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EZEQUIEL

INTRODUÇÃO
Pano de fundo histórico pela ênfase no templo (40-48). Ele era
O livro de Ezequiel está relacionado a um casado, mas sua mulher morreu duran-
dos períodos mais críticos da história de te o curso de seu ministério (24.15-18).
Israel. Os oráculos do livro cobrem um Diferentemente de Jeremias, seu contem-
período de 22 anos, de 593 a 571 a.C. (v. porâneo, Ezequiel exercitou sua carreira
quadro da página 949). Durante esse tem- profética na Babilônia. Muitos de seus pri-
po a cidade de Jerusalém foi sitiada e des- meiros oráculos lidam com acontecimen-
truída. O templo fora queimado e a monar- tos ocorridos em Jerusalém e Judá. Esses
quia chegara ao fim. A população de Judá fatos e os detalhes dos próprios oráculos
sofria as privações resultantes da guerra. levaram alguns comentaristas a sugerir
Muitos iriam para o exílio. que Ezequiel passou parte de sua carrei-
Do ponto de vista humano, boa parte ra profética na Palestina. Entretanto, não
da discórdia do período era motivada pela há afirmação alguma no livro que apoie
instabilidade política geral do Oriente Mé- diretamente essa perspectiva. Como um
dio naquele tempo. A Palestina, uma pe- exilado que profetizava para outros exi-
quena região, era constantemente afetada lados, Ezequiel se preocupava, sem dúvi-
pelas mudanças no equilíbrio do poder em da nenhuma, com as esperadas catástro-
toda aquela região. O Egito era uma antiga fes em sua terra. Sua plateia certamente
superpotência. A Assíria tinha começado a também estava ansiosa para ouvir sobre
ruir, mas a Babilônia estava ficando cada o destino de seu país. Mas é evidente que
vez mais forte. Israel, o Reino do Norte, devemos esperar que os acontecimentos
tinha sido destruído pelos assírios em em Israel/Judá ocupassem parte substan-
722/721 a.c. As alianças do reino de Judá cial de seu trabalho profético. Ser capaz
se alternavam entre o Egito e a Babilônia. de perceber o que estava acontecendo em
Quando o rei Jeoaquim tentou se rebelar terras distantes do lugar onde morava era
contra a Babilônia, por volta de 601-600 uma habilidade necessária para um profe-
a.c., Nabucodonosor respondeu com o ta exilado na Babilônia.
cerco de Jerusalém e sua consequente do- Como profeta, esperava-se que Ezequiel
minação, em 597 a.C. Cerca de dez mil de relatasse suas visões ao povo. Algumas ve-
seus habitantes (2Rs 24.14) foram levados zes ele usou muito mais do que simples
para o exílio. Um desses exilados era um palavras para isso. Em muitos casos ele
sacerdote de nome Ezequiel. representou parte da profecia. Recursos
visuais não são nenhuma novidade. A
o profeta Ezequiel representação da profecia incluía deitar-
Tudo que sabemos sobre Ezequiel vem do se amarrado por cordas (4.1-8), raspar a
seu livro de profecias. Mesmo nele a in- cabeça e cortar parte do cabelo com uma
formação é pouca. Ezequiel era sacerdote espada (5.1,2), cobrir o rosto e passar
(1.3) bem como profeta. Sua formação através de um buraco na parede (12.3-7),
sacerdotal é demonstrada em sua preo- tremer (12.18) e não lamentar a morte de
cupação pela pureza ceremonial (4.14) e sua esposa (24.16-24). Não é de admirar
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que sua sanidade tenha sido questionada. Essas duas expressões não são inter-
Contudo, a própria estranheza de suas cambiáveis. Elas dão uma indicação do
ações, assim como seus oráculos, serviram tipo de profecia que seguirá. A primeira
para atrair atenção para a sua mensagem. expressão é de longe a mais frequente. Ela
Parece que sofreu também uma perda par- indica o início de uma mensagem verbal
cial da fala em parte de sua carreira pro- de Deus a qual normalmente deverá ser
fética. Seu pleno poder de fala retomou retransmitida ao povo de Israel. A segun-
quando Jerusalém caiu (33.21,22). da expressão é utilizada para indicar uma
Apesar de suas ações incomuns, Eze- experiência mais intensa, onde o profeta
quiel era muito respeitado como profeta. é afetado fisicamente. Ela é usada em to-
Dezoito meses depois da sua primeira vi- dos os grandes oráculos visuais, em que
são, os anciãos do povo começaram a pro- Ezequiel se sente transportado para dentro
curá-lo regularmente para consultas (8.1; da própria visão.
também 14.1; 20.1; 33.30,31). Entretanto, Os oráculos são agrupados de acordo
parece que, embora fosse admirado, nem com o assunto e nem sempre seguem uma
sempre o levavam a sério (33.30-33). É ordem cronológica estrita. Cada oráculo é
muito fácil admirar um líder moral e espi- independente de seus oráculos vizinhos.
ritual, mas nem sempre é tão fácil colocar Em alguns casos, oráculos próximos são
em prática o que ele prega. O exemplo su- separados um do outro pelo período de
premo é o de Jesus Cristo (v. Mt 7.24-29). alguns anos. Em geral a construção do li-
Ezequiel não era escravo de conven- vro traz a marca de uma mente claramente
ções sociais. Vivia sem conforto em meio organizada. A impressão é reforçada pelo
a uma sociedade confortável. Ele pertencia uso repetido de um conjunto de frases e
a uma minoria que havia se mudado à for- da natureza quase rítmica de muitas par-
ça, em decorrência da guerra em seu país. tes do texto.
Sua religião era de fato uma religião de A natureza do tema significa que os
minoria, lutando para sobreviver em uma primeiros 32 capítulos consistem em ad-
sociedade pluralista e multicultural. A po- vertências sobre o desastre, e os últimos
derosa nação em que estava exilado tinha 16 consistem em promessas de esperan-
muitos deuses, mas ele tinha apenas um. ça. O ponto de virada no livro acontece
Contudo, com forte convicção, ele procla- com a queda de Jerusalém (33.21,22). Ele
mou a mensagem de que havia somente estabelece a fundação daquilo que virá
um Deus, que ao final salvaria seu povo, a a ser conhecido como literatura apoca-
despeito do que fizessem outras nações. líptica. Certamente sua influência mais
forte pode ser encontrada no livro do
o livro de Ezequiel Apocalipse, onde muito do simbolismo
Apesar da reputação de ser obscuro e conter é bem similar ao que encontramos no li-
dificuldades textuais, o livro de Ezequiel vro de Ezequiel. (V artigo: Apócrifos e
tem uma estrutura muito bem definida. É Literatura Apocalíptica).
uma coletânea de 52 oráculos, visões ou
