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A

FORMACÃO
DO
NOVO
TE5TAMENTO

Oscar Cul1mann

.~~
'Sinodal
.A
FOKMACÃO
DO
NOVO
TESTAMENTO
Oscar Cullmann

Escrito por um dos mais famosos biblistas deste século, este


livro tem caráter de introdução: na primeira parte, expõe a histó-
ria da formação do texto do NT Na segunda , apresenta , livro a
livro, dados sobre o autor e a origem, bem como um resumo da
mensagem essencial de cada escrito, além de outras peculiarida-
des . Na terceira parte, aborda a questão da formação do cânone
neotestamentário, concluindo com reflexões sobre a essência
comum do pensamento teológico do NT
Trata-se de uma obra excelente para o/a estudante de
Teologia à medida que fornece uma primeira visão geral da pro-
blemática da formação do NT Para qualquer pessoa que queira
estudar a Bíblia, oferece orientação clara e sólida para compre-
ender a mensagem e as particularidades de cada escrito neotes-
tamentário.

• ~Editora JIIJIJI!IJIJlllllllllll~ llll


ISinodal
OscarCullmann

A FORMAÇÃO DO
NOVO TESTAMENTO

78 Edição
(revisada)

.-.~
'S/nodal
2001
Traduzido do original francês "Le Nouveau Testament", da série "Que sais-je?",
Le Point des Connaissances Actuelles N" 1231, © Presses Universitaires de France
Os direitos desta edição pertencem à
EDITORA SINODAL
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93001- 970 - São Leopoldo - RS
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Capa: Editora Sinodal

Tradução: Bertoldo Weber


Revisão: Rui Bender

Coordenação editorial: Luís M. Sander

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações TeológicaslInsti-


tuto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG) da Escola Superior de Teolo-
gia (EST) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB).

Impressão: Gráfica Sinodal

CIP - BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


Bibliotecária responsável: Rosemarie B. dos Santos CRB 10/797

C967f Cullmann, Oscar


A formação do Novo Testamento /
Oscar Cullmann ; tradução de Bertoldo
Weber. - 7. ed. rev. - São Leopoldo:
Sinodal, 2001.
95p.

Título original: La Noveau


Testament

ISBN 85-233-0026-0

I.Bíblia. 2.Novo Testamento. I. Título.

CDU22
225
íNDICE

Introdução 5

Primeira parte
História do texto do Novo Testamento 7

Capítulo 1
Os documentos de base 7
Os manuscritos 8
As traduções 10
As citações 11

Capítulo 2
A classificação dos documentos de base: 12
"As famílias de textos"

Capítulo 3
A história do texto impresso 13

Segunda parte
Os escritos do Novo Testamento 15

Capítulo 1
Os escritos narrativos 15
1 - O Evangelho e os evangelhos 15
2 - O Evangelho segundo Mateus 20
3 - O Evangelho segundo Marcos 23
4 - O Evangelho segundo Lucas 27
5 - O Evangelho segundo João 31
6 - Os Atos dos Apóstolos 37

Capítulo 2
O Corpus paulino 40
Cronologia paulina 40
I - As primeiras epístolas 41
2 - As grandes epístolas 44
3 - As epístolas do cativeiro 53
4 - As epístolas pastorais 61

Capítulo 3
A Carta aos Hebreus 66

Capítulo 4
As epístolas católicas 69
1 - A Carta de Tiago 70
2 - A primeira Carta de Pedro 73
3 - A Carta de Judas 77
4 - A segunda Carta de Pedro 79
5 - As três Cartas de João 81

Capítulo 5
O Apocalipse 84

Terceira parte
A formação do cânon do Novo Testamento 89

Conclusão 93

4
Introdução

Em toda a literatura do cristianismo primitivo, 27 livros ocupam um


lugar privilegiado. Estes se impuseram às primeiras gerações cristãs (mui-
to mais do que foram por elas escolhidos) e foram, pouco a pouco, reuni-
dos, classificados numa coleção e considerados Escritura Sagrada', Os cris-
tãos já dispunham de uma Escritura Sagrada: a Bíblia herdada do judaís-
mo. Chamaram-na, mais tarde, de "Antigo Testamento" para lhe juntar os
27 livros novos que tomaram o nome de "Novo Testamento".
Esse Novo Testamento é que estudaremos na presente obra. Sem negar o
interesse real que apresenta toda a literatura dos primeiros tempos do cristi-
anismo, é evidente que esses 27 escritos devem ser estudados à parte, nem
que fosse em razão do papel excepcional que representaram e continuam
representando na história da Igreja, bem como na história do mundo.
O Novo Testamento não somente foi a regra de fé dos cristãos, não so-
mente inspirou e ainda inspira vidas heróicas, célebres ou desconhecidas,
como também determinou civilizações inteiras em sua ética, individual e
social, em sua literatura e sua arte.

I Cf. a terceiraparte:"A formação do cãnone",

5
I

História do texto do Novo Testamento

o leitor que hoje em dia folheia as páginas do Novo Testamento, numa


das edições modernas da Bíblia, encontra um texto que está claro, tanto
do ponto de vista tipográfico quanto do ponto de vista do estilo, e não
pode dar-se conta da diversidade e complexidade dos documentos que
formam a base do texto impresso, nem das enormes dificuldades vencidas,
no decorrer da publicação, com a decifração e apreciação desses docu-
mentos de base.

Capítulo 1

Os documentos de base

Não temos documento original do Novo Testamento, mas somente cópi-


as. Os manuscritos completos mais antigos que possuímos não remontam
além do século IV. Deixando à parte fragmentos mais antigos, cerca de
300 anos, portanto, separam a redação original do texto conservado.
Tal espaço de tempo poderia fazer-nos duvidar da autenticidade estrita
desses textos. De fato, de cópia em cópia, lograram introduzir-se deforma-
ções e impor-se erros. Contudo, não se deve esquecer que o Novo Testa-
mento, desde que foi reconhecido como Sagrada Escritura, foi recopiado
com a minuciosidade escrupulosa que inspira o respeito das coisas sagra-
das. Também é preciso considerar que a distância entre o original e o
primeiro texto conservado é, abstraindo de fragmentos, muito menor para
os escritos do Novo Testamento do que para os outros escritos da Antigüi-
dade. Por exemplo, o manuscrito mais antigo da obra de Ésquilo (525-456
a.C.) data apenas do ano 1000, aproximadamente.
As condições de transmissão do texto não são, portanto, tão desfavorá-
veis quanto poderia parecer à primeira vista e não poderiam justificar um
ceticismo exagerado da parte dos historiadores.
Outro problema é avaliar a distância que separa a redação dos escritos
do Novo Testamento dos acontecimentos que eles testemunham; tratare-

7
mos disso na segunda parte desta obra, com referência a cada um desses
27 escritos. Começaremos por uma classificação dos documentos de base.

Os manuscritos

Os manuscritos do Novo Testamento podem ser classificados segundo a


matéria que os compõe ou segundo os caracteres da escrita. Essa classifi-
cação ajuda a datá-los.
Esses manuscritos são papiros ou pergaminhos.
Um papiro é constituído por tiras de medula do papiro (uma espécie de
caniço com caule triangular, da família das ciperáceas, da grossura de
mais ou menos um braço e de 2,5 m a 5 m de altura). Cortadas em finas
talas e colocadas em camadas cruzadas, essas tiras formam folhas que são,
em seguida, fixadas umas após as outras e enroladas em torno de uma
vara. O rolo assim formado se chama, em grego, de biblos (daí a palavra
"Bíblia") e pode ter até 10m de comprimento.
Os papiros do Novo Testamento são os mais antigos documentos de base
que possuímos: em sua maioria datam do século III (um papiro descoberto em
1935 deve até ser datado do começo do século lI). Se bem que nos transmitam
apenas fragmentos de textos, esses documentos são testemunhas preciosas do
texto, justamente em razão de sua antigüidade. Eles existem atualmente em
número de 72, designados nas edições críticas por p l , P', etc.
Um pergaminho é uma pele, ordinariamente de ovelha, cabra ou bezerro,
tratada e cortada em folhetos (a palavra "pergaminho" se originaria da cida-
de de Pérgamo): estes são postos um em cima do outro para formar não um
rolo, mas um volume (em grego: teuchos, donde vem a palavra "Pentateuco"
para designar os cinco primeiros livros do Antigo Testamento).
Os pergaminhos trazendo textos do Novo Testamento datam só do sécu-
lo IV, no máximo, mas apresentam-nos, geralmente, textos completos do
Novo Testamento. O princípio e o fim do texto faltam às vezes, em conse-
qüência da deterioração, fácil de imaginar, dos folhetos da capa.
Todos esses documentos estão escritos em grego, mas num grego que
não é mais o grego clássico: a morfologia é simplificada e deformada, a
sintaxe é freqüentemente irregular e o vocabulário evoluiu sob diversas
influências, por exemplo, a da língua hebraica. (Esse grego, comumente
falado em todo o Império, é denominado koiné: língua comum).
Os manuscritos mais antigos do Novo Testamento são escritos em letras
maiúsculas ou "nnciais". Atualmente seu número é de 242. As edições
críticas os designam por letras maiúsculas ou números precedidos por zero.

8
Os manuscritos em letras minúsculas (conhecemos hoje 2.570) datam
no máximo do século IX. Entretanto, não devem ser negligenciados, por-
que os copistas dos séculos IX, X, XI recopiavam possivelmente manus-
critos em maiúsculas muito mais antigos, que não possuímos mais. As
edições críticas os assinalam por algarismos arábicos.
Todos esses manuscritos são bastante difíceis de ler. As palavras, as fra-
ses e os parágrafos não são separados por espaço algum, e não encontra-
mos nem acento nem sinal de pontuação.
Esses textos apresentam variantes entre si. Estas resultam ora de erros
involuntários: o copista saltou uma palavra, ou, ao contrário, a escreveu
duas vezes em seguida, ou, ainda, toda uma parte de uma frase é omitida
por descuido, porque se achava colocada, no manuscrito a ser recopiado,
entre duas palavras idênticas. Ora se trata de correções voluntárias: ou o
copista tomou a liberdade de corrigir o texto segundo suas idéias pessoais,
ou procurou harmonizar o texto que copiava com um texto paralelo', para
reduzir, mais ou menos habilmente, as divergências. À medida que os es-
critos do Novo Testamento se destacarão do resto da literatura cristã pri-
mitiva e serão considerados Escritura Sagrada, os copistas hesitarão mais
em se permitirem tais correções em seus predecessores: crêem recopiar o
texto autêntico e fixarão assim as variantes. Ora, enfim, um copista anota
o texto à margem para explicar uma passagem obscura. O copista seguin-
te, pensando que tal frase que ele acha escrita à margem fora esquecida
nessa passagem por seu antecessor, julga necessário reintroduzir essa ano-
tação marginal no texto. Assim acontece que o novo texto às vezes se toma
mais obscuro ainda.
A apreciação das variantes é delicada. Um dos princípios norteadores
dessa avaliação é aquele da lectio difficilior, da leitura mais difícil: entre
duas "versões" do mesmo texto, a versão mais difícil a admitir, seja por
causa de sua forma gramatical irregular, seja por causa das idéias que
exprime, tem probabilidade de ser a versão autêntica, pois as correções
dos copistas vão sempre no sentido de uma eliminação ou de uma redução
dos elementos incompreensíveis, suspeitos ou chocantes do texto. Resta,
enfim, a idade dos manuscritos, que igualmente intervém na apreciação
das variantes.
Seis manuscritos em maiúsculas são muito importantes: o Vaticanus
(designado por "B" nas edições criticas), assim chamado porque é conser-
vado na biblioteca do Vaticano. Com data do século IV, é o mais antigo de
todos os manuscritos sobre pergaminho. O Sinaiticus (designado por ".t'),

1 Sobretudo nos três primeiros evangelhos.

9
descoberto num convento do Sinai, no século XIX, vendido em 1933 pelo
governo soviético ao British Museum em Londres, também deve datar do
século IV. O Alexandrinus (designado por "A"), trazido da Alexandria à
Inglaterra no século XVIII e igualmente conservado no British Museum,
data do século V. O Codex Ephrem (designado por "C") é um
"palimpsesto", o que quer dizer que o texto primitivo, um manuscrito do
Novo Testamento, com data do século V, foi apagado no século XII por um
copista que se serviu do pergaminho para nele copiar tratados de Efrem da
Síria. Felizmente, o texto primitivo não desapareceu inteiramente e ainda
pode ser lido sob o texto medieval por olhos peritos (trabalho penoso,
facilitado hoje em dia pelos processos técnicos modernos). Este manuscri-
to é conservado em Paris, na Biblioteca Nacional. Esses quatro primeiros
manuscritos não diferem entre si a não ser em pormenores.
Dois outros manuscritos (designados por "D") apresentam, juntamente com
os quatro precedentes, um grande número de variantes e particularmente notóri-
as. Datam, ambos, do século VI. O primeiro: o Codex Bezae Cantabrigiensis
deve seu nome ao fato de ter pertencido, assim como, aliás, também o segundo,
a Teodoro de Beza, amigo de Calvino, e que, em 1581, seu proprietário ofertou
a Cambridge. Escrito sobre duas colunas, a primeira contendo o texto grego e a
segunda a tradução latina, oferece somente os quatro evangelhos e o livro dos
Atos dos Apóstolos. Um exemplo do interesse das variantes do Codex
Cantabrigiensis é fornecido por aquela palavra de Jesus que só este manuscrito
traz: "No mesmo dia, Jesus viu alguém que trabalhava no dia de sábado, e disse-
lhe: Homem, se tu sabes o que fazes, és bem-aventurado. Se não o sabes, és
maldito e és um transgressor da Lei!" (Lucas 4.5). O segundo manuscrito, que
contém as epístolas e é inteiramente semelhante àquele de Cambridge, tira seu
nome do lugar de seu descobrimento: Clermont. O Codex Claromontanus é
conservado hoje na Biblioteca Nacional de Paris.

As traduções

Vem a seguir uma série de documentos, constituída pelas antigas tradu-


ções. Elas apresentam a grande vantagem de ser mais antigas que os ma-
nuscritos gregos que possuímos. De fato, certas traduções que datam do
século II foram feitas com base em manuscritos hoje perdidos e mais anti-
gos do que aqueles que acabamos de mencionar. Elas estão, portanto, cro-
nologicamente, mais próximas do original do que estes.
Uma tradução bem conhecida no Ocidente é a tradução latina feita por
São Jerônimo no século IV, que se chama a Vulgata. Mas, além disso,

10
também possuímos um bom número de manuscritos (cerca de 44) de tra-
duções latinas anteriores à Vulgata e, portanto, mais preciosas que esta, às
quais se deu o nome coletivo de Vetus Itala. (Nas edições críticas, elas são
designadas por letras minúsculas).
As traduções sirícas devem seu interesse excepcional não somente à
idade antiga, mas ao fato de que o siríaco é uma língua próxima do aramaico
palestinense usado por Jesus e pelos que o cercavam. Diversos autores do
Novo Testamento escreveram em grego o que pensavam em aramaico, e as
traduções siríacas podem ajudar-nos, em certos casos, a compreender me-
lhor o que quiseram dizer. A tradução siríaca mais afamada é a Peschitta
(= simples) do século V (sigla: syP), mas são conhecidas também duas que,
sendo mais antigas, têm maior valor: Syra sinaítica (sy') e a Syra Cureton
(sy').
Restam, enfim, as traduções coptas (o copta era a língua dos cristãos do
Egito), dignas de grande atenção. Algumas entre elas foram descobertas
recentemente.

As citações

Um terceiro grupo de documentos é formado pelas citações do texto do


Novo Testamento, que estão esparsas nos escritos dos Pais da Igreja. Raras
no século 11, seu número vai crescendo desde que o Novo Testamento,
reconhecido como Escritura Sagrada, impôs uma autoridade absoluta.
Essas citações, que têm a vantagem de nos indicar o lugar de difusão de
tal forma do texto, devem, no entanto, ser manejadas com precaução num
trabalho crítico. Quando, efetivamente, uma citação feita por um Pai da
Igreja difere do texto do Novo Testamento em uso no país onde este vive,
essa diferença não indica forçosamente uma verdadeira variante, testemu-
nha de um manuscrito que nos seria desconhecido, mas pode simplesmen-
te vir de uma citação feita de memória.

II
Capítulo 2

Classificação dos documentos de base:

As "famílias de textos"

Confrontando o conjunto dos documentos que acabamos de enumerar,


os críticos que, a partir do século XIX, se ocupam com este gênero de
pesquisas) constataram que as mesmas variantes se reproduzem em toda
uma série de manuscritos, de idade e procedência bem diversas. Era, pois,
necessário supor que esses manuscritos derivassem de um tipo comum.
Dessa maneira podem se estabelecer diversas famílias de textos, obtendo
as seguintes:
I) O texto chamado siríaco, representado pela grande maioria dos ma-
nuscritos antigos. Este texto muito adulterado, resultado das revisões de
um texto mais antigo, é o pior de todos. Largamente difundido na Europa
a partir do século XVI, graças à imprensa, ele veio a ser, em toda parte, o
texto "recebido" (textus receptusv .
2) O texto chamado ocidental, cujo nome não é inteiramente corretos,
é originário da região da Antioquia. A partir dali, já antes do século Ill,
atravessou, sem dúvida, toda a cristandade, seguindo as estradas comerci-
ais para fixar-se no Ocidente, notadamente em Roma, onde era conhecido
de Justino Mártir, em Lião, para onde foi levado por Irineu, e na África. O
Codex Cantabrigiensis, o Codex Claromontanus, versões latinas de Pais
ocidentais são as testemunhas mais representativas dessa família. Apesar
de uma certa tendência à paráfrase secundária, não devem ser eliminados
quando se trata de estabelecer o texto primitivo.
3) O texto chamado neutro, assim denominado porque ele se conser-
vou relativamente independente das alterações posteriores e se caracteriza
por uma pureza bastante grande. É representado, sobretudo, pelo Vaticanus
e pelo Sinaiticus. Durante sua estada em Alexandria, ele sofreu retoques
no sentido de uma maior correção para dar origem ao texto chamado
"alexandrino", que apenas é uma variante do neutro.
Se bem que essa classificação nos permita formar um juízo a priori
sobre o valor das variantes, cada caso deve ser objeto de um exame parti-
cular, que deve levar em conta o conjunto das variantes.

3 Verpágs. 13-14.
4 Ver "História do texto impresso", pág. 13.
5 Talvez poder-se-ia chamá-lo de texto "siro-latino", por causa de sua origem e sua difusão.

12
Capítulo 3

História do texto impresso

o Novo Testamento esteve entre os primeiros livros impressos. Uma


das duas primeiras edições do texto grego é devida à iniciativa do carde-
al Ximenes, arcebispo de Toledo, falecido em 1517, que fez imprimir
em Alcala (cujo nome latino é Complutum) uma Bíblia poliglota. Nessa
Bíblia, chamada Complutensis, que deveria aparecer somente em 1520,
o Novo Testamento grego, acabado e impresso desde 1514, ocupava o
tomo V. É dificil dizer de acordo com que manuscritos esse texto foi
estabelecido.
O humanista Erasmo (1466-1536) fora solicitado, desde 1515, pelo ti-
pógrafo de Basiléia, Froben, a preparar, para fins de publicação, um texto
grego do Novo Testamento. Froben queria ganhar por rapidez da edição da
Bíblia de Alcala; assim o trabalho de Erasmo, publicado desde 1516, foi
precipitado e mal executado: o humanista usou manuscritos de má quali-
dade (minúsculos de pouca idade, texto siriaco) do século XI ou XII, con-
servados em Basiléia. As edições posteriores foram ligeiramente corrigidas,
mas sem alcançar um verdadeiro valor científico".
Sobre a base do texto de Erasmo, comparado com a Complutensis e
uma quinzena de manuscritos, entre os quais o Codex Cantabrigiensis,
os tipógrafos Roberto Estienne (1503-1559) e seu filho Henrique (1528-
1578) publicaram quatro edições do Novo Testamento grego: 1546, 1549,
1550, 1551. É nesta última edição que aparece, pela primeira vez, a divi-
são dos capítulos em versículos'. Este texto, defeituoso, serviu de base
para todas as edições impressas posteriores ao século XVI, por exemplo as
nove edições publicadas por Teodoro de Beza (1519-1605), cuja primeira
data de 1565. E é este mesmo texto que foi usado de novo no século XVII
pelos irmãos tipógrafos Elzevir. Graças ao prestígio destes, foi largamente
difundido até vir a ser o "texto recebido'", cuja autoridade injustificada
fez surgir o ditado: Textus receptus sed non recipiendus.
Será preciso ir até o começo do século XX para ver aparecerem edições
que aplicam um método crítico, o qual presta contas da história do texto e
das relações das diversas famílias de manuscritos entre si. Este método foi

6 Lutero traduziu o Novo Testamentode acordo com uma reimpressão da 2a edição de 1519.
7 A divisão do texto em capítulos remonta ao século XliI.
a
8 Este nome tem por origem o prefácio à 2 edição, ed. Elzevir,onde se pode ler "agora tens o
texto recebido por todos".

I~
inaugurado após os trabalhos preparatórios de Simon (+1712), Bengel
(+1752) e Wettstein (+1754) por Griesbach (+1812). Entre os principais
editores que o seguiram, citamos: Lachmann (+1851), Tischendorf(+1874),
Wescott (+1901), Hort (+1892), von Soden (+1914), Eberhard Nestle
(+ 1913). O texto deste último editor é atualmente o mais usado para o
estudo exegético do Novo Testamento"; é um texto composto, o que quer
dizer que não corresponde a nenhum manuscrito particular, mas combina,
como num mosaico, os textos estabelecidos pelos principais editores mo-
dernos. Um código de sinais, postos dentro do texto e remetendo o leitor
às notas ao pé da página, permite determinar, em cada caso, de qual ma-
nuscrito foi tirada a versão escolhida pelo editor e quais as variantes
que os outros manuscritos propõem nessa passagem.
A edição mais completa até hoje continua sendo aquela de Tischendorf
(83 ed., 1867 ss). Mas uma edição nova está sendo preparada, que prestará
contas de todos os manuscritos descobertos desde então. A equipe que a
prepara é internacional. Essa edição, cujo primeiro tomo conterá o Evan-
gelho segundo Lucas, vai se chamar: New Criticai Apparatus ofthe Greek
New Testament.

9 Este texto conhece sempre novas edições revisadas. Após a morte de Eb. Nestle, seu filho
Erwin Nestle e, mais tarde, Kurt Aland continuaram seu trabalho; a última edição é atualmen-
te a 27" e data de 1993. Uma edição análoga, mais usada pelos entendidos católicos, é a de
Merk (7" ed., 1951).

14
11

Os escritos do Novo Testamento

Capítulo 1

Os escritos narrativos

Em uma história literária dos livros do Novo Testamento, deveríamos


proceder cronologicamente, quer dizer, começar pelas epístolas paulinas,
das quais sabemos de modo seguro que foram redigidas antes dos evange-
lhos.
Entretanto, diversos dos 27 escritos do Novo Testamento podem ser da-
tados apenas de maneira incerta, e não sabemos como classificá-los pela
ordem. Cremos, portanto, ser preferível seguir, a grosso modo, a tradicio-
nal e começar nosso estudo analítico pelos escritos narrativos: os quatro
evangelhos e o livro dos Atos dos Apóstolos.

1 - O Evangelho e os evangelhos

o termo grego euaggélion, que se traduz por "evangelho", provém do


grego profano. Significava, por exemplo, em Homero e Plutarco, a re-
compensa dada ao mensageiro por sua mensagem; ou, no plural, as ofer-
tas de ações de graça aos deuses por uma boa nova. Por extensão, veio a
designar, em Aristófano por exemplo, a mensagem propriamente dita e,
depois, o conteúdo da mensagem, a boa nova anunciada. Assim o aniver-
sário do imperador Augusto, chamado deus e salvador, foi festejado como
"o começo, para o mundo, das boas novas que ele trazia". A tradução
grega do Antigo Testamento, chamada Septuaginta, emprega esta pala-
vra também para assinalar mensagens felizes. Entre os cristãos primiti-
vos, o euaggélion é primeiramente a boa nova da salvação realizada em
Jesus Cristo, tal qual é anunciada oralmente pelos apóstolos. Somente
mais tarde, o termo se aplica à forma escrita dessa boa nova apostólica.
Enfim, chega a designar (por volta de 150 d.C.) aqueles escritos do Novo

15
Testamento que contam mais precisamente a vida terrena de Jesus Cris-
to. E é neste sentido que se fala dos quatro evangelhos e que são chama-
dos de evangelistas os autores aos quais são atribuídos: Mateus, Marcos,
Lucas e João.
Os evangelhos formam um gênero literário à parte, que não se assemelha
em nada aos gêneros conhecidos na literatura profana. Seu aspecto biográfi-
co não deve esconder o que querem ser antes de tudo: testemunho da comu-
nidade acerca de Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador dos homens.
Há quatro evangelhos, e sua pluralidade cria um duplo problema.
O problema de ordem teológica, ressentido desde a Antigüidade, é o
seguinte: por que são necessários quatro testemunhos sobre os mesmos
fatos? Não se pode harmonizar os quatro relatos para fundi-los em uma só
Vida de Jesus? Desde as origens do cristianismo foram feitas tentativas
para reduzir essa pluralidade. Taciano compôs, no século lI, uma Harmo-
nia evangélica: o Diatessaron (= "por quatro", subentendendo-se: um só);
ainda no século lI, Marcião suprimiu radicalmente três dos quatro evange-
lhos, conservando apenas o Evangelho segundo Lucas.
A Igreja cristã, recusando essas tentativas de unificação artificial, rece-
beu os quatro evangelhos lado a lado, mas lhes deu titulos que assinalam
bem de que se trata de quatro testemunhos sobre um mesmo acontecimen-
to e uma mesma pessoa, de uma só boa nova, entendida de modo diferente
e complementar, de um único Evangelho tetramorfo: segundo Mateus,
segundo Marcos, segundo Lucas, segundo João.
Mas essa pluralidade levanta igualmente um problema literário. Os três
primeiros evangelhos - Mateus, Marcos e Lucas - apresentam entre si
uma certa unidade em relação ao quarto - João. Tudo se passa dentro do
mesmo plano cronológico e geográfico: o ministério de Jesus estende-se
por um ano; começa na Galiléia e termina na Judéia, pela Paixão. João, ao
contrário, estende esse ministério sobre dois ou três anos e o localiza em
geral na Judéia e, episodicamente, na Galiléia.
O plano nos três primeiros evangelhos é tão semelhante, que se pode
copiá-los sobre três colunas e fazer uma leitura paralela de um só golpe de
vista: daí seu nome de evangelhos Sinóticos. Este termo, usado pela pri-
meira vez no século XVIII por Griesbach, deriva do grego synoráo, que
significa: ver junto, ver sob o mesmo ângulo.
Estamos, portanto, diante do "problema sinótico": como explicar o pa-
rentesco desses três evangelhos e, por outro lado, as divergências que exis-
tem, apesar de tudo, entre eles?
Os sinóticos se assemelham, poder-se-ia ser tentado a dizer, porque tra-
tam da mesma matéria; mas essa explicação não é suficiente, pois deveria

16
valer então também para o quarto evangelho, o que, porém, não é o caso.
No mais, ela não leva em consideração a identidade da disposição geral
das matérias esparsas, usadas pelos sinóticos. Cada evangelista, na reali-
dade, somente tinha à sua disposição narrações e palavras isoladas de Je-
sus, que foram transmitidas pela tradição oral; ele podia, portanto, estabe-
lecer o plano que queria. Se, apesar disso, existe, a grosso modo, um plano
idêntico, é preciso admitir, por conseguinte, uma dependência mútua des-
ses três textos.
Por outro lado, os sinóticos também apresentam divergências. Certos
episódios se encontram apenas em dois evangelhos, outros num só. A in-
fância de Jesus é recontada diferentemente em Mateus e Lucas, e Marcos
não a menciona de modo algum. As aparições do Jesus ressuscitado são
situadas por Lucas na Judéia, por Mateus na Galiléia; os grandes discursos
que se lêem em Mateus estão ausentes em Marcos; a ressurreição do filho
da viúva de Naim, o episódio da pecadora perdoada, a parábola do bom
samaritano, a história de Marta e Maria, etc. encontram-se somente em
Lucas; este teve que intercalar, dentro do plano comum, uma moldura
para essas matérias. Além disso, as divergências de detalhes pululam mes-
mo dentro dos textos paralelos.
No passado, foram propostas diversas soluções para resolver esse pro-
blema literário. Sua pluralidade mostra seus limites. Trata-se, essencial-
mente, de hipóteses que não resolvem todo o problema. Apenas enumera-
remos as principais, das quais a última, a chamada "hipótese das duas
fontes", é hoje ainda geralmente a mais aceita, se bem que também ela
levante dificuldades.

