições do Código Tributário
devem ser compreendidas de conformidade Nacional (Lei no 5.172/66). Ao estabelecer
com a disciplina que a Constituição lhe impõe normas gerais sobre os impostos incidentes
(SILVA, 2003, p. 273), para concluir que é, sobre a propriedade – especificamente o
assim, o direito positivo, a lei ordinária mesma, IPTU (art. 156, I, da Constituição) e o ITR
que fixa o conteúdo desse direito que é institu- (art. 153, VI, da Constituição) –, o Código
cionalmente garantido pela Constituição (art. define como sua base tributária a proprie-
5o, XXII) (SILVA, 2003, p. 271). Segundo dade, o domínio útil ou a posse de imóvel (arts.
Jorge Miranda (2000, p. 258), 29 e 32 do CTN). Ou seja, ao considerar a
“uma coisa é o princípio da capacida- expressão propriedade constante do texto
de patrimonial privada ou da susceti- constitucional, o legislador conferiu-lhe
bilidade de, salvo algumas exceções, interpretação abrangente, encontrando
os particulares serem titulares de apoio na literalidade constitucional para
direito patrimonial; outra coisa seria estender a tributação a diferentes categorias
erigir em direitos fundamentais todos de direitos reais segundo a legislação civil6.
os tipos de direitos patrimoniais que, A divergência sobre o significado consti-
com maior ou menor relevância e tucional do direito de propriedade também
mais ou menos duradouramente a lei
ordinária tenha instituído ou venha 6
Sobre a questão, Aliomar Baleeiro (1999, p. 237,
a instituir.” 238) acolhe expressamente a noção ampla de pro-
priedade nos seguintes termos: não nos parece que a
Entretanto, tem majoritariamente preva- interpretação deva ser restritiva, afinal, a posse é atributo da
lecido via interpretativa diversa que confe- propriedade e deve ser incluída no conceito desta para efeitos
re maior alcance ao direito fundamental de do Direito Fiscal. E, mais adiante, arremata: o ocupante
modo a abranger não apenas a definição de e o foreiro desses bens públicos ficam sujeitos ao imposto
territorial rural, do mesmo modo que os chamados “possei-
propriedade constante na legislação civil, ros” de terras do domínio particular, podendo o legislador,
mas também outros direitos de conteúdo neste último caso, por mera conveniência administrativa,
patrimonial (BASTOS, 2000, p. 207-208; escolher o proprietário ou o possuidor.

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encontra repercussão nos julgados do Su- também foi sufragada pelo voto de signi-
premo Tribunal Federal. Ao examinar, na ficativa parcela dos Ministros. Ao mani-
ADI no 1.715-3/DF, a constitucionalidade festar seu entendimento sobre a questão,
de ato normativo que fixava prazo para o Ministro Sepúlveda Pertence sustentou
reclamação de valores depositados em precisamente que propriedade para os fins
conta corrente por pessoas que não efetu- constitucionais é sinônimo de patrimônio, e que
aram o devido recadastramento, debateu- os direitos de crédito se situam no campo
-se sobre o alcance do direito fundamental normativo da proteção constitucional à proprie-
constante do art. 5o, XXII, da Constituição. dade11. Também o Ministro Carlos Velloso
Isso porque, segundo a legislação civil, o perfilhou orientação semelhante. Para ele, a
direito sobre as quantias depositadas em disposição constitucional garantidora do direito
instituições bancárias deixa de ter natureza de propriedade não fica somente no direito real,
real para assumir caráter creditício7. ou não deve ser interpretada em sentido estrito,
Assim, parte dos membros da Corte abrangendo também, numa interpretação
manifestou-se no sentido de que a garantia extensiva (...), a titularidade do crédito, ou o
constitucional da propriedade não alcança direito de crédito, dado que essa titularidade
outros direitos de conteúdo patrimonial implica em ser, de certa forma, proprietário12.
como o crédito decorrente de depósitos A questão dividiu a Corte. A solução do
bancários. Segundo ressalta o Ministro caso acabou ocorrendo em face de outros
Nelson Jobim, não se trata de direito de fundamentos, mantendo, portanto, acesa
propriedade, mas de contrato de depósito de a controvérsia sobre o tema em sede juris-
bem fungível. Se fôssemos falar em direito de prudencial.