mensagens divinas, descritas pelo profeta A mensagem do livro
Ezequiel. A narrativa é mínima, fornecida O livro de Ezequiel como um todo consis-
apenas para proporcionar um contexto a te em advertências iniciais de calamida-
cada um dos oráculos. Entretanto, o início des seguidas de promessas de restauração.
de cada oráculo é claramente indicado por Assim como as calamidades anunciadas
uma de duas frases - "veio a mim a pala- vieram a acontecer, também se cumpri-
vra do SENHOR" ou "A mão do SENHOR veio riam as promessas de restauração. O povo
sobre mim". de Deus, que tanto sofrera no passado,
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seria finalmente salvo de sua misena. ser instrumento de Deus, mesmo ao ponto
Israel retomaria a seu Deus e à sua terra de punir a Israel.
prometida. Eles seriam o seu povo, e ele As imagens no livro de Ezequiel podem
seria o Deus deles. ser perturbadoras. Os oráculos de Ezequiel
Vários outros temas podem ser encon- estão relacionados a um dos períodos mais
trados nos oráculos. A questão da res- negros da história de Israel. Durante sua
ponsabilidade humana aparece de várias carreira profética seu povo seria disper-
formas diferentes. A destruição pela qual sado, e a cidade de Jerusalém e o templo,
Israel passaria era resultado de sua própria destruídos. Todavia, o livro termina com
perversidade. Sua punição era consequên- uma mensagem de esperança. No final dos
cia de sua idolatria. Todavia, a culpa não tempos, o Pastor reuniria suas ovelhas.
era uma questão puramente comunitária.
As pessoas não foram punidas simples- Ezequiel para os dias de hoje
mente devido ao pecado de seus ancestrais O livro de Ezequiel tem passagens que são
(cp. 18). Eles eram culpados pelo que cada dificeis de interpretar e ainda mais dificeis
um deles, individualmente, tinha feito, de aplicar. Pode ser um consolo para o lei-
mas essa questão ainda será mais bem tra- tor moderno o fato de saber que mesmo os
balhada. Ser considerado justo não é ape- antigos rabinos tiveram de refletir longa-
nas uma questão de somar pontos positivos mente e com afinco sobre o conteúdo do
para compensar os negativos (uma posição livro. Há também a tendência infeliz en-
comumente defendida também nos dias de tre algumas pessoas de se sentir atraídas
hoje). Tinha de haver uma mudança funda- por passagens mais obscuras em vez das
mental e duradoura no coração do indiví- que são mais simples e diretas. Entretanto,
duo (18.30-32). muitos pontos são úteis no nosso empenho
Outro tema importante é o relacio- de estudar o livro. Primeiro, é importante
namento de Deus com o seu povo. Uma lembrar que o livro é uma coletânea de orá-
frase que aparace com frequência por todo culos independentes. Podemos facilmente
o livro é que os acontecimentos previstos identificá-los, pois todos começam com
ocorreriam de modo que eles "saberão que a expressão: "Veio a mim a palavra do
eu sou o SENHOR". As calamidades não SENHOR" ou: "A mão do SENHOR veio sobre
eram apenas uma forma de punição. Elas mim [Ezequiel]". Os oráculos são agru-
eram também um meio de levar o povo ao pados por temas, embora nem sempre em
conhecimento de seu Deus. Esse relacio- ordem cronológica estrita, e podem variar
namento especial é enfatizado ao longo em tamanho, indo de poucos versículos a
de todo o livro. Ele os ajuntaria e os guar- vários capítulos. Pelos oráculos datados
daria da mesma forma que um pastor faz sabemos haver, às vezes, lacunas de vários
com suas ovelhas. Um pastor viria para anos entre eles, de modo que é melhor es-
zelar por eles e também para governá-los colher um oráculo específico, lê-lo do co-
(34.1-31; 36.24-28). meço ao fim e considerá-lo em si mesmo.
Contudo, o íntimo relacionamento en- Em segundo lugar, Ezequiel tende a ser
tre o Senhor e o povo de Israel não signifi- uma prosa quase poética em seu estilo. Há
cava que outras terras e nações estivessem temas e expressões recorrentes em todo
fora da esfera de sua autoridade e controle. o livro. Uma expressão que pode parecer
Os oráculos de Ezequiel às nações estran- misteriosa em certa seção pode ficar mais
geiras tomam bem claro que Deus não é clara em outra. Algo que ajuda, portanto,
simplesmente um divindade local que go- é começar por aquelas passagens menos
verna Jerusalém e os montes ao redor. De "empolgantes" para se obter uma noção
alguma maneira uma nação pagã poderia da linguagem e do pensamento do livro.
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Por essa razão é melhor não começar pelos também têm seus ídolos, falsos profetas,
capítulos iniciais. Os oráculos mais lon- santuários corruptos, instituições decaden-
gos 1.1-3.15; 8.1-11.25; 38.1-39.29 tes e fanatismos nacionais. Quaisquer que
e 40.1-48.35 deveriam ser lidos por úl- sejam seus nomes, as palavras de Ezequiel
timo. O cp. 12 talvez seja um bom ponto podem muito bem ser aplicadas aí.
de partida. Há o perigo de se aplicar aos dias de
Em terceiro lugar, também ajuda muito hoje de forma rigorosa demais aquilo que
ter sempre em mente os temas gerais que aconteceu há quase dois milênios e meio,
marcam e ligam os oráculos. Os cp. 4-24 especialmente quando nomes semelhantes
contêm advertências sobre a iminente des- aparecem (particularmente Israel). Não
truição de Jerusalém por Nabucodonosor. obstante, o perfil geral dos problemas so-
Os cp. 25-32 contêm advertências às ciais contemporâneos é tão semelhante
nações vizinhas sobre sua atitude em re- que os princípios podem ser aplicados fa-
lação a Israel em tempos de aflição, e os cilmente. A sociedade, assim como Deus,
cp. 33-48 contêm mensagens de espe- não muda.
rança ao povo de Israel, depois da queda
de Jerusalém.
A situação política do povo de Israel Leitura adicional
naquele tempo era, obviamente, bem di- ELLIsoN, H. L. Ezekiel: the man and his
ferente da atual. Contudo, por trás dos message. Paternoster, 1956.
detalhes políticos podemos ver uma so- TAYLOR, J. B. Ezequiel: introdução e co-
ciedade sobrecarregada por desairosos mentário. SCB. Vida Nova, 1984.
problemas comuns: incerteza quanto ao DAVIDSON, A. B. The book of the prophet
futuro; sublevações internacionais; plura- Ezekiel. CBSC. Cambridge, 1906.
lismo religioso; corrupção institucional; WEVERS, 1. W. Ezekiel. NCB. Eerdmans,
fé desordenada. As sociedades modernas 1969.