1.1 - A hipótese da utilização recíproca

Esta hipótese diz o seguinte: os três sinóticos utilizaram-se reciproca-


mente. Fazendo isso, introduziram modificações. Esta solução, que se en-
contra pela primeira vez sob esta forma em Agostinho, é tradicional. O
primeiro evangelho escrito seria Mateus. Marcos teria resumido Mateus, e
Lucas se teria servido de um e de outro. Dali provém a ordem tradicional
dos evangelhos Mateus, Marcos e Lucas. Outras hipóteses modernas apro-
ximam-se desta. Já em 1789, Griesbach propunha uma teoria análoga, mas
colocava Lucas antes de Marcos; segundo ele, Marcos teria utilizado, por-
tanto, Mateus e Lucas. Com uma ordem diferente, a solução foi retomada,
em 1835, por Lachmann e, em 1838, por Wilke.

17
1.2 - A hipótese do evangelho primitivo

Segundo esta hipótese, os três sinóticos remontariam a uma fonte comum


de origem aramaica, que não possuímos mais, e cada um dos três redatores
teria usado essa fonte à sua maneira. A esta hipótese está ligado o nome de
Lessing (1788). Eichhom adota essa solução, modificando-a (1804).

1.3 - A hipótese das diegeses (hipótese dos fragmentos)

Esta hipótese atribui aos evangelhos uma pré-história escrita. Primeira-


mente teriam sido compostos pequenos pedaços, diegeses: narrações da
Paixão, relatos de milagres, coleções de palavras de Jesus. Cada um dos
evangelistas teria, mais tarde, combinado, à sua maneira, esses diversos
elementos. Essa teoria, defendida por Schleiermacher em 1817, anuncia
já, e até mesmo ultrapassa sob diversos aspectos, as explicações do perío-
do bem modemo, do qual falaremos logo mais.

1.4 - A hipótese da tradição oral

Esta hipótese remonta a Herder (1797). Cedo já se teria fixado a tradi-


ção oral, e os evangelistas se teriam limitado a sorver essa tradição co-
mum. Teriam feito isso cada um à sua maneira. Também essa teoria ante-
cipa, em parte, a evolução mais recente da história do problema.

1.5 - A hipótese das duas fontes (completada pelos trabalhos recentes


sobre a formação da tradição)

A hipótese das duas fontes (exposta por Holtzmann, em 1863) é, para


dizer a verdade, uma combinação da hipótese da utilização recíproca e da
do Evangelho primitivo perdido: Mateus e Lucas teriam utilizado, inde-
pendemente, a Marcos, que seria, portanto, o mais antigo dos três, e uma
fonte comum, hoje perdida. Esta fonte teria contido, antes de tudo, pala-
vras de Jesus (logia). Essa hipótese, rejeitada por diversos (Zahn, Schlatter)
desde seu aparecimento, impôs-se à maioria dos entendidos 10. Entretanto,
à luz de trabalhos mais recentes, ela deve ser, em todo caso, corrigida e

10 Noentanto,sãopropostas, seguidamente, variantes ou soluçõesdiferentes (cf.Streeter, Vagany,


Fanner,etc.).

18
precisada em diversos pontos que permanecem problemáticos. Por exem-
plo, o Evangelho de Marcos, usado por Mateus e Lucas, era exatamente
aquele que nós conhecemos hoje? Diversos pesquisadores fazem pensar
em um "Proto-Marcos". Por outro lado, não é certo que a fonte comum
tenha sido única e de contornos escritos precisos. Houve, provavelmente,
mais coleções de logia, como o Evangelho gnóstico de Tomé, recente-
mente descoberto, parece provar.
Mas é preciso, sobretudo, levar em conta o fato de que os evangelhos
sinóticos são, em larga escala, apenas os porta-vozes da comunidade cristã
primitiva, que fixou a tradição oral. Durante 30 ou 40 anos, o Evangelho
existiu quase exclusivamente sob a forma oral. Ora, a tradição oral transmi-
tiu sobretudo palavras e narrações isoladas. Os evangelistas teceram laços,
cada qual a seu modo, cada um com sua própria personalidade e suas preo-
cupações teológicas particulares, entre as narrações e as palavras que rece-
beram da tradição do ambiente. O agrupamento das palavras de Jesus, como
o encadeamento das narrações por fórmulas de ligação muito vagas, tais
como: "e depois disso", "logo", etc., em suma, "a moldura" dos sinóticos, é,
pois, de ordem puramente literária e carece de fundamento histórico.
É necessário reconhecer, enfim, que são mais as necessidades da prega-
ção, do ensino e do culto do que propriamente um interesse biográfico que
guiaram a comunidade primitiva na fixação da vida de Jesus. Os apóstolos
ilustraram as verdades da fé cristã que pregavam contando acontecimen-
tos da vida de Jesus, e seus sermões davam lugar à fixação das narrações.
As palavras de Jesus, por sua vez, foram transmitidas particularmente no
ensino catequético da Igreja primitiva".
Aquilo que acabamos de adiantar apóia-se nos trabalhos da escola chama-
da Formgeschichte (história das formas literárias). Na realidade, não se tra-
tava, no início, de uma "escola" propriamente dita, mas da convergência de
diversos estudos que vieram à luz entre 1919 e 1922. Seus autores se propu-
nham a estudar a história da formação e das formas (literárias, "gêneros" -
este é o sentido da palavra alemã Formgeschichte) do Evangelho.
M. Dibelius, K. L. Schmidt, R. Bultmann aplicavam aos evangelhos
esse método que poderíamos qualificar de paleontológico. Ele permite
determinar as leis e as circunstâncias (Sitz im Leben = lugar de vivência)
que deram origem às diferentes partes da tradição evangélica oral 12•

1\ Mais recentemente, sábios suecos (Riesenfeld, Gerhardsson) chamaram a atenção para a


maneira como os discípulos dos rabinos aprendiam de cor as palavras de seus mestres.
12 Ver nossos artigos sobre a Formgeschichte na Revued'Histoire e de Philosophie Religieuse,
ano 1925, págs. 459-477 e págs. 564·579.

19
Resta-nos ainda delimitar a contribuição pessoal de cada evangelista,
trabalho ao qual se dedicam os entendidos, sobretudo desde a última guer-
ra (Redaktionsgeschichte), que estuda:
1. a escolha feita pelo evangelista dentre os elementos da tradição;
2. o plano segundo o qual os elementos escolhidos foram dispostos.
Esse estudo literário nos permitirá destacar, em cada evangelho, as idéias
particulares que cada autor faz do "Evangelho".

2 - O Evangelho segundo Mateus

Na ordem tradicional, o Evangelho segundo Mateus abre o Novo Testa-


mento. Isto é justificado no sentido de que é aquele dos quatro evangelhos
que procura, mais acentuadamente, estar dentro da linha do Antigo Testa-
mento. Ele lança uma ponte entre a expectativa do reino messiânico, cuja
vinda é proclamada nos livros proféticos do Antigo Testamento, e o ad-
vento de Jesus Cristo, que o Novo Testamento apresenta como a resposta a
essa espera.

2.1 - Originalidade e origem do Evangelho segundo Mateus

o primeiro evangelho é muito sistemático e sua redação muito bem ela-


borada. Mateus agrupa nele as narrações e as sentenças por assuntos (p.
ex., caps. 5-7: a "Lei"; 11: João Batista; 23: os fariseus). Sua atenção
volta-se, sobretudo, às tradições sobre a opinião e a atitude de Jesus frente
à lei judaica.
Por isso se esforça em mostrar que Jesus não veio rejeitar o Antigo
Testamento, mas levá-lo a seu objetivo, a seu cumprimento. Escolhe, na
tradição oral, palavras de Jesus como estas: "Não penseis que vim revo-
gar a lei ou os profetas (quer dizer todo o Antigo Testamento): não vim
para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: Até que o
céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da lei, até que
tudo se cumpra" (Mt 5.17s). Segue um discurso no qual Jesus retoma
preceitos da lei judaica para ensinar a seus discípulos não sua transgres-
são, mas seu cumprimento, não formal, mas total, radical ("Eu, porém,
vos digo ...").
Para Mateus, aliás, o cumprimento do Antigo Testamento é realizado
não somente pela doutrina de Jesus, mas por sua própria pessoa e pelos
acontecimentos de sua vida; assim, após haver contado o nascimento de

20
Jesus, acrescenta: "Ora, tudo isto aconteceu, para que se cumprisse o que
fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta" (Mt 1.22; cf. ainda, por
exemplo: 21.4 e o que segue; 26.54, 27.35).
Essa insistência sobre o Antigo Testamento faz eco à discussão áspera
na qual, sobretudo durante o século 1, se afrontam o judaísmo e o cristia-
nismo de origem judaica. A escolha dos elementos narrativos da vida de
Jesus, feita por Mateus, testifica-o igualmente. Talvez ele já utilize, entre
os documentos escritos anteriormente, uma espécie de seleção de textos
do Antigo Testamento aplicados a Cristo. Se bem que deles não se possua
nenhum em nossos dias, fez-se a prova de que tais coleções existiram e se
as designa, habitualmente, pelo nome de testimonia", Segundo certos en-
tendidos, como Stendahl, dever-se-ia falar, antes, de uma escola rabínico-
cristã de Mateus, que dedicou todo o seu esforço para perscrutar o Antigo
Testamento a fim de descobrir nele anúncios de Cristo.

2.2 - O que sabemos do ambiente de origem?

O autor do primeiro evangelho é um judeu convertido ao cristianismo,


que vive dentro de uma comunidade judaico-cristã que se esforça para
romper os laços que a amarravam ao judaísmo, conservando, todavia, a
continuidade com o Antigo Testamento. Os centros de interesse, o tom
geral deste evangelho, sugerem a existência de uma situação tensa. O
vocabulário nos indica com precisão que o autor é judeu e que se dirige
a gente que, falando grego, conhecia os costumes judeus" e a língua
aramaica 15.
Mas onde situar essa comunidade judaico-cristã? Na falta de argumen-
tos decisivos, foram sugeridas Jerusalém, Galiléia, Antioquia, Alexandria
ou alguma das grandes cidades do litoral fenício da Síria (Tiro, Sidom ou
Ptolemaida), ou ainda uma cidade nos confins da Palestina do Norte e da
Síria, como Cesaréia de Filipe ou Damasco. No momento é impossível
decidir a esse respeito.
Em que data essa comunidade judaico-cristã deu origem a este evange-
lho? Pode-se estar seguro de que este escrito é o fruto de longos anos de
experiências comunitárias. Um detalhe da parábola da festa das bodas, em
22.7, pode fazer-nos supor que o primeiro evangelho tenha sido redigido

13 Veja-se a respeitodessetema os trabalhosde RendelHarrise de P.Prigent.


14 Ele os mencionasemjulgar oportunoexplicá-los (cf. 15.2ss.).
15 Em 5. 22, nem se dá o trabalhode traduzira palavra raca.

21
após o ano 70; de fato, este versículo provavelmente faz alusão à primeira
revolta dos judeus e ao incêndio de Jerusalém provocado pelo imperador
Tito em 70. Nesse caso, dever-se-ia datar a redação do primeiro evangelho
no ano 80, aproximadamente.
A tradição (e não o próprio texto, que nada revela) atribuiu esse evange-
lho a Mateus, o "publicano", cuja conversão é contada em 9.9 (os dois
outros sinóticos chamam-no de Levi) e que se toma um dos 12 apóstolos,
segundo 10.3. Mas nada nos permite confirmar essa tradição, que levanta
dificuldades, principalmente se admitirmos que o autor usou o Evangelho
de Marcos, que não era discípulo de Jesus.
Podemos dizer que o exame do texto nos faz, de bom grado, atribuí-lo a
um judeu originário da Palestina, de fala grega e convertido à nova fé.
Porventura o autor usou uma fonte aramaica redigida por Mateus? E se
assim é, acaso este escrito era um evangelho completo ou somente uma
coleção de palavras de Jesus (logia), como alguns o admitem, baseando-se
em uma notícia de Papias (140) concernente a uma obra escrita em "he-
braico" por Mateus? Trata-se, no caso, de nada mais do que uma simples
hipótese.

2.3 - A mensagem do Evangelho segundo Mateus

Mateus emprega 51 vezes a palavra grega basiléia, que se pode traduzir


por "reino" ou "reinado". "Reino de Deus" ou "reino dos céus", "reino do
Pai" ou "reino" - todas estas expressões revelam uma conceituação judai-
ca. O judaísmo contemporâneo de Jesus falava do reino de Deus que se
estabeleceria no futuro e falava, também, do reino do Messias, esperado
como uma realidade iminente em certos círculos fervorosos.
O reino dos céus anunciado por Mateus é futuro. Para se convencer disso
é somente preciso ler 13.43: "Então osjustos resplandecerão como o sol, no
reino de seu Pai", ou 25.34: "Então dirá o Rei aos que estiverem à sua
direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está
preparado desde a fundação do mundo?". Igual à terra prometida no Antigo
Testamento, em direção da qual marchava o povo de Israel, o reino é a meta
dos crentes, um "território" do qual tomarão posse, no qual entrarão. O rei-
no é, portanto, uma realidade futura, assim afirmam autores como A. Loisy
ou A. Schweitzer, cuja teoria se chama "escatologia conseqüente?".

16 Veja-se também: 7.21; 8.11; 16.28.


17 Escatologia: palavra derivada do grego (eschata: as últimas coisas).

22
Mas Mateus também nos proclama um reino que começa com a vinda
de Jesus Cristo. Leia-se, por exemplo, 12.28: "Se eu expulso os demônios
pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós".
O reino é, portanto, uma realidade presente, afirmam os teólogos da
"escatologia realizada", como C. H. Dodd.
Essas duas teorias são extremas e parciais. De fato, segundo Mateus, o
reino já está inaugurado pela vinda de Jesus Cristo, mas ainda não é ple-
namente manifesto, como será por ocasião de seu Advento no fim dos
tempos.
Os crentes consideram-se atualmente dentro do tempo intermediário,
entre esse "já" e esse "ainda não". Eles (e o mundo com eles) já estão sob
o reinado de Cristo, mas ainda esperam seu reino glorioso. As parábolas
do capítulo 13, e em particular a parábola da boa semente e do joio, mos-
tram claramente a dupla realidade deste reino (13.24-30 e 36-43): a se-
menteira já está feita, mas ainda não estamos no tempo da colheita.
A proclamação do reino e o cumprimento do Antigo Testamento por
Jesus Cristo, juntamente com a preocupação de construir uma nova ética,
individual e social, que manifeste realmente a novidade do Evangelho,
são os aspectos dominantes da mensagem especial que nos dirige o pri-
meiro evangelista.

3 - O Evangelho segundo Marcos

O segundo evangelho foi considerado, durante muito tempo, como o


resumo do primeiro. Bossuet chamava Marcos de "o divino abreviador".
Efetivamente, como dissemos, tudo leva a crer que Marcos seja o mais
antigo dos quatro.
A transmissão de seu texto apresenta no fim uma particularidade: nos
dois mais antigos manuscritos do Novo Testamento, o Vaticanus e o
Sinaiticus", o Evangelho termina em 16.8 de forma abrupta: "e elas (as
mulheres, tendo achado vazio o sepulcro) não disseram nada a ninguém,
pois tinham medo". Manuscritos gregos mais recentes e certas versões
acrescentaram neste lugar uma conclusão sobre aparições, que não é de
Marcos, mas é tirada de outros evangelhos. O problema textual que aqui
surge é o seguinte: acaso o versículo 8 marca o fim autêntico do Evange-
lho, ou será que o fim original perdeu-se acidentalmente ou foi suprimido
arbitrariamente? Conforme uma hipótese recente, o fim perdido de Mar-

18 Assimcomoa versão siro-sinaítica e de outrastestemunhas antigas.

2~
cos teria contido o relato de uma aparição do Ressuscitado a Pedro, um
relato do qual ainda acharíamos vestígios no capítulo 21 do Evangelho
segundo João.

3.1 - Quem é Marcos e de onde procede seu Evangelho?

A tradição aponta Marcos como autor do segundo evangelho, e não


há razão séria para duvidar dessa atribuição, ainda que o próprio texto
não mencione autor. Com efeito, se tivesse sido inventado um autor
para este Evangelho, ter-se-ia preferido atribuí-lo a um apóstolo, para
dar-lhe maior autoridade. Para cobrir este escrito com a autoridade
apostólica, a tradição cristã afirma, após 150, que o apóstolo Pedro, na
companhia do qual se encontra Marcos, segundo 1 Pedro 5.3, é o fiador
deste escrito, sendo Marcos apenas o secretário de Pedro. Esse
apadrinhamento pode parecer suspeito; entretanto, pode-se objetar que
Mateus e Lucas talvez não tivessem usado esse Evangelho como o fi-
zeram, se não o tivessem conhecido como realmente fundamentado no
ensinamento de um apóstolo.
Marcos parece que pode ser identificado com "João cognominado Mar-
cos", do qual ouvimos falar, repetidas vezes, no Novo Testamento. Se-
gundo Atos 12.12, a mãe de Marcos recebe em sua casa em Jerusalém
uma parte da comunidade para a oração. Marcos é o companheiro do
apóstolo Paulo, se podemos dar crédito a Atos 12.25; 13.5 e 13; 15.37-
39; Colossenses 4.10. E talvez ele também tenha trabalhado com o após-
tolo Pedro, a quem conhecia, segundo Atos 12.12 e 1 Pedro 5.13.
Mas teria sido ele uma testemunha ocular ao menos de uma parte da
vida de Jesus? Uma tradição antiga sustenta isso, o que talvez venha
confirmar o curioso versículo que achamos no seu Evangelho (e somente
lá) bem no meio do relato da Paixão: "Seguia-o um jovem, coberto uni-
camente com um lençol, e lançaram-lhe a mão. Mas ele, largando o len-
çol, fugiu desnudo" (Me 14.51-52). Esta anedota, sem importância para
os eventos da Paixão e sem interesse teológico, poderia, no entanto, fa-
zer-nos supor que esse jovem fosse Marcos e que ele quisesse, através
dessa lembrança pessoal, colocar um marco de autenticidade, uma "assi-
natura anônima", provando que foi testemunha ocular.
Pelo exame do vocabulário, do estilo e das idéias do segundo evangelho,
poderemos revelar mais nitidamente as influências do meio ambiente. O
papel importante atribuído à Galiléia e numerosas construções de frases
aramaicas corroboram a hipótese segundo a qual o autor era de origem

24
judaica"; mas também achamos latinismos em seu texto: ele transcreve
em grego palavras latinas". Portanto, não está excluído que ele tenha es-
crito seu Evangelho em Roma. Ele se dirige, aliás, a cristãos que não vi-
vem na Palestina e toma cuidado em explicar-lhes as expressões aramaicas
que emprega, por exemplo em 5.41: "(Jesus) toma a mão da menina e lhe
diz: talitha koumi, que quer dizer: Menina, eu te mando, levanta-te". Da
mesma forma explica os costumes judaicos, como em 7.3: "Os fariseus e
todos os judeus ... não comem sem lavar cuidadosamente as mãos: quando
voltam da praça, não comem sem se aspergirem, e há muitas outras coisas
que receberam para observar, como a lavagem de copos, jarros e vasos de
metal". Enfim, reconhece-se facilmente no segundo Evangelho uma pro-
funda influência do pensamento do apóstolo Paulo, sugerida igualmente
pelo livro dos Atos dos Apóstolos, que faz de Marcos o colaborador de
Paulo em suas viagens missionárias. Portanto, o evangelista é, provavel-
mente, um judeu transplantado em uma comunidade cristã "romanizada"
(Roma?) após um longo trabalho de missionário entre os gentios, trabalho
efetuado, em grande parte, em colaboração com o apóstolo Paulo.
Levando em consideração alusões - muito breves, é verdade - à destrui-
ção do templo de Jerusalém, pode-se datar seu Evangelho em 70, aproxi-
madamente.

3.2 - A mensagem do segundo Evangelho

Desde o começo, o Evangelho segundo Marcos nos mostra sua intenção:


"Princípio da boa nova ('Evangelho') de Jesus Cristo, Filho de Deus" (1.1).
O que é contado a seguir quer ser um testemunho dado a essa filiação
divina de Jesus Cristo.
O nome "Filho de Deus" aplicado a Jesus não é próprio do segundo
evangelho; mas o que é particular e significativo é que, se Marcos empre-
ga este termo, dá-lhe um sentido pleno, colocando-o à frente, depois nos
momentos culminantes de seu evangelho: é a voz do próprio Deus que diz
a Jesus por ocasião do seu batismo: "Tu és meu Filho" (1.11) Ela o chama
de novo como Filho no episódio "glorioso" da transfiguração sobre a mon-
tanha (9.7) e é, enfim, um centurião que, em face da cruz na qual Jesus

19Porexemplo, conjugações porperiftases comumparticípio presente: "Jesusestava osprecedendo"


(\ 0.32)e o emprego de"eis"no iníciodecertasfrases (2.23; 3.32,etc.).
20 Apalavra legion (latim: legio=legião, 5.9),spekou/átôr (latim: speculator =soldado romano encar-

regadoda guarda dosprisioneiros, 6.27)ou denarion (latim: denarius = denário, 6.37), etc.

25
acaba de morrer pela salvação dos gentios, exclama em nome de todos os
gentios: "Verdadeiramente este homem era Filho de Deus" (15.39).
Mas ao lado desse título de Filho de Deus, que é dado a Jesus, o segun-
do evangelho nos apresenta Jesus reivindicando para si mesmo o título
Filho do homem, reticente, ao contrário, em relação ao título "Messias"
(ou "Cristo", o equivalente grego desta palavra hebraica que significa
"ungido").
Duas questões são levantadas aqui: a primeira é saber se o título "Filho
do homem" foi realmente reivindicado por Jesus ou se lhe foi outorgado
somente pela comunidade cristã primitiva; a segunda é conhecer o sentido
deste título. Sua aplicação a Jesus não é de todo corrente no cristianismo
primitivo. Encontramo-Ia em Marcos e nos outros evangelistas somente
quando fazem falar a Jesus mesmo; nunca quando um interlocutor de Je-
sus se dirige a ele. Também jamais os próprios evangelistas o denominam
assim. Eles têm, pois, guardada a lembrança precisa de que só Jesus se
designava como Filho do homem. Mas é este um título messiânico? Dito
de outra forma: é, porventura, um dos títulos que o judaísmo oficial dava
ao Messias esperado? Não, a não ser em certos círculos judaicos esotéricos
que cultivavam idéias apocalípticas. Jesus retoma, portanto, uma expres-
são pouco corrente e a carrega de um conteúdo novo, combinando-a com a
noção do "Servo sofredor de Javé" (Isaías 53). O Filho do homem, que
virá no fim sobre as nuvens do céu (Dn 7.13), é primeiramente um repre-
sentante de toda a humanidade, representante cuja função não é nem guer-
reira nem triunfal, mas humilde: ele toma o caminho da cruz para chegar à
glória e salvar todos os seres humanos.
A partir desse momento se compreende que Jesus observa, segundo
Marcos, o maior silêncio sobre seu papel messiânico e impõe este silêncio
também aos outros. Assim ordena aos demônios expulsos que se calem
(1.34; 3.12), aos enfermos curados (1.44; 7.36; 8.26), aos mortos ressusci-
tados e ao ambiente deles (5.43) e aos próprios discípulos que nada digam
a ninguém (8.30; 9.9). A menção desse segredo messiânico de Jesus, ca-
racterística do segundo evangelho, não é necessariamente uma invenção
do evangelista, como se afirmou (Wrede), mas pode perfeitamente provir
de uma lembrança exata da tradição oral, lembrança à qual Marcos deu
uma importância particular. De fato, esse segredo se explica pelo cuidado
que tinha Jesus de impedir uma proclamação messiânica suscetível a favo-
recer uma falsa interpretação de sua missão. Jesus entendia ser ele o Mes-
sias, mas não queria ser um Messias político, tomando nas mãos o destino
nacional e libertando o povo de Israel da ocupação romana, o Messias
esperado pela maioria dos judeus.

26
o segundo evangelho é, portanto, centrado menos no ensinamento do
que na pessoa de Jesus, misterioso Filho do homem no qual a fé, pouco a
pouco, descobre o poder salvador do Filho de Deus.

4 - O Evangelho segundo Lucas

Com o terceiro evangelho nós estamos diante da obra literária de um


"cronista". Trata-se, seguramente, de um evangelho, quer dizer de uma
obra nascida da fé de uma comunidade e fundada sobre uma tradição,
muito mais do que de uma obra individual: mas a personalidade literária
do autor aparece aqui muito mais do que nos outros evangelhos.
Desde o prólogo, o autor expõe seu método: "Visto que muitos houve
que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se
realizaram, conforme no-los transmitiram os que desde o princípio foram
deles testemunhas oculares, e ministros da palavra, igualmente a mim me
pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem,
dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para
que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído" (Lc 1.1-4).
Esta introdução na matéria mostra-nos, portanto, que o autor usou três
fontes: de uma parte, várias narrações compostas antes dele (entre elas,
sem dúvida, o Evangelho de Marcos); de outra parte, as informações reco-
lhidas junto às testemunhas oculares (pelo que subentende que ele mesmo
não foi uma delas); enfim, a tradição oral das pregações apostólicas.

4.1 - Lucas e seu ambiente

Se o texto do terceiro evangelho não nos diz o nome de seu autor, ele nos
permite, no entanto, descrever sua personalidade. Os primeiros três
versículos nos fazem já perceber um intelectual metódico, preocupado com
a história. A linguagem que emprega é relativamente pura e, em lugar dos
barbarismos e neologismos dos outros evangelistas, escolhe termos do gre-
go clássico; o autor tem, pois, também cuidado literário.
A comparação de seu Evangelho com os dois primeiros mostra que é
gentílico-cristão, quer dizer um cristão convertido do paganismo. É por isso
que deixa de mencionar os versículos mais judaicos de Marcos (como Me 7.
21) e sublinha, ao contrário, as palavras de Jesus contra a incredulidade dos
judeus e suas boas relações com os samaritanos, que os judeus detestavam
(Lc 9.51-56, a parábola do "bom samaritano" em 10.25-37 e 17.11ss.).

27
o escrito é dedicado ao "excelentíssimo Teófilo", que nos é inteiramen-
te desconhecido, mas ao qual é dedicado igualmente o livro dos Atos dos
Apóstolos: "Escrevi o primeiro livro, ó Teófilo, relatando todas as cousas
que Jesus fez e ensinou..." (Atos l.l); este "primeiro livro" não pode ser
outro senão o terceiro evangelho, o que confirma, aliás, uma comparação
filológica dos dois escritos. Ora, o livro dos Atos é escrito, em parte, na
primeira pessoa do plural por um companheiro de viagem do apóstolo
Paulo. Por outro lado, o terceiro evangelho é atribuído, a partir do século
11, a um certo Lucas. Conhecemos um Lucas que foi companheiro de Pau-
lo; é dele que se fala na carta de Filemom 24: "Lucas, meu cooperador",
em Colossenses 4.14: "Saúda-vos Lucas, o médico amado" e em 2 Timó-
teo 4.11: "Somente Lucas está comigo". Não é possível revogar ou confir-
mar essa tradição pela língua ou pelo estilo do evangelho. É verdade que o
crítico inglês Hobart, em 1880, procurou encontrar no vocabulário do ter-
ceiro evangelista uma confirmação de sua identidade com Lucas, o médi-
co; ele mostrou que os termos médicos eram freqüentes: 4. 38; 5.18 e 31;
7.10; 13.11; 22.44. Mas os mesmos conhecimentos médicos podem ser
encontrados em qualquer escritor culto, como Josefo ou Plutarco.
As idéias desenvolvidas no Evangelho segundo Lucas denotam um inte-
resse particular pelos gentios; isso concorda, em todo caso, com a atribui-
ção da obra a um companheiro de Paulo. É verdade que a orientação teoló-
gica geral, sobretudo o papel atribuído à morte de Cristo, não é a mesma
como nas cartas paulinas, mas existe, por outra parte, uma afinidade ine-
gável entre os escritos de Paulo e nosso evangelho, particularmente em
sua insistência comum sobre o papel do Espírito Santo, pelo qual já estão
cumpridos, antecipadamente, os últimos tempos.
Não temos, portanto, razão válida para duvidar de que o gentílico-cris-
tão que é o autor não seja idêntico a Lucas, o companheiro de Paulo.
A crítica, aliás, mostrou que ele se serviu do Evangelho de Marcos e que
era mais ou menos contemporâneo de Mateus. Situa-se, portanto, a reda-
ção do terceiro evangelho dez ou vinte anos após a morte do apóstolo
Paulo, quer dizer pelo ano de 80. Quanto ao lugar onde a obra foi compos-
ta, estamos somente em condições de afirmar que a comunidade cristã
onde nasceu este evangelho era de origem pagã, quer dizer, não-judaica. A
solução desses problemas deve estar de acordo com aquela que se oferece-
rá para os Atos dos Apóstolos.