propriedade, acrescenta, teríamos como tal as
cédulas depositadas, portanto, seria inviável ao 6. Propriedade e lei
banco operar com aqueles valores8. A mesma
orientação é adotada pelo Ministro Mau- O direito de propriedade, ainda que in-
rício Corrêa, ao afirmar que a relação do serido no âmbito dos direitos de liberdade,
depositante com a instituição depositária é de requer específica atuação do legislador.
direito pessoal no que concerne ao crédito de Diferentemente de algumas liberdades
que é titular, ao contrário do que acontece com o que, prima facie, dispensam intervenção
detentor do direito constitucional de proprieda- legislativa específica para determinação
de9. Para ele, o depósito bancário, stricto sensu, de sua configuração jurídica e consequente
não caracteriza direito de propriedade na forma exercício (ANDRADE, 2004, p. 208; SILVA,
como o conceitua o artigo 5o, inciso XXII, muito 2003, p. 267), a propriedade exige comple-
menos como está posto no seu caput10. mentação normativa voltada à sua confor-
A via interpretativa que reconhece mação. Trata-se de garantia institucional
maior alcance ao direito de propriedade que demanda do legislador a promulgação
de complexo normativo que assegure a existên-
7
Ver, a propósito, os votos proferidos pelos cia, a funcionalidade, a utilidade privada desse
Ministros Nelson Jobim e Maurício Corrêa na ADI
direito (MENDES 2004, p. 155; PONTES DE
no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in DJU de
30.04.2004. MIRANDA, 1987, p. 396). Em boa medida,
8
Voto proferido pelo Ministro Nelson Jobim na cabe à legislação estabelecer o regime ju-
ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in DJU rídico do direito, impondo normas sobre a
de 30.04.2004.
9
Voto proferido pelo Ministro Maurício Corrêa
criação e a finalização da posição de propriedade,
na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in
DJU de 30.04.2004. 11
Voto proferido na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min.
10
Voto proferido pelo Ministro Maurício Corrêa Maurício Corrêa, in DJU de 30.04.2004.
na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in 12
Voto proferido na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min.
DJU de 30.04.2004. Maurício Corrêa, in DJU de 30.04.2004.

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assim como normas que vinculam consequên- 7. Propriedade e função social
cias jurídicas a esta posição (ALEXY, 1993, p. A reação ao avanço do liberalismo eco-
192-193). O âmbito de autonomia confiado, nômico que marcou, sobretudo, o início do
nesse particular, ao legislador não é, porém, século XX, acabou por ensejar profunda
ilimitado. Descabe-lhe, a título de disci- revisão sobre o alcance e o significado do
plinar o exercício do direito, desnaturar direito de propriedade. Com a introdução
seu conteúdo por excesso de regulamentação do sufrágio universal, o processo político
(FAVOREU et al, 2002, p. 206). passou a sofrer mais intensamente a influ-
Como anteriormente salientado, as ência de outras correntes de pensamento,
restrições à propriedade, caso não esta- como o socialismo, a socialdemocracia e
belecidas expressa e diretamente pela o socialcristianismo. E, nessa perspectiva,
Constituição, também ficam submetidas à muitos de seus ideólogos encaravam a pro-
atuação legislativa. Ainda que em face de priedade como instrumento de opressão de
outro preceito constitucional, verifica-se massas e fonte de crescente desequilíbrio
a possibilidade de o legislador ponderar social (BURDEU, 1966, p. 378; FERREIRA
o direito de propriedade e outros valores FILHO, 1982, p. 32).
constitucionais que com ele colidam segun- Decorre daí a ideia de impor limitações
do determinadas circunstâncias. à propriedade no sentido de que ela, além
Tais restrições acabam por sujeitar-se, de atender os desejos e interesses de seu
nesse ponto, ao princípio da reserva legal. titular, pudesse também responder e servir
Ou seja, somente à lei – elaborada pelos às necessidades da sociedade (BURDEU,
representantes do povo – cabe dispor sobre 1966, p. 378; FERREIRA FILHO, 1982, p. 32).
tais questões, sendo vedada a imposição Ou seja, cumprir sua função social. Desse
de limitações à propriedade por atos nor- modo, como esclarece Burdeau (1966, p.
mativos de índole infralegal. Trata-se de 378), tornar-se-ia uma propriedade moraliza-
exigência – que remonta à Magna Carta da e humanizada que não mais corre o risco de
de 1215 – que requer embasamento em degenerar num poder opressivo.