ESBOÇO
1.1-3.21 Ezequiel é comissionado
1.1-3.15 O chamado de Ezequiel
3.16-21 A responsabilidade do atalaia

3.22-24.27 Advertências sobre a iminente destruição de Jerusalém


3.22-5.17 Mensagens encenadas: a previsão do cerco a Jerusalém
6.1-14 Profecias contra a idolatria em Israel
7.1-27 Advertência sobre o iminente desastre em Israel
8.1-11.25 A idolatria de Jerusalém e sua punição
12.1-16 Uma mensagem encenada: a previsão do exílio
12.17-20 Uma mensagem encenada: o tremor de Israel
12.21-25 A profecia será cumprida ...
12.26-28 ... e cumprida logo
13.1-23 A condenação dos falsos profetas e profetisas
14.1-11 A condenação da idolatria
14.12-23 O julgamento de Israel não será evitado pela retidão de
alguns
15.1-8 Jerusalém: a videira inútil
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16.1-63 Jerusalém: a esposa promíscua e infiel
17.1-24 Águias, cedros e uma videira - uma parábola política
18.1-32 A responsabilidade do indivíduo
19.1-14 Lamentos pelos príncipes de Israel
20.1-44 A persistente rebeldia de Israel
20.45-49 Julgamento pelo fogo
21.1-7 Julgamento pela espada
21.8-17 A espada é afiada
21.18-32 A espada do rei da Babilônia
22.1-16 Os pecados de Jerusalém
22.17-22 A fundição de Israel
22.23-31 Injustiça na terra: corrupção em todos os níveis
23.1-49 Oolá e Oolibá - irmãs adúlteras
24.1-14 A parábola da panela: Jerusalém cercada
24.15-27 A morte da esposa de Ezequiel e o significado do lamento

25.1-17 Profecias contra as nações vizinhas


26.1-28.19 Profecias contra Tiro
26.1-21 A autossatisfação denunciada
27.1-36 Um lamento
28.1-10 Contra a arrogância
28.11-19 Expulsão do "Éden"

28.20-26 Profecia contra Sidom: "Saberão que eu sou o Senhor"


29.1-32.32 Os oráculos egípcios
29.1-16 Egito: declínio e queda
29.17-21 A recompensa de Nabucodonosor
30.1-19 Um dia negro para o Egito
30.20-26 Os braços quebrados do faraó
31.1-18 A lição do cedro com muitos ramos para o Egito
32.1-16 Lamento pelo Faraó
32.17-32 A descida do Egito para o domínio da morte

33.1-20 O escopo da responsabilidade


33.21,22 Ezequiel recupera sua fala
33.23-33 A posse ilegal de Israel
34.1-48.35 Profecias de restauração
34.1-31 Os pastores de Israel são denunciados
35.1-36.15 Profecias e montes: advertências a Edom e encorajamento
a Israel
36.16-38 A restauração de Israel
37.1-14 O vale dos ossos secos
37.15-28 A reunião de Israel
38.1-39.29 Profecias contra aqueles que se opunham a Israel
40.1-48.35 Visões do novo templo e da nova terra
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COMENTÁRIO para o profeta ela seria doce como mel


(3.1-4). Toda essa experiência mudou sua
1.1-3.21 Ezequiel vida. A ele seria dado poder para levar a
é comissionado mensagem do Senhor ao povo, a despeito
da resistência deste em relação a ela. Ele
1.1-3.15 O chamado de Ezequiel precisaria de tal poder, pois sua tarefa não
O livro de Ezequiel começa da forma como seria nada fácil.
pretende continuar. Depois da mais breve Não foi pela razão, pela lógica fria
das narrativas introdutórias nos é apresen- ou ainda pela perspectiva de benefícios
tado o primeiro de uma série de oráculos de longo prazo que Ezequiel aceitou seu
que constituem o livro. Esse oráculo inicial chamado profético. Foi pelo fato de ele
pertence ao grupo de profecias altamente ter visto a grandeza e majestade de Deus.
visuais prefaciadas pela expressão "a mão Os mandamentos de Deus são mais fáceis
do SENHOR veio sobre mim". de obedecer quando contemplamos aquele
Embora o texto não o afirme de ma- que os ordenou.
neira explícita, esse oráculo representa o 1.1-3 Ezequiel, filho de Buzi, passa
chamado profético de Ezequiel. A visão foi pela experiência das visões enviadas por
intensa: a narrativa nos conta que o profeta Deus. 1.4-14 Ele vê uma nuvem grande
sentou-se, atônito, por vários dias (3.15). e radiante cujo centro brilha como me-
Nela ele vê um ser radiante sentado em tal reluzente. Quatro criaturas podem ser
um trono de safira, abaixo do qual estavam vistas em meio ao fogo do centro dessa
quatro criaturas de aspecto futurístico. Ele nuvem. Elas têm a forma humana, mas
ouve uma voz que dizia que ele seria en- cada uma tem quatro faces e dois pares de
viado a declarar aquilo que o Senhor tinha asas. As faces são como as do homem, do
a dizer ao povo de Israel no exílio. Ele é leão, do boi e da águia. As criaturas vão
avisado sobre a teimosia do povo; mesmo e vêm como relâmpagos. 1.15-21 Cada
assim ele deve falar, não importa se vão uma delas é acompanhada por um objeto
ouvi-lo ou não. brilhante e redondo como uma roda. As
Há muita coisa nessa visão que não é rodas vão para onde as criaturas vão. O
explicada, especialmente em relação aos som das asas das criaturas é como de um
querubins e às rodas que os acompanha- grande estrondo. 1.22-28 Acima dos que-
vam. O sentido geral do simbolismo é rubins está o que parece uma abóbada de
transmitir a grandiosa majestade de Deus. cristal brilhante. Em cima de tudo isso há
Os espantosos querubins exibiam faces o que parece um trono de safira, sobre o
que representam as principais formas de qual está assentada uma figura radiante. O
vida - o homem, o leão (rei das dos ani- brilho do trono é o de um arco-íris. Essa
mais selvagens), o boi (o mais notável dos é a aparência da glória do Senhor. 2.1-8
animais domésticos) e a águia (a rainha A voz diz a Ezequiel que ele será envia-
dos pássaros). Eles ziguezagueavam à se- do ao povo de Israel, um povo obstinado
melhança de relâmpagos acompanhados e teimoso e em constante rebeldia contra
pelas rodas. Contudo, essas criaturas mag- Deus. Ele profetizará para eles, quer ou-
níficas não eram nada mais que servos do çam, quer deixem de ouvir. Ele nada deve
trono. Ficavam abaixo do trono de Deus. temer e nem ser rebelde como aquela na-
Se os servos eram assombrosos, muito ção. 2.9-3.3 Ezequiel recebe um rolo
mais o era o próprio rei. contendo lamentações, suspiros e ais e
A Ezequiel foi dito que ele seria en- ouve a ordem de que deve comer o rolo.
viado ao povo de Israel, e sua mensagem Ao fazê-lo, ele descobre que seu sabor é
conteria lamentações, suspiros e ais, mas doce como o mel. 3.4-11 Ele é avisado de
que o povo de Israel poderá não lhe dar
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.
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ro ou qualquer outro tipo de elevação. O