28
1.4.2 - A mensagem de Lucas

Mais do que em Marcos e Mateus, acha-se em Lucas a perspectiva de


uma "história da salvação". A vida de Jesus inscreve-se dentro de um con-
junto mais vasto, e nós somos colocados no período central de uma histó-
ria que comporta ainda outros períodos, particularmente o dos Atos dos
Apóstolos". Lucas olha a vida de Jesus retrospectivamente, não apenas
como historiador que deseja refazer os eventos passados em sua ordem
cronológica, mas como crente que sabe que a ressurreição de Cristo dá a
tudo que precede o seu sentido verdadeiro. É à luz da Páscoa que ele relê
a vida de Jesus; por isso designa Jesus pelo título que lhe deu a comunida-
de cristã: o Senhor (em grego: Kyrios).
O título "Senhor" exprime melhor que qualquer outro o fato de que
Cristo foi elevado à direita de Deus e que em sua qualidade de glorificado
intercede atualmente pelos seres humanos. Quando os primeiros cristãos
dão a Jesus o título Kyrios, proclamam com isto que ele não pertence
somente ao passado da história da salvação, que ele também não é somen-
te objeto de uma espera futura, mas que é, também no presente, uma rea-
lidade viva, que ele pode entrar em relação conosco, que o crente pode lhe
dirigir suas orações e a Igreja invocá-lo no culto, a fim de que ele ofereça
suas orações a Deus e as tome eficazes. Uma das primeiras confissões de
fé cristã podia caber nestas duas palavras: Kyrios Iesous (Jesus é Senhor).
De fato, a palavra "Senhor" acha-se também nos outros evangelhos, no
sentido de um título de cortesia semítica, como equivalente do tratamento
"senhor" do francês: Monsieur ou, com mais deferência, Monseigneur;
mas Lucas é o único dos evangelistas a usar este termo de uma maneira
absoluta: o Senhor (7.13, 10.1 e 39 e 41; 11.39; 12.42; 13.15; 17.5; 18.6;
19.8; 22.61; 24.3 e 34).
Quando fala do reino de Deus, Lucas pensa, sobretudo, diferentemen-
te de Mateus, mais no reino futuro que se verá (9.27) e no qual é neces-
sário crer, do que na presença misteriosa e operante desse reino. Para
Lucas, a presença atual e dinâmica de Deus é menos o reino do que o
Espírito Santo. João Batista, sua mãe e seu pai são cheios do Espírito
Santo (1.15 e 67), assim como o ancião Simeão (2.25-27). Jesus tem a
força do Espírito, é impelido pelo Espírito, exulta no Espírito (4.1 e 14 e
18; 10.21). É o Espírito que deve assoprar aos discípulos o que terão de

21 Este planojá continua queo autordo terceiroevangelho é o mesmoque o autordosAtosdos


Apóstolos. H. Conzelmannfaloude "periodização"(Die Mitte der Zeit, 1962).

29
dizer em época de perseguição (12.12). É, pois, o Espírito que é necessá-
rio pedir na oração: "Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas
aos vossos filhos, quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo (Ma-
teus diz neste lugar "boas cousas" [Mt 7.11]) àqueles que lho pedirem?"
(11.13). Achamos para a prece da oração dominical "Venha o teu reino"
uma variante atestada por algumas testemunhas: "Que venha sobre nós
teu Espírito Santo e nos purifique" (11.2).
Já temos observado que Lucas omite voluntariamente as tradições mais
"judaicas" sobre Jesus e seu ensinamento, tradições que os outros
evangelistas relatam. A contrapartida positiva dessas omissões voluntárias
é a insistência de Lucas sobre o universalismo do Evangelho. Lucas faz
remontar a genealogia de Jesus além de Abraão (cf. Mateus) até Adão, o
primeiro homem (3.38). Na noite de Natal, os anjos cantam: "Paz na terra
entre os homens, a quem Ele (Deus) quer bem" (2.14); Jesus é a salvação
e a luz de todos os povos (2. 31-32) e é a todos os povos que ele mandará
pregar o perdão (24.47). O Evangelho segundo Lucas é também o Evange-
lho dos pobres. Os "pobres" são o objeto da solicitude de Jesus: pecadores
e pecadoras, publicanos, viúvas e crianças, ladrões e penitentes, homens e
mulheres enfermos. Os pobres, no sentido concreto, os que carecem de
bens materiais, são chamados bem-aventurados (6.20), e os ricos são qua-
lificados não de maus, mas de desventurados (6.24). A boa nova (o Evan-
gelho) é para os pobres (4.18; 7.22), e Lucas esboça, em relação a esse
assunto, em todo o capítulo 16, os princípios éticos do Evangelho.
Sublinhemos, enfim, a atmosfera de louvor jubiloso que se desprende
deste Evangelho. Ela aparece muito pura nos cânticos que a Igreja cristã
universal integrou em seu culto, para cantar os louvores a Jesus Cristo, seu
Senhor: o Cântico de Maria (Magnificat, 1.40-55), o de Zacarias
(Benedictus, 1.68-79), o dos anjos de Belém (Gloria in excelsis, 2.14) e
aquele do velho Simeão (Nunc dimitis, 2.29-32). Tal é a alegria do evange-
lista que, juntamente com a comunidade, se sabe integrado em uma histó-
ria cujo centro é a vida de Jesus.

~o
S- o Evangelho segundo João
S.l - O quarto evangelho e os sinóticós

Dissemos que o quarto evangelho se distingue dos outros. Todavia, não


o podemos isolar totalmente dos sinóticos, porque os pressupõe como
conhecidos, em todo caso a tradição que relatam. Assim, por exemplo, em
1.40, André nos é apresentado como irmão de Simão Pedro; ora, de Simão
Pedro ainda não foi falado. Em alguns pontos tem-se a impressão de que
este evangelho quer retificar os dados dos sinóticos, como se estivesse
melhor informado do que estes; em 3.24 certifica que "João (Batista) ain-
da não tinha sido encarcerado", quando Jesus já começara seu ministério
público; segundo Marcos, ao contrário, Jesus começou a pregar somente
após o aprisionamento de João Batista (Me 1.14).
Ademais, o Evangélho joanino diverge dos sinóticos, não somente pelo
quadro cronológico e pelo plano geográfico que dá à narração da vida de
Jesus, mas sobretudo por perspectivas teológicas diferentes.
Considera os mesmos acontecimentos que os sinóticos, mas a distância.
Trata-se de uma meditação em profundidade sobre os eventos centrais da
história da salvação. Seu desígnio é pôr em evidência a identidade entre o
Jesus histórico e o Cristo presente em sua Igreja, traçar as linhas que con-
duzem de cada evento da vida de Jesus a cada manifestação da vida de
Jesus Cristo, o Senhor glorificado, na Igreja. O objeto desse evangelho,
portanto, não é, como alguns afirmaram, uma verdade abstrata, mas um
conjunto de acontecimentos históricos, apresentado como o ponto culmi-
nante de toda a revelação divina. Longe de negar a biografia de Jesus, num
misticismo não-histórico, o evangelista a toma muito a sério. Os eventos
precisam ser reais para ser significativos; não são símbolos, mas realida-
des, cuja importância, entretanto, ultrapassa o momento em que se produ-
ziram e se estende à história da salvação em sua totalidade.
Jesus Cristo é, neste evangelho, ao mesmo tempo humano e divino, e o
autor, longe de ser "docetista", até combate o "docetismo" (doutrina se-
gundo a qual Cristo teria tido uma aparência de homem): Jesus Cristo é o
Lagos, o Verbo de Deus preexistente, mas ele é o Lagos encarnado, o Ver-
bo feito carne (1.14). Em sua conclusão, o evangelista indica, ele mesmo,
o objetivo de sua obra: "Estas (cousas) foram registradas para que creiais
que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em
seu nome" (20.31).

~1
5.2 - Valor histórico do quarto evangelho

A perspectiva teológica bem definida determina a escolha das narrações


e dos ditos relatados, assim como a maneira pela qual são reproduzidos.
Assim o autor prolonga, freqüentemente, as linhas e faz o Jesus histórico
dizer o que o Espírito Santo revelou ao autor. Por outro lado, esta perspec-
tiva levou o autor a misturar, num certo desleixo histórico, a exposição da
vida de Jesus com a das conseqüências no tempo da Igreja. Por esta razão,
muitos críticos gostariam de considerar este evangelho como um docu-
mento completamente desprovido de qualquer valor histórico; ora, apesar
das liberdades históricas, devidas à sua perspectiva especial, é uma fonte
de informações sobre os fatos e, mesmo em alguns pontos, mais segura do
que a dos sinóticos. Assim, os sinóticos consideram o 15 nisan, dia da
festa da Páscoa judaica, como a data da morte de Jesus. A última ceia que
Jesus tomou com seus discípulos e durante a qual instituiu a "Santa Ceia"
teria acontecido, segundo eles, na véspera à noite e seria, portanto, a ceia
pascal dos judeus. Ora, segundo o quarto evangelho, Jesus foi crucificado
no 14 nisan, na manhã do dia em que os judeus comiam o cordeiro pascal.
A última ceia de Jesus com seus discípulos teria ocorrido, portanto, no 13
nisan e não poderia ser considerada uma ceia pascal. Porventura não se
deve dar aqui preferência ao quarto evangelho? É, de fato, difícil imaginar
que a reunião do Sinédrio e todas as medidas judaicas antes da crucifica-
ção tenham acontecido durante o grande dia de festa do 15 nisan", Certos
detalhes dos próprios sinóticos não concordam, aliás, com seu próprio
contexto cronológico: segundo Me 15.21 e Lc 23.26, obrigou-se Simão
Cireneu, "vindo do campo", a carregar a cruz de Jesus. Pois bem, isto
significa - mesmo não sendo seguro, é pelo menos provável - que ele
trabalhara nos campos. Isso é incompatível com a proibição rigorosa im-
posta aos judeus de trabalharem no dia da Páscoa, o 15 nisan, enquanto
que este fato é perfeitamente verossímil no 14 nisan.
De maneira geral, o plano cronológico do evangelho joanino, mais am-
plo do que o dos sinóticos, poderia ser também o mais exato. A tradição
sempre tendeu a concentrar os eventos, e os dois ou três anos do quarto
evangelho são mais verossímeis do que o único ano atribuído pelos sinóticos
ao ministério de Jesus. Também aqui, estes últimos contêm indícios do
caráter talvez artificialmente restrito do seu quadro cronológico e geográ-

22 Se se combinam os dados dos sinóticoscom aqueles do evangelhojoanino, fazendointervir


a diferençado calendário da seitade Qumrã (A. Jaubert),a indicaçãocronológicado quarto
evangelhoconserva igualmenteseu valor histórico.

~2
fico: assim, fazendo Jesus subir uma única vez a Jerusalém, eles nos fazem
supor que havia amigos quando ele chegou lá (cf. Mt 21.17, Mc 11.11 e
19; Mc 14.3); e quando Jesus exclama (segundo Mateus): "Jerusalém, Je-
rusalém! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos!" (23.37), essa excla-
mação também não se coaduna muito bem com uma única viagem.

5.3 - Lugar e data de origem

Se o quarto evangelho pressupõe os evangelhos sin6ticos, é posterior a estes.


Inácio,bispo de Antioquia, mortocomo mártir em 107ou 112,parecese referir
a ele,sem, todavia, citá-lo diretamente. Atribui-se habitualmente umadatamuito
tardia à redação do nosso evangelho". Em 1935,descobriu-se um papiro, tra-
zendo um fragmento joanino (18.31-33), que os papirólogos dataram no come-
ço do séculolI, talvezaté o fim do século I. Caso este fragmento não seja um
elemento de tradição anterior, utilizado ao mesmo tempo por essepapiroe por
nosso evangelho, não se pode mais admitir, para a composição do quartoevan-
gelho, um períodoposterior aos anos 90 e 95.
A tradição que se apóia sobre o testemunho de Ireneu quer que o evange-
lho seja oriundo de Éfeso; outros indícios nos incitam a procurar sua origem
antes em Antioquia. Seu estilo e sua linguagem (aramaísmos) trazem a mar-
ca de uma dupla influência, helenística e judaica, e não é preciso escolher,
como se faz geralmente, entre estas duas influências, como se elas se exclu-
íssem uma a outra, representando dois meios totalmente diferentes.Ao lado
do judaísmo oficial da Palestina (saduceus e fariseus) não deve ser esqueci-
da a existência de um outro tipo de judaísmo: o judaísmo esotérico,testemu-
nhado na Palestina e na Síria. Trata-se, no caso, de toda uma corrente de
pensamento cuja importância mostraram claramente os documentos desco-
bertos em Qumrã. Estesjudeus, mais ou menos aparentadoscom os essênios,
atribuíam um papel primordial ao conhecimento e a toda sorte de batismos
e usavamum vocabulário que lembrao dosincretismo helenístico(A. Dupont-
Sommer). As duas correntes do judaísmo palestinense - judaísmo oficial e
judaísmo não-conformista - correspondiam provavelmente, embora tives-
sem sofrido transformaçõesprofundas, a duas correntes análogas no cristia-
nismo primitivo da Palestina.
Os sin6ticos representam antes a primeira corrente, o quarto evange-
lho mais a segunda, da qual talvez façam parte igualmente aqueles
"helenistas" da Palestina que são mencionados no livro dos Atos dos

23 AlbertSchweitzer coloca-o até no século11, depoisde Ináciode Antioquia.


Apóstolos (At 6.7 e 8; 11.19-20). A interferência de um pensamento
semítico e de um pensamento grego no quarto evangelho explica-se fa-
cilmente se o autor é procedente, como gostaríamos de admitir, desse
ramo helenístico do judaísmo palestinense.

5.4 - As grandes idéias joaninas

Já definimos a perspectiva teológica particular do evangelho: o autor


esforça-se para traçar a linha que liga o Jesus histórico ao Cristo da Igreja
com a intenção de mostrar sua identidade.
É essa intenção que o leva a ver, em uma mesma perspectiva, certos
eventos da vida de Jesus e das realidades da vida da Igreja, de sua missão
(4.31 ss; 12.20ss) e do culto "em espírito e em verdade", no qual a presen-
ça da glória divina não mais é ligada ao templo, mas à pessoa do Cristo
morto e ressuscitado (1.14; 1.51; 2.13ss; 4.19ss). Assim, o milagre de Caná
(2.1-12) e a multiplicação dos pães (6.1-13) pressupõem o sacramento da
Santa Ceia, a Eucaristia, como também a cura do paralítico de Betesda
(5.1-14) e aquela do cego de nascença (9.1-4) anunciam o Batismo, e a
água e o sangue que saem da ilharga de Jesus após sua morte (19.34)
contêm uma referência a estes dois sacramentos. O discurso sobre o "pão
da vida" (6.22-59) é também uma verdadeira exposição doutrinaI sobre a
Eucaristia, e a conversa com Nicodemos (3.1-21), uma autêntica cateque-
se batismal.
A continuidade entre o Jesus encarnado e o Cristo presente em sua Igre-
ja aparece, sobretudo, na promessa do Espírito Santo, chamado nos "dis-
cursos de despedida" (caps. 14 a 17) pelo termo Paráclito (consolador,
advogado, intercessor). Ele permitirá aos discípulos compreenderem o sen-
tido da vida e das palavras de Jesus, tal como o evangelista o revela em seu
livro. Ele os conduzirá em toda a verdade; mas, por outro lado, o Cristo,
ele mesmo, é a verdade e a palavra, do mesmo modo como é a luz, a vida
e a ressurreição (11.25). O tema da vida ocupa aqui o lugar que é reserva-
do ao tema do Reino nos sinóticos. A vida é, ao mesmo tempo, um bem
divino a esperar para o fim dos tempos e um bem presente, desde agora, na
pessoa do Cristo.
A escatologia (quer dizer, a doutrina que trata do fim dos tempos)joanina
é igualmente peculiar: nada de descrição do fim do mundo nem do retomo
de Cristo para o julgamento final. A glória de Cristo já é manifesta (1.14;
2.11; 11.4 e 40); a salvação já está adquirida (5.24); o mundo já está julga-
do (3.18-19) e o príncipe deste mundo já está expulso (12.31; 16.33). Com
a morte de Cristo já está alcançado o auge da história do mundo. A
escatologia, portanto, já está realizada.
Contudo, o quarto evangelho conhece aquela tensão entre o "já" e o
"ainda não" que se encontra ao longo de todo o Novo Testamento, mas, de
sua parte e à sua maneira, põe o acento no "já". Sua mensagem não é de
modo algum atemporal e admite claramente um fim da história dos seres
humanos, pois ela se refere freqüentemente à ressurreição dos mortos no
derradeiro dia (5.28; 6.39,40,44,54). Entretanto, também aqui, o acento é
posto na realização antecipada deste anúncio, pois Jesus é, ele próprio, a
ressurreição e a vida (11.23-26): a história que se desenrolou no passado e
aquela que se desenrolará no futuro são concentradas em sua pessoa.
Enfim, o quarto evangelho é o evangelho do amor: Deus amou o mun-
do (3.16), ele ama a Cristo (3.35; 15.9), Cristo ama os seus até morrer por
eles (13.1), e os cristãos devem realizar, após sua morte, sua união com
ele, amando-se uns aos outros (13.34).

5.5 - O autor do quarto evangelho

A tradição clássica segundo a qual o autor do evangelho é João, filho de


Zebedeu, um dos 12 apóstolos, não é testificada antes do testemunho de
lrineu, que escreve somente no fim do século 11: "João, o discípulo do
Senhor, escreveu o Evangelho quando estava em Éfeso na Ásia".
O que poderia dar peso ao testemunho de lrineu é o fato de que este,
antes de ser bispo de Lião, conheceu Policarpo, bispo de Esmima, e que
Policarpo, como afirma lrineu, lembrava muitas vezes suas antigas rela-
ções "com João e com os outros que viram o Senhor" (Carta de lrineu a
Florinus).
Uma outra tradição, que se apóia em expressões pouco claras, registradas
pela pena de Papias (bispo de Hierápolis, anterior a lrineu, e que conhece-
mos somente pelo que nos relata o historiador eclesiástico Eusébio), fala
ora de João o apóstolo, ora de João o presbítero (= ancião). Por isso, certos
críticos atribuíram o quarto evangelho a João, o ancião, que seria diferente
do filho de Zebedeu.
Desde o fim do século 11, a autenticidade joanina do quarto evangelho
foi posta em dúvida. É verdade que foi por causa de lutas doutrinárias,
portanto, por motivos cientificamente problemáticos.
Mas surgem dificuldades reais quando, após esses testemunhos "exter-
nos" dos escritores antigos, que não nos proporcionam indicações seguras,
interrogamos nosso evangelho (sem dúvida, o título "Evangelho segundo
João" lhe foi dado muito tempo após a redação e não faz parte do original)
sobre a questão se seu autor é o apóstolo João, filho de Zebedeu. Essa
identificação jamais foi feita explicitamente e, sem ser excluída absoluta-
mente, nem mesmo foi sugerida pelo texto. O evangelista pretende apenas
ser uma testemunha ocular, se é que se pode dizer isso quanto ao emprego
da primeira pessoa do plural em 1.14 e, sobretudo, a "assinatura" de 19.35:
"Aquele que isto viu testificou, sendo verdadeiro o seu testemunho; e ele
sabe que diz a verdade, para que também vós creiais" (cf. também 20.30-
31 e 21.24-25). Ademais, o evangelho menciona duas vezes (1.35-40 e
18.15) a presença de um discípulo anônimo, que bem poderia ser o autor.
Por fim e sobretudo, é falado, repetidas vezes, de um discípulo "que Jesus
amava" (13.23; 18.26; 20.2; 21.7; 21.20). Este discípulo "amado" é apre-
sentado como uma testemunha ocular e permanece anônimo: seria ele o
autor?
Dois críticos modernos, A. Loisy e M. Goguel, pensaram que esse discí-
pulo amado não era um personagem histórico, mas uma figura ideal, a do
discípulo perfeito. Esta tese é contrária ao relato da história e da teologia
no evangelho joanino (v. págs. 31 e 34s). Além disso, difundiu-se (de acor-
do com 21.22-23) uma tradição segundo a qual o discípulo amado não
morreria; no momento em que este capo 21 é escrito, o erro dessa tradição
é reconhecido (cf. o versículo 23), sem dúvida em conseqüência da
constatação de que o discípulo amado já estava morto, o que combinaria
mal com uma figura ideal. Enfim, a confrontação entre o discípulo amado
e o apóstolo Pedro, que por sua vez não poderia ser uma figura ideal, toma
essa tese insustentável.
O capo 21 não parece ser do mesmo autor que os capítulos 1 a 20 (20.30-
31 é evidentemente uma conclusão), mas de um discípulo do evangelista,
ou melhor, de um grupo de discípulos (em 21.24 encontramos a primeira
pessoa do plural). Os capítulos 1 a 20 teriam sido, portanto, escritos no fim
da vida de seu autor, que seria o discípulo amado. O capítulo 21 teria sido
acrescentado em seguida, em parte para explicar sua morte, por um discí-
pulo que teria feito retoques também no corpo do evangelho.
Mas pode-se identificar o discípulo amado com um personagem conhe-
cido do evangelho? O capítulo 21.2 distingue claramente o anônimo dos
filhos de Zebedeu. Poder-se-ia ser tentado a propor uma hipótese bastante
sedutora, se bem que não seria escorada por argumentos indiscutíveis: o
discípulo amado seria Lázaro, o ressuscitado. Eis os pontos que se pode
apresentar em favor desta hipótese: 1) O quarto evangelho é o único que
fala de Lázaro e coloca este personagem bem próximo de Jesus, ao mesmo
tempo é o único que fala de um discípulo amado, que, embora sendo ínti-
mo de Jesus, não faz parte necessariamente do grupo dos 12 apóstolos; 2)
Lázaro é o único personagem do qual também se diz que Jesus o amava
(cf. 11.3,5,35); 3) Quando o capítulo 21 nos participa o boato de que o
discípulo amado não morreria, porventura não se poderia pensar em Lázaro,
o qual Jesus ressuscitara dentre os mortos?
Mas temos que reconhecer que essa identificação permanece inteira-
mente hipotética e nos resignar por não conhecer com certeza o nome do
discípulo amado. Entretanto, podemos dizer dele o seguinte:
1) Pertence a um ambiente teológico diferente daquele dos outros
evangelistas, talvez ao dos helenistas da Palestina ou da Síria (veja acima
págs. 33s.).
2) Não faz, necessariamente, parte do grupo dos doze, que como tal não
tem importância neste evangelho, quando este menciona outros discípulos
íntimos de Jesus;
3) Não parece pertencer ao mesmo meio social que os outros discípulos
de Jesus (era conhecido do sumo sacerdote, cf. 18.15-16);
4) É talvez procedente de Jerusalém (historicamente, ele é bem infor-
mado sobre as tradições jerosolimitas).

6 - Os Atos dos Apóstolos

6.1 - Título e conteúdo

o conteúdo do livro não corresponde a seu título, porque não se trata de


todos os apóstolos, mas somente de Pedro (João não é mais do que um
figurante) e de Paulo. Por outro lado, não são os "atos" desses apóstolos
que achamos neste livro, mas antes a história da difusão do Evangelho, de
Jerusalém até Roma, pela ação do Espírito Santo.
Tanto em sua intenção quanto em sua forma literária, este escrito não é
diferente dos evangelhos. Ainda é um euaggélion. Ademais, o Evangelho
segundo Lucas e os Atos dos Apóstolos (como já vimos no estudo do Evan-
gelho segundo Lucas) formavam apenas dois volumes de uma mesma obra.
Talvez esta tenha sido dividida somente mais tarde, pela inserção do quar-
to evangelho (Menoud).
O intuito deste segundo volume é mostrar a ação poderosa do Espírito
Santo na primeira comunidade cristã e, por ela, no mundo em redor. Este
objetivo determina a escolha dos materiais históricos: o autor deixou fora
o que era contrário à sua tese ou aquilo que do seu ponto de vista não o
interessava.

~7
Assim temos de explicar o fim abrupto da "história" de Pedro ("E, sain-
do, retirou-se para outro lugar" - 12.1724) e o da "história" de Paulo (28.30-
31). Daí também vêm lacunas e deformações, Os discursos de Pedro, de
Estêvão e de Paulo, mesmo conservando as idéias mestras de cada um
desses personagens, refletem a teologia particular do autor (Wilckens,
Haenchen). Muitos fatos contados pelo livro dos Atos se encontram tam-
bém nas cartas de Paulo, às vezes com divergências de narração, que fa-
zem pensar que o autor dos Atos não conhecia as cartas pau1inas. Assim,
quando se comparam Atos 15.1-29 e a Epístola aos Gálatas 2.1-10, que,
muito provavelmente, relatam o mesmo evento, a "conferência" de Jeru-
salém, quer dizer a reunião dos apóstolos, vindos a Jerusalém para con-
frontar suas experiências e seus problemas missionários, percebem-se ní-
tidas divergências: segundo Gálatas 2, a "conferência" apostólica decide
que, doravante, a missão entre os gentios e a missão entre os judeus sejam
separadas (2.7-9), enquanto, segundo Atos 15, o resultado da "conferen-
cia" é um decreto que impõe aos cristãos provenientes do paganismo a
submissão a certas prescrições da lei judaica (15.23-29).
O livro dos Atos, por seus relatos de conversões (9.1-20; 16.13-15; 16.24-
34) e de curas (3.1-11; 9.33-35; 14.8-10), seus quadros coloridos da vida
da Igreja primitiva (2.42 ss; 4.32ss; 5.11), os discursos teológicos postos
na boca de Pedro (2.14-36; 3.12-26; 11.5-17), de Estêvão (7.2-53) e de
Paulo (13.16-41; 17.22-31; 22.1-21), constitui, ao mesmo tempo, uma apo-
logia do cristianismo.

6.2 - O autor, a data e as fontes

Vimos que o autor é o mesmo que o do Evangelho segundo Lucas. Ele


se refere, de fato, a um primeiro volume dedicado ao mesmo Teófilo. O
vocabulário, a linguagem, o estilo e as idéias teológicas são as mesmas.
Como para o evangelho (Lc 1.10), o autor serviu-se de fontes cujos vestí-
gios descobrem-se facilmente, sobretudo para a primeira parte que descre-
ve a vida da comunidade primitiva.
Entre os documentos que lhe puderam servir de fontes para a segunda
parte, os exegetas pensaram que havia um "diário", um jornal de viagem,
transcrito como tal em diversas passagens. De fato, no capo 16, o relato
passa bruscamente da terceira pessoa do plural - "Desceram a Trôade. À
noite, sobreveio uma visão a Paulo ... " (16.8-9) - para a primeira pessoa

24 A reaparição no capo 15 é somente passageira.

J8
do plural - "Após esta visão de Paulo, imediatamente (nós) procuramos
partir para a Macedônia ... (16.10)25; o texto contém, a seguir, longos tre-
chos em "nós", o que se explicaria muito bem se o autor retomasse, nesta
passagem de seu relato, as anotações do jornal de viagem de um compa-
nheiro de apostolado de Paulo.
A questão que surge, então, é saber se o autor de todo o livro e o dos
trechos em "nós" são idênticos ou se o primeiro recopiou certas passagens
do jornal do segundo. A Antigüidade fornece exemplos de textos nos quais
a primeira e a terceira pessoas alternam. Podemos, portanto, supor que o
autor se tenha servido, para a segunda parte, do diário de um grupo de
companheiros de Paulo, e notadamente nas passagens em "nós" de seu
próprio diário (Trocmé).
Admitamos, pois, que o autor dos Atos é Lucas, companheiro de Paulo e
autor do terceiro evangelho. Sendo o livro dos Atos a continuação do Evan-
gelho de Lucas e datando este do ano 80, aproximadamente, o livro dos
Atos dos Apóstolos pode ter sido redigido entre 80 e 90.