lei formal, devidamente aprovada pelos Tal concepção ganhou foro constitucio-
representantes da população, como pres- nal ainda na primeira metade do século XX.
suposto de eventual restrição ou privação Foi expressamente consagrada pela Consti-
da propriedade. A Declaração de Direitos tuição alemã de 1919. Emblematicamente,
da Virgínia, em seu art. 7o, também consa- o mesmo art. 153, que, de início, estabelece
grava cláusula no mesmo sentido: nenhuma que a Constituição garante a propriedade,
parte da propriedade de um vassalo pode ser consagra, ao final, a seguinte cláusula: a pro-
tomada, nem empregada para uso público, sem priedade obriga. Seu uso constituirá, também,
seu próprio consentimento, ou de seus represen- um serviço para o bem comum. Outros textos
tantes legítimos; e o povo só está obrigado pelas constitucionais adotaram orientação seme-
leis, da forma por ele consentida para o bem lhante, ainda que com redações diversas. A
comum. O texto constitucional brasileiro Constituição brasileira de 1988 assegura, no
conserva tal conquista do constituciona- inciso XXIII do seu art. 5o, que a propriedade
lismo clássico, estabelecendo, além do art. atenderá a sua função social. Inscreve, ainda,
5o, II, diversas outras cláusulas específicas a função social da propriedade (art. 170, III, da
de reserva legal. Desse modo, a restrição Constituição) entre os princípios que infor-
à propriedade imposta, sem fundamento mam a ordem econômica. Exibe, ademais,
legal, mediante atos de natureza admi- dispositivos específicos voltados a definir
nistrativa contempla grave violação da a função social da propriedade de imóveis
Constituição, não devendo subsistir nem urbanos (art. 182, § 2o, da Constituição) e
produzir efeitos. rurais (art. 186 da Constituição).

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A afirmação constitucional da função Em outras palavras, se o descumpri-
social da propriedade suscitou, natural- mento da função social constituísse funda-
mente, interpretações variadas quanto mento suficiente para afastar o alcance da
ao seu alcance e significado. Para alguns, proteção jurídico-constitucional, descaberia
sua imposição implica o acréscimo de a adoção de tais procedimentos, bem como
aspecto essencial ao conteúdo do direito o dever de indenizar que – como decorrên-
de propriedade, sem o qual fica afastada cia da garantia constitucional da proprieda-
sua garantia jurídico-constitucional por de – tem a finalidade de reparar o prejuízo
desfiguração do instituto. Ou seja, tal cor- patrimonial sofrido, muito embora seu
rente considera que o bem apropriável, mas pagamento não ocorra como nas demais
que desatenda à função social a que se destina, espécies de desapropriação. A observância
não é objeto de direito constitucionalmente de tais exigências contempladas no texto
protegido (ROCHA, 2003, p. 577; GRAU, constitucional constitui imposição que
2003, p. 214). Não se enquadraria, em decorre justamente da proteção conferida
última análise, no conceito constitucional à propriedade13.
de propriedade.
Levada tal concepção às últimas conse-
8. Propriedade e indenização
quências, a inobservância da função social
poderia admitir a tomada injustificada do A privação ou ablação, ainda que
bem, inclusive mediante invasão forçada, parcial, da propriedade gera, como regra
pois não estaria mais abrangido pelo direito geral, o dever de indenizar. A reparação
de propriedade em virtude da ausência de financeira pela limitação da propriedade
aspecto elementar essencial. constitui garantia que já encontrava funda-
O texto constitucional, no entanto, mento no texto da Declaração dos Direitos
permite cogitar de solução diversa. O do Homem e do Cidadão, de 1789. Ao con-
descumprimento da função social da pro- templar, em caráter excepcional, a possibi-
priedade não descaracteriza o direito de lidade de privação da propriedade quando
propriedade, mas determina a imposição a necessidade pública legalmente comprovada o
de penalidades, podendo resultar, inclusi- exigir manifestamente, o art. 17 da Declaração
ve, em desapropriação (BASTOS, 2000, p. define como condição o pagamento de justa
210). No caso do imóvel rural, o art. 184 da e prévia indenização.