ouvidos. Consequentemente ele receberá nome é idêntico ao da moderna Tel Aviv,
a força de vontade para o cumprimento embora os dois lugares sejam muito dis-
dessa tarefa. Ele também recebe a ordem tantes um do outro.
de ir imediatamente a seus compatriotas,
no exílio, para lhes transmitir a mensagem 3. 16-21 A responsabilidade
de Deus. 3.12-15 Transportado de volta, do atalaia
para junto dos exilados, ele permanece Após passar vários dias se recuperando do
sentado, atônito, por sete dias. trauma de sua visão inicial, Ezequiel recebe
Notas. 1.1 "No trigésimo ano"; o tex- uma segunda mensagem mais breve. Desta
to não diz a que essa data se refere. Uma vez suas responsabilidades são esboçadas
das possibilidades é que seja uma refe- juntamente com as penalidades relaciona-
rência à idade do profeta. O rio "Quebar" das a qualquer tentativa de ele se esquivar
era um braço do Eufrates a sudeste da de seus deveres (cf 33.1-9). O privilégio
Babilônia. 2 "Quinto ano" de cativeiro de ser chamado para ser servo de Deus traz
- 593 a.c. 5 Os "quatro seres viventes" consigo muitas responsabilidades. O cum-
eram servos do trono. Eles são chamados primento fiel dessas responsabilidades é
de "querubins" no cp. 10. 15-21 "Rodas"; mais importante do que o fato de elas pare-
os antigos intérpretes acreditavam que o cerem ter sido bem-sucedidas ou não.
texto está descrevendo um tipo de carrua- 17 Uma das responsabilidades de Eze-
gem. A natureza de suas rodas permite quiel é a de ser um atalaia para Israel, para
que ela se mova facilmente em qualquer transmitir-lhe as mensagens de Deus. 18,20
direção. 16 "Berilo": um tipo de rocha. Se ele não retransmitir as advertências de
22 "Firmamento"; a mesma palavra usada Deus para alguém, ele será considerado
em Gênesis 1.6-8. A ideia aqui é de uma responsável pelo destino dessa pessoa.
sólida plataforma que separava os queru- 19-21 Ao transmitir a mensagem ele terá
bins do trono. 28 "A aparência da glória"; cumprido sua tarefa, mesmo que o receptor
Ezequiel toma cuidado para não dizer que da mensagem a ignore.
viu a Deus. 2.1 "Filho do homem": essa Nota. 14 "Atalaia": a tarefa do atalaia
expressão ocorre mais de 90 vezes no li- era manter-se alerta em relação a qualquer
vro de Ezequiel. Nesse livro, ela é uma perigo de fora que ameaçasse a cidade.
referência ao fato de que Ezequiel é um
mero ser humano, um "mortal". 10 Nos 3.22-24.27 Advertências
rolos normalmente se escrevia em apenas sobre a iminente destruição
um de seus lados. O fato de esse rolo estar de Jerusalém
escrito "por dentro e por fora" pode indi-
car a plenitude e a abrangência da mensa- 3.22-5.17 Mensagens encenadas:
gem. 3.1 "Come este rolo": Ezequiel deve a previsão do cerco a Jerusalém
absorver a mensagem recebida. Ele não é O primeiro conjunto de atos proféticos de
apenas um transmissor dos sinais divinos. Ezequiel tem caráter tanto visual como ver-
As palavras de Deus também são para ele. bal. Ele prega uma mensagem bastante de-
11 "Vai aos do cativeiro": o público-alvo sagradável para o povo de Jerusalém: logo
de Ezequiel serão seus compatriotas exi- estarão sitiados. Além disso, o cerco será
lados na Babilônia. 14 "Eu fui amargura- tão longo que a comida se tornará escassa.
do na excitação do meu espírito": essas Um terço do povo morrerá de fome e en-
emoções intensas provavelmente foram fermidades. Outro terço morrerá defenden-
instigadas pela obstinação de Israel (cf do a cidade. Dos restantes, muitos serão
3.5-8). 15 "Tel-Abib": "tel" significa mor- dispersos e apenas poucos permanecerão.
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Para transrmtir essa terrível mensa- tado pela espada ao redor da cidade. O
gem, Ezequiel deveria se valer de um mé- terço remanescente, espalhado ao vento.
todo chamativo. Ele deve encenar o cerco. Alguns dos fios desse último terço de-
Nessa ocasião, parece que ele havia per- vem ser atados nas abas de suas vestes e
dido sua capacidade normal de fala, que alguns outros devem ser queimados.
somente lhe era devolvida quando tinha 5.5-17 Jerusalém se rebelou contra as
um oráculo para proclamar (3.26,27). Essa leis de Deus. Portanto, sua proclamação
perda parcial da fala continuaria até que as é: "Eis que estou contra ti, Jerusalém, e
notícias sobre a queda de Jerusalém che- executarei juízos no meio de ti. Devido
gassem a seus ouvidos (33.22; cf 24.27). à tua idolatria e práticas detestáveis, um
Ainda haveria outras mensagens que ele terço de teu povo morrerá de peste e será
encenaria (12.1-16; 17-20; 24.15-27), mas consumido pela fome no meio de ti. Uma
esta primeira deve ter estabelecido sua re- outra terça parte cairá à espada em redor
putação como um dos profetas mais excên- de ti. A última terça parte espalharei a to-
tricos de Israel. dos os ventos, e desembainharei a espada
Podemos achar o método de Ezequiel atrás dela. Assim se cumprirá a minha ira
para transmitir suas mensagens pouco or- e eles saberão que eu sou o Senhor. Tu
todoxo, talvez até divertido ou constrange- servirás de advertência a outras nações
dor. Entretanto, é muito mais importante quando teu castigo chegar".
comunicar a mensagem do que preservar a Notas. 3.23 "A glória do SENHOR": como
imagem popular do orador. Ezequiel tinha visto em 1.28. 25 "Eis que
3.22,23 Ezequiel recebe a ordem de porão cordas sobre ti": cf 4.8. Ezequiel fi-
que saia para o vale. Quando o faz, ele cou amarrado com cordas durante o tempo
vê a glória do Senhor e cai com o rosto que representou essa profecia. 4.1 "Tábuas
em terra. 3.24-27 Então, é instruído a se de argila" ou mais tarde "tijolo", eram ta-
trancar em sua própria casa. Ele também bletes de argila macia usados como papel
é informado de que ficará incapacitado para se escrever. 3 "Assadeira de ferro":
de falar - exceto para transmitir uma poderia representar o poderoso controle do
mensagem de Deus. 4.1-8 Recebe a or- cerco. 5 "390 dias": foram feitas tentativas
dem de fazer um pequeno modelo que para explicá-los em termos da duração dos
represente a Jerusalém sitiada. Ele deve exílios: o exílio de Judá por uma geração
se deitar sobre seu lado esquerdo por 390 (cerca de 40 anos) de 586-536 a.c.; o de
dias. Durante esse tempo ele carregará a Israel por 150 anos de 734-580 a.C. (na
iniquidade da nação de Israel. Então, terá LXX está registrado 190 anos, como o to-
de se deitar sobre seu lado direito por 40 tal de ambos os exílios). Essa não é uma
dias, carregando a iniquidade da nação de explicação satisfatória. Talvez seja melhor
Judá. Cada dia representará um ano. 4.9- interpretar os anos como símbolo de in-
17 Durante os 390 dias ele terá de subsis- tensidade e não de duração: a infidelidade
tir com escassa ração de alimento, como de Israel é dez vezes pior que a de Judá.
sinal da escassez que atingirá Jerusalém. 10,11 A ração diária de alimento de Eze-
Ele evita ter de profanar o alimento, mas quiel era de aproximadamente 200 gramas
profanação semelhante ocorreria quando de cereais e 0,6 litro de água. Era uma
o povo de Israel fosse exilado para nações quantidade muito pequena, simbolizando a
estrangeiras. 5.1-4 Ele recebe a ordem de escassez de alimentos (v. 17).5.1 Raspar a
raspar sua cabeça e barba. Quando tiver cabeça era um sinal de pesar. 17 Os quatro
terminado sua representação do cerco, flagelos mencionados aqui - peste, fome,
deve queimar um terço dos cabelos no bestas-feras e sangue (guerra) - aparecem
meio da cidade. Outro terço deve ser cor- várias vezes em todo o livro.
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.
III
seus ídolos e santuários, e sua terra esti-
6. 1-14 Profecias contra
a idolatria em Israel
ver desolada, então eles saberão que eu
Embora essa profecia seja dirigida contra sou o SENHOR".
os montes de Israel, o alvo real da con- Notas. 11 "Ah!": muitos comentaristas
denação são os santuários ou "lugares al- sugerem haver aqui há nuanças de escár-
tos" que na época havia nos montes. Os nio. 14 "Desde o deserto até Ribla": isto é,
lugares altos eram locais abertos utiliza- por toda a terra.
dos para adoração, um costume cananeu.
Algumas pessoas usavam esses lugares 7.1-27 Advertência sobre o
para adorar ao Senhor, mas muitas das iminente desastre em Israel
práticas idólatras pagãs eram conservadas. O sentido de urgência nessa profecia é in-
A advertência é que a iminente destruição tenso. A calamidade que foi prevista está
da cidade também afetará as regiões ao prestes a acontecer. Não há mais tempo
redor. Assim, os praticantes da adoração de mudar a cabeça de ninguém. A guerra
nos lugares altos não podem ser salvos é iminente. Jerusalém será sitiada e sua
pelos seus ídolos. Contudo, os eventos terra devastada.
vindouros não serão apenas uma forma de 1-9 Proclame para a terra de Israel:
punição. A expressão "saberão que eu sou "Agora vem o fim sobre ti! Não terei pie-
o SENHOR" é repetida em todo o oráculo dade. Segundo os teus caminhos assim te
(v. 7,10,13,14). Os adoradores dos luga- castigarei e então saberás que eu sou o
res altos saberão quais deuses são falsos e SENHOR". 10-14 "Vem o tempo, é chega-
qual é o Deus verdadeiro. do o dia". 15-22 "A espada, a fome e a
A adoração de ídolos nos lugares altos peste esperam por vós. Os que sobrevi-
foi um problema perene para Israel (cf verem, o horror os cobrirá; em todo rosto
IRs 12.28-33; 2Rs 17. 9-11). Embora haverá vergonha. Suas riquezas não se-
Ezequiel, mais tarde, viesse a atacar os pe- rão de utilidade para eles - elas serão
cados mais "novos" que Israel adquirira de saqueadas". 23-27 "Farei vir os piores
seus vizinhos, alguns dos oráculos lidam de entre as nações, eles possuirão sua
com esses antigos problemas. Práticas iní- propriedades. Não haverá respeito. Até
quas, mesmo que institucionalizadas em o rei se lamentará. Segundo o seu cami-
uma sociedade por séculos de tradição, nho, lhes farei e, com os seus próprios
continuam sendo erradas. juízos, os julgarei; e saberão que eu sou
1-7 Proclame aos montes de Israel: o SENHOR".
"Eis que trarei a espada sobre vós e des- Notas. 10 "Já floresceu a vara, rever-
truirei os vossos altos e outros altares. deceu a soberba": violência e orgulho tra-
Abaterei o vosso povo na frente de vos- rão agora sua própria recompensa. 12 "O
sos ídolos. Então sabereis que eu sou o que compra não se alegre": a crise que se
SENHOR". 8-10 "Mas alguns serão poupa- aproxima mostrará ser tolice exercer uma
dos e espalhados entre as nações. Então se atividade comercial normal. 15 "Fora está
lembrarão de mim os que de vós escapa- a espada; dentro, a peste e a fome": aque-
rem entre as nações para onde forem le- les que forem deixados fora da cidade se-
vados em cativeiro; eles terão nojo do que rão destruídos pelas tropas inimigas. Os
fizeram em todas as suas abominações. que ficarem em seu interior sofrerão com
Saberão que eu sou o SENHOR". 11-14 o cerco. Fome e enfermidades seguirão.
"Chorai e lamentai por todas as terriveis 19 "Prata e ouro": com a intensificação do
abominações da casa de Israel! Pois cai- cerco, o dinheiro não terá utilidade para a
rão à espada e de fome e de peste. Quando compra de alimentos. 23 "Faze cadeia":
EZEQUIEL 8 1088