25 Segundoo Codex Bezae,o texto dosAtospassa à primeirapessoado plural desdeo capo lI,
versiculo28.
Capítulo 2

o Corpus paulino
Cronologia paulina

A questão da data de cada uma das epístolas paulinas é mais fácil de resol-
ver do que para a maior parte dos documentos da Antigüidade.Assim sendo,
em nosso estudo do Corpus paulino (quer dizer, da coleção canônica das
cartas tradicionalmente atribuídas ao apóstolo Paulo), seguiremos a ordem
cronológica e não a do cânon, que dispõe as cartas segundo sua extensão.
É preciso distinguir entre uma cronologia relativa e a cronologia absolu-
ta: a cronologia relativa da vida de Paulo pode ser estabelecida de acordo
com os dados da Epístola aos Gálatas, completada por aqueles dos Atos
dos Apóstolos. Obtém-se assim o seguinte esquema aproximativo:
a) Entre a conversão de Paulo, no caminho de Damasco, e a sua primeira
visita aos apóstolos em Jerusalém passaram três anos;
b) A primeira viagem missionária de Paulo, seguida de uma segunda
visita a Jerusalém, durou 13 a 14 anos;
c) A segunda e terceira viagens missionárias de Paulo, seguidas de sua
prisão em Jerusalém, representam um período de seis anos e meio;
d) Paulo fica na prisão em Cesaréia durante dois anos;
e) O prisioneiro é levado a Roma, e a viagem dura um ano;
f) Paulo é prisioneiro em Roma durante dois anos.
Basta, pois, um só ponto fixo dentro dessa cronologia relativa para obter
a cronologia absoluta. É a cronologia geral da Antigüidade que nos deve
fornecer este ponto de referência.
Outrora, indicava-se como data de referência na história de Paulo o
momento em que o procurador, perante o qual Paulo se devia defender,
Antônio Félix, foi chamado a Roma e substituído em seu cargo por Pórcio
Festo. Esta sucessão é mencionada em Atos 24.27, onde o apóstolo Paulo,
então prisioneiro em Cesaréia, vai comparecer perante esse Pórcio Festo.
Ora, três documentos, uma passagem dos Anais de Tácito, um texto de
Josefo e um outro de Eusébio, nos dão a conhecer a duração das funções
de Félix e de Festo. Infelizmente, esses textos não são nem claros nem
unânimes, se bem que se possa concluir deles que Festo substituiu Félix
no ano 60 ou no ano 56 ou 59.
Hoje, temos um ponto de referência mais seguro. Em Atos 18.12-17, a
propósito da estada de Paulo em Corinto, fala-se no procônsul Gálio. Ora,

40
a data do proconsulado de Gálio em Acaia nos é conhecida por uma inscri-
ção achada em Delfos e que foi publicada por Bourget. Essa inscrição
reproduz uma carta do imperador Cláudio aos habitantes de Delfos e nos
informa, incidentalmente, que Gálio era procônsul de Acaia por ocasião
da 268 aclamação do imperador, isto é, em 51 ou 52.
Ora, segundo Atos 18.11, Paulo permanece um ano e seis meses em
Corinto, na época do proconsulado de Gálio, depois parte dali para Éfeso,
depois para Jerusalém, etc.: Festo, portanto, teria substituído Félix em 57
e Paulo ter-se-ia convertido em 32.
Se, desse modo, conseguirmos relacionar as epístolas paulinas aos even-
tos da vida de Paulo, será possível para nós datá-las. Por esta via ficamos
sabendo que a primeira Carta aos Tessalonicenses foi escrita no ano 50;
dos escritos cristãos que possuímos esta é a primeira em data.

1 - As primeiras epístolas

1.1 - A primeira Carta aos Tessalonicenses

Tessalônica foi fundada por volta de 300 a.C. por Cassandro da Mace-
dônia, em homenagem à sua mulher Tessalônica. Esta cidade (que mais
tarde se chamou Salônica) era um importante centro de encontro entre o
Oriente e o Ocidente. Na época em que foi redigida esta epístola, era o
lugar de residência do procônsul romano. Segundo o historiador Estrabão,
era uma cidade muito populosa, e inscrições nos informam que nela havia
muitos judeus.
No percurso de sua segunda viagem missionária, Paulo chega a
Tessalônica, acompanhado de Silas e de Timóteo (Atos 17.1-15). Pregam
na sinagoga da cidade e ali convertem alguns judeus e, sobretudo, gentios
ligados ao judaísmo, sem, porém, se terem submetido a suas leis rituais;
mas estas conversões despertam a inveja dos outros judeus, que provocam
um motim, de maneira que Paulo e Silas são obrigados a fugir da cidade
em plena noite e refugiar-se em Beréia.
Esses dados históricos do livro de Atos são confirmados pela primeira
Carta aos Tessalonicenses. Por ela temos conhecimento de que Paulo en-
viou de Atenas (3.1) seu discípulo Timóteo para se informar sobre a comu-
nidade de Tessalônica (3.2-5) e que Timóteo comunica a Paulo, juntamen-
te com boas novas (3.6), uma série de questões doutrinárias que se põem
aos membros desta igreja, a propósito da escatologia. Entrementes, Paulo
dirigira-se, provavelmente, a Corinto. Após sua partida, efetivamente, sur-

41
giram discussões sobre a sorte dos cristãos que morrem antes do retorno
de Cristo (4. 13ss.) e sobre a data deste retorno (5.lss.). Paulo vai respon-
der a essas questões, e o ensinamento que dispensa sobre esse assunto,
baseando-se numa palavra de Jesus, constitui o interesse teológico central
desta carta: aqueles que ainda estarão vivos no momento da vinda final de
Cristo não terão vantagem sobre aqueles que já estarão mortos, porque
estes últimos ressuscitarão quando ressoar a última trombeta.
Vimos que esta epístola foi escrita muito provavelmente em 50. Sua
autenticidade foi contestada no século XIX pelos exegetas hegelianos da
Escola Teológica de Tubinga. Segundo eles, o versículo 16 do capítulo 2 -
"A ira, porém, sobreveio contra eles (os judeus), definitivamente" - faria
alusão à destruição de Jerusalém em 70. Essa epístola seria, portanto, es-
crita após a morte de Paulo. Mas há um argumento positivo em favor da
autenticidade: o fato de se discutir em Tessalônica problemas escatológicos
que pressupõem a espera de um fim iminente indica uma situação corres-
pondente aos tempos mais primitivos da Igreja. Os primeiros cristãos, de
fato, inclusive o próprio Paulo (ao menos no início de seu ministério apos-
tólico), esperavam a volta de Cristo para a geração deles.
Um outro indício depõe em favor da autenticidade paulina desta epísto-
la: os chefes da Igreja de Tessalônica são designados pelo termo de
proistámenoi, "dirigentes" ("os que presidem" - 5.12), termo que desapa-
recerá bem rapidamente, para dar lugar a epíscopoi, "supervisores". Esta-
mos, portanto, aqui em uma etapa primitiva do desenvolvimento da orga-
nização das comunidades cristãs.

1.2 - A segunda Carta aos Tessalonicenses

A segunda Carta aos Tessalonicenses contém menos alusões diretas à


situação histórica do que a primeira.
Onde está o apóstolo quando redige esta segunda carta? Não podemos dedu-
zi-lo, nem dela mesmo nem do livro dos Atos. No entanto, a situação não deve
ser muito diferente daquela que havia durante a redação da primeira epístola.
Timóteo e Silas ainda estão junto a Paulo (1.1), e a Igreja de Tessalônica ainda
continua debatendo a escatologia(2.1ss.). Supõe-se,pois, que Paulotenha escri-
to esta segunda epístola pouco após a primeira, que ele ainda se encontrasseem
Corinto (cf. Atos 18) e que tivesse recebido novas notícias dos tessalonicenses
entre as duas cartas. Estaríamos,pois, ainda no mesmo ano de 50.
A autenticidade paulina desta segunda epístola é contestada por muitos
críticos, mesmo por alguns dos que admitem que a primeira seja autêntica.

42
As alusões históricas não seriam mais do que ficções literárias. Eis os dois
principais argumentos desses críticos:
a) a conteúdo teológico das duas epístolas é contraditório. De acordo
com a primeira, o fim aparecerá subitamente; de acordo com a segunda,
somente depois de um certo número de eventos;
b) Na segunda epístola acham-se repetições da primeira: por exemplo, 2
Tessalonicenses 2.13-17 reproduz mais ou menos I Tessalonicenses 3.7-13.
Constrói-se, portanto, a seguinte hipótese: um cristão teria desaprovado,
após a morte de Paulo, I Tessalonicenses e teria tentado substituí-la por
uma outra epístola de sua própria mão (2 Tessalonicenses), recopiando
mais ou menos literalmente certas passagens de I Tessalonicenses para
enganar o leitor.
a que se deve responder a esses argumentos?
a) A idéia central de cada uma das epístolas e, em particular, suas opini-
ões sobre o fim não são contraditórias, mas complementares. a
apocalipsismo judaico reúne-as igualmente.
b) Quanto às repetições, pode-se explicá-las mesmo admitindo a iden-
tidade do autor: Paulo tem muito a escrever e se repete; ou ainda, vendo
que sua primeira carta deu lugar a mal-entendidos, escreve uma segun-
da, retomando as mesmas idéias em outros termos, para corrigir esses
mal-entendidos.
Naquele tempo, ainda não existia a propriedade literária. No caso de
nossa epístola, não se deveria atribuir ao autor, não sendo Paulo, uma in-
tenção cínica de enganar seus leitores? De fato, é dito em 2.2: Irmãos, nós
vos exortamos "a que não vos demovais da vossa mente, com facilidade,
nem vos perturbeis ... por alguma epístola como se procedesse de nós" e
em 3.17: "A saudação é de próprio punho: Paulo. Este é o sinal em cada
epístola, assim é que eu assino". Se, como nós pensamos, estes versículos
são de Paulo, eles provam duas coisas: que, primeiro, Paulo usava habitu-
almente um secretário (Silvano ou Timóteo de 1.1?), e que existiam, já
durante a vida do apóstolo, cartas que lhe eram atribuídas falsamente.
Já na sua primeira epístola, Paulo advertira contra a "inspiração" do
Santo Espírito, sem controle. Havia, sem dúvida, muitos iluminados em
Tessalônica, e este iluminismo estava relacionado àquela expectativa fe-
bril da vinda de Cristo. a apóstolo escrevera que é necessário manter-se
preparado para esse evento, mas também queria desviar os tessalonicenses
de fazerem cálculos sobre a data de retomo de Cristo, já que este viria de
surpresa como um "ladrão de noite". Ele foi mal compreendido, porque os
destinatários criam que a volta de Cristo era iminente, que não restava
nada mais senão parar todo o trabalho e esperar ansiosamente. Paulo cor-

4~
rige em sua segunda carta: acontecimentos precursores anunciarão o gran-
de dia (2.3); há notadamente um elemento (uma pessoa) que ainda "retar-
da" o fim (2.6-7); é necessário ficar calmo e continuar a trabalhar (3.6-12).
E para mostrar que não se contradiz, o apóstolo lembra que o que ele
escreve agora está de acordo àquilo que ensinava de viva voz quando esta-
va em Tessalônica (2.5) e está conforme àquilo que escreveu em sua pri-
meira carta (2.15), da qual retoma, aliás, muitas idéias (2 Ts 2.13-17 para-
lelo a 1 Ts 3.7-13).

2 - As grandes epístolas

A autenticidade paulina das quatro epístolas para as quais vamos passar


agora jamais foi contestada, afora algumas exceções. Obras-mestras do
pensamento do apóstolo Paulo, apresentam um alto interesse doutrinaI.

2.1 - A Carta aos Gálatas

Esta epístola desempenhou, por seu lado dogmático", um papel especi-


al nos períodos de combate da história da Igreja, por exemplo, durante a
Reforma do século XVI.
O tema principal, que trata das relações entre a lei e a graça, entre as
obras e a fé no ato redentor de Jesus Cristo, reencontrar-se-á, mais larga e
metodicamente desenvolvido, na Carta aos Romanos, que estudaremos
mais adiante. Aqui, em Gálatas, o pensamento paulino ainda se acha em
sua fase de elaboração. Além disso, o motivo desta epístola é diferente.
Ela deve sua origem a um ataque dirigido contra a própria pessoa de Pau-
lo, contra seu ensinamento e sua autoridade de apóstolo, da parte dos cris-
tãos judaicos, agarrados à Lei e que não compreenderam a novidade do
Evangelho (cf. 1.6 a 3.1). Paulo insiste no fato de que ele recebeu o Evan-
gelho diretamente por uma revelação da parte de Cristo, e, sem o intermé-
dio de uma transmissão humana, o apostolado, função única, excluindo
qualquer transmissão de pessoa a pessoa.
Tentemos definir a situação histórica e a data da Carta aos Gálatas.
Quem são os gálatas? A questão é menos simples do que poderia pare-

26 Paulo nos dá aqui, mas com um objetivo teológico, informações sobre sua vida que nos são
preciosas; cf. 1.13 a 2.14.

44
cer, porque duas regiões da Ásia Menor, uma ao norte e outra ao sul,
tinham o nome de Galácia.
A Galácia do Norte, quer dizer a região de Pessino e de Ancira (hoje
Ancara), entre o Ponto, a Bitínia e a Licaônia, era habitada por uma popu-
lação céltica (daí a palavra "gálatas"), que lá se estabelecera em princípios
do século III a.C. Em 50 a.C., Amintas, último rei dos gálatas, une a seu
território a Licaônia e a Pisídia, duas regiões meridionais. Com a morte de
Amyntas em 25 a.C., todo o território passa aos romanos, que fizeram do
mesmo uma só província administrada por um mesmo legado. Esta pro-
víncia romana, que se estendia de norte a sul, levava um título muito lon-
go, que citava todas as regiões que englobava. Este título foi, por comodi-
dade, abreviado para "Galácia", como o atestam Tácito, Ptolomeu e Plínio.
A linguagem popular, no entanto, parece ter reservado o uso da palavra
"Galácia" à região setentrional.
Ora, Paulo circulou na Galácia do Sul (região da Pisídia, Icônio, Listra e
Derbe) durante a sua primeira viagem missionária. Segundo At 13.14ss,
ali fundou igrejas que visitou, em seguida, por ocasião de sua segunda
viagem (At 16.1). Mas, durante esta segunda viagem missionária, também
foi à Galácia do Norte e lá igualmente fundou igrejas, visitadas por ele
novamente no decorrer de sua terceira viagem (At 18.23).
A quais dessas igrejas se dirige Paulo: àquelas do norte ou àquelas do
sul? Da resposta a esta questão depende a datação de nossa epístola. É
improvável que Paulo tenha chamado de "gálatas" os habitantes das cida-
des helenizadas da Galácia do Sul (cf. 3.1: "6 gálatas insensatos!"). Uma
terceira solução seria aceitar, evidentemente, que Paulo escreve a todas as
igrejas da província da Galácia, do norte ao sul; mas os ataques precisos e
diretos que ele lança aos "gálatas" não poderiam valer para todas essas
igrejas, tão diferentes umas das outras. Ele escreve, portanto, antes a um
pequeno grupo local de igrejas.
Por outro lado, quando o livro dos Atos fala de uma "região da Galácia"
(16.6 e 18.23), faz isso sempre em associação com a Frígia, região seten-
trional, e para marcar uma etapa em um percurso apostólico rumo ao nor-
te. Concluímos, pois, que esta epístola é endereçada aos cristãos de ori-
gem céltica da Galácia do Norte, a região de Pessino e de Ancira.
Qual é sua data de redação? Em 4.13, Paulo lembra que, quando veio
"pela primeira vez" aos gálatas, estivera enfermo, portanto esteve lá já
duas vezes. Se se trata da Galácia do Norte, as duas visitas não são
aquelas de At 13.14 e 16.1 (Galácia do Sul), mas aquelas de 16.6 e
18.23. Esta epístola foi, pois, redigida após a segunda dessas passa-
gens de Paulo pela Galácia do Norte, quer dizer, na sua terceira viagem

45
missionária, por conseguinte, mais cedo, cerca de 52-53. E, provavel-
mente, ele a redigiu em Éfeso.

2.2 - A primeira Carta aos Coríntios

A pergunta pelos destinatários desta epístola não é difícil de responder,


porque conhecemos muito bem a cidade e a igreja de Corinto.
Corinto, a opulenta cidade grega de dois portos, destruída em 146 a.c.
por Mummius e reconstruída sob Júlio César e Augusto, era um centro
comercial cosmopolita. Todos os cultos e todas as filosofias da época esta-
vam representadas ali. Também era uma cidade onde, freqüentemente, acon-
teciam desordens de toda espécie e que tinha uma reputação de libertina-
gem e devassidão, de modo que a expressão "viver à maneira coríntia"
passara para a linguagem corrente como expressão de uma vida dissoluta.
A igreja de Corinto, composta, sobretudo, de cristãos provenientes do
paganismo e procedentes de meios sociais modestos, foi fundada por Pau-
lo. Encontramos o relato dessa fundação em At 18.1-18; ocorreu no ano de
51, época do procônsul Gálio, do qual já falamos. Paulo anuncia o Evan-
gelho na sinagoga, e os judeus lhe fazem oposição. Ele se volta, então,
para os gentios, mas a oposição judaica toma-se violenta no dia em que
Crispo, o chefe da sinagoga, se converte ao cristianismo com toda a sua
família. Quanto ao procônsul Gálio, ele recusa imiscuir-se nessa querela
judaica. Após um ano e meio, Paulo deixa Corinto.
O Novo Testamento contém duas epístolas aos Coríntios. Ora, Paulo en-
viou quatro cartas a esta igreja, das quais duas estão perdidas até hoje. Pode-
mos situar uma antes da nossa "primeira Carta aos Coríntios", graças a uma
indicação nesta epístola. Paulo faz alusão a isso em 5.9: "Já em carta vos
escrevi...". A outra situa-se entre as duas epístolas canônicas (aquela da qual
fala 2 Co 2.4). Nossa "primeira Carta aos Coríntios" é, pois, na verdade, a
segunda dessas quatro, e nossa "segunda Carta aos Coríntios" é a última.
Os dados históricos do livro dos Atos são confirmados por nossa primei-
ra Carta aos Coríntios. Segundo Atos, a igreja de Corinto é composta de
uma maioria de gentílico-cristãos e de uma minoria de judaico-cristãos;
de fato, lemos em 1 Co 12.2: "quando éreis gentios ..." e em 7.18: "Foi
alguém chamado estando circunciso? Não desfaça a circuncisão".
A igreja compreende numerosos escravos (cf. 7.21: "Foste chamado sendo
escravo? Não te preocupes com isso"), mas poucos intelectuais e ricos:
"Irmãos, reparai na vossa vocação: visto que não foram chamados muitos
poderosos, nem muitos de nobre nascimento..." (1.26).

46
A epístola, no entanto, leva em conta uma certa diversidade e até divi-
sões no seio da comunidade. Segundo 1.12, havia quatro "partidos" que se
pretendiam respectivamente de Paulo, de Apolo, de Pedro e de Cristo.
O "partido de Paulo" era composto talvez dos primeiros cristãos dessa
igreja, convertidos por Paulo em 51. O "partido de Apolo" resultou, sem
dúvida, da atividade doutrinária de Apolo, um judeu letrado de Alexandria,
membro da seita de João Batista antes de ser cristão; ele viera a Corinto
(At 19.1) e é descrito como um bom pregador, forte em conhecimentos
bíblicos (cf. At 18.24-28). Teria sido sobretudo um partido de uma mino-
ria de intelectuais. Certamente o apóstolo tem esses intelectuais em vista
quando, nos primeiros capítulos, dá um ensinamento particularmente pro-
fundo sobre a diferença entre a sabedoria humana e a sabedoria de Deus,
esta última acessível ao ser humano somente pela fé e pela intermediação
do Espírito Santo.
Compreendia o "partido de Pedro" os judaico-cristãos vindos da Pales-
tina e batizados lá pelo apóstolo? Ou teria o próprio Pedro passado por
Corinto?
Quanto ao estranho "partido de Cristo", este dá muito trabalho aos
exegetas. Porventura trata-se de um grupo de sectários, que reivindica para
si o monopólio do nome de Cristo? É estranha a aparição desse nome na
vizinhança e em comparação com Paulo, Pedro e Apolo. Várias hipóteses
foram levantadas, das quais nenhuma é convincente; citaremos apenas duas,
das quais uma é mais engenhosa, enquanto a outra é mais provável. Suge-
riu-se não ler Christos em 1.12, mas Crispas. Um copista teria feito confu-
são por causa da semelhança gráfica das palavras gregas escritas em letras
maiúsculas. Nesse caso se trataria do "partido" formado em tomo de Cris-
po, o chefe da sinagoga de Corinto, convertido por Paulo segundo At 18.8
e do qual nossa epístola fala ainda, logo a seguir, após ter citado os quatro
"partidos" em 1.14: "... a nenhum de vós batizei exceto Crispo e Gaio".
Outros creram ver na expressão "e eu de Cristo" (1.12) uma observação
pessoal de Paulo ou a exclamação entre parênteses de um dos primeiros
copistas da epístola. Este, indignado devido às divisões coríntias, teria
insistido em acrescentar, à margem, sua confissão de fé pessoal: "quanto a
mim, eu sou de Cristo!". O copista seguinte teria introduzido essa anota-
ção marginal no texto, de acordo com o que mencionamos sobre a origem
de certas variantes de detalhes entre os manuscritos", Em defesa desta
hipótese poder-se-ia recorrer à continuação da epístola, onde se fala de
novo dessas divisões internas (3.3-7 e 3.21-23): ali esse quarto partido não

27 Cf. supra pág. 9.

47
é mais mencionado (nem mesmo o de Pedro em 3.4), e Paulo conc1ama os
coríntios a se juntarem em Cristo.
O apóstolo escreve esta carta para tentar restabelecer a unidade na
igreja de Corinto, da qual recebeu más notícias (I.I 1). Ao lado deste
importante assunto de unidade, que é tratado nos capítulos 1 a 4, encon-
tramos nesta epístola uma instrução sobre a questão sexual nos capítulos
5 e 6; sobre o casamento no capítulo 7; sobre a liberdade cristã e o res-
peito devido aos "fracos na fé" no capítulo 8; sobre os direitos do minis-
tro do Evangelho de viver de sua pregação no capítulo 9; sobre o culto e
a Eucaristia nos capítulos 10 e 1 }28; sobre os dons mais ou menos ex-
traordinários do Espírito Santo, em particular o fenômeno de "falar em
línguas", nos capítulos 12 a 14. A resposta a todas essas questões práti-
cas é submetida ao princípio do amor, que é o objeto especial do capítu-
lo 13. O capítulo 15, talvez o mais importante, trata da ressurreição,
primeiramente de Cristo, citando um dos credos mais antigos, que enu-
mera todas as aparições do Ressuscitado. A seguir, fala nesse contexto
da ressurreição dos cristãos, não a ressurreição da carne, mas do corpo,
transformado em "corpo espiritual" (1 Co 15.44).
Esta epístola é, portanto, uma das mais preciosas, tanto pela doutrina da
igreja como pelo conhecimento da vida concreta nas comunidades funda-
das por Paulo. O apóstolo escreveu esta epístola em Éfeso (16.8), no mo-
mento em que se preparava para deixar essa cidade, sem dúvida pouco
tempo depois da Páscoa (5.7-8), pois ele partiria em Pentecostes (16.8). É
a primavera do ano de 55.

2.3 - A segunda Carta aos Coríntios

O estilo da segunda Carta aos Coríntios trai a emoção do autor, o que


toma a tradução um tanto dificil. É a carta mais pessoal do apóstolo: Pau-
lo, atacado, vê-se obrigado a fazer nela sua própria defesa ou, antes, a do
seu apostolado.
Acontecimentos precisos sucederam no tempo que separa a primeira da
segunda epístola. Alguns indícios nos permitem reconstituir esses eventos,
em parte desconhecidos. Paulo interrompeu sua longa estada em Éfeso
para ir visitar os coríntios e se prepara para fazer-lhes uma nova visita (o

28 O capo II contém um relato da instituição da Santa Ceia que, apesar das divergências, tem a
mesma origem que os relatos paralelos dos evangelhos sinóticos, a saber: a tradição oral da
comunidade primitiva.
fato é claro quando se comparam 2.1; 12.14 e 13.1-2). Durante sua última
estada, ele fora insultado pessoal e gravemente por um membro da comu-
nidade (cf. 2.5-11; 7.12). De volta a Éfeso, ele dirige uma carta aos coríntios,
exigindo que o ofensor seja punido. Esta carta é mencionada em 2.3-4;
2.9; 7.8 e 12. Chamam-na habitualmente de "epístola de lágrimas", por-
que o próprio apóstolo diz: "Porque no meio de muitos sofrimentos e an-
gústias de coração vos escrevi, com muitas lágrimas" (2.4). Esta epístola
não pode ser nossa "primeira Carta aos Coríntios", que não corresponde à
definição de uma "epístola de lágrimas". Trata-se, portanto, de uma carta
perdida", a terceira das quatro escritas por Paulo aos Coríntios. Talvez
Tito, um discípulo de Paulo, tenha sido seu portador. Em todo caso, o
apóstolo enviou Tito a Corinto, e este acalmou os espíritos, restabeleceu a
unidade e trouxe boas novas a Paulo (7.6-16); este então retoma a pena.
Onde se encontra o apóstolo nesse momento? Ele deixou Éfeso e esteve
em Trôade, onde preparará mais tarde sua última viagem a Jerusalém.
Percorre a região da Macedônia, "fortalecendo os discípulos com muitas
exortações" (At 20.2). Ele organiza para a comunidade em Jerusalém uma
coleta que lhe interessa vivamente, porque é um sinal da unidade da Igre-
ja; dedica dois capítulos inteiros (8 e 9) para expor o fundamento teológi-
co dessa coleta. É nessa região da Macedônia (cf 1.16 e 7.15) que foi
redigida a segunda Carta aos Coríntios, no final do ano 55.
Os detalhes biográficos que ela proporciona contribuem para nos dar a
conhecer a vida e a personalidade do apóstolo. Ele mesmo nos fala das
tribulações que sofreu em Éfeso (11.23-27), de suas visões e de sua enfer-
midade (12.1-10), da maneira como encara seu ministério e a natureza de
sua autoridade (6.1-10 e 10.1-11).

2.4 - A Carta aos Romanos

A Carta aos Romanos assemelha-se muito mais a um tratado teológico do


que a uma carta. Ela desempenhou, no decurso da história da Igreja, um
papel especialmente importante, a ponto de ser fiadora de uma fé cristã
autêntica. Serviu de arma para Santo Agostinho na luta contra Pelágio; os
reformadores Lutero e Calvino fizeram dela um baluarte da verdade; e, em
nossos dias, o retumbante comentário do teólogo suíço Karl Barth sobre esta
epístola permitiu ao pensamento teológico tomar um novo impulso.

29 Pretendeu-se reencontrá-Ia nos capítulos 10-13 de nossa segundaCartaaos Coríntíos, que


teria sído acrescentada posteriormente. É dífícílprovaressa hípótese.

49
Paulo escreve aqui a uma igreja da qual não é o fundador (cf. 15.20;
1.13). Ele tem agora a intenção de ir ao Ocidente (15.23). Seu pensamento
aprimorou-se com a polêmica e as experiências que teve em toda parte por
onde passara até então.
Acredita ele que o Ocidente tem os mesmos problemas como o Oriente?
De fato, antes mesmo de conhecer a igreja de Roma, ele lhe expõe sua
teologia. É que Paulo tenta fazer de Roma a base inicial da evangelização
no Ocidente e já tem em vista a evangelização da Espanha (15.23-33).
Paulo encontra-se em Corinto; lá desfruta da calma necessária para le-
var a bom termo uma exposição doutrinaI. Não mantém relações diretas
com os cristãos de Roma e, ainda que considere a situação e os problemas
concretos daquela comunidade, sobre os quais foi informado, ele ultra-
passa o horizonte da igreja local e tem em vista todos os cristãos.
Os documentos da época permitem-nos compreender o estado e a situa-
ção dessa igreja. Não descreveremos Roma no tempo de Paulo; porque as
obras são abundantes sobre este assunto. Notemos, somente, que a colônia
judaica de Roma era muito numerosa, sobretudo depois que Pompeu, em
61 a.C., trouxera para lá numerosos escravos judeus, libertados mais tarde
(veja-se a notícia de At 6.9, que assinala a existência de seus descendentes
em Jerusalém). No seio dessa colônia nasceu e desenvolveu-se a fé cristã.
É fácil adivinhar como essa igreja em Roma nasceu. Trata-se, sem dúvi-
da, de uma expansão natural, porque todos os caminhos conduziam a Roma,
capital do Império. Os judeus da Palestina afluíam para lá com o objetivo
de reencontrar seus correligionários. Pode-se admitir, portanto, que uma
parte dos judeus atingidos pela nova fé quando ainda estavam na Palesti-
na" tenham trazido o Evangelho para os judeus romanos. Por isso não é
necessário fazer intervir a missão de um apóstolo.
Mas a tradição associa a origem da cristandade romana ao apóstolo Pedro.
Na realidade, nenhuma declaração do Novo Testamento sugere que Pedro
seja seu fundador". Outra questão é saber se ele se dirigiu para lá mais
tarde, no fim de sua vida, quando já existia a comunidade cristã. Segundo
a primeira Carta de Clemente Romano, um escrito cristão de 96, pode-se
supor que Pedro tenha morrido como mártir em Roma durante a persegui-
ção desfechada por Nero. Entretanto, apesar de toda a prudência que re-
quer o emprego dos argumentos e si/entio, é preciso reconhecer que a
ausência, na Carta aos Romanos, de toda e qualquer alusão a Pedro seria

30 Ou também judeus romanos que haviam retomado de uma peregrinação a Jerusalém (cf. At
2.5-10).
31 Em todo caso não At 12.17: "E saindo (Pedro), retirou-se para outro lugar".

