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1. INTRODUÇÃO
Neste trabalho busco compreender as relações entre cultura, patrimônio e memória para
entender o processo de conservação das tradições. Neste caso a cultura é tratada como
um processo dinâmico, que agrega valores e se modifica com o passar do tempo. A
memória é vista como uma ferramenta que mantém viva a tradição, ela é transmitida às
próximas gerações e o restante da comunidade para que novas pessoas assumam a
responsabilidade de continuar a encenar o rito. O conceito de patrimônio apresenta-se
como um elemento formador de identidade e valores, como forma de valorizar as
práticas culturais, práticas estas que devem ser criadas e recriadas por aqueles que dela
participam.
Tais conceitos auxiliam na compreensão da Celebração em homenagem a São Benedito,
a Congada da Lapa. Tal encenação é um misto entre a cultura portuguesa, africana e a
religião católica, elementos culturais distintos que se agrupam dando origem a uma festa
cujas raízes vêm dos escravos do século XVIII e XIX. Tal manifestação consiste em
uma disputa simbólica entre dois reinos, o reino do Congo (católico) e o reino de
Angola (pagão). A embaixada enviada pela rainha Ginga (Nzinga) de Angola causa
tumulto no reino do Congo e após alguns embates armados o Rei do Congo perdoa o
embaixador angolano que se converte à fé cristã e se torna devoto de São Benedito.
Portanto busco estabelecer uma relação entre os conceitos de cultura, patrimônio e
memória frente a Congada da Lapa. Assim sendo, a celebração será analisada aqui
como um estudo de caso, relacionando a representação da festa e a tentativa da
comunidade de resguardar sua tradição.
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Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História
(PPH). Especialista em História e Sociedade (UEM), Especialista em Moda, gestão e comunicação
(CESUMAR).
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2. CULTURA, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA
Convém ressaltar a cultura como elemento mutável, suscetível a seu tempo e contexto.
“En efecto, habría que reconocer que las culturas son momentos en el tempo e no
costumbres fósiles de la historia. Y que los indivíduos y los grupos son quienes deciden
crearlas y practicarlas porque tienen razones para valorarlas” (ARIZPE, 2009: 238).
Deste modo, notamos que a cultura pode assumir diversas facetas, dependendo do
momento histórico em que se encontra. Cada nação possui culturas com características
particulares, mesmo assim, é possível notar certas semelhanças entre tais culturas, visto
que sociedades diferentes podem partilhar experiências, que se manifestam através de
alguns traços culturais.
O universo cultural também pode ser explorado através das práticas e representações
que o compõem, sendo que sua interpretação pode dar a conhecer a cultura como um
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processo comunicativo e não somente como a totalidade dos bens culturais produzidos
pelo homem. A cultura é comunicada a cada indivíduo que a interpreta de acordo com a
sua concepção individual (CHARTIER, 1988).
É através da história construída pelo sujeito anônimo que o todo se constitui e passa a
ser integrado à vida cotidiana, fazendo parte das convenções sociais. É através destas
convenções que surge uma identidade cultural, que se expressa de diversas maneiras,
seja no comportamento, nas festas, na fala ou nas tradições. Uma das maneiras de
manter viva a identidade é preservar os símbolos destas práticas culturais, sejam eles
monumentos de pedra e cal ou manifestações culturais.
Los objetos y las prácticas culturales – físicas o inmateriales – solo
adquirian valor al renovar continuamente sus significados. Éstos tiene que
ser conferidos, mantenidos e renovados por quienes los usan, practican o
valoran, incluyendo todo tipo de públicos; son ellos quienes mantienen vivos
los objetos y los performance como narrativas socialmente significativas
(ARIZPE, 2009: 50).
Neste sentido conservar práticas culturais não implica o fato de mantê-las estáticas,
mas de registrá-las enquanto manifestação cultural localizada no tempo e no espaço.
Assim sendo, o termo patrimônio reflete a tentativa de salvaguarda de bens tangíveis e
intangíveis, assim como também é uma forma de preservar as raízes de uma cultura.
O termo patrimônio possui uma fundamentação ideológica bastante ampla, abrange a
concepção de proteção nos seus mais variados sentidos, bem como o ideal de
conservação e registro de objetos e práticas culturais (GONÇAVES, 2002). De outro
modo, “os bens patrimoniais podem ser compreendidos como inscrição que fala de um
tempo pretérito, que o relata e o torna presente e significativo, apontando para um
futuro até certo ponto possível” (KERSTEN, 2000: 29). Portanto, a relação entre cultura
e patrimônio pode ser entendida, segundo Magmami, como um conjunto de códigos:
[...] se a cultura é um conjunto de códigos, o patrimônio é a série de falas
que só adquirem inteligibilidade por referência àqueles códigos. A noção de
patrimônio, desta forma, aponta para o aspecto da exterioridade da cultura:
objetos, técnicas, espaços, edificações, crenças, rituais, instrumentos,
costumes, etc, constituem os suportes físicos, as formas particulares e
tangíveis de expressão dos padrões culturais (MAGMAMI, apud KERSTEN,
2000: 33).