8.1-11.25 A idolatria de Jerusalém que não tiver tal marca. 9.6b,7 Eles co-
e sua punição meçam com os anciãos no templo. 9.8-10
Em sua grande visão, Ezequiel se vê trans- Os apelos de Ezequiel para que o Senhor
portado em transe ao templo de Jerusalém. abrande sua pena é rejeitado devido às
Ali ele tem uma visão do terrível estado grandes injustiças e violências praticadas
em que se encontra a religião de Israel. As em Israel e Judá. 9.11 O homem que rece-
áreas do templo estão sendo usadas para beu a ordem de fazer as marcas completa
práticas pagãs. Segue-se a retribuição, e sua tarefa. 10.1-6 Então, ele é instruído a
Ezequiel, então, fica ciente do majestoso encher as mãos de brasas acesas que estão
trono e das impressionantes criaturas que ao lado dos querubins e espalhá-las pela
observou em sua visão inicial - a glória cidade. 10.7,8 Um dos querubins lhe en-
de Deus. Haverá retribuição para aqueles trega as brasas em fogo. 10.9-22 Os quatro
que conspiraram para a injustiça social na querubins estão respectivamente acompa-
cidade. Contudo, a profecia termina com a nhados por objetos semelhantes a roôas.
promessa de que os exilados voltarão para Esses querubins e rodas são os mesmos
a sua terra. que Ezequiel vira anteriormente.
O sincretismo - amistura de elemen- 11.1-7 Então Ezequiel é levado à por-
tos de diversas religiões - é um dos cami- ta oriental do templo. O Senhor lhe mos-
nhos mais fáceis de se seguir. Os supostos tra um grupo de 25 homens, maquinando
religiosos podem apostar de todos os lados vilezas e aconselhando perversamente.
e assim agradar todos os deuses. Todavia, Ezequiel recebe ordem de profetizar a eles.
o Deus de Israel é um Deus ciumento. Ele 11.7-12 Deus conhece os pensamentos
não aceita que nenhum outro deus receba deles. Na cidade, eles mataram a muitos,
devoção e adoração. Em nossas sociedades mas serão retirados do meio dela e casti-
pluralistas, em que abundam todos os tipos gados, ao serem entregues nas mãos dos
de fé, há necessidade de se enfatizar esse estrangeiros. Eles não respeitaram as leis
aspecto, algo que muitas vezes é malcom- de Deus. 11.13-15 Enquanto Ezequiel pro-
preendido. Contudo, concessões de nossa fetiza, um dos homens do grupo, Pelarias,
parte não são menos repugnantes a Deus filho de Benaías, morre. Ezequiel, alarma-
do que as práticas pagãs descritas aqui. do, pergunta ao Senhor se ele dará fim ao
8.1-4 Ezequiel tem uma visão na qual é restante de Israel. Ele recebe a resposta de
transportado para o templo em Jerusalém. que os que residem agora em Jerusalém
Ali ele vê a glória de Deus - da mesma acham que os exilados já não servem para
maneira que a viu na planície. Então, a ele herdar a terra de Israel. Então, Ezequiel re-
são mostrados vários exemplos da idolatria cebe a ordem de dizer a eles: "Ainda que
ali praticada. Ele vê: a imagem de um ídolo estejais exilados, ainda assim estive con-
edificada em frente ao altar (8.5,6); 70 an- vosco. Hei de trazer-vos de volta à terra de
ciãos de Israel adorando figuras de animais Israel. Os que voltarem eliminarão todos
estampadas nas paredes (8.7-13); mulheres os seus ídolos. Receberão um novo cora-
sentadas chorando a Tamuz (8.14,15); 25 ção e seguirão as minhas leis. Eles serão o
homens adorando o sol (8.16-18). meu povo e eu serei o Deus deles. Aqueles
9.1-6a Certo homem vestido de linho que continuarem devotados a seus ídolos
recebe a ordem de fazer uma marca na tes- colherão a sua recompensa" (11.18-21).
ta daqueles em Jerusalém que abominam 11.22-25 A glória de Deus se move
profundamente tais práticas. O homem para um monte a leste de Jerusalém. Então,
começa a executar as ordens que recebeu. Ezequiel é transportado de volta de sua
Outros seis homens também recebem a or- visão aos exilados na Babilônia. Ele lhes
1089 EZEQUIEL 12 - : :