50
de estranhar, caso este, no momento da redação desta carta, estivesse esta-
belecido no seio da igreja da capital. O historiador romano Suetônio infor-
ma-nos indiretamente que, já sob o imperador Cláudio, havia cristãos em
Roma. Em 49, um decreto deste imperador ordenava a expulsão dos ju-
deus da capital do Império. Este decreto visava pôr fim aos tumultos que
surgiram, naquele momento, em decorrência da atuação de um certo
"Chrestus" (Suetônio, Vit. Claud., 25). É provável que a expansão da fé
cristã entre os judeus tenha dado origem a esses tumultos (vimos que em
quase toda parte no Oriente esse desenvolvimento não se passou sem cho-
ques) e que o "Chrestus" em questão não seja nenhum outro senão "Chris-
tus", a saber, Jesus Cristo. Os gentios confundiriam ainda por muito tempo
os judeus e os cristãos.
Em conseqüência do decreto de Cláudio, também os judaico-cristãos tive-
ram que deixar Roma", ficando na comunidade somente os gentílico-cris-
tãos, não atingidos pelo decreto de expulsão. Após a morte de Cláudio em
54, os judeus puderam retomar a Roma e com eles os judaico-cristãos. A
readaptação destes últimos em uma comunidade que, na ausência deles, se
tomara gentilico-cristã provocou uma certa desavença e até atritos, aos quais,
talvez, façam alusão discretamente os capítulos 14 e 15.1-13 de nossa Carta
aos Romanos. Esta é a razão pela qual o apóstolo se esforça para colocar em
evidência o papel de Israel na história da salvação.
Com grande exatidão podemos fixar a data de redação desta epístola.
Segundo 15.25, Paulo se prepara para levar a Jerusalém o resultado da
coleta feita como sinal de unidade entre os cristãos da Macedônia e Acaia
em favor dos pobres da Igreja-Mãe de Jerusalém. Uma confrontação com
o livro dos Atos permite datar o fato. Há uma ampla concordância particu-
larmente entre nossa epístola e Atos 19.21: "Paulo resolveu no seu espírito
ir a Jerusalém, atravessando a Macedônia e Acaia, considerando: Depois
de haver estado ali, importa-me ver também Roma". Portanto, a Carta aos
Romanos foi escrita antes da Páscoa do ano 56, durante os três meses que
Paulo esteve, pela última vez, em Corinto.
A autenticidade paulina dessa epístola jamais foi contestada. Só o capí-
tulo 16, composto de saudações, apresenta o problema de saber se esta
epístola era realmente destinada aos romanos. De fato, como o apóstolo,
que jamais fora a Roma, poderia conhecer tanta gente residente lá? Epêneto,
"primícias da Ásia", encontra-se realmente em Roma (l6.5)? Áqüila e
Priscila tinham uma casa em Éfeso, se crermos no que está escrito em 1

32 Cf. a anotação do livro dos Atos 18.1-3.

51
Co 16.19: "Vos saúdam Áqüila e Priscila e, bem assim, a igreja que está na
casa deles". (Recordemos que a primeira Carta aos Corintios foi escrita
em Éfeso). Ora, segundo Rm 16.4-5, eles devem ser saudados juntamente
com a comunidade reunida "em sua casa".
Por isso propôs-se ver neste capítulo 16 uma epístola a Éfeso. Mas será
que uma epístola pode conter exclusivamente saudações? O exame dos
manuscritos antigos sugere uma outra explicação. Os papiros Chester Beatty
(chamados "p46"), que datam do século Ill, situam a doxologia final de
16.25-27 após 15.33. Parecem, pois, atestar a existência de exemplares
que não continham o capítulo 16. Além disso, as duas palavras "em Roma"
(1.7; 15), que lemos na maioria dos manuscritos antigos, faltam em outros
manuscritos. Certamente os capítulos 1-15 da epístola foram enviados a
Roma; mas o hábito, aconselhado pelo próprio Paul0 33, de fazer circular
suas cartas entre as igrejas permite pensar que o apóstolo queria que sua
epístola também fosse lida pelos cristãos de Éfeso; neste caso, ele teria
juntado à sua carta o bilhete de saudação que forma o capítulo 16.
Isso explicaria que o endereço "a Roma" está suprimido na "edição
efesina" da epístola. Essa explicação impõe-se tanto mais quanto se pode
fazer uma observação análoga a propósito da Carta aos Efésios (que estu-
daremos mais tarde), onde, no endereço, faltam as palavras "a Éfeso" (cf.
1.1) nos melhores manuscritos.
O conteúdo teológico é demasiado rico para ser resumido. Seu tema é
formulado em 1.16-17: "O Evangelho é o poder de Deus, para a salvação
de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a
justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé".
A Carta aos Romanos segue um plano sistemático, que tentamos esbo-
çar aqui, a fim de facilitar a leitura desta obra-prima de Paulo. Após uma
introdução epistolar (1.1-17), encontramos:
1 - Uma primeira parte, de natureza dogmática, que se estende até a
doxologia de 11.36 e pode ser subdividida da seguinte forma:
A - 1.18-8.39: a justificação pela fé:
a) 1.18-3.20: aspecto negativo: fora da fé, tanto os judeus como os gen-
tios estão sob o domínio da ira de Deus;
b) 3.21-8.39: aspecto positivo: prova da Escritura pela fé de Abraão (cap.
4), a humanidade entre Adão e Jesus Cristo (cap. 5), o Batismo que nos faz
participar da morte e da ressurreição de Cristo (cap. 6), o papel da Lei que
manifesta o pecado e produz um conflito no ser humano (cap. 7), a liberta-
ção pelo Espírito Santo (cap. 8).

33 Veja nas páginas seguintes onde se fala da Carta aos Colossenses.

~2
B - 9.1-11.36: a história da salvação, judeus e gentios.
2 - A segunda parte, de cunho ético, trata da santificação e vai de 12.1 a
15.13. O capítulo 13 aborda o problema da atitude para com o Estado e o
capítulo 14, o das relações entre os fortes e os fracos na fé.
Uma conclusão dupla, enfim, é trazida pelo capítulo 15, que contém
planos de viagem e termina com uma bênção, e pelo capítulo 16 do qual
falamos, que encerra somente uma série de saudações, terminando com
uma bênção seguida de uma doxologia.

3 - As epístolas do cativeiro

As epístolas que seguem têm em comum entre si que foram escritas na


prisão (Filipenses 1.7 e 13-14; Filemom, versículos 1 e 9; Efésios 3.1 e
4.1; Colossenses 4.3, 10 e 18); daí a designação deste grupo. Já que o
apóstolo Paulo esteve várias vezes no cativeiro, a questão será determinar
de qual cativeiro se trata em cada caso.

3.1 - A Carta aos Filipenses

A cidade na qual o apóstolo se encontra no momento em que escreve


esta carta, como prisioneiro (1.7 e 1.13-14), é, segundo a hipótese clássi-
ca, Roma. Lá ele está detido numa residência sob a guarda de um soldado
romano (At 28.16).
Certas passagens foram invocadas em favor dessa hipótese. Em 1.13
menciona-se o "pretório". Esta palavra pode designar um edifício (o palá-
cio imperial ou a caserna da guarda pretoriana) ou o conjunto de pessoas
(os soldados dessa guarda, sendo este o caso em 1.13: "e de todos os de-
mais"). Aplica-se, portanto, a Roma, mas não exclusivamente. Em todo
caso, a residência dos governadores das províncias romanas mais distantes
da capital também leva esse nome. Assim, o governador romano de Cesa-
réia habitava um pretório, construído por Herodes (At 23.35), e Pôncio
Pilatos residia, durante suas estadas em Jerusalém, também em um pretório
(veja Mt 27.27).
Em 4.22 lemos: "Todos os santos (= cristãos) vos saúdam, especialmen-
te os da casa de César". Acaso é este um argumento convincente para
situar esse cativeiro de Paulo em Roma? Não, porque inscrições nos mos-
tram que a expressão "os da casa de César" não designa somente os mem-
bros da família ou da corte imperiais, mas os escravos, os libertados, os
militares e os funcionários a serviço do imperador. Havia dessa gente em
todas as grandes cidades do Império. É por isso que a hipótese "romana"
foi, muitas vezes, colocada em dúvida. Afirmou-se que Roma era afastada
demais de Filipos para que se pudesse, em relativamente pouco tempo,
circular entre as duas cidades, como as informações de nossa carta nos
obrigariam a supor. Este argumento não é absolutamente sólido. Preten-
dia-se situar a redação da epístola em Cesaréia, onde o apóstolo igualmen-
te esteve preso. Hoje em dia, pensa-se antes em Éfeso, entretanto é apenas
uma conjetura, porque não sabemos nada a respeito de um cativeiro de
Paulo em Éfeso.
A descrição da comunidade na qual Paulo se encontra no momento da
redação desta carta fecha com o que sabemos da igreja de Roma. Aquilo
que deduzimos da Carta aos Romanos sobre a composição desta comuni-
dade e sobre certos atritos entre judaico-cristãos e gentílico-cristãos deve
ser confrontado com Fp 1.12-17; além disso, esta passagem deve ser com-
parada também com a "primeira Carta de Clemente aos Coríntios".
Esse documento do cristianismo primitivo, redigido em tomo de 96 por
um dos dirigentes da Igreja de Roma, adverte os coríntios contra a discór-
dia que então ameaçava sua unidade. O autor conta como, em Roma, 30
anos antes, a "inveja" e o "espírito de querela" fizeram Paulo e Pedro
sofrer. Ele dedica até três capítulos a essa questão para mostrar que sem-
.pre, já na antiga aliança, a inveja provocou desgraças e mesmo a morte.
Eis o que escreve a respeito de Paulo: "Por causa da inveja e da discórdia,
Paulo pôde mostrar o prêmio de sua tenacidade: depois de ter estado sete
vezes a ferros, depois de ter sido banido, apedrejado, de se ter tomado
arauto no Oriente e no Ocidente, conseguiu a insigne vitória merecida
pela sua fé: depois de ter ensinado a justiça a todo o mundo e ter ido até o
extremo Ocidente, deu o seu testemunho pelo martírio, perante os
governantes. Desprendeu-se, deste modo, do mundo e foi para a santa
morada, exemplo grandioso de tenacidade,'?'
As duas palavras gregas phthonos (inveja) e éris (porfia), das quais se
serve Clemente Romano, reencontram-se em nossa Carta aos Filipenses
1.15: "Alguns, efetivamente, proclamam a Crísto por inveja e porfia". Re-
almente parece ter sido a situação da comunidade romana que o apóstolo
descreve no início de sua epístola (1.12-18).
Observemos também que, segundo 1.23, o apóstolo admite em princípio
que possa morrer antes da volta de Cristo; compreende-se isso melhor

34 Clemente Romano, Carta aos Coríntios, ao cuidado de Igino Giordani, Lisboa: Paulistas, s.
d., p. l3ls.

54
perto do fim de sua vida, portanto durante seu cativeiro romano. Neste
caso, a Carta aos Filipenses deve ter sido escrita no ano 59 ou 60.
Conhecemos nós seus destinatários? Filipos, cidade da Macedônia, foi a
primeira cidade da Europa onde Paulo fundou uma comunidade cristã. O
livro dos Atos nos conta todos os pormenores dessa fundação, que ocorreu
durante sua segunda viagem missionária (At 16.8-40). Esta comunidade é
particularmente cara ao coração do apóstolo, que lhe dirige um grande elo-
gio em nossa epístola: "Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de
vós, fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as mi-
nhas orações, pela vossa cooperação no evangelho, desde o primeiro dia até
agora" (1.3-5). Essa é também a razão por que, contra seus princípios, ele
aceitou que essa comunidade lhe fizesse dádivas pessoais (4.10-20).
Sob o ponto de vista teológico, é preciso mencionar a passagem particu-
larmente notável no capítulo 2 (v. 6-11) que oferece um resumo magnífico
da doutrina sobre a pessoa de Jesus Cristo, "que, subsistindo em forma de
Deus ... a si mesmo se esvaziou". Esta passagem ritmada, na qual se des-
cobriu a influência do aramaico (Lohmeyer), interrompe um pouco o fio
da epístola e emprega um vocabulário diferente. É bem possível que este-
jamos aqui diante de um dos primeiros hinos litúrgicos através dos quais a
comunidade cristã primitiva cantava sua fé em Cristo.
O convite "Alegrai-vos sempre no Senhor" (4.4) caracteriza muito bem
essa epístola ao mesmo tempo íntima e profunda.

3.2 - A Carta a Filemom

Esta epístola tem apenas um capítulo de 25 versículos. É uma carta in-


teiramente pessoal, que Paulo endereça a um certo Filemom, homem rico
a quem seu escravo deixou para juntar-se ao apóstolo. Paulo intervém com
delicadeza e tato em favor desse escravo, que não somente fugiu, mas
ainda furtou a seu patrão. Esse escravo se chama Onésimo, nome que sig-
nifica "útil"; por isso Paulo, ao devolver Onésimo a seu patrão, faz um
jogo de palavras: "Onésimo, que antes te foi inútil, atualmente, porém, é
útil a ti e a mim!" (v. 11). Onésimo se tornou cristão, e Paulo desejaria
muito tê-lo junto a si, mas não quer fazer nada sem a permissão de Filemom.
Ele o exorta a perdoar Onésimo pela fuga e pelo furto e a encará-lo não
mais como seu escravo, mas como um irmão na fé. Aliás, o apóstolo se
compromete a indenizar Filemom pelo prejuízo.
Esta breve carta não é sem interesse espiritual, porque vemos aqui como
a ética social se modifica sob a influência da fé cristã.

55
o pano de fundo teológico é o mesmo que o que da Carta aos Colossenses,
que vamos abordar logo mais e na qual é exposta uma doutrina dos deve-
res dos escravos para com seus senhores. Existe, aliás, uma relação estrei-
ta entre esses dois escritos: é mencionado o mesmo co-autor: Timóteo
(Filemom I e Colossenses 1.1), são saudados os mesmos personagens
(Filemom 24 e Colossenses 4.10-13), e Onésimo é o portador das duas
cartas (Filemom 12 e Colossenses 4.7-9).
Paulo é prisioneiro (v. 1,9 e 19), mas espera ser libertado (v. 22). Trata-
se de que cativeiro? Provavelmente do último, que o apóstolo sofreu em
Roma, no fim de sua vida. Paulo diz de si mesmo que é um velho (v. 9).
Por isso essa pequena epístola deve ter sido escrita por volta do ano 59.

3.3 - A Carta aos Colossenses

Esta epístola tem uma grande importância teológica devido a suas expo-
sições sobre a obra cósmica de Cristo. Põe em evidência a relação entre a
história da salvação em Cristo e a criação inteira. Quando alarga assim o
horizonte cristão a todo o universo, aborda um problema de grande atuali-
dade tanto na Antigüidade como em nossos dias; e o trata sem trair a es-
sência do Evangelho em proveito de uma filosofia.
Ela foi escrita ao mesmo tempo que a Epístola a Filemom, ou seja por
volta do ano 59. Paulo está na prisão (4.3,10,18) em Roma, provavelmente.
Colossos, hoje em ruínas, era uma pequena cidade situada na Frígia
ocidental, às margens do Licos, muito próxima de duas cidades importan-
tes: Hierápolis e Laodicéia (4.13). A comunidade de Colossos não foi fun-
dada por Paulo, mas por um certo Epafras, "fiel ministro de Cristo" (1.7).
Este, sem dúvida, também fundou a comunidade vizinha de Laodicéia (cf.
2.1 e 4.12), e o apóstolo recomenda às duas comunidades que troquem
suas respectivas cartas: "E, uma vez lida esta epístola perante vós,
providenciai que seja também lida na igreja dos laodicenses; e a dos de
Laodicéia lede-a igualmente perante vós" (4.16)35. Isto nos explica a ma-
neira como se constituíram as coleções parciais de epístolas paulinas.
No momento em que o apóstolo escreve esta carta, Epafras está a seu
lado (4.12). Este trouxe ao apóstolo boas novas da comunidade de Colossos,
onde reinam a fé e o amor (l.4; 2.5). Ali surgiu, no entanto, uma heresia,

" Paulo teria, portanto, escrito uma carta aos laodicenses, que hoje estaria perdida, a menos
que - o que é muito possível- não se tratasse da epístola canônica que chamamos de Carta
aos Efésios (veja este problema mais tarde).

56
que queria mesclar com o Evangelho especulações filosóficas de colora-
ção gnóstica. Paulo lhes opõe em sua carta uma doutrina cristológica das
mais nítidas: "Em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da Divin-
dade ('plenitude' da qual falam os heréticos), e nele sois plenos" (2.9-10).
Esta heresia é propagada por judaico-cristãos, e o apóstolo acentua a supe-
rioridade da "circuncisão espiritual" sobre a circuncisão carnal do judaís-
mo (2.11); enfim, esses heréticos querem introduzir práticas ascéticas que
Paulo recusa, apesar de sua aparência de sabedoria, como contrárias à
liberdade cristã (2.16-23), para expor, em seguida, qual deve ser a discipli-
na da vida cristã (3.1 até 4.6).
O apóstolo não é conhecido nem dos colossenses nem dos laodicenses
(2.1), e nenhum ataque foi dirigido contra sua doutrina; por que, então,
escreve a essas duas comunidades? Provavelmente foi o próprio Epafras,
que, impotente diante do crescimento dessa heresia, solicitou sua inter-
venção. Paulo quer encorajar aquela jovem igreja a permanecer firme na
fé (2.6-7) e a lembra da incompatibilidade absoluta do Evangelho com as
idéias filosóficas que alguns queriam misturar a este.
A Carta aos Colossenses é considerada inautêntica por muitos críticos
pelas seguintes quatro razões príncipais:
1) Ela combate uma doutrina gnóstica; ora, o gnosticismo'" teria surgido
somente no século lI, o que fixaria o surgimento dessa epístola no século
lI;
2) A doutrina sobre a pessoa do Cristo exposta nessa epístola vai muito
mais longe do que a cristologia desenvolvida em todas as outras cartas
paulinas. Particularmente a participação do Cristo na criação do mundo
seria uma idéia em desacordo com o resto da cristologia paulina;
3) O vocabulário e o estilo seriam muito diferentes daqueles das outras
epístolas;
4) A presente epístola apresenta um parentesco curioso com a Carta aos
Efésios, parentesco que poderia sugerir sua dependência em relação a esta.
O que se deve pensar sobre estes argumentos?
1) É errado afirmar que o gnosticismo tenha aparecido somente no sécu-
lo Il, Já há formas preliminares em certas correntes do judaísmo. O

36 O gnosticismo, movimento teológico "intelectualista", é fundado sobrea gnose ou conheci-


mento(emgrego: gnosis). Originalmente foi umasimplestendênciaintelectual que colocava
em primeiroplano da fé cristãespeculações metafisicas. Depoiso gnosticismo se fixou em
sistemas gnósticos nosquaisseintroduziram elementosestranhos à teologiacristã.Masparece
hoje queé necessário fazerremontara origemdo gnosticismo paraalém do cristianismo.

57
gnosticismo não atacou o cristianismo, pela primeira vez, na confrontação
direta do pensamento cristão com o pensamento grego, mas já no desvio
do judaísmo helenizado;
2) A preexistência de Cristo não é uma idéia particular desta carta;
achamo-la expressa na Carta aos Filipenses (2.9-11). A mediação de Cris-
to na criação do mundo aparece mesmo em 1 Co 8.6, passagem cuja au-
tenticidade paulina jamais foi contestada;
3) Se Paulo quer combater eficazmente os gnósticos, ele deve lutar no
próprio terreno deles e empregar termos gnósticos para virá-los contra
eles mesmos;
4) A questão do parentesco com a Carta aos Efésios não pode, em todo
caso, ser resolvida no sentido de uma dependência da Carta aos Colossenses
em relação àquela aos Efésios. As passagens paralelas parecem, de fato,
mais primitivas na Carta aos Colossenses.
Já que não se pode sustentar um argumento verdadeiramente decisivo
contra a autenticidade paulina desta epístola, consideramo-la, portanto,
como sendo da pena de Paulo.

3.4 - A Carta aos Efésios

A doutrina central da Carta aos Efésios é eclesiológica, quer dizer, ela


tem por tema a Igreja e as relações de Cristo com esta. A Igreja é para
Cristo o que o corpo é para a cabeça (1.23), o que a esposa é para o marido
(5.23-32). Como a Carta aos Colossenses o faz para a pessoa e a obra de
Cristo, assim a Carta aos Efésios coloca a doutrina sobre a Igreja dentro de
uma perspectiva cósmica.
Após a parte dogmática (caps. 1-3), onde, neste contexto, é reafirmada a
salvação pela graça oferecida a todas as pessoas, gentios e judeus, uma
parte ética (caps. 4-6) vem relembrar o que devem ser, na Igreja, a unidade
da fé e a santidade, a moral pessoal e social e a "armadura" espiritual do
crente (6.1 Oss.).
Porventura é a comunidade estabelecida em Éfeso, porto da Ásia Me-
nor, muito conhecido, a verdadeira destinatária desta epístola? Já mencio-
namos que os mais antigos escritos gregos do Novo Testamento não con-
têm as palavras "a Éfeso" no endereço da epístola (1.1). Além disso, o
apóstolo escreve a uma igreja que ele não conhece pessoalmente: "Tam-
bém eu, tendo ouvido falar da fé que há entre vós"... (1.15). Ora, a comu-
nidade dos efésios lhe é perfeitamente conhecida. Sua estada em Éfeso,
rica em acontecimentos, nos é contada em minúcias no livro dos Atos

58
(18.19 até 20.1), e Paulo mesmo faz alusão a ela em 1 Co 15.32 e 16.8
(esta epístola foi escrita, como vimos, de Éfeso). Por outro lado, Marcião,
aquele herético que, vindo da Ásia Menor, se instalou em Roma por volta
do ano 140 e que foi o primeiro a pôr um título nas epístolas paulinas,
intitula esta epístola de "Carta aos Laodicenses". Se temos toda razão para
desconfiar de Marcião no plano dogmático, nesse problema histórico não
temos motivos para ser céticos.
Pode-se adivinhar por que a indicação do endereço falta nos manuscritos
antigos, quando nos lembramos que, já durante a vida de Paulo e incentivada
por ele, houve uma troca de cartas entre as igrejas. Vimos que o problema do
capo 16 da Carta aos Romanos se explica dessa maneira. Assim se pode com-
preender que o nome do destinatário original tenha sido eliminado definitiva-
mente, porque a carta foi lida em diferentes comunidades. A afinidade que
existe entre nossa Carta aos Efésios e a Carta aos Colossenses explica-se se a
primeira foi endereçada, originalmente, aos laodicenses: as duas teriam sido
redigidas ao mesmo tempo, e a primeira troca de nossa carta, recomendada
pelo próprio apóstolo (cf. CI4.16), teria ocorrido com os cristãos de Colossos.
Nossa "Carta aos Efésios" seria, portanto, aquela carta escrita aos laodicenses,
segundo CI4.l6, e que, geralmente, era tida como perdida. Isso explicaria que
Tíquico, mencionado em CI 4.7 e Ef 6.21, tenha sido o portador das duas
cartas, visto que Colossos e Laodicéia eram duas cidades vizinhas. Podería-
mos até adivinhar por que, a seguir, teria sido omitido definitivamente o nome
de Laodicéia, em conseqüência de uma falsa conclusão tirada de uma passa-
gem do Apocalipse de João. Este contém, entre suas sete cartas às igrejas da
Ásia, uma carta à igreja da Laodicéia, e o Cristo ressuscitado lhe diz: "Estou a
ponto de vomitar-te da minha boca" (Ap 3.16).
Mas restaria explicar por que a menção "em Éfeso" ficou ligada à mai-
oria dos manuscritos. Um exemplar de nossa epístola teria chegado até
Éfeso. Vimos que, na leitura da carta às comunidades reunidas para o cul-
to, trocava-se no endereço o nome da cidade destinatária. A menção "em
Éfeso", juntada no exemplar que lá teria sido lido, ter-se-ia imposto nos
exemplares distribuídos em outro lugar, tanto mais que se sentia a necessi-
dade de ter uma carta levando o nome daquela igreja onde Paulo se deteve
por mais tempo do que em qualquer outro lugar.
Todavia, a autenticidade paulina da nossa epístola foi fortemente con-
testada.
A maioria dos críticos se pronuncia hoje contra ela. Apresentam-se os
seguintes motivos:
1) A afinidade demasiadamente grande com a Carta aos Colossenses
tomaria tal repetição pelo mesmo autor inconcebível. É preciso acrescen-

59
tar que, justamente nas passagens paralelas, a Carta aos Efésios emprega,
em diversos pontos, um outro vocabulário do que na Carta aos Colossenses;
2) De uma maneira geral, o vocabulário não é o mesmo aqui como nas
outras epístolas: por exemplo, em 4.27, o diabo é chamado diabolos em
vez do habitual Satanás;
3) As concepções teológicas são mais evoluídas: enquanto que Cl 1.26
fala de "santos", termo aplicado correntemente desde os primeiros tempos
a todos os cristãos, a passagem paralela de Ef 3.5 menciona "os santos
apóstolos e profetas" e dá à palavra o sentido que ela assumiu mais tarde;
4) A igreja organizada e provida de "ministérios", que esta epístola
pressupõe, ainda não existia no tempo de Paulo.
Sem negar o valor destes argumentos, pode-se responder:
1) Os problemas eram os mesmos nas duas igrejas vizinhas de Colossos
e Laodicéia, fundadas ambas por Epafras, e é normal que as duas cartas
expedidas por Paulo ao mesmo tempo para estas duas comunidades, ambas
desconhecidas dele, assemelhem-se muito. É verdade que isso não ex-
plica o emprego de termos diferentes para o mesmo assunto, precisa-
mente nas passagens paralelas;
2) e 3) Para explicar a mudança geral de vocabulário e de certas concep-
ções teológicas, poder-se-ia pensar na colaboração de co-autores ou secretá-
rios, a cujos serviços o apóstolo recorreu, como se depreende de outras epís-
tolas. O papel exato desses colaboradores deveria ser definido;
4) A igreja do tempo de Paulo não é anárquica nem puramente "carismática"
(quer dizer, guiada pelos "carismas" ou dons do Espírito Santo). Elajá co-
nhece um funcionamento organizado, com ministérios estabelecidos. Se ela
vive sob o sopro do Espírito, esta vida não é regulada pela inspiração do
momento. O apostolado, por exemplo, por mais "carismático" que seja, já é
um órgão de governo da igreja, cuja autoridade está bem estabelecida.
Enfim, podem-se citar dois argumentos em favor da autenticidade paulina:
1) O testemunho externo é excelente, já que a autenticidade é confir-
mada indiretamente e ao mesmo tempo por Inácio (bispo de Antioquia,
martirizado em 110), Policarpo (bispo de Esmirna por volta de 150) e o
herético Marcião (estabelecido em Roma em tomo de 140).
2) A despeito de novos desenvolvimentos eclesiológicos, o conteúdo
teológico pode enquadrar-se, no conjunto, na teologia paulina.
Chegamos à conclusão de que, se a epístola é de Paulo, ela provavel-
mente foi destinada à igreja da Laodicéia na mesma época em que foi
escrita a Carta aos Colossenses, quer dizer em 59 aproximadamente. A
parte pessoal do colaborador ou secretário do apóstolo na sua redação
parece, em todo caso, maior do que nas outras epístolas. E talvez ainda

60
seja necessário admitir que, no momento em que a epístola se-tomou defi-
nitivamente uma Carta aos Efésios, ela sofreu modificações posteriores.
O problema da autenticidade ou inautenticidade necessitaria, por um
lado, de estudos aprofundados sobre a pseudepigrafia (quer dizer, a atri-
buição de um escrito a um autor que não é seu redator) na Antigüidade e
particularmente no cristianismo antigo. Por outro lado, deveríamos conhe-
cer melhor o papel exato dos co-remetentes, colaboradores e secretários
do apóstolo. A questão se colocará, sobretudo, nas epístolas pastorais.
Seja o que for, o valor teológico de nossa epístola independe dessa
questão. A maneira como nela são definidas as relações entre Cristo e
sua Igreja faz dessa carta um elemento precioso no conjunto da mensa-
gem bíblica.