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O patrimônio está ligado à concepção de identidade, representa as transformações
culturais, ideológicas e sociais pelas quais passam os habitantes de uma cidade, região
ou país. Não são apenas os monumentos e bens tangíveis que expressam tal identidade,
as práticas culturais também o fazem e são reconhecidas como patrimônio imaterial.
El patrimonil cultural inmaterial no es un objeto, una representación o un
sitio, se bien éstos puden incorporado y darle forma material. Básicamente
consiste en una propagación de significados alojados en lo profundo de la
memoria colectiva. No puede considerarse de otra manera, ya que la
principal premisa es su definición es que lãs culturas están en constante
cambio, a medida que quienes las practican y las admiran crean nuevas
formas y se adaptan a las cinrcunstancias históricas (ARIZPE, 2009: 28).
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passado, cuja percepção é a apropriação veemente do que nós sabemos que não nos
pertence mais” (BOSI, 2003: 20). A memória é como uma colcha de retalhos,
fragmentada e combinada através da consciência individual, mas que quando analisada
como um todo, ganha um significado coletivo, mantendo vivo um fragmento cultural e
histórico, preservado na memória do indivíduo. “A memória é sim um trabalho sobre o
tempo, mas sobre o tempo vivido, contado pela cultura e pelo indivíduo” (BOSI, 2003:
53).
Neste contexto de memória coletiva e social, é conveniente ressaltar a importância da
escrita, que registra no papel os acontecimentos, diferente da memória individual que
registra no sujeito a vivência dos fatos ou a tarefa de passá-los adiante. “Na maior parte
das culturas sem escrita, e em numerosos setores da nossa, a acumulação de elementos
na memória faz parte da vida cotidiana” (LE GOFF, 1994: 427). Manter uma memória
viva para uma sociedade sem escrita é utilizar as variáveis da oralidade para preservar e
despertar em outros indivíduos o desejo de manter viva aquela memória. No entanto, a
oralidade por si só não permanece no tempo, ela não pode ser registrada, e com o passar
dos anos os fatos vão se modificando ou se perdendo. Já as sociedades que possuem a
escrita, a usam para preservar sua história. Todavia, mesmo na cultura escrita à
memória é alterada; não da mesma maneira que nas culturas orais, mas sempre de modo
diferente aos fatos ocorridos e também está sujeita ao desaparecimento:
A escrita enquanto memória possui duas funções principais: uma é o
armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e
do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e
registro; a outra reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras
isoladas (LE GOFF, 1994: 433).
No entanto, a memória escrita não se refere unicamente aos documentos, mas também a
escrita cotidiana que registra momentos ou as mais variadas informações. Assim, a
memória funciona como uma forma de expressão cultural, que pode ser preservada das
mais diversas maneiras, seja através da oralidade, da escrita, das tradições ou
monumentos.
Portanto, compreender a inter-relação entre cultura, patrimônio e memória é uma forma
de entender como as manifestações culturais se modificam, e, como as comunidades
mantêm e buscam conservar suas raízes e memórias.
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3. CONGADA DA LAPA
A festa de São Benedito, mais conhecida como Congada, é uma manifestação popular
que conjuga fé, devoção, música e dança e tem suas origens nas cerimônias de coroação
dos reis do Congo (FERNANDES, 1977). Sua origem, ainda muito discutida, apresenta
elementos culturais distintos, mas mantém certas características em comum:
A Congada foi denominada por Mário de Andrade (1966) como dança
dramática, cuja especificidade é a realização de bailados coletivos que
obedeçam a um tema característico tradicional, e que tenham o formato de
obra musical constituída por meio da apresentação de coreografia
seqüencialmente ordenada, também conhecida por suíte. Sua origem é
relacionada por alguns autores à apropriação de autos populares ibéricos
reinterpretados por irmandades ou grupos de negros bantos em diferentes
lugares e épocas (CEZAR, 2008: 02).
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benção do padre. Profana, porque é realizada fora da igreja, permeada por lutas
coreográficas, cantos, declamações e percussão de origem africana. Segundo Wagner da
Silva, a Congada está relacionada à “comunicação de todas estas linguagens tendo sua
própria significação” (SILVA, 2008: 12).
A Congada se dá por meio da encenação de um conflito entre dois reinos, onde dança,
música e coreografia representam disputas entre o Rei do Congo e a Rainha de Angola.
O Rei do Congo (Santo na Terra), assessorado por uma corte de Fidalgos, a Embaixada
de Ginga (Rainha de Angola) era assistida pelo Exército e Embaixador, sendo que o
combate culminava com a derrota da Embaixada visitante e o conseqüente perdão do
Rei do Congo ao Embaixador, ficando unidos os reis de Angola e Congo, sob a égide do
“Santo Preto” (CASCUDO, 2001).