Notas. 8.1 "Sexto ano": 592 a.c. parecesse com um x. A marca servia para
"Anciãos": apenas 14 meses depois de sua diferenciar os que foram fiéis dos que não
visão, Ezequiel tinha alcançado o estágio foram. 10.1 "Trono de safira": corresponde
em que até os anciãos de Israel o visitavam à visão inicial de Ezequiel (cf 1.26). 10.2
regularmente para consultá-lo (cf 14.1; "Querubins": as majestosas criaturas do
20.1).2 "Figura como de fogo": "Como a cp. 1 são identificadas agora como queru-
de um homem" (NIV) - neste e nos versí- bins. Esses seres mitológicos são descritos
culos subsequentes Ezequiel é muito vago como estando sob, ou talvez mesmo sus-
em suas descrições da figura semelhante à tentando, o trono de Deus. Seu papel aqui
de um homem que ele viu. Ele tem muito como servos do Senhor está em harmonia
cuidado ao enfatizar que o que descreve é com o modo como são representados so-
como lhe pareceu, não que aqueles sejam bre a tampa da arca da aliança (Êx 25.18-
de fato os atributos fisicos do mensageiro 22) e com outras referências do AT que
divino. 3 "Porta do pátio de dentro, que descrevem o Senhor como "entronizado
olha para o norte": em sua visão, Ezequiel entre os querubins" (lSm 4.4; 2Sm 6.2;
é transportado para o templo em Jerusalém. 2Rs 19.15; lCr 13.6; SI 80.1; cf SI 18.10).
"Imagem dos ciúmes": possivelmente a Eles podem variar de alguma maneira em
imagem de Aserá, a deusa da fertilidade. sua aparência; em Ezequiel 41.18-20 é
Ao contrário dos ídolos mencionados pos- descrito um tipo de querubim com dois
teriormente neste capítulo, essa imagem rostos. 10.14 "Querubim": um dos quatro
está à vista do público. É uma provocação; rostos é descrito como o de um querubim e
está ali para levar os que por ali passam a não como o de um boi em 1.10. A diferen-
segui-la; ela incita ressentimentos entre os ça talvez se deva a um deslize do escriba
fiéis do povo de Israel; mas, acima de tudo, (cf 10.22). 11.3 "Não está próximo o tem-
ela provoca o ciúme de Deus. 4 "A glória po de construir casas": a tradução exata da
de Deus": ainda estava ali a despeito do que primeira metade desse versículo é incerta,
acontecia no templo. 7-12 Ezequiel vê ago- mas a impressão geral do versículo é que
ra uma idolatria de natureza mais secreta. os conspiradores estão tentando ler os si-
10 "Pintados"- isto é, gravados, esculpi- nais dos tempos e chegaram à conclusão
dos. 11 "Setenta homens dos anciãos": isto de que eles serão a elite da sociedade de
é, uma proporção substancial dos anciãos Jerusalém. Eles serão o corte de primeira,
de Israel. 14 "Tamuz" (também chamado e não os miúdos (cf v. 7,11). 11.13 "Ao
Dumuzi) era um deus da Babilônia cuja tempo em que eu profetizava": isto é, no
adoração incluía lamentações por sua des- decorrer da visão. 11.19 "Coração de pe-
cida ao mundo subterrâneo. 16 O insulto dra", "carne": um tema que será repetido
adicionado aqui é o da adoração ao sol em posteriormente (cf 36.26). 11.23 A glória
frente ao altar do templo. 17 "Ei-los a che- do Senhor finalmente deixa a cidade.
gar o ramo ao seu nariz": possivelmente
algum gesto cerimonial ligado à adoração 12.1-16 Uma mensagem encenada:
do sol. 9.1-11 Esse trecho é muito seme- a previsão do exilio
lhante a outros textos apocalípticos sobre o Nesse oráculo e no posterior, Ezequiel deve
juízo final. 9.3 A glória de Deus começa a encenar parte da mensagem que tem de
deixar o templo. A mensagem é bem clara. transmitir. Embora sua profecia seja sobre
A paciência de Deus é duradoura mas não a iminente queda de Jerusalém, ela é dirigi-
é eterna. Se persistirmos em nossa idola- da principalmente a seus companheiros de
tria ele terá de partir. 9.4 "Marca com um exílio na Babilônia. A mensagem tem dois
sinal": a marca da letra tau, a última letra elementos. O povo de Jerusalém sofrerá o
do alfabeto hebraico, cuja forma talvez se exílio. O rei (Zedequias) tentará fugir da
EZEQUIEL 12 1090