4 - As epístolas pastorais

São três as epístolas pastorais: primeira Carta a Timóteo, segunda Carta


a Timóteo, Carta a Tito. Recebem o nome de "pastorais" somente desde o
século XVIII. De fato, este título geral corresponde a seu conteúdo: são
escritos de disciplina eclesiástica, que se preocupam com a situação espi-
ritual e material da Igreja.
A autenticidade paulina dessas cartas, ao menos sob a forma em que
elas chegaram a nós, é muito incerta. Retomaremos a esse problema forte-
mente debatido. Essas três epístolas são tão aparentadas entre si, que po-
demos tratá-las em conjunto.
A situação histórica na qual elas foram redigidas é dificil de determinar.
Segundo a primeira Carta a Timóteo, Paulo foi a Éfeso, depois a Macedônia
(1.3). Conforme a segunda Carta a Timóteo, ele está preso no cárcere (1.8
e 1.16) em Roma. Ora, como sabemos das "epístolas do cativeiro" e do
livro dos Atos 28.30-31, Paulo estava detido, mas não encarcerado: ele
havia alugado uma casa em Roma, recebia lá todos aqueles que o visita-
vam, pregava e ensinava "com toda a intrepidez, sem impedimento al-
gum". De acordo com a segunda Carta a Timóteo, o apóstolo, pelo contrá-
rio, está algemado como um criminoso (2.9); por ocasião de seu primeiro
interrogatório, foi abandonado por todos (4.16), de sorte que não espera
nada de bom na continuação do processo e se prepara para uma condena-
ção à morte (4.6-8 e 18). Pouco tempo antes, ele se dirigira à Ásia Menor
e à Grécia; passara também por Mileto, onde deixara um dos seus discípu-
los, Trófimo, que estava doente (4.20), e por Trôade, onde esquecera sua
capa e os pergaminhos na casa de um amigo (4. 13). De lá ele passou por

61
Corinto (4.20), veio a Roma e pede a Timóteo para vir juntar-se novamen-
te a ele (4.9). Este parece estar em Éfeso, onde se expandiram heresias
(2.17-18): dois heréticos, Himeneu e Fileto, afirmam que a ressurreição já
aconteceu. (Ensinam eles que a alma é imortal ou que os "verdadeiros"
cristãos não morrem mais? - Não sabemos.) Já a primeira Carta a Timóteo
falava-nos de heresias que provocavam desordens na comunidade pela qual
Timóteo era responsável. Parece que esses heréticos são judaico-cristãos,
que sem razão ainda se sentiam presos à Lei judaica (l Tm 1.3-7).
Quanto à Carta a Tito, ela contém apenas poucas alusões a uma situação
histórica e, de qualquer maneira, esta não parece ser a mesma que nas duas
Cartas a Timóteo. O único ponto em comum é a menção de heréticos
judaico-cristãos, que também são simpatizantes do gnosticismo (Tt 1.10-
16; 3.9-11). Por outro lado, esta epístola indica que Paulo deixou Tito em
Creta (1.5). Portanto, também ele mesmo esteve lá. Ele tem a intenção de
passar o inverno em Nicópolis, cidade da Macedônia (3.12); por conse-
guinte, no momento em que escreve, estaria livre ou a ponto de ser liberta-
do em breve.
O que sabemos a respeito dos destinatários dessas epístolas? Timóteo é
freqüentemente mencionado nas epístolas paulinas e no livro dos Atos.
Natural de Listra, na Ásia Menor, é filho de uma judia e de um grego (At
16.1); ainda jovem, toma-se, após ter sido circuncidado por causa dos
judeus, o companheiro de Paulo na segunda viagem missionária; depois é
enviado pelo apóstolo a Atenas, a Tessalônica e a Corinto. Seu nome apa-
rece em seis cartas como o de um co-remetente, o que talvez signifique
que, longe de ser um simples secretário, ele era encarregado de redigir
certas passagens dessas epístolas. Segundo At 20.4, ele faz parte do grupo
daqueles que acompanham Paulo na sua última viagem a Roma. O fato é
confirmado pelas epístolas do cativeiro, pois o apóstolo escreve (Fp 2.19-
23) que Timóteo está a seu lado e que é o único a compartilhar suas difi-
culdades. As epístolas pastorais nos informam ainda que Timóteo foi in-
cumbido de uma missão particular na Ásia Menor.
Tito é um personagem desconhecido no livro dos Atos. Segundo as epís-
tolas pastorais, ele deveria ter exercido um papel muito mais importante
do que Timóteo. Conforme GI 2.1-3, Paulo leva Tito a Jerusalém com a
intenção de obter da Igreja-Mãe uma aprovação de sua missão junto aos
gentios. Tito é pagão e, portanto, incircunciso, e Paulo quer que seja reco-
nhecida pelos judaico-cristãos a liberdade de Tito e dos outros gentios de
se converterem ao cristianismo sem passar pelo judaísmo e pela circunci-
são. Este companheiro participou da segunda e da terceira viagens
missionárias de Paulo; enviado pelo apóstolo a Corinto, ele parte "com

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novo zelo e voluntariamente" (2 Co 8.16-17). Ele foi para o apóstolo não
somente um colaborador devotado, mas um amigo caro; Paulo mesmo
escreve: "Ora, quando cheguei a Trôade, para pregar o Evangelho de Cris-
to, e uma porta se me abriu no Senhor, não tive, contudo, tranqüilidade no
meu espírito, porque não encontrei o meu irmão Tito" (2 Co 2.12), e mais
adiante: " ... fomos atribulados ... Porém Deus, que conforta os abatidos,
nos consolou com a chegada de Tito" (2 Co 7.5-6).
A priori é dificil harmonizar esses dados biográficos sobre Timóteo e Tito
com as informações das epístolas pastorais e, sobretudo, integrar as circuns-
tâncias pressupostas por essas epístolas na cronologia da vida de Paulo. Só
há duas possibilidades: ou as epístolas pastorais são inautênticas, e então o
autor forjou o plano cronológico delas ao mesmo tempo que o conteúdo
doutrinal, ou elas são autênticas, e então deve ser possível inseri-las num
período da vida de Paulo. Se a gente aceita essa segunda possibilidade, a
escolha é restrita, e é preciso colocar as cartas em um período posterior a
todas as peripécias descritas pelo livro de Atos, quer dizer, posterior aos dois
anos de cativeiro de Paulo em Roma (At 28.30-31). Visto que o cativeiro
mencionado pela segunda Carta a Timóteo parece muito mais duro do que
aquele de At 28, poderíamos imaginar que Paulo, libertado após um primei-
ro processo, teria retomado sua atividade missionária.
Freqüentemente situa-se nesse período uma viagem à Espanha, planeja-
da há muito tempo pelo apóstolo (cf. Rm 15.24), e que é sugerida pela
"primeira Carta de Clemente", quando esta diz, falando de Paulo: "Após
ter atingido os confins do Ocidente ... ". A execução do plano é confirma-
da, mais tarde, pelo "cânon Muratoriano", primeiro catálogo dos livros do
Novo Testamento, estabelecido por volta de 180. A seguir, Paulo teria
retomado a Roma e sido feito prisioneiro novamente, mas dessa vez de
uma forma mais impiedosa. Ele teria sofrido um segundo processo, que
teria terminado na condenação à morte e no martírio. As epístolas pasto-
rais teriam sido escritas durante esse segundo cativeiro em Roma. Mas
persiste uma dificuldade: se uma viagem é pressuposta pelas epístolas pas-
torais, ela não aconteceu para a Espanha, mas para a Grécia, a Macedônia
e a Ásia Menor. Essa hipotética viagem à Espanha, portanto, não está
ligada às epístolas pastorais. É, por isso, muito dificil situar no âmbito da
vida de Paulo os eventos pressupostos por esses escritos.
Somente uma cronologia relativa das três epístolas entre si é possível,
mas nem isso leva muito longe. A seqüência de sua redação, na verdade,
não é a ordem de seqüência que encontramos no Novo Testamento. A
segunda Carta a Timóteo parece ser a última (cf. 4.7: "completei a carrei-
ra"), a Carta a Tito deve ser a primeira por causa dos planos de futuro que
contém. Teríamos, pois, a seguinte ordem: Carta a Tito, primeira Carta a
Timóteo, segunda Carta a Timóteo.
Resta saber se essas epístolas pastorais podem ser ou não atribuídas a
Paulo. Que informações podemos tirar da tradição antiga? A comprovação
através dos autores cristãos é tardia, portanto: má. Marcião não as conhe-
ce. Ora, este herético do século 11 havia organizado um catálogo dos livros
bíblicos, em que eliminava o Antigo Testamento e todos os livros do Novo
Testamento que tinham como autores judaico-cristãos, bem como todas as
passagens que, segundo ele, revelavam uma tendência judaizante. A partir
de sua doutrina ele não teria motivo doutrinaI algum para rejeitar as epís-
tolas pastorais, cujas idéias não tinham nada que pudesse chocá-lo parti-
cularmente. Conclui-se que ele não conhecia sua existência entre as epís-
tolas classificadas no "corpus" paulino. As semelhanças com as epístolas
de Inácio e a epístola de Policarpo encontram sua explicação na tradição
comum. Somente no final do século 11, encontramos a primeira comprova-
ção no cânon Muratoriano de que as epístolas pastorais faziam parte do
"corpus" paulino (veja pág. 90).
Vimos que os acontecimentos mencionados nessas três epístolas são di-
ficeis de acomodar no contexto da vida do apóstolo, se bem que isso não
seja absolutamente impossível. Por outro lado, esses escritos diferem, mais
do que outro qualquer, pelo estilo e pelo vocabulário do conjunto das car-
tas paulinas. Seus conceitos teológicos mostram um grau de evolução pos-
terior àquele das outras epístolas. A palavra grega pistis (fé) já designa
aqui a "regra de fé" (1 Tm 3.9; 6.10; 2 Tm 4.7), e freqüentemente se fala
em "sã doutrina" (1 Tm 1.10; 2 Tm 4.3; Tt 1.9; 2.1). É mais dificil do que
no caso de outras epístolas atribuir tais particularidades a um secretário.
Contra a autenticidade citou-se ainda o fato de que aqui é combatido o
gnosticismo. Mas, como já expusemos a propósito da Carta aos Colossenses,
o gnosticismo é muito anterior ao século 11. Este argumento, portanto, não
tem o mesmo peso como os outros.
Antes de tudo, chamou-se enfim a atenção para o fato de que as epísto-
las pastorais refletem uma organização eclesiástica na qual se encontram
todos os elementos do episcopado monárquico, tal como se desenvolveu
na Igreja durante os séculos seguintes. Esta organização é posterior ao
século I. Ela alcançou um grau de desenvolvimento que a primeira gera-
ção cristã não conheceu. A força desse argumento é, quando muito, atenu-
ada pela observação de que os escritos de Inácio da Antioquia (morto em
110) - nos quais a organização das igrejas aparece sob a forma, muito
acentuada e pressuposta como já sendo antiga, do episcopado monárquico
- foram redigidos somente 50 anos após as epístolas paulinas.

64
Por todas essas razões, aceita-se geralmente que, pelo fim do século I ou
no início do século li, um cristão admirador de Paulo, inspirado em suas
epístolas, teria tentado estabelecer para o seu tempo, atribuindo a Paulo as
recomendações dessas três epístolas, o que lhe teria parecido como o tes-
tamento espiritual do apóstolo para a Igreja do futuro. Esta solução, ape-
sar de inteiramente hipotética, atende melhor as dificuldades indicadas do
que a aceitação ilimitada da autenticidade. Será possível atribuir, dentro
dessa explicação, ao menos uma paternidade indireta dessas epístolas a
Paulo?
Como vimos, é mais difícil aqui do que na Carta aos Efésios atribuir a
autoria a um de seus secretários ou colaboradores, porque a própria época
de redação das epístolas pastorais parece posterior ao tempo de Paulo.
Mas, por outro lado, seria preciso repetir aqui o que já dissemos em nossa
conclusão sobre a Carta aos Efésios a propósito da pseudepigrafia. Pode-
se, acaso, considerar, em especial, as alusões muito concretas à capa e aos
pergaminhos esquecidos na casa de um amigo em Trôade (2 Tm 4.13)
como ficções literárias, mesmo levando em conta o antigo hábito da
pseudepigrafia? Não seria possível que o autor, que escreveu no fim do
século 1 ou no começo do século 11, tenha se servido de fragmentos de
cartas autênticas do apóstolo? Isso não pode ser descartado. Mas, nesse
caso, é difícil desprender os fragmentos paulinos do restante das epístolas,
de sorte que ainda assim não chegaremos a uma certeza.
Se no final observamos que nessa questão não conseguimos passar das
hipóteses, uma coisa é certa: mesmo que as ordens dadas às igrejas e a
seus líderes nas epístolas pastorais não sejam do tempo de Paulo, elas, não
obstante, podem valer como uma aplicação da doutrina paulina à situação
necessariamente modificada das igrejas no começo do século 11.

65
Capítulo 3

A Carta aos Hebreus

Neste escrito não temos nenhum problema de autenticidade. Esta epís-


tola não pretende, nem pelo título que lhe deu a tradição antiga, nem em
passagem alguma, ter sido escrita por Paulo, como fazem as "cartas pasto-
rais". Mesmo assim, este escrito anônimo foi considerado pela Igreja do
Oriente e depois pela Igreja do Ocidente como sendo de origem paulina, e
por esta razão entrou no cânon. Hoje, mesmo os exegetas católicos, apesar
de um decreto da Comissão Bíblica de 1914 (origem paulina "indireta"),
podem atribuí-lo a um outro autor.
Não se trata, propriamente dito, de uma epístola, mas antes de uma ex-
posição doutrinaI ou de uma prédica, cujo tema central é o sacerdócio de
Cristo. Diferentemente das epístolas paulinas, as exortações não apare-
cem somente no fim, à guisa de conclusões gerais, mas concluem cada
uma das partes dessa exposição.
Os assuntos desenvolvidos, sucessivamente, são os seguintes:
1) A superioridade Jesus Cristo, Filho de Deus, sobre os anjos (caps. 1 e
2), depois sobre Moisés (cap. 3).
2) A superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o do sumo sacerdote
judaico (caps. 5-7);
3) A superioridade do santuário celeste, no qual Cristo entrou em sua
ascensão, sobre o templo dos judeus (caps. 8 e 9);
4) A superioridade do sacrificio único do Cristo crucificado sobre os
sacrificios sempre renovados de animais no Antigo Testamento (cap. 10).
O capítulo 11 pinta um quadro magnífico da História Sagrada, exaltando a
fé que animou os ancestrais do povo judeu. O epílogo (cap. 13) dá à obra
um cunho epistolar e contém notícias, desejos e saudações.
O título "Carta aos Hebreus" aparece somente a partir da segunda metade
do século 11 em Panteno de Alexandria e Tertuliano. A análise do conteúdo da
epístola fez com que lhe fosse dado este título pela Igreja Antiga. À primeira
leitura, os destinatários parecem, de fato, ser judaico-cristãos. Acreditou-se
até que se deveria procurá-los nos círculos judaicos da seita que conhecemos
pelos manuscritos do Mar Morto (Spicq, Kosmola). Mesmo que tenham so-
frido tal influência, aqueles aos quais o autor se dirige são cristãos, ameaçados
de todos os lados. Internamente são ameaçados talvez pelo perigo de recair no
judaísmo, mas sobretudo pelo desfalecimento da fé e da fidelidade primitiva.
Exteriormente são ameaçados pelo ímpeto de uma nova perseguição.

66
Onde se encontram os destinatários? A expressão que lemos em 13.24:
"Os da Itália vos saúdam" é ambígua: ela pode referir-se a cristãos resi-
dentes na Itália que saúdam destinatários longínquos, ou a exilados da
Itália que saúdam seus irmãos que permaneceram em Roma durante a
perseguição. O fato de que o bispo de Roma, Clemente, é o primeiro que
faz em seus relatos uma citação da Carta aos Hebreus depõe antes em
favor da segunda hipótese.
Quanto à data, toda tentativa de precisá-Ia deve ser excluída. A perse-
guição sob Domiciano parece estar em plena fúria. Propomos as seguintes
datas-limites: antes do ano 96, data em que Clemente Romano cita a epís-
tola, e após o ano 64, data da primeira perseguição desencadeada por Nero,
pois os destinatários já foram perseguidos. A data média provável situar-
se-ia, portanto, entre 80 e 96, durante a perseguição sob Domiciano.
Quem poderia ser o autor? Ainda que as idéias paulinas lhe sejam fami-
liares, a terminologia e o estilo da carta proíbem atribuí-Ia a Paulo. Nume-
rosas propostas foram feitas. Tertuliano" era da opinião de que o autor era
Barnabé, o companheiro de Pa ulo segundo os capítulos 13-15 do livro dos
Atos. Lutero pensava em Apolo de Alexandria"; esta hipótese foi defendi-
da também em nossos dias por causa da grande semelhança existente entre
as idéias do autor da Carta aos Hebreus e as de Filo de Alexandria". Já que
é provável a influência das idéias de Filo sobre a Carta aos Hebreus, pen-
sou-se naturalmente em um autor que viesse de um ambiente semelhante,
mas não é necessário identificá-lo com um personagem conhecido em outro
lugar. Além disso, propôs-se ainda Áqüila" e até Priscila, Lucas, Clemen-
te Romano ou Silas" ... O debate continua aberto.
Podemos dizer, com segurança, apenas o seguinte: o autor é um cristão
estudado de origem judaica, que não somente domina melhor a língua
grega do que os outros autores do Novo Testamento, mas assimilou a fun-
do a cultura grega. Ele cita abundantemente o Antigo Testamento na sua
tradução grega (chamada Septuaginta), corrente entre os judeus dispersos
de fala grega. Sua piedade fica inteiramente centrada em Jesus Cristo.

31 O primeiro escritor de língua latina, nascido por volta de 160.


38 Apresentamos o personagem Apolo estudando a primeira Carta aos Corintios.
39 Nascido em Alexandria por volta de 20 a.C., morto por volta de 40 d.C., Filo, cuja obra

filosófico-teológica é considerável, representa a tentativa mais avançada que um judeu ja-


mais fez para pensar sua fé em categorias gregas.
40 Judeu natural de Ponto, exilado de Roma com sua esposa Priscila pelo decreto de Cláudio

em 49, Áqüila estabeleceu-se em Corinto, onde teceu tendas juntamente com o apóstolo
Paulo, que era da mesma profissão.
41 Companheiro de viagem de Paulo, segundo At 15.2.

67
Este é para ele uma pessoa viva, e jamais suas especulações cessam de ser
teológicas para tomar-se puramente filosóficas, como freqüentemente é o
caso em Filo de Alexandria. Ele acentua igualmente a divindade de Cristo:
"No princípio, Senhor, lançaste os fundamentos da terra, e os céus são
obras de tuas mãos ... tu permaneces o mesmo e teus anos jamais terão
fim" (1.10-12), assim como a sua humanidade: "Não temos sumo sacerdo-
te que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, antes foi ele tentado
em todas as cousas, à nossa semelhança" (4.15); ele gritou e chorou em
Getsêmani (5.7). Teologicamente, a Carta aos Hebreus parece pertencer
ao mesmo tipo de cristianismo primitivo como o Evangelho e as cartas
joaninas, das quais se aproxima muito. Nesse caso, o autor estaria próxi-
mo do ambiente dos helenistas palestinenses do livro dos Atos (dos quais
falamos antes). Juntamente com o Evangelho de João, é aquele dos 27
escritos do Novo Testamento que nos faz compreender melhor que Jesus
Cristo é o Senhor presente, que intercede por nós, o ponto culminante e a
chave de toda a Bíblia e que sua vida terrena é o acontecimento central e
determinante da história da salvação e da história do mundo: "Jesus Cristo
ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre" (13.8).

68
Capítulo 4

As epístolas católicas

Sete escritos são reunidos sob este título: a Carta de Tiago, a primeira e
a segunda Cartas de Pedro, a primeira, a segunda e a terceira Cartas de
João e a Carta de Judas. Essas sete cartas assemelham-se tão pouco, que
sua reunião em um grupo especial deve ser atribuída ao mero fato de que
não são de origem paulina. No Novo Testamento da Igreja grega, elas
precedem as cartas paulinas; no da Igreja latina, seguem aquelas.
A denominação de "cartas católicas" não aparece senão pouco antes do
século III; encontramos essa denominação aplicada a uma ou outra dessas
sete cartas em Orígenes" e em seu discípulo Dionísio"; por fim, ela desig-
na todo o grupo e impõe-se definitivamente no século IV com o historia-
dor da Igreja Eusébio de Cesaréia e com Jerônimo, o tradutor da Bíblia
para o latim.
O significado original desse nome não nos é mais conhecido: geralmente
se admite que ele expressa a definição "universal" dessas cartas ("católico"
remete à palavra grega katholikos, que quer dizer "universal"). De fato, esta
explicação deve valer para a Carta de Tiago: "Às doze tribos que se encon-
tram na dispersão, saudações" (1.1); para a primeira Carta de Pedro: "Aos
eleitos que são forasteiros e dispersados, no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia
e Bitínia" (I. I); para a segunda Carta de Pedro: "Aos que conosco obtiveram
fé igualmente preciosa na justiça do nosso Salvador Jesus Cristo" (1.1); para
a Carta de Judas: "Aos chamados, amados em Deus Pai, e guardados em
Jesus Cristo" (1.1) e para a primeira Carta de João, que não tem nem mesmo
endereço; ela não vale mais para a segunda Carta de João: "À senhora eleita
e aos seus filhos" (v. 1) nem para a terceira Carta de João: "Ao amado Gaio,
a quem eu amo na verdade" (v. 1). Pode-se, todavia, admitir que essas duas
últimas cartas, por sinal muito curtas, foram acrescentadas ao grupo como
simples apêndices, e talvez para chegar ao número sete".
Seja como for, mesmo que essa denominação "universais" não se apli-
que exatamente a todas essas epístolas, ela expressa, à sua maneira, uma

42 Filósofoe teólogo cristão de Alexandria,nascido por volta de 185.


43 Dionísiode Alexandria.
44 Como no livro do Apocalipse,são endereçadascartasa sete igrejas da Ásia: Ap 2.1 a 3.22,

comoduas vezesseteepístolaspaulinasforamadmitidasno cânone comoas igrejasàs quais


Pauloescreveu sãoemnúmerode sete.O númerosete,um dosmaisimportantes da aritmologia
bíblica, indicade fatoa plenitudeou totalidade.

69
idéia teológica, fundamental para a interpretação do Novo Testamento.
Todos os escritos do Novo Testamento, mesmo quando seus destinatários
são igrejas locais ou particulares, são dirigidos, na realidade, a todos os
crentes. Neste sentido, esses 27 livros são Escritura Sagrada e fonte de
vida para os crentes. As primeiras comunidades cristãs entenderam isso,
quando fizeram circular essas cartas entre elas, quaisquer que tenham sido
seus primeiros destinatários.

1 - A Carta de Tiago

Encontramo-nos aqui em um mundo literário e teológico completamen-


te diferente daquele das outras epístolas. A Carta de Tiago não é uma carta
verdadeira; aquele endereço às doze tribos judaicas na dispersão é mais do
que vago.
A questão que se levanta para nós, sobretudo com relação a este escrito,
é saber se originalmente era judaico ou cristão. O mais estranho nele é que
a obra redentora de Jesus Cristo é totalmente silenciada. Jesus Cristo é
mencionado apenas em dois versículos (1.1 e 2.1), e poder-se-ia suprimir
facilmente estas duas passagens, sem mudar nada no conteúdo do conjun-
to do texto, que, à primeira vista, parece moralizante, judaizante e sem
nenhuma influência cristã.
Certos críticos presumiram, portanto, que aqui estávamos diante de um
escrito judaico de ensinamento moral, redigido durante a primeira metade
do século I, no ambiente da sinagoga helenística", e adotado, a seguir, por
um cristão, que o teria cristianizado, inserindo nele duas vezes o nome de
Jesus Cristo (Massebieau e Spitta).
Para Arnold Meyer, que, em 1930, deu a essa hipótese uma forma mais
precisa, o "Tiago" de 1.1 (em grego Iakobos) não é Tiago, o irmão de
Jesus (cf. Mt 13.55; Mc 6.3;At 12.17; 15.13; 21.18; 1 Co 15.7; 011.19;
2.9; 2.12), como quer a tradição antiga, mas Jacó, o patriarca do Antigo
Testamento, que dirige exortações aos seus 12 filhos, representados aqui
pelas 12 tribos judaicas dispersas (veja o endereço). Cada filho teria di-
reito a uma exortação no contexto da etimologia de seu nome. Isso nos
parece ser um jogo de palavras curioso, mas era um gênero literário co-
nhecido no judaísmo. Efetivamente, encontramos no Antigo Testamento
uma bênção profética de Jacó sobre seus 12 filhos (Gn 49.1-28), que usa
esse procedimento, retomado, a seguir, pelo judaísmo nos "Testamentos

., Poder-se-ia até, por causa das semelhanças com certos escritos descobertos nas grutas de
Qumrã,descobrirnela influênciasdos essênios.