Constituição sujeita o bem à desapropria- Nessa mesma perspectiva, a Consti-
ção para fins de reforma agrária caso não tuição brasileira de 1988, em seu art. 5o,
seja observada a função social da proprie- XXIV, autoriza o legislador a estabelecer
dade. Em relação ao imóvel urbano, o art. o procedimento para desapropriação por neces-
182, § 4o, do texto constitucional, comina sidade ou utilidade pública, ou por interesse
em face do descumprimento da função social, mediante justa e prévia indenização em
social a aplicação sucessiva das seguintes dinheiro, ressalvados os casos previstos pelo
penalidades: (I) parcelamento ou edificação próprio texto constitucional. Ao dispor
compulsórios; (II) IPTU progressivo no
tempo; e (III) desapropriação. Em ambos 13
Nesse sentido, manifestou-se, no julgamento
do MS no 25.493/DF, o Ministro Celso de Mello ao
os casos, determina-se a observância de asseverar que não se pode perder de perspectiva, por mais
procedimentos específicos, regulados em relevantes que sejam os fundamentos da ação expropriatória
sede legislativa, que, no máximo, podem do Estado, que este não pode - e também não deve - desres-
culminar com a expropriação do imóvel peitar a cláusula do “due process of law”, que condiciona
qualquer atividade do Estado tendente a afetar, dentre outros
e a respectiva indenização, ainda que em direitos, aquele que concerne à propriedade privada (cf.
títulos públicos resgatáveis, conforme o voto proferido no MS no 25.493/DF, Rel. Min. Marco
caso, em até dez ou vinte anos. Aurélio, sessão de 19.05.2010).

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sobre o instituto da requisição administra- sobre a impugnação, por violação do di-
tiva, o art. 5o, XXV, do texto constitucional reito de propriedade, do preceito legal que
permite que, em caso de iminente perigo determinava a entrega de armamentos e
público, a autoridade competente poderá usar munição em face da ausência de renovação
de propriedade particular, assegurada ao pro- periódica de licença, o Supremo Tribunal
prietário indenização ulterior, se houver dano. Federal definiu que o direito do proprietário
A imposição do dever de indenizar em à percepção de justa e adequada indenização,
face de privação do direito de propriedade reconhecida no diploma legal impugnado, afasta
tem encontrado guarida na jurisprudência a alegada violação ao art. 5o, XXII, da Constitui-
do Supremo Tribunal Federal. É o que se ção Federal15. Ou seja, o dispositivo legal que
extrai do julgamento do RE no 134.297-8/ determinava a reparação financeira em face
SP, em que se analisou a interdição admi- da entrega de armas e munições constitui,
nistrativa de remoção parcial de cobertura segundo a interpretação da Corte, impo-
arbórea em propriedade rural abrangida sição decorrente do direito fundamental à
pela Estação Ecológica de Juréia-Itatins. propriedade.
No caso, produtores rurais foram impedi- Também em observância ao direito de
dos, pelo órgão ambiental competente, de propriedade, a Lei no 9.985, de 2000 (que
implantar projeto de cultura de cacau com institui o Sistema Nacional de Unidades de
aproveitamento dos recursos naturais exis- Conservação da Natureza e dá outras pro-
tentes na área, consoante recomendações de vidências) determina a desapropriação –
estudo de viabilidade econômica que fize- com a respectiva prévia e justa indenização
ram realizar. Em seu voto, que conduziu o – de áreas particulares que recaem sobre
julgamento, asseverou o Ministro Celso de unidades de conservação que, segundo a
Mello que a circunstância de o Código Florestal lei, devem ser de posse e domínio públicos.
(Lei no 4.771/65) definir como bens de interesse É o que estabelece, entre outros, o § 1o do
comum tanto as florestas existentes no território art. 17 (Florestas Nacionais), o § 1o do art.
nacional quanto as demais formas úteis de ve- 19 (Reserva de Fauna), o § 2o do art. 20 (Re-
getação que revestem as áreas por elas ocupadas serva de desenvolvimento sustentável) e o
não impede que se reconheça a obrigação de o § 1o do art. 9o (Estação Ecológica). Ou seja,
Poder Público indenizar o proprietário do solo a interdição da propriedade decorrente da
naquelas hipóteses em que as limitações admi- decretação de tais unidades de conservação
nistrativas, suprimindo ou reduzindo a possi- requer necessariamente regular processo
bilidade de exploração dos recursos naturais da expropriatório, com a devida reparação
terra, venham a virtualmente esterilizar, em seu financeira exigida em nome do direito
conteúdo essencial, o direito de propriedade14. inscrito no art. 5o, XXII, da Constituição.