cidade, mas será capturado (cf 2Rs 25.4; de uma casa, e não o muro da cidade. Os
Jr 39.4). A passagem também alude ao des- tijolos de barro das paredes de uma casa
tino de Zedequias: Ezequiel deve cobrir o podiam ser escavados. Essa ação indica-
rosto (12.6,12,13). Zedequias será captura- ria a natureza desesperadora da fuga para
do e terá seus olhos vazados (2Rs 25.7). o exílio. 16 "Espada, fome e peste", um
Ezequiel teve de recorrer à representa- trio bastante comum no livro de Ezequiel.
ção da terrível mensagem tanto neste como A destruição causada pela guerra produzia
no oráculo seguinte. Era uma maneira de fome e enfermidades.
transmitir a informação àqueles que de ou-
tra maneira não a ouviriam. Muitas pessoas 12.17-20 Uma mensagem
ouvem somente aquilo de que gostam. encenada: o tremor de Israel
Algumas vezes elas têm de ser surpreen- Ezequiel deve encenar, com tremores, o
didas por algo novo. Nós cristãos deve- trauma do iminente ataque a Jerusalém e
mos ver isso como um desafio a examinar seus territórios vizinhos. Ele recebe or-
nossos meios de comunicar as boas novas. dens para que trema ao comer e beber.
Novas abordagens podem ser mais esclare- Ele terá de proclamar que os habitantes de
cedoras que as tradicionais. Jerusalém e Israel comerão com ansiedade
1-6 Deus diz a Ezequiel: "O teu povo e medo, devido à violência de todos os que
é rebelde. Eles apenas veem e ouvem nela habitam. A cidade e o campo serão de-
o que querem (2). Portanto, representa vastados. Então eles saberão que Deus é o
essas ações diante deles - pode ser que seu Senhor.
assim eles entendam: Prepara a bagagem Nota. 19 "Comerão com ansiedade":
de exílio, e de dia sai, à vista deles. Do cf 4.16, texto em que a ênfase da mensa-
lugar onde estás parte para outro lugar à gem encenada (cf 4.9-17) recai mais sobre
vista deles (3,4). À tarde abre um buraco a escassez de alimentos.
na parede à vista deles e sai por ali. Cobre
teu rosto para que não vejas nada, pois fiz 12.21-25 A profecia
de ti um sinal para Israel" (5,6). será cumprida ...
7-14 Ezequiel faz exatamente o que lhe Ezequiel não era o único que alegava pro-
foi ordenado. No dia seguinte, ele recebe clamar as mensagens de Deus (cf 13.1-23).
a segunda parte da mensagem, a qual ele O povo poderia, com alguma razão, chegar
deve transmitir a Israel quando eles lhe à conclusão de que todas estas profecias ja-
perguntarem o que ele está fazendo (7- mais aconteceriam. Muitas delasjátinham se
10). Ele deve lhes explicar que é um sinal mostrado falsas antes. Ezequiel adverte-os
para eles (11). Ao povo ele proclamará que de que desta vez será diferente.
essas ações dizem respeito ao príncipe de Há muitos "provérbios de consolo"
Jerusalém e a todo o Israel. Eles irão para que as pessoas usam quando confrontadas
o exílio, para o cativeiro. O príncipe arru- com verdades desagradáveis. Aqui encon-
mará suas coisas ao anoitecer e sairá por tramos um deles: "Prolongue-se o tempo,
um buraco na parede. Ele será capturado e e não se cumpra a profecia". Um segundo
levado para a Babilônia, onde morrerá (11- é encontrado no oráculo seguinte: "A vi-
13). Seus seguidores serão dispersos por são que tem este é para muitos dias, e ele
terras estrangeiras. Alguns irão sobreviver profetiza de tempos que estão mui longe".
para contar sobre as coisas abomináveis Ezequiel deve dizer a Israel: "Os dias es-
que ele fez. Então, saberão que eu sou o tão próximos bem como o cumprimento de
SENHOR (14-16). toda profecia. Porque já não haverá visão
Notas. 5 "Abre um buraco na parede": falsa nenhuma, nem adivinhação lisonjei-
a palavra "parede" aqui indica a parede ra, no meio da casa de Israel. Porque eu, o
1091 EZEQUIEL13

Senhor, falarei, e a palavra que eu falar se algumas práticas mágicas, possivelmente


cumprirá e não será retardada; porque, em manipulando as pessoas com algo seme-
vossos dias, ó casa rebelde, falarei a pala- lhante ao vodu (18,20,21). Suas ações le-
vra e a cumprirei." vam à injustiça e até mesmo à morte (19).
Nota. 22 "Provérbio": a falha aparen- Surpreendentemente, a condenação dessas
te de previsões proféticas tinha-se tomado bruxas é menos severa do que a do primei-
proverbial. ro tipo de profetas. Elas perderão seu poder
sobre as pessoas e já não farão suas falsas
12.26-28 ... e cumprida logo profecias. Sua profissão talvez tenha sido
Talvez em decorrência do oráculo antece- muito mais resultado de necessidade eco-
dente algumas pessoas mudaram sua opi- nômica do que de uma intenção maliciosa.
nião sobre as profecias de Ezequiel. Elas 1-15 Ezequiel deve proclamar aos fal-
aceitaram a possibilidade de as advertên- sos profetas: "Ai de vós! Não ajudastes
cias de Ezequiel estarem corretas, mas Israel em seu tempo de aflição. Vossas
acreditavam que somente se cumpririam visões são falsas e tolamente esperais que
num futuro distante. Como nos dias de elas se cumpram (1-7). Como falais falsi-
hoje, é muito mais fácil passar os proble- dades e tendes visões mentirosas, por isso
mas para a geração seguinte do que enfren- eu sou contra vós, diz o SENHOR Deus. (8).
tá-los. "Depois de nós, o dilúvio". Não estareis no conselho do meu povo,
26-28 Para Ezequiel a palavra do não estareis inscritos nos registros da casa
Senhor é: "Israel pensa que sua visão é de Israel, nem entrareis na terra de Israel
para muitos dias" (27). Mas ele precisa (9), visto que andais enganando meu povo
proclamar: "Não será retardada nenhuma com sentimentos falsos de segurança e paz
de minhas palavras. A palavra que profeti- (10-12). Essa segurança será destruída e
zei se cumprirá" (28). com ela virá o fim de todos vós. Então sa-
Nota. 27 "Visão": cf 7.26; 12.22. bereis que eu sou o SENHOR" 13-15).
16-21 Para as falsas profetisas Ezequiel
13.1-23 A condenação dos falsos deve proclamar: "Praticastes magia em
profetas e profetisas troca de ganho. Vossas mentiras fizeram
Este oráculo condena dois tipos de falsos com que atos de injustiça fossem cometi-
profetas. O primeiro grupo é composto de dos (18,19). Odeio os vossos instrumen-
supostos profetas que realmente pensam tos de magia (invólucros feiticeiros) e os
que podem predizer o futuro. Eles espe- arrancarei de vós e livrarei meu povo de
ram que suas predições se concretizem. vossas mãos. Então sabereis que eu sou o
Suas mensagens são do tipo que as pessoas Senhor" (20,21).
gostam de ouvir (10). Contudo, apesar da 22,23 "Entristecestes o coração do jus-
sinceridade e de suas mensagens recon- to e fortalecestes a mão do perverso. Por
fortantes, eles estão totalmente errados. isso já não tereis visões falsas nem fareis
A falsidade de seus pronunciamentos será adivinhações. Então sabereis que eu sou o
exposta. Não basta ser sincero. Você pode Senhor" (22,23).
estar sinceramente enganado. Notas. 4 "Raposas entre as ruínas": em
O segundo grupo de falsos profetas tem vez de tentar recolher os cacos e ajudar o
características mais sombrias. Para come- povo a reconstruir sua vida, esses profetas,
çar, as profetisas de que aqui se fala ope- como comedores de carniça, estavam se
ravam por lucro (19). Praticar a religião alimentando dos remanescentes da comu-
visando apenas a recompensa econômica nidade. 9 Seu castigo é triplo, tendo como
é prática condenada pela Bíblia. Além dis- resultado o ostracismo da sociedade de
so, elas apimentavam o seu número com Israel. Eles serão banidos do conselho, isto
l1li
11111 EZEQUIEL 14 1092
.111