70
dos 12 Patriarcas" e, mais tarde, pelos Pais da Igreja nas obras dedicadas
à interpretação alegórica dos nomes próprios. Graças a esse procedimen-
to, A. Meyer acreditou poder descobrir através de comparações
etimológicas, sucessivamente, os nomes dos 12 patriarcas: Rubem,
Simeão, etc.
O cristão que adotou esse escrito judaico teria não somente acrescenta-
do o nome de Jesus Cristo, mas também, provavelmente, suprimido os
nomes dos 12 filhos de Jacó. A vantagem dessa explicação é que ela toma-
ria plausível o aspecto incoerente da epístola. Mas é preciso distinguir
dois elementos na hipótese de A. Meyer: o problema do gênero literário e
a questão do autor.
Mesmo que fosse certo que se trata de um gênero literário judaico, não
se poderia deduzir que o autor original tenha sido, ele mesmo, um judeu
não convertido ao cristianismo. Um cristão de origem judaica podia per-
feitamente escolher um gênero judaico para desenvolver suas idéias; é o
caso dos apocalipses cristãos.
Mesmo o paralelismo muito estreito entre as idéias morais contidas em
muitos tratados da ética e da sabedoria do judaísmo tardio, de um lado, e o
ensinamento da nossa epístola, de outro, não prova que o autor seja um
judeu não-convertido. Na realidade, é provavelmente judaico-cristão. O
fato de que ele não fala da salvação operada por Jesus Cristo não prova
nada. Se o caráter da Carta de Tiago é o da "parênese" (quer dizer, da
exortação e do ensinamento de uma sabedoria em estilo popular), uma
referência explícita à obra redentora de Jesus Cristo não é indispensável.
Basta comparar nossa epístola com as "parêneses" que terminam as epís-
tolas paulinas (por exemplo: Rm 12.1 a 15.13; G15.1 a 6.10, etc.), para ver
que, freqüentemente, essas exortações morais também não contêm alu-
sões à obra da salvação cumprida por Cristo. Quem afirmaria por isso que
essas "parêneses" paulinas (que também têm seus paralelos nos escritos
de Qumrã) foram escritas por um judeu não convertido a Cristo?
Para provar que o autor é cristão, costuma-se invocar a passagem polê-
mica que trata da fé e das obras: capo 2.14-26. De fato, nesse texto, um
cristão parece atacar a doutrina do apóstolo Paulo. Enquanto Paulo afir-
mava: "O ser humano é justificado pela fé, independentemente das obras
da lei" (Rm 3.28), Tiago escreve: "Qual é o proveito se alguém disser que
tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? ... Que-
res, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as obras é
inoperante? ... Verificais que uma pessoa é justificada por obras, e não por
fé somente" (2.14,20,24). É acima de tudo surpreendente que o mesmo
exemplo de Abraão, empregado por Paulo, seja retomado pela Carta de

71
Tiago com uma interpretação oposta. Em Paulo lemos (Rm 4.3; veja
também GI 3.6): "Pois, que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso
lhe foi imputado para a justiça". A Carta de Tiago parece dizer o contrá-
rio: "Não foi por obras que o nosso pai Abraão foi justificado, quando
ofereceu sobre o altar o próprio filho Isaque? Vês como a fé operava
juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se
consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Abraão creu em Deus, e
isso lhe foi imputado para justiça" (2.21 ss.). A polêmica é evidente. Mas
será que ela é dirigida contra Paulo mesmo?
Já os judeus especulavam abundantemente sobre Abraão, de modo que,
mesmo que o autor não fosse cristão, nossa epístola não replicaria neces-
sariamente a Paulo. Se, realmente, Paulo teria sido visado aqui, ele, em
todo caso, teria sido mal compreendido pelo autor. Isso é confirmado por
uma comparação pormenorizada entre Paulo e Tiago. O primeiro definiu
que, aos olhos de Cristo, somente a fé tinha valor para a nossa justifica-
ção, mas a fé "que atua pelo amor" (GI 5.6); ele também falou da
"operosidade da fé" (1 Ts 1.3) e determinou às obras, contanto que sejam
frutos da fé e do Espírito Santo, seu lugar na economia da salvação. A
doutrina paulina da justificação pela fé não nos dispensa da obrigação de
colocar a fé em prática. Portanto, nosso autor combate uma compreen-
são errônea da história de Abraão e talvez da doutrina paulina.
No estado atual da pesquisa, devemos renunciar a identificar o autor
da epístola. A tradição reconheceu, sem que possamos prová-lo, Tiago
como o irmão de Jesus. A data da epístola é de épocas posteriores. So-
mente por volta do ano de 200 achamo-Ia citada por Orígenes, que, aliás,
não parece estar convencido de que ela deva ser admitida entre os livros
reconhecidos. Ainda no século IV, Eusébio acrescenta-a aos livros con-
testados. Apenas podemos afirmar que os ensinamentos da epístola não
contrariam aquilo que sabemos de Tiago, que, segundo o livro dos Atos
e as epístolas paulinas, liderou um certo tempo a Igreja-mãe de Jerusa-
lém.
Já que o escrito não faz alusão alguma a eventos históricos e não pode
ser, com segurança, atribuído a um determinado autor, é também impos-
sível datar essa carta. Se se pensa em Paulo ou num Paulo mal-compre-
endido, o que não é certo, essa carta é posterior à difusão das epístolas
paulinas que tratam da fé e das obras, quer dizer pelos anos 60.
Contrariamente ao julgamento negativo de Lutero, que a chamava de
"epístola de palha", ela tem um valor teológico incontestável. Reencon-
tramos nela certos acentos do Sermão do Monte (Mt 5.1-7; Lc 6.20-49) e
sobretudo uma preocupação verdadeira pelos pobres. Por si só, ela não nos

72
daria uma idéia da mensagem cristã, mas ela tem seu lugar garantido ao
lado dos outros escritos do Novo Testamento.

2 - A primeira Carta de Pedro

Em conexão com grandes provações e a expectativa de um fim do mundo


iminente (4.7), a primeira Carta de Pedro apresenta-se como uma exortação à
esperança (1.3-12:baseada para os crentes na ressurreiçãode Cristo), à santidade
(1.13 a 2.10: tomar-se pedras vivas de um edificio espiritual, cuja pedra angular
é Cristo) e à boa conduta (2.11 a 4.19: saber sofrer como Cristo sofreu). O último
capítulo contém uma exortação particular aos "anciãos", quer dizer aos líderes
das igrejas.
Esta epístola é endereçada aos eleitos que são "forasteiros da Disper-
são" (1.1) nas províncias da Ásia Menor. Em que sentido este termo é
usado aqui? Ele pode designar os judaico-cristãos fora da Palestina, os
judeus convertidos do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia
(1.1). Mas expressões como "não vos amoldeis às paixões que tínheis an-
teriormente na vossa ignorância" (1.14), "fostes resgatados do vosso fútil
procedimento que vossos pais vos legaram" (1.18), "vós que antes não
éreis povo, mas agora sois povo de Deus" (2.10), "porque basta o tempo
decorrido para terdes executado a vontade dos gentios" (4.3) são igual-
mente dirigidas a gentílico-cristãos. É preciso, pois, entender a palavra
"dispersão" em sua acepção cristã: no mundo, os cristãos são forasteiros;
seu lugar verdadeiro está no céu (Fp 3.20).
Esta epístola pretende ser de Pedro, apóstolo de Jesus Cristo (1.1), mas
sua autenticidade "petrina" levanta um certo número de problemas.
1) Ela é redigida em muito bom grego, com vocabulário muito rico: 60
palavras deste escrito são únicas do Novo Testamento. Ora, o que o Novo
Testamento nos informa de Pedro combina mal com tal elegância literá-
ria. Simão, que Jesus apelidou "Cefas":", era pescador de profissão (Mc
1.16; Lc 5.2; Jo 21.3); de acordo com Jo 1.44, era natural de Betsaida.
Esse pescador não "estudou", e em At 4.13 o tribunal do Sinédrio consi-
dera-o um "homem iletrado e inculto". Por outro lado, a epístola não
pode ter sido redigida primeiro em aramaico (língua corrente do povo
palestino no tempo de Jesus) e depois traduzida para o grego, porque as
citações do Antigo Testamento são feitas diretamente segundo a versão
grega da Septuaginta.

46 Palavraaramaicaque significa"pedra" ou "rocha";o NovoTestamento transcreve essa pala-


vra por Cefasou a traduz por "Pétros",
2) Acentua-se a ausência de recordações pessoais com relação a Jesus, o
que é surpreendente, como se diz, para esse homem que viveu na intimida-
de de Jesus. Diz apenas ter sido "testemunha dos sofrimentos de Cristo"
(5.1), mas não dá nenhum detalhe".
3) Constata-se uma grande afinidade entre as idéias desta epístola e a
teologia paulina. As analogias são surpreendentes, em particular com a
Epístola aos Romanos: a imagem da pedra de tropeço em 2.4-8 e Rm 9.32-
33, a passagem sobre os dons do Espírito Santo e sua utilização a serviço
dos outros em 4.10-11 e Rm 12.6-8, a recomendação da submissão às
autoridades em 2.13-17 e Rm 13.1-7. Ora, diz-se que Paulo e Pedro eram
teologicamente opostos.
4) Procura-se em vão, nesta epístola, conceitos centrais do
ensinamento de Jesus, como "Reino de Deus" ou "Filho do homem".
Porventura tal lacuna não é impensável em um discípulo íntimo de
Jesus como foi Pedro?
Estes argumentos são de valor inegável, e é preciso examiná-los de per-
to:
I) Betsaida, a cidade natal de Pedro, situa-se à margem oriental do Jordão,
não distante de sua foz no lago de Genesaré. Mesmo que essa localidade
fosse judaica, ela tinha caráter cosmopolita. André, o irmão de Pedro, e
Filipe, natural como este de Betsaida, segundo Jo 1.44 e 12.21, têm nomes
gregos, que nos lembram um ambiente bilíngüe. Qualquer um que se cria-
ra em Betsaida compreendia o grego e estava familiarizado com a cultura
helênica.
Entretanto, essa origem seria uma explicação insuficiente se não fosse
o papel que Silvano parece ter representado na redação dessa epístola:
"por meio de Silvano, que para vós outros é fiel irmão, como também o
considero, vos escrevo resumidamente" (5.12). Uma certa elegância li-
terária e as citações da Septuaginta poderiam, pois, ser a contribuição
desse secretário, muito mais do que do antigo pescador de Betsaida. Este
Silvano, de resto, não nos é desconhecido; ele é mencionado no endere-
ço da primeira Carta de Paulo aos Tessalonicenses: "Paulo, Silvano e
Timóteo, à igreja dos tessalonicenses" (1.1), e da mesma maneira no
endereço da segunda Carta aos Tessalonicenses (1.1); na segunda Carta
aos Coríntios ainda é falado em Silvano (1.19), que teria pregado o Evan-
gelho em Corinto. Parece, portanto, já ter sido secretário de Paulo. Ele é
identificado habitualmente com Silas, chamado de "profeta", compa-

47 Perguntou-setambém se um discípulopessoal de Jesus teria falado dele em termos tão teo-


lógicos.

74
nheiro de Paulo segundo At 15 a 18; este Silvano-Silas teria, pois, sido o
verdadeiro redator das idéias de Pedro.
2) A ausência de qualquer referência a recordações pessoais, longe de
nos fazer duvidar da autenticidade petrina da nossa epístola, dá-nos, muito
antes, uma espécie de prova por via negativa: os escritos apócrifos" recor-
rem geralmente, para alcançar maior valor e autoridade, a um apóstolo e
multiplicam as pretensas recordações pessoais. A sobriedade de nossa epís-
tola, neste ponto, está em favor de sua autenticidade.
3) A semelhança entre a primeira Carta de Pedro e as epístolas paulinas
compreende-se muito bem se Silvano-Silas, que foi durante longo tempo o
colaborador de Paulo, coloca aqui sua pena a serviço de Pedro; ele era
teologicamente influenciado demais por Paulo para que, aqui e acolá, não
sobressaíssem idéias e formas de estilo paulinas.
Além disso, está errado contrapor a teologia de Pedro à de Paulo; os dois
apóstolos são, na realidade, mais próximos do que geralmente se afirma.
Naquele acontecimento que se costuma chamar de "o incidente de
Antioquia", relatado em Gl 2.11-21, Paulo resiste a Pedro face a face por
causa de sua covardia, não por causa de sua doutrina. Pedro não agiu em
conformidade com suas convicções teológicas (que, na questão da comu-
nhão de mesa com "os ex-gentios", são as mesmas que as de Paulo), e
Paulo censura somente essa inconseqüência.
4) Um conceito importante do ensinamento de Jesus encontra-se em
nossa epístola: a do "Servo sofredor de Deus".
O Antigo Testamento apresenta aquele personagem misterioso, o Servo
de Deus, que deve resgatar o povo culpado, tomando sobre si os pecados e
os sofrimentos de todos (veja-se, sobretudo, Is 52.13 a 53.12). Para o juda-
ísmo oficial, este Servo de Deus não pode ser o Messias esperado, porque
este é imaginado como um personagem glorioso, vitorioso, e não saberia
ser um homem de dores, humilhado e oprimido, "como cordeiro que é
levado ao matadouro". Mas Jesus mesmo se reconheceu neste Servo sofre-
dor, que se põe no lugar dos culpados para salvá-los. Este é o sentido
próprio da redenção. Palavras de Jesus apresentam seus sofrimentos e sua
morte como parte integrante da obra que ele deve cumprir para realizar o
plano divino da salvação (Mc 10.45 e as palavras da instituição da Ceia
nos textos dos sinóticos e em 1 Co 11.24ss.). Jesus se refere uma vez
explicitamente à profecia de Is 53: "Pois vos digo que importa que se
cumpra em mim o que está escrito: Ele foi contado com os malfeitores.

4' Do grego apokryphos, oculto, secreto,esta palavra grega designa os livros não-canônicos
mantidosocultos,quer dizernão lidosnas igrejas.

75
Porque o que a mim se refere está sendo cumprido" (Lc 22.37, que cita Is
53.12).
Ora, essa idéia, segundo a qual Jesus realiza a profecia do Servo de Deus,
reencontra-se na pregação do apóstolo Pedro segundo o livro dos Atos. Em-
bora os discursos dos Atos revelem a influência da teologia de Lucas, não é
um mero acaso que somente naqueles que são atribuídos a Pedro Jesus seja
chamado de Servo de Deus (At 3.13; 3.26: discurso ao povo de Jerusalém;
4.25). É surpreendente constatar que essa identificação, muito raramente
expressa no Novo Testamento, encontre-se precisamente em nossa primeira
Carta de Pedro; parece ser uma idéia preciosa para esse apóstolo que, após
sua revolta contra o sofrimento de Cristo (Me 8.32ss.), parece ter feito dela
mais tarde, assim como Paulo, o centro de sua teologia.
Pode-se assinalar, efetivamente, nesta epístola, diversas citações de Isaías
53, em particular em 2.21-25, onde é exposto o sentido do sofrimento de
Cristo, que constitui o tema central de nosso escrito em relação com a
cristologia do Servo de Deus.
Este último ponto não somente depõe em favor da autenticidade petrina
da nossa epístola (ao menos no que conceme às idéias), mas marca a sua
profunda intenção teológica.
Com razão destacou-se, além disso, que essa carta contém elementos
litúrgicos do cristianismo primitivo: nela se encontram traços de um dos
primeiros credos (3.18ss., com menção de uma pregação de Jesus aos mor-
tos) e de uma instrução batismal.
Enfim, podemos atribuir, se não a redação, ao menos o conteúdo des-
sa epístola ao apóstolo Pedro. Ela é conhecida e reconhecida já muito
cedo no Oriente (Policarpo, Papias), enquanto no Ocidente ela falta
no cânon de Muratori, mas é citada no fim do século 11 por Irineu e
Tertuliano.
Pode-se, acaso, datá-la independentemente da questão do autor? Várias
alusões muito nítidas aos sofrimentos e às provações dos cristãos fazem
pensar em um contexto histórico de calúnias, de processos, de persegui-
ções mais ou menos declaradas contra os fiéis". Estas perseguições acon-
tecem com fúria em numerosos lugares", mas não parecem nem oficiais
nem generalizadas. Não se trata, portanto, nem da perseguição de Nero
nem da de Domiciano".

49
2. \ 2, \ 9_2 \ ; 3.\5-\7; 4.4; 4.\2-\6: "Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados... se alguém
sofrer como cristão ..."
50 Veja-se os países mencionados em \.\ e a reflexão de 5.9.
'I Quanto mais a gente se aproximar da perseguição de Domiciano, tanto maior será a distância
cronológica entre Pedro e o redator.

76
o que sabemos do lugar da redação? Lemos em 5.13: "Aquela (a Igreja)
que se encontra em Babilônia vos saúda".
Babilônia, capital da Babilônia, com passado brilhante, cujo nome se
conservara no judaísmo como sinônimo de exílio e de opressão, existia
ainda naquele tempo, conforme relatam Josefo e Filo; mas perdera toda a
importância, e até a colônia judaica a deixara, para ir estabelecer-se em
Selêucia em meados do século I. É improvável que Pedro tenha ido lá.
Ainda se poderia pensar em uma outra Babilônia, lugar de um campo
militar que Estrabão e Josefo localizam no Egito nos arredores da atual
cidade de Cairo; mas não se compreende muito bem como esta Babilônia,
mais ou menos obscura, poderia ser aquela de 1 Pe 5.13.
Resta a interpretação simbólica, segundo a qual Babilônia significaria
Roma. Temos notado o silêncio do Novo Testamento sobre uma eventual
estada de Pedro em Roma. Está, portanto, aqui, provavelmente, o único
texto que faz uma alusão indireta a esta estada. De fato, o uso de nomes
simbólicos, tomados do judaísmo, é freqüente entre os cristãos. Assim, no
livro do Apocalipse, no capítulo 17, Babilônia designa Roma: o autor descre-
ve a visão de uma mulher assentada sobre sete colinas, sobre cuja fronte está
escrita a palavra Babilônia, que deve ser decifrada (Ap 17.5ss.). Esta mulher
representa "a grande cidade que domina sobre os reis da terra" (17.18).
Admitimos, portanto, que Babilônia em 1 Pe 5.13 significa Roma.

3 - A Carta de Judas

Em nossas edições do Novo Testamento, a primeira Carta de Pedro é


seguida de uma segunda epístola, que lhe é atribuída igualmente. Mas
veremos que a segunda Carta de Pedro somente retoma elementos da Car-
ta de Judas, que é anterior àquela. Assim sendo, trataremos primeiramente
da Carta de Judas. Esse breve escrito é uma exortação que, embora
endereçada de maneira muito geral "aos chamados" (quer dizer, a todos os
cristãos, v. 1), assume prontamente um tom polêmico e um sentido agres-
sivo. O autor ataca essa gente libertina e ao mesmo tempo propagandista
de falsas doutrinas, que está empenhada em envenenar a vida da Igreja.
Ele tivera a intenção de escrever calmamente uma carta tratando da salva-
ção (v. 3), mas, informado de que esses falsos doutores penetraram furti-
vamente na comunidade, não se contém mais e exprime sua indignação.
Essa polêmica é surpreendente considerando um endereço tão universal.
O autor apresenta-se como sendo Judas (o nome grego é laudas), "servo
de Jesus Cristo e irmão de Tiago": será suficiente para identificar-se? Co-

77
nhecemos diversos personagens com este nome no Novo Testamento: Judas
Iscariotes, o apóstolo que traiu Jesus; Judas, "filho de Tiago" (Lc 6.16; At
1.13; Jo 14.22), que, segundo uma tradição, sem dúvida secundária", teria
feito parte do grupo dos doze apóstolos; enfim, um terceiro Judas, irmão
de Jesus (Me 6.3; Mt 13.55).
Excluído Judas Iscariotes, pode-se pensar no apóstolo Judas, filho de
Tiago? Segundo o versículo 17, os apóstolos estão mortos, ou ao menos o
autor não faz parte deles. Trata-se, acaso, de Judas, o irmão de Jesus?
Marcos (6.3) menciona entre os irmãos de Jesus Tiago, juntamente com
Judas. Este último seria, pois, irmão de Tiago, o que corresponde ao
versículo 1 de nossa epístola. Mas por que então o autor preferiu dar-se a
conhecer como irmão de Tiago em vez de irmão de Jesus? Por outro lado,
é possível que um irmão de Jesus tenha escrito esta carta?
Esta epístola tem uma particularidade que não se pode esquecer, porque
é importante ao mesmo tempo para a história do cânon bíblico e para a
datação da epístola. Cita, repetidas vezes, livros do judaísmo, sobretudo o
"Livro de Enoque".
Uma das citações (Enoque 1.9) é até introduzida solenemente, como se
se tratasse de um texto da Escritura Sagrada (v. 14s.): "Quanto a estes foi
que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: 'Eis
que veio o Senhor entre suas santas miríades ...'" O "primeiro livro de
Enoque" ou "Enoque etíope" é uma obra judaica composta de vários ele-
mentos, cujas partes com idades diferentes se dispersam entre o século 11
a.c. e a época de Jesus.
Se nossa epístola cita esta obra, isso significa que ela ainda não foi
afastada pelos judeus do cânon do Antigo Testamento. De fato, no século
I de nossa era, a lista dos livros que compõem a Bíblia judaica, o Antigo
Testamento dos cristãos, ainda não fora fixada; isso acontece definitiva-
mente não antes de 90, em Jâmnia", que se tomara, após a queda de
Jerusalém em 70, o centro espiritual do judaísmo, onde se reuniam os
rabinos mais conceituados. Após esta data, os livros da Bíblia grega (Se-
tenta) que não dispunham de um original hebraico e que eram demasia-
do tardios ou de uma doutrina mais ou menos heterodoxa, como o livro
de Enoque, citado pela Carta de Judas, não gozam mais da mesma auto-
ridade.
Disso resulta que nossa epístola foi redigida antes de 90. Mas, por outro
lado, ela revela um grau mais evoluído do pensamento cristão. Não pode-

~2 Pode-se mostrar que se trata provavelmente de uma duplicação de Judas Iscariotes.


" Localidade na fronteira da Judéia, a uns 10 km do mar.

78
mos, portanto, retroceder muito mais além do ano 90. De fato, aqui se fala
nos apóstolos como de gente do passado (vv. 17 e 18) e da fé como "uma
vez por todas entregue aos santos" (v. 3, compare com v. 20).
O vocabulário e o estilo mostram que o autor domina bem o grego (11
palavras gregas deste escrito não se encontram no Novo Testamento nem
na Septuaginta), mas que é, todavia, de origem judaica, porque se desco-
brem, aqui e acolá, alguns semitismos. Este judaico-cristão poderia, por-
tanto, ser, sob este ponto de vista, o irmão de Jesus e de Tiago, mas a data
que fixamos para o escrito toma essa identificação dificil.
Outros indícios permitem dizer que ele provavelmente é originário da
Síria. A veneração por Judas permaneceu, efetivamente, por muito tempo
viva na Síria, como testemunham os antigos documentos siriacos que co-
nhecemos.
O cânon de Muratori, a mais antiga lista de escritos do Novo Testamento
conhecida e que data, como sabemos, de cerca de 180, menciona a Carta
de Judas entre os livros canônicos, o que não impediu os antigos de duvi-
darem de sua autenticidade.

4 - A segunda Carta de Pedro

Uma comparação da segunda Carta de Pedro com a de Judas revela uma


grande semelhança entre os capítulos 2 e 3 de 2 Pedro e os 25 versículos
de Judas. Já a saudação inicial é quase idêntica (2 Pe 1.2 e Jd 2); além
disso, os textos de 2 Pe 2.1 a 3.18 e Jd 3 a 25 são tão paralelos, que se
poderia escrevê-los em duas colunas à maneira dos sinóticos. O tema é o
mesmo: uma polêmica contra os falsos doutores; estão citadas, na mesma
ordem, as mesmas referências à queda de anjos (2 Pe 2.4; Jd 6), a Sodoma
e Gomorra (2 Pe 2.6; Jd 7), a Balaão (2 Pe 2.15-16; Jd 11). Vários versículos
assemelham-se quase palavra por palavra, assim 2 Pe 2.12 e Jd 10. Tudo
parece como se o autor de uma das duas epístolas tivesse copiado a outra,
modificando-a um pouco.
Há, no entanto, uma diferença importante: as citações dos apócrifos do
Antigo Testamento, que são abundantes na Carta de Judas, desapareceram
na segunda Carta de Pedro. Portanto, esta última eliminou essas citações
ao retomar os versículos de Judas. Não teria isso acontecido porque a ex-
clusão dos apócrifos do cânon pela assembléia rabínica de Jâmnia caiu
entre as duas epístolas? É, pois, claro que a segunda Carta de Pedro foi
escrita após 90. Por conseguinte, é impossível que ela tenha por autor
Pedro, que, segundo a tradição, teria morrido por volta de 64 ou 67 em

79
Roma, durante ou pouco tempo após a perseguição de Nero. A carta
autodenomina-se uma obra de Pedro: "Simão Pedro, servo e apóstolo de
Jesus Cristo" (1.1). O autor lembra (1.18) que conheceu Jesus e que estava
com ele no monte da transfiguração"; mas esta insistência em fazer lem-
brar recordações pessoais é muito suspeita, conforme já dissemos. Por
outro lado, esta epístola faz alusão à primeira Carta de Pedro, da qual quer
ser uma seqüência (3.1).
Outro indício que prova tratar-se de um escrito de uma época posterior:
em 3.15-16 lemos: "Tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor,
como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabe-
doria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como de fato costuma
fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de enten-
der, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as de-
mais Escrituras, para a própria destruição deles". A expressão "todas as epís-
tolas de Paulo" permite supor que, nesse momento, as epístolas paulinas já
estão reunidas em um "corpus", numa coleção. Além disso, estas cartas
paulinas são consideradas como Escrituras Sagradas, como escritos inspira-
dos e canônicos, com a mesma qualidade do Antigo Testamento. É a primei-
ra vez que livros do Novo Testamento são chamados Escrituras Sagradas.
Ora, o cânon do Novo Testamento é fixado em suas grandes linhas somente
por volta do ano 150. Encontramo-nos, portanto, com esta segunda Carta de
Pedro, muito depois de 90, por volta de ISO.
O cânon de Muratori (180) não menciona essa epístola, mas conhece a de
Judas, o que confirma que temos aqui uma reedição corrigida e aumentada"
desse escrito. Entre todos os autores do século 11, somente Orígenes fala da
segunda Epístola de Pedro, e apenas para dizer que ela é contestada.
O autor parece ser um cristão da Ásia Menor, que quer advertir seus
irmãos contra o gnosticismo. Esta heresia parece ser diferente daquela que
Paulo combatia no século 1. É possível que a expressão "pessoas instáveis
que deturpam o sentido das Escrituras" (3.16) faça alusão a Marcião, o
herético do qual já falamos.
O uso dos termos "fé" e "conhecimento" é inteiramente diferente da-
quele que conhecemos pelos escritos cristãos do século I; o conceito de
"virtude" (1.3) é totalmente helenístico. O fato de que a epístola é obriga-
da a reagir contra o desaparecimento da espera pelo fim prova igualmente
que estamos longe das origens do cristianismo.

54 O episódio é relatada nos evangelhos: Mt 17.1-8; Mc 9.2-8; Lc 9.28-36.

" Aumentado com o 10 capítulo sobre o fortalecimento na fé cristã e com o desdobramento do


3 0 capítulo sobre a vinda de Cristo.

80
A segunda Carta de Pedro é, pois, dos 27 escritos do Novo Testamento,
o que foi redigido por último, mesmo que tenha entrado antes de outros no
cânon do Novo Testamento. Entre a primeira Carta de Paulo aos
Tessalonicenses, escrita por volta de 50, e a segunda Carta de Pedro pas-
sou uma centena de anos.
O valor teológico dessa obra reside na manutenção da esperança cristã,
apesar do retardamento da "parúsia?". Sabemos que esse retardamento,
constatado há muito tempo, inspirou os zombadores a fazerem reflexões
amargas (3.4). Diante dessas zombarias, o autor lembra que mil anos são
para o Senhor como um dia (3.8) e proclama corajosamente: "Nós espera-
mos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça" (3.13).

5 - As três Cartas de João

As epístolas joaninas foram redigidas em um espírito de contemplação


luminosa. As idéias nelas expressas não seguem uma progressão lógica,
como aquelas das epístolas paulinas, mas um procedimento cíclico: os
mesmos temas retomam diversas vezes, e tudo é expresso num estilo
litúrgico".

5.1 - A primeira Carta de João

Esta lembra, na forma e no conteúdo, numerosas passagens do Evange-


lho de João e, particularmente, os discursos de despedida (Jo 14-17). O
autor não revela seu nome, mas é, sem dúvida, o mesmo que o do quarto
evangelho (já era a opinião de Dionísio de Alexandria) ou, se se leva em
conta as ligeiras diferenças, ao menos um membro do mesmo grupo. Os
temas principais, abordados alternadamente, são os seguintes: Deus é luz;
Jesus Cristo obtém o perdão dos pecados do mundo inteiro; Deus é amor;
os cristãos, filhos do Deus do amor, são chamados a amar, e para amarem
a Deus, eles devem amar-se uns aos outros. Não há uma introdução epistolar,
mas o anúncio de que o autor quer testemunhar sua fé em Jesus, o "Verbo
da vida", que "era desde o princípio", que ele diz ter "ouvido", "visto com
seus próprios olhos", "apalpado com suas mãos" (1.1-4). Falta também
uma conclusão; em vez disso há uma abrupta frase final: "Filhinhos,

56 A palavra parousia designaa volta,ou antes a (segunda)vinda de Cristo.


57 Até se disse que toda a primeiracarta não seriamais do que uma liturgiabatismal.

81
guardai-vos dos ídolos" (5.21). Entretanto, o autor parece ter em vista
determinados leitores. Ele conhece a situação moral e espiritual deles e os
perigos aos quais estão expostos (cf. 2.12,15,21,26; 3.7,13; 4.4; 5.13).
Ataques precisos contra heréticos vêm interromper, por duas vezes (2.18-
19 e 4.1-6), o fio da meditação. Esses heréticos têm tendências docéticas,
quer dizer, segundo eles, Jesus só teve a aparência (dokein em grego: pare-
cer, aparentar) de um corpo, mas não um verdadeiro corpo, e eles não
crêem na natureza humana de Cristo".
O autor indica a seus destinatários um critério para reconhecer a heresia
dessa gente: aquele que não confessa que Jesus Cristo veio em carne (quer
dizer, tomado ser humano verdadeiro) não está na verdade (4.2-3) e os
lembra da confissão de fé. Esses gnósticos colocam o conhecimento aci-
ma do amor e afirmam não ter pecado. O autor acentua, por isso, que a
verdadeira gnose, o verdadeiro conhecimento, é subordinado ao amor: não
se pode conhecer a Deus sem amá-lo e também sem amar seus próprios
irmãos (4.7-21). Não é possível definir de uma maneira precisa o grupo de
cristãos aos quais se dirige o autor.