Ou seja, as limitações administrativas à pro- A ação que tenha por finalidade privar
priedade – ainda que de caráter ambiental o proprietário de seu bem, expropriando-o
– que impliquem redução ou esvaziamento sem o pagamento de indenização, constitui
de seu conteúdo econômico impõem ao confisco. Trata-se de penalidade admitida
poder público o dever de indenizar, como excepcionalmente em face da prática de
forma de assegurar minimamente o direito determinadas infrações. O texto constitu-
definido no art. 5o, XXII, da Constituição. cional – como se viu acima – autoriza, em
A mesma orientação presidiu o julga- seu art. 243, o confisco das glebas de qualquer
mento da ADI no 3.112/DF que examinou região do País onde forem localizadas culturas
a constitucionalidade da Lei no 10.826/2003 ilegais de plantas psicotrópicas. Determina,
(Estatuto do Desarmamento). Ao decidir ainda, a mesma medida para qualquer bem
14
Cf. RE no 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 15
Cf. ADI no 3.112/DF, Rel. Min. Ricardo Lewan-
in DJU de 22.09.95. dowski, in DJU de 25.10.2007.

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de valor econômico apreendido em decorrência priedade, sendo vedado à administração
do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins pública determinar unilateralmente – sem
(art. 243, parágrafo único). deliberação dos representantes eleitos pelo
A legislação penal também contempla povo – limitações ao seu exercício. Em se-
hipóteses de confisco. O art. 91 do Código gundo lugar, cumpre destacar o dever de
Penal determina a perda em favor da União indenização decorrente da privação, total
– com a ressalva dos legítimos direitos do ou parcial, do bem sob domínio. Descabe ao
lesado e do terceiro de boa-fé – do produto do poder público causar prejuízos ou mesmo
crime ou de qualquer bem ou valor que constitua expropriar bens particulares sem justa e
proveito auferido pelo agente com a prática de devida reparação financeira. A interdição
fato criminoso, além dos instrumentos do cri- da propriedade sem indenização é confisco,
me, desde que consistam em coisas cujo fabrico, medida admitida apenas em casos excep-
alienação, uso ou detenção constitua fato ilícito. cionais, como penalidade a específicas e
Disciplina semelhante é, ainda, encontrada determinadas infrações.
no art. 7o, I, da Lei no 9.613, de 1998, que
dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou
ocultação de bens, direitos e valores.
O confisco constitui, portanto, penali- Referências
dade excepcional de privação da proprie- ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales.
dade sem o pagamento de indenização, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993.
que somente cabe ser aplicada mediante
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fun-
expressa previsão em lei. Descabe, assim,
damentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed.
em face de atividade lícita, desempenhada Coimbra: Almedina, 2004.
nos termos da lei. A execução de medida
ARENDT, Hanna. A condição humana. 10. ed. São
confiscatória sem base legal ou conotação
Paulo: Forense, 2004.
punitiva constitui expropriação que requer,
em face do direito de propriedade, devida ARON, Raymond. O marxismo de Marx. São Paulo:
Arx, 2003.
reparação financeira.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
9. Conclusões
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional.
A propriedade não assume contornos 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
de direito absoluto. Ainda que considerada BURDEAU, Georges. Les libertés publiques. 3. ed. Paris:
como direito fundamental inato à condição LGDJ, 1966.
humana, a propriedade submete-se a diver-
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria
sos condicionamentos e restrições. Muitos da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.
decorrentes de outros direitos e princípios
CORREIA, Maria Lúcia C. A. Amaral Pinto. Respon-
também tutelados pelo texto constitucional.
sabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador.
Isso não significa dizer que a proprie- Coimbra: Coimbra, 1998.
dade deve ser relativizada a ponto de in-
FAVOREU, Louis et al. Droit des libertés fondamentales.
viabilizar o seu exercício. A ordem jurídica
2. ed. Paris: Dalloz, 2002.
vigente certamente assegura aos titulares
desse direito um conjunto de garantias FERNÁNDEZ SEGADO, Francisco. La dogmatica de los
derechos humanos. Lima: Juridicas, 1994.
contra eventuais violações. Duas delas
merecem especial destaque. A primeira FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos hu-
garantia é a decorrente do princípio da manos fundamentais. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
reserva legal, que exige expressa previsão _____. Curso de direito constitucional. 34. ed. São Paulo:
em lei das restrições ao direito de pro- Saraiva, 2008.

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