Por ser uma encenação de cunho popular, “[...] a Congada traz em si várias linguagens.
Ela se compõe de um texto imagético, vocabular e teatral” (SILVA, 2008: 12). Tal festa
mescla diferentes elementos culturais oriundos da África, de Portugal e do catolicismo,
transformando a celebração em uma rica forma de manifestação do saber popular.
Todavia, a Congada da Lapa é mais que apenas o momento de festejo, ela possui uma
série de linguagens que se manifestam antes, durante e depois da celebração. A festa
acontece em todos os momentos:
nos momentos em que se preparam seus chapéus, seus fitas, seus adornos,
sua espada, seus tambores, seus santos e santuários, suas ervas santas para
benzer, junto com todas as suas crenças, acrescentando ainda a polissemia
deste evento, surgindo de todo este universo social e imaginário (SILVA,
2008: 12)
No contexto da preparação do ritual, existe toda uma simbologia que permeia os objetos
que fazem parte da encenação, esta simbologia está ligada à cultura da qual descende a
Congada, ou seja, cada comunidade que encena tal celebração, o faz de diferentes
formas, pois as influências sociais, culturais e políticas são diferentes, bem como as
origens da festa em cada localidade do Brasil em que é encenada. A esta simbologia
também são agregados valores comunitários e cotidianos de quem vive e sente a festa.
A simbologia presente no cotidiano dos congadeiros é uma forma de manifestar uma
identidade pessoal, rica em tradições e saberes populares. Esta simbologia cultural que
se expressa através do indivíduo, faz referência ao modo com ele interage com o
ambiente a sua volta, como ele resiste às transformações sociais. Essa resistência, no
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entanto, muitas vezes torna-se obsoleta, pois embora o indivíduo tente manter uma
tradição ele não o fará sem o auxílio de outros; sem a coletividade a tradição cai no
esquecimento (SANTOS, 1994).
Para manter viva uma tradição é preciso fazer com que as próximas gerações se
interessem por ela, a comunidade precisa querer revivê-la constantemente. Deste modo,
“o caráter repetitivo do rito implica a continuidade com o passado, e por isso a
preocupação com a participação dos jovens. O rito demanda a continuidade com o
passado, relembrar é fazer o passado atual” (MELO, 2006:147). É importante ressaltar
ainda, que o rito se transforma, pois aqueles que o revivem também se modificam, o que
não implica no desaparecimento do mesmo, mas em mudanças relacionadas aos seus
significados.
no caso do ritual [...], a própria execução é elástica e dinâmica. Embora o
texto básico de um ritual repetido possa permanecer fundamentalmente
inalterado [...] a maneira exata pela qual se apresenta o cerimonial pode
variar, o que por si só serve apenas para acrescentar uma nova dimensão às
mudanças de “significado” (CANNADINE, 1997: 116).
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marcado pela valorização da história das tradições dos imigrantes europeus
(MARANHÃO, 2008: 01).
Convém ressaltar que a encenação da Congada passou por uma série de modificações
com o decorrer do tempo, no entanto, ela mantém seus elementos principais. Para
conservar as raízes da encenação, os organizadores da festa deixam a cargo do “Rei do
Congo”, personagem de maior autoridade dentro da encenação, a responsabilidade de
transmitir às próximas gerações o conhecimento necessário sobre a organização do auto.
Neste caso, a família do rei é responsável por se tornar a guardiã da tradição e mantê-la
viva.
A principal base de transmissão dessa tradição oral é a família. Basicamente
o pai ensina o filho, os sobrinhos. O avô auxilia o pai. Entre sobrinhos e
filhos juntam-se os agregados – que não são consangüíneos, mas vivenciam
o hábito, e passam, então, a fazer parte desta família. É uma noção de
família baseada numa linhagem, que significa uma formação educacional de
saber manter os laços sociais e as regras de convivência baseado numa
matriz, que é muito mais antiga que o pai. O pai é o último representante
dessa linhagem, ou melhor, desse conhecimento transmitido oralmente
(SANTOS, 2006: 04).
Neste sentido, para manter viva uma tradição é preciso passá-la a outras gerações,
mantendo-a no cotidiano: “o revivamento da memória é de suma importância devido à
construção de uma identidade consistente de um determinado povo”. Para isso é
necessário “que não [se] deixe de rememorar, ir à busca das raízes, das origens, do
âmago da sua história” (LE GOFF, 1994: 420).
Os indivíduos que participam das festas sempre somam a elas características diferentes,
o que faz com que a encenação se transforme com a agregação destes novos elementos,
onde as preferências e gostos individuais se sobressaem e despertam novas formas de
ver a festa e interpretar seus símbolos e significados.
Por esse motivo, a representação da Congada é um fator de identidade de parte da
população local que busca sua permanência através dos tempos.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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