5.2 - A segunda Carta de João

Esta retoma brevemente o tema do amor fraternal e a advertência contra


os heréticos da primeira carta. Começa com o seguinte endereço:. "O
presbítero (= velho) à Kyria, a eleita, e a seus filhos" (v. 1). Quem é este
presbítero (em grego presbyteros)? A palavra lembra o texto de Papias
sobre João o "presbítero". Quanto à Kyria, a palavra pode ser traduzida
por senhora: a "senhora eleita" não é uma pessoa cristã, mas uma igreja
denominada assim simbolicamente.

5.3 - A terceira Carta de João

É um simples bilhete pessoal do "presbítero ao amado Gaio" (v. 1). Diver-


sas passagens do Novo Testamento mencionam um Gaio (cf. At 19.29; 20.4;
Rm 16.23; 1 Co 1.14), mas nada nos permite afirmar que este seja o mesmo
personagem. Seja como for, o presbítero o louva, assim como a Demétrio, e
os confronta com Diótrefes, que, estando provavelmente à testa de uma ou-
tra comunidade, parece não reconhecer a autoridade do presbítero.

~8 É o mesmo problemaque está no pano de fundo do 4° evangelho.

82
A maioria dos críticos é da opinião de que essas três epístolas são do
mesmo autor e que, se este não é o autor do quarto evangelho, pertence em
todo caso ao mesmo ambiente espiritual. Remetemos, pois, o leitor ao
problema do autor do quarto evangelho, que abordamos antes.
Capítulo 5

o Apocalipse
Este é o livro que encerra a Bíblia cristã. A presença legítima do
Apocalipse no cânon foi contestada, pela primeira vez, por volta do final
do século 11 e desde a metade do século III sobretudo no Oriente. Mas, por
volta do ano 150, o Apocalipse era considerado um livro inspirado (por
Justino e pelo Cânon de Muratori).
Apocalipse significa "revelação". O título completo, tal qual aparece
em 1.1, significa o seguinte: "Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu
para mostrar a seus servos as cousas que em breve devem acontecer e que
ele, enviando por intermédio do seu anjo, notificou a seu servo João". Este
João afirma que fala como profeta (1.9) e termina o relato de suas visões
dizendo: "Eu, João, sou quem ouviu e viu estas cousas" (22.8). É verdade
que todas essas visões têm um caráter literário, mas isso não exclui que o
autor tenha sido um visionário. Os apocalipses eram um gênero literário
tradicional no judaísmo". Para descrever o indescritível, é natural que o
autor se sirva de imagens e que as tome emprestado sobretudo dos
apocalipses judaicos que conhece. Não é possível nem necessário, para
explicar este recurso às imagens e aos motivos tradicionais, pressupor a
utilização de fontes cristãs ou decompor o livro em uma série de escritos
ou de redações diferentes. Outras imagens ele empresta da astrologia e da
mitologia pagã.
Serve-se, porém, sobretudo de elementos litúrgicos do culto da Igreja
primitiva para descrever os eventos futuros, que acontecerão na esfera ce-
leste (por exemplo, a última "trombeta", instrumento de culto). Essa utili-
zação da linguagem litúrgica pressupõe uma idéia fundamental do cristia-
nismo primitivo: o culto é uma antecipação do fim (Cul\mann). Não é por
acaso que o autor tem sua primeira visão num domingo (1.9; é a primeira
denominação cristã do "dia do Senhor", que é o dia da ressurreição de
Cristo), dia em que as primeiras comunidades se reuniam para o culto.
Mas, por outro lado, o autor deixa entrar em sua visão do futuro o tempo
presente. O livro está repleto de alusões históricas. É verdade que nem

59 A literatura apocalíptica judaica é abundante. Mencionemos apenas o livro de Enoque, a


Ascensão de Moisés, o Apocalipse de Baruque, o Testamento dos Doze Patriarcas. Encon-
tram-se, igualmente, traços desse gênero literário no Antigo Testamento, em particular nos
livros de Ezequiel e Daniel. Os livros contidos nos manuscritos do Mar Morto (Qumrã) per-
tencem parcialmente a esse gênero.

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sempre é possível identificar com certeza os imperadores romanos em vis-
ta. Mas é certo que se fala de Roma ("Babilônia"), do culto ao imperador
e da perseguição da igreja que esse culto provoca. Ainda que a "besta
emergindo do mar" (13.1 ss.), que está a serviço do dragão (diabo), repre-
sente o poder demoníaco que está por trás de cada império conquistador, o
autor pensa no Império Romano de seu tempo e, mais precisamente, na
perseguição da Igreja sob Domiciano, que deu uma difusão especial ao
culto imperial. À diferença dos apocalipses judaicos, orientados somente
para o futuro, o Apocalipse de João é caracterizado pelo conceito cristão
de tempo, segundo o qual o centro da história divina já foi atingido por
antecipação em Jesus Cristo (M. Rissi). Assim, todo o tempo presente já é
tempo do fim, mesmo que o cumprimento ainda fique por vir. O autor
mostra o aspecto celeste dos acontecimentos presentes, como descreve o
aspecto celeste dos acontecimentos futuros. Esta é a chave da compreen-
são de todo o livro.
O Apocalipse contém sete cartas, escritas como se tivessem sido ditadas
pelo Filho do homem às sete igrejas da Ásia: Éfeso, Esmima, Pérgamo,
Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia (caps. 2 e 3). Elas contêm alusões a
situações concretas. A composição destas sete cartas é característica da
intenção pastoral do autor. Dentro de um objetivo pastoral de exortação às
igrejas em situação crítica, o autor transpõe acontecimentos de seu tempo
para fazer sobressair seu valor escatológico. Através de seu número, que
indica a plenitude divina, essas sete igrejas representam a Igreja inteira.
Ao mesmo tempo, este papel representativo atesta a importância da Ásia
Menor para o cristianismo daquele tempo.
Em uma série de quadros coloridos, que não descrevem uma seqüência
cronológica de eventos futuros, mas são, por assim dizer, progressivamen-
te encaixados uns nos outros como diversas ilustrações sobre um mesmo
tema, o autor descreve o grande drama que lhe foi dado revelar:
capítulo 4: visão da liturgia celeste;
capítulo 5: o livro com os sete selos;
capítulo 6: a abertura dos primeiros seis selos (os quatro cavaleiros);
capítulo 7: intermezzo do povo dos vencedores;
capítulos 8 e 9: a abertura do sétimo selo, introduzindo a visão dos sete
anjos com sete trombetas;
capítulos 10 e 11: intermezzo do pequeno livro e das duas testemunhas;
capítulos 12 a 14: a sétima trombeta desfecha as visões da mulher e do
dragão, das duas bestas e do julgamento;
capítulos 15 e 16: visão dos sete anjos com sete taças, que são sete
flagelos;

85
capítulos 17 e 18: queda de Babilônia (Roma);
capítulo 20: o reino de mil anos de Cristo, a derrota definitiva de Satanás
e o julgamento final;
capítulos 21 e 22: os novos céus e a nova terra e a visão da Jerusalém
celeste.
A linguagem desse escrito é muito particular, e pode-se até estabelecer
uma gramática especial para o Apocalipse (Charles). Isso se deve, por um
lado, ao estilo litúrgico e, por outro, à influência semítica que é percebida
em toda parte nesse grego que certamente é o pior de todo o Novo Testa-
mento. Com certeza, o autor não pertencia a um ambiente grego, mas
procede, provavelmente, da Síria ou da Palestina.
O autor insiste em se chamar: "Eu, João" (1.9; 22.8; veja-se também 1.1
e 4); e este é o único escrito do Novo Testamento, atribuído a João, que
mesmo afirma que tem como autor alguém chamado João. Este encontra-
se na ilha de Patroas, no oeste da Ásia Menor, "por causa da palavra de
Deus", o que pode significar que ele chegou lá com a intenção de pregar o
Evangelho ou então que foi exilado lá por ter pregado o Evangelho. De
acordo com 6.9 e 20.4, deve aceitar-se o último sentido.
Uma parte da tradição antiga identifica já bem cedo este João com o
apóstolo João, filho de Zebedeu, autor do quarto evangelho. Mas, a partir
do fim do século 11, essa opinião começa a ser contestada por alguns e, por
volta da metade do século Ill, Dionísio de Alexandria (morto por volta de
265) escreve: "João, autor do Apocalipse, é um homem santo e inspirado
por Deus. Mas eu não aceitarei facilmente que este era o apóstolo..."
Dionísio baseia sua opinião numa análise literária e teológica comparada
desse escrito e do quarto evangelho (que ele atribui, por sua vez, ao após-
tolo João). Com efeito, vários pormenores lhe dão razão: por exemplo, em
18.20 e 21.14, João fala dos apóstolos sem que ele mesmo aparentemente
se conte entre eles. Por outro lado, o vocabulário e a língua de nosso escri-
to diferem também em relação ao Evangelho de João. Uma comparação
minuciosa entre o quarto evangelho e o Apocalipse faz, entretanto, apare-
cer analogias nos temas doutrinários (por exemplo, o conceito de "teste-
munho"; o de "cordeiro de Deus", Jo I. 29 e 36; Ap 5.6-14; o de "bom
pastor", Jo 10, Ap 7.17; e o de "água viva", Jo 6.37-38; Ap 21.6). Se não se
pode, pois, tirar uma conclusão sobre a identidade do autor dos dois livros,
há, todavia, uma certa proximidade entre os dois, que ainda restaria expli-
car.
Quanto à data, temos o testemunho de lrineu do século 11. Segundo este,
o Apocalipse foi escrito no final do reinado de Domiciano em 96, durante
a perseguição generalizada e sangrenta que este então dirigia contra os

86
cristãos, que se recusavam a render culto ao imperador como se fosse a um
deus. Esta data é confirmada por numerosas passagens (3.10; 13; 17.6;
18.24; 19.2; 2004).
Em todos os tempos e até os nossos dias, o Apocalipse é, por um lado,
objeto de uma consideração exagerada (sobretudo em certas seitas, que,
por um menosprezo total de seu caráter histórico, servem-se dele para
calcular a data do fim do mundo); por outro lado, é objeto de uma aversão
acentuada (durante a Antigüidade na Igreja oriental, mais tarde por Lutero,
por causa do caráter demasiadamente concreto da esperança). Ele não
merece nem uma nem outra. Em todo caso, contém uma mensagem parti-
cularmente importante no fim do Novo Testamento e de toda a Bíblia ("Vem,
Senhor Jesus" - 22.20). Lembra-nos o objetivo de toda essa história da
salvação, que é o objeto do Antigo e do Novo Testamento. Ao colocar todo
o tempo intermediário entre a vinda de Cristo e o fim do mundo na pers-
pectiva cristã do tempo, na qual a época atual já aparece como um tempo
final, determinado pela obra de Cristo, o Apocalipse tem uma grande atu-
alidade. Sem nos autorizar a fazer cálculos, ele nos permite compreender
os acontecimentos da época atual sob essa luz. Basta ler o vigoroso capítu-
lo 13 sobre o império conquistador e a ideologia totalitária para nos dar
conta de até que ponto esse escrito está próximo de nós, mesmo falando
somente do Império Romano e de seu culto ao imperador. Ele também é
atual quando proclama a importância cósmica da obra redentora e do rei-
no de Cristo e a esperança de uma nova criação.

87
111

A formação do eânon do Novo Testament060

Na época em que foram escritos os 27 livros do Novo Testamento, eles


ainda não eram "Escritura Sagrada". Como já dissemos, a Escritura Sagra-
da, para os autores do Novo Testamento, era o Antigo Testamento". Quan-
do introduzem citações com a fórmula "para que se cumprisse o que está
escrito", eles se referem exclusivamente ao Antigo Testamento. É verdade
que o apóstolo Paulo lembra, ocasionalmente, palavras de Jesus (1 Ts 4.15;
1 Co 7.10; 9.14 e o relato de 1 Co 11. 23ss.); mas ele as toma da tradição
oral e não dos escritos, pois os evangelhos ainda não existiam em seu
tempo. Neste caso, emprega geralmente a fórmula da introdução "O Se-
nhor diz", e assim o fazem todos os autores cristãos até o começo do
século 11 62 •
Somente em escritos redigidos por volta de 140/150, a Carta de Barnabé
e a segunda Carta de Clemente, é citada uma palavra de Jesus na categoria
de Escritura Sagrada (Barn 4.14 = Mt 22.14; 2 Clem 2,4 = Mt 9.13). Mais
ou menos na mesma época, o termo "evangelho", que até então assinalara
a pregação da boa nova, começa a ser empregado no sentido de "livro"
(em Justino Mártir, por volta de 150, por exemplo; mas este, dirigindo-se
a gentios cultos, emprega paralelamente o termo literário "memórias dos
apóstolos", que, porém, é menos apropriado).
Em meados do século 11, nossos quatro evangelhos ainda não eram os
únicos que exerciam autoridade. Outros evangelhos, "apócrifos", que em
parte relatam lendas (especialmente sobre os períodos da vida de Jesus dos
quais os evangelhos antigos não falavam), em parte especulações gnósticas,
atribuídas, freqüentemente, ao Cristo ressuscitado, já se tinham difundido,
e seu número continuava crescendo.

60 Cânon, em grego kanon, tem primeiro o sentido de caule de junco, depois, porém, regra,
norma.
61 Umaexceção:2 Pedro3.16,que consideraas cartas de Paulocomo EscrituraSagrada, mas
dissemosque a segundaCartade Pedroé um escrito muito tardio.
62 Veja tambémAtos20.36.

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Estava na hora de represar essa maré. Pouco a pouco, nossos quatro
evangelhos foram separados e revestidos de uma autoridade normativa antes
dos outros escritos do Novo Testamento. No fim do século 11, lrineu já
tentou explicar por que não deve haver nem menos nem mais do que qua-
tro evangelhos.
Quanto às epístolas de Paulo, vimos que já durante a vida do apóstolo e
sob seu conselho (CI 4.16), algumas entre elas foram permutadas entre as
diferentes igrejas; é esta a origem da coleção ou do "corpus" das epístolas
paulinas. A primeira coleção desse gênero parece ter sido compilada em
Corinto. Esta é a razão pela qual a mais antiga lista de livros canônicos, o
cânon de Muratori, coloca por volta de 180 as cartas aos Coríntios à frente
das epístolas paulinas". A primeira citação de uma passagem paulina (Ef
4.26), considerada como Escritura Sagrada, acontece em tomo do ano 150,
na carta de Policarpo 12.1. Por volta de 170, as primeiras coleções paulinas
contam ora 10 epístolas (as do futuro cânon, menos as epístolas pastorais
e a Carta aos Hebreus), ora 13 (faltando somente a Carta aos Hebreus).
Somente aos poucos, também outros escritos, os Atos dos Apóstolos, as
epístolas católicas e o Apocalipse, alcançaram dignidade canônica.
De uma maneira geral, o cânon do Novo Testamento não se formou,
como se poderia supor, por adição, mas por eliminação. Ainda no início
do século 11, foram redigidos não somente evangelhos apócrifos e atos dos
apóstolos, mas também um grande número de outros escritos cristãos (como
os escritos dos Pais Apostólicos). Estes, mesmo que não pretendessem
remontar às origens, não tinham, em princípio, uma autoridade inferior
àquela dos escritos que hoje fazem parte do Novo Testamento.
A elaboração do cânon do Novo Testamento foi, portanto, o fruto de um
processo que, até a fixação final, estendeu-se por vários séculos. Mas o
fato decisivo é o surgimento da idéia do cânon. Este momento importante
aconteceu entre os anos 140 e 150. Na época, a Igreja reconheceu que ela
sozinha não podia mais controlar as tradições que pululavam e, então,
submeteu toda tradição a uma norma superior, à tradição apostólica, que,
exposta em certos escritos, teria valor canônico.
Eis por que o caráter apostólico, atribuído, com ou sem razão, a um
escrito, não deixou de influir sobre a escolha que foi feita. Em certos ca-
sos, para fazer entrar no cânon um livro que não tinha como autor um
apóstolo, foi preciso estabelecer, posteriormente, uma relação entre o es-
crito e algum apóstolo. Pode-se dizer que o conceito de "cânon" resultou
diretamente daquele de apóstolo. O apóstolo tem, na Igreja, uma função

63 Em nossa coleção atual, as epístolas são postas na ordem decrescente por sua extensão.

90
única, que não se repete mais: ele é testemunha ocular. Por conseguinte,
acreditava-se que somente os escritos que tinham como autor um após-
tolo ou discípulo de apóstolo poderiam garantir a pureza do testemunho
cristão.
Mas não se deve supor que o cânon se tenha formado em conseqüência
de uma série de decisões inequívocas. Os livros admitidos mais tarde im-
puseram-se por si mesmos aos membros da Igreja; quando se compara,
por exemplo, o conteúdo dos quatro evangelhos com o dos evangelhos
apócrifos, só pode-se admirar o julgamento seguro dos cristãos daquele
tempo. A teologia vê nisso a obra do Espírito Santo, que ao mesmo tempo
era atuante naqueles escritos e nas comunidades que os recebiam.
Antes de tentar expor a idéia comum dos 27 escritos, limitemo-nos a
mencionar as grandes etapas da constituição do cânon. O primeiro cânon
foi obra de Marcião, por volta de 150, que fez sua escolha a partir de
critérios muito estreitos de sua teologia. Condenado como herético,
Marcião, do qual já falamos, opunha radicalmente o Deus de amor e de
graça, Pai de Jesus Cristo, ao Deus justo do Antigo Testamento. Não admi-
tindo nenhuma continuidade entre os dois Testamentos, Marcião rejeitava
em bloco o Antigo Testamento e eliminava do Novo Testamento todos os
escritos atribuídos a apóstolos judaico-cristãos ou aqueles que se referiam
demasiadamente ao Antigo Testamento. Sendo Paulo, segundo essa teoria,
o único apóstolo legítimo, um só evangelho podia ser admitido, o de Lucas,
porta-voz de Paulo. Este cânon contém, pois, somente o Evangelho segun-
do Lucas e 10 epístolas paulinas (portanto, nem as cartas pastorais nem a
Carta aos Hebreus).
Em reação contra essa redução excessiva e arbitrária, a Igreja estabele-
ceu seu cânon com quatro evangelhos e 14 epístolas paulinas (as cartas
pastorais e a Carta aos Hebreus entraram finalmente como tais), aos quais
se juntaram os Atos, as epístolas católicas e o Apocalipse.
A primeira lista que possuímos e que representa um estágio já evoluído
do cânon data, sem dúvida, da segunda metade do século 11. Foi descober-
ta pelo bibliotecário Muratori (falecido em 1750) na Biblioteca Ambrosiana
de Milão. Conservada em latim, ela reconhece como canônicos nossos
quatro evangelhos, 13 epístolas paulinas (portanto não a Carta aos Hebreus)
e os Atos dos Apóstolos. A terceira parte do cânon estava, naquele tempo,
ainda longe de ser encerrada: somente abrange a Carta de Judas e duas
epístolas joaninas, mas nenhuma menção é feita das duas Cartas de Pedro,
da de Tiago nem da terceira Carta de João. Ao invés disso, o cânon de
Muratori admite dois apocalipses: o de João e o de Pedro; este último - é
verdade - não sem uma certa reserva.

91
Na seqüência, as listas canônicas fornecidas pelos Pais da Igreja atestam
ainda muita incerteza em relação a essa terceira parte. É feita uma distin-
ção entre os escritos sobre os quais se estabeleceu um acordo (os quatro
evangelhos e a maior parte das epístolas paulinas), aqueles cujo valor
canônico é objeto de discussão e aqueles que são rejeitados por todos.
Por volta de 200, o cânon do Novo Testamento já se aproxima muito do
nosso (o cânon da Igreja da Síria, que conta somente 22 livros, tem sua
história particular). Entretanto, as discussões continuaram ainda muito tem-
po sobre a canonicidade da Carta aos Hebreus, contestada pela Igreja do
Ocidente, porque esta apreciava pouco seu caráter especulativo, e sobre o
Apocalipse, que, ao contrário, a Igreja do Oriente tinha dificuldades para
admitir por causa de suas concepções julgadas pouco espirituais.
Essas discussões foram concluídas, grosso modo, sem ter alcançado um
fim definitivo, no Oriente (com exceção da Síria) e no Ocidente no final
do século IV.As datas decisivas são, para o Oriente, a 398 carta pascal de
Atanásio em 367 e, para o Ocidente, o Sínodo de Roma de 382 e os concí-
lios africanos de Hipona (393) e de Cartago (397).

92
Conclusão

A essência comum do pensamento teológico


do Novo Testamento

Acabamos de ver como os 27 livros foram selecionados pouco a pouco por


causa de sua grande importância e como surgiu o cânon do Novo Testamento.
Realçamos as idéias teológicas essenciais de cada livro. Mas em que consiste
a linha teológica interna que une todas essas obras, que forma a unidade da
coleção e nos autoriza a falar de um pensamento do Novo Testamento?
Não é fácil responder a essa pergunta, pois cada época e cada igreja é
tentada a fazer uma escolha e a considerar como essencial aquilo que
corresponde a suas próprias aspirações. Assim, por exemplo, o humanismo
inclinava-se para ver a essência do Novo Testamento no Sermão do Mon-
te, mas a Reforma, na doutrina da justificação pela fé. O conjunto do Novo
Testamento foi então explicado em função de uma única idéia.
Existe, porventura, um critério que permita evitar uma escolha mais ou
menos arbitrária? Pensamos que as fórmulas breves, contidas no próprio
Novo Testamento e destinadas a resumir a fé do cristianismo primitivo em
vista do Batismo ou em vista da confissão em tempos de perseguição,
indicam exatamente para nós o que os autores do Novo Testamento consi-
deravam, eles mesmos, como o centro comum de sua fé.
Essas fórmulas concordam em restringir-se a confessar a fé em Jesus
Cristo, enquanto a fé em Deus é apenas uma função desta: Jesus Cristo é
o Senhor e o Filho de Deus". Se as fórmulas são mais desenvolvidas, elas
acentuam a ressurreição de Cristo e o senhorio atual e universal daquele
que "está sentado à direita de Deus?", A revelação inteira é vista, portan-
to, à luz do Cristo presente.
Mas esse Cristo ressuscitado, cuja presença diária, segundo o livro dos
Atos e as epístolas, os primeiros cristãos constataram em suas comunida-
des e sobretudo no seu culto, não é simplesmente um princípio abstrato: é
o mesmo cuja vida e ministério terreno contam os evangelhos. Ele curou
enfermos, perdoou pecados, morreu na cruz e, por outro lado, pregou a
vinda bem próxima do reino de um Deus que ama "as ovelhas perdidas" e

64Examinem-se, por exemplo,dentrodo seu contexto,as fórmulas "Senhor é Jesus" (\ Co 12.3;


Fp 2.11)e "Jesus é Filhode Deus"(certosmanuscritos de At 8.37; Hb 4.14; I Jo 4.15).
M Segundoo Salmo 110, que é a passagemdo Antigo Testamentomais citada no Novo Testa-
mento.
que pede a seus filhos que façam penitência e cumpram sua vontade de
uma maneira radical, quer dizer, segundo o Espírito e não segundo a letra.
Ao mesmo tempo, este Jesus sabia que devia cumprir o plano de Deus,
assumindo o papel do Servo sofredor de Deus e do Filho do homem que
virá para manifestar o Reino de Deus no fim dos tempos.
Esse mesmo Jesus Cristo continua sua obra na comunhão dos crentes. A
experiência e a convicção dessa ação permanente são a base de todo o
Novo Testamento.
A teologia das epístolas (Cristo é o Senhor do universo) opõe-se
freqüentemente à pregação mais simples de Jesus sobre o Reino de Deus.
Esta oposição não existia no espírito dos primeiros cristãos, que vislum-
bravam um vínculo estreito entre o ensinamento dos evangelhos e o das
epístolas. Assim a fé no Senhor presente está ligada ao papel singular que
Jesus Cristo mesmo atribuiu à sua própria pessoa, falando, por um lado, da
necessidade de sua morte e, por outro, de seu papel futuro como Filho do
homem. A mensagem central das epístolas, que tem por objeto a fé na
morte redentora de Cristo por nossos pecados, condição primordial de nossa
salvação, está ligada ao ensinamento de Jesus nos evangelhos sobre o per-
dão de Deus, o Pai, que não leva em conta nossos méritos, mas nossa
penitência; e está também ligada ao fato, relatado pelos evangelhos, de
que Jesus mesmo, durante seu ministério, perdoou, efetivamente, os peca-
dos. Toda a ética da Igreja primitiva, pressuposta nas epístolas e baseada
no amor divino, revelado e realizado na obra de Cristo, está ligada à exi-
gência evangélica do amor ao próximo, que se baseia no amor de Deus por
nós. Os meios da graça, oferecidos pela Igreja cristã, o Batismo e a Euca-
ristia (Santa Ceia), estão ligados primeiramente ao Batismo que Jesus
mesmo recebeu de João Batista e que ele cumpriu sobre a cruz, em segun-
do lugar à última ceia de Jesus com seus discípulos. O Espírito Santo, o
poder da ressurreição, que está atuante na comunhão dos crentes e "renova
de dia em dia" (2 Co 4.16) seus membros, está ligado não somente ao
acontecimento da ressurreição de Jesus, à sua vitória sobre a morte, mas
também aos milagres de Jesus dos quais falam os evangelhos.
O que unifica sobretudo a teologia de todos os livros do Novo Testamen-
to é sua espera comum pelo fim do mundo. Essa esperança distingue-se
daquela dos judeus, pois aqui o Reino de Deus não é somente algo vindou-
ro, mas ao mesmo tempo futuro e presente. Ela se fundamenta na fé naqui-
lo que já é realidade em Cristo. É verdade que, no começo do cristianismo,
esse fim era esperado num futuro muito próximo, enquanto que, no tempo
subseqüente, os autores do Novo Testamento previam um período de espe-
ra mais longo. É fundamental e comum em todo o Novo Testamento, no

94
ensinamento de Jesus nos evangelhos sinóticos, bem como nos Atos dos
Apóstolos, nas epístolas e no Apocalipse, que, apesar de nossa ignorância
sobre a duração que ainda nos separa de seu cumprimento, já entramos na
fase final da história divina da salvação.
O acontecimento central da salvação é um acontecimento histórico, que
está em relação estreita com a história do povo de Israel, e até com a história
mundial e os acontecimentos de seu fim. Essa relação aproxima a fé do Novo
Testamento daquela do Antigo Testamento: ambas pertencem a uma mesma
história de salvação, e este caráter "histórico" distingue ambas das religiões
da Antigüidade. É isso que também as preservou do destino que atingiu aque-
las: sua absorção e depois seu desaparecimento no vasto sincretismo gnóstico,
perigo que já os autores do Novo Testamento reconheceram e combateram.
A união do Novo Testamento ao Antigo em uma mesma Bíblia significa,
por um lado, que se realizou, se realiza e se realizará um plano divino
sobre uma linha histórica particular, escolhida por Deus, e que se desen-
volve, desde as origens até o fim, dentro da história geral. Significa, por
outro lado, que os acontecimentos decisivos relatados no Novo Testamen-
to são ao mesmo tempo o resumo de toda essa história, seu centro e sua
norma. Mesmo que a história da salvação seja cumprida em Cristo, ela
continua a desdobrar-se no presente até o fim dos tempos, de uma maneira
freqüentemente misteriosa e em linhas sinuosas. O caminho é estreito,
mas isto é próprio do plano divino da salvação na Bíblia: que, para realizar
sua intenção de salvar todos os seres humanos, ele se sirva dessa limita-
ção, que é uma conseqüência do princípio teológico da escolha e da subs-
tituição. O plano divino toma o caminho da escolha de um pequeno núme-
ro de pessoas, e depois do Único; seu objetivo, porém, é o universo.
A alegria imensa e a paz profunda dos primeiros cristãos, testemunha-
das pelo Novo Testamento, são inspiradas pela consciência comum a to-
dos os autores de estar engajados nessa história particular e de participar
de um mesmo acontecimento com todo o passado e todo o futuro. Fazendo
parte dessa história, o tempo presente, intermediário entre a ressurreição
de Cristo e seu retomo, ganha toda a sua importância como tempo do
Espírito Santo, como tempo da Igreja, como tempo da pregação do Evan-
gelho. Pela fé, o ser humano do Novo Testamento integra sua existência
individual nessa história, e precisamente no tempo e no lugar destinados a
ele. Através de nosso nascimento natural fazemos parte da história de nos-
sa família, de nosso povo e do mundo; "crer" significa, no Novo Testa-
mento, integrar-se, em virtude de uma decisão da fé, que é um "novo nas-
cimento", nessa história particular da salvação, cujo ponto culminante e
significado é Cristo.

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