é, perderão sua posição entre a liderança caminho para Deus (Jo 14.6,7), outros "ca-
da cidade; não serão inscritos nos registros minhos" não poderão ser contemplados.
da comunidade, isto é, perderão os direi- 1-11 Deus fala a Ezequiel com respeito
tos que, como homens israelitas, tinham aos anciãos: "Esses homens são adorado-
na sociedade; também serão impedidos de res de ídolos - deveria eu permitir que me
retomar a Israel. 10 "Caiam": a aparência consultassem?". Ezequiel deve proclamar
externa pode parecer boa, mas a realidade a eles: "Arrependei-vos e abandonai a ido-
por trás é fraca e desprovida de substân- latria. Se alguém do povo de Israel - ou
cia. 18 "Invólucros feiticeiros [...] véus": um estrangeiro que more em Israel - pra-
a maneira precisa como essas mulheres ticar a idolatria, e então vier me consultar
praticavam sua magia não fica muito cla- por meio de um profeta, receberá uma res-
ra. O propósito da magia era seduzir e posta direta: ele servirá de exemplo para o
controlar suas vítimas. 19 "Punhados de povo e será removido do meio dele. Então
cevada e [...] pedaços de pão": essa era sabereis que eu sou o Senhor (4-8). Se tal
sua mísera remuneração. profeta for enganado e falar alguma coisa,
eu o Senhor o enganei. Ele será eliminado
14.1-11 A condenação da idolatria do meio do povo de Israel. E será tão cul-
Como profeta, Ezequiel deve ter sido con- pado como aquele que o consultar. Então
sultado pelos exilados, ávidos por uma Israel não mais se desviará. Eles serão o
mensagem de Deus. Parece que sua posi- meu povo e eu serei o Deus deles" (9-11).
ção era tal que mesmo os anciãos de Israel Notas. 7 "Estrangeiros": a proibição
iam ter com ele para perguntar sobre Deus, é aplicada também àqueles que não per-
isto é, para ouvir um oráculo (cf 20.1-3). tencem ao povo de Israel. 9 "Enganado":
Nessa ocasião foi revelado a Ezequiel Se o profeta for digno de seu chamado,
que os anciãos estavam divididos na ques- receberá a revelação (como no caso de
tão da lealdade. Alguns adoravam não só Ezequiel) que ele não deve profetizar
ao Senhor, mas também a outros deuses. quando for consultado. Se o profeta não
A mensagem de Ezequiel foi direta: eles for digno de seu chamado, Deus permitirá
deveriam se arrepender e abandonar a que seja seduzido a profetizar, e tal profe-
idolatria. Qualquer um que tentasse ado- ta sofrerá as consequências,
rar aos ídolos e ao mesmo tempo consul-
tar um profeta de Deus seria punido. Caso 14.12-23 O julgamento de Israel não
o profeta atendesse suas petições, ele será evitado pela retidão de alguns
também seria punido (v. tópico similar Vários dos oráculos de Ezequiel tratam
em 20.1-44). da questão da culpa e da responsabilidade
Não há indicações de que os anciãos (3.16-21; 18.1-32; 33.1-20). Amoral deste
não criam no Deus de Israel. O problema é oráculo é que uma comunidade não pode
que eles também criam em outros deuses. esperar fugir à punição decorrente de sua
Ninguém pode servir a dois (ou mais) se- culpa ficando na dependência da retidão
nhores (Mt 6.24). Só pode haver um. Em de alguns poucos de seus membros. Uma
contraste com o contexto pluralista dos sociedade corrupta não pode esperar ser
dias de hoje, pode parecer atraente manter absolvida com base na presença de uns
em aberto nossas opções e aceitar vários poucos justos em seu meio. Nem o fato de
deuses. Essa verdade nos confronta quando se ter um ancestral piedoso pode expiar as
nos deixamos envolver profundamente por faltas de uma família corrupta (16,18,20).
uma determinada religião e percebemos Ezequiel exorta Jerusalém a não incorrer
que ela é incompatível com as demais. Por em tal erro. Seu castigo está chegando, ain-
exemplo, se Cristo é o único e verdadeiro da que alguns sejam salvos.
o oráculo descreve os "quatro maus
1093 EZEQUIEL 16

da videira. Quase nada de bom veio deles


.
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juízos" que afligirão a terra: fome (13,14), antes do cerco (em 597 a.C.), e não houve
as bestas-feras (15,16), a espada (17,18), melhora depois.
e a peste (19,20). Tais desastres estão in- O castigo não necessariamente traz pe-
terligados. Uma guerra desgastante trará nitência. A mudança de coração é o único
consigo fome, enfermidades e predado- e verdadeiro caminho para a mudança de
res. Tem havido muito debate acerca da comportamento.
hipótese de desastres modernos terem ou 1-8 Deus quer saber de Ezequiel: para
não alguma ligação direta com o juízo di- que serve o galho da videira? E quando é
vino. A terrível mensagem de Ezequiel é lançado ao fogo e queimado, para que ser-
que alguns dos desastres naturais são ju- vem seus tocos torrados (2-5)? A palavra
ízos divinos. Contudo, podemos observar do Senhor é que o povo de Israel será tra-
que a tarefa de Ezequiel não é exultar, tado como essa videira. Eles já passaram
mas avisar, para que o povo se arrependa pelo fogo, mas passarão por ele novamente
de seus caminhos. (6,7). E saberão que eu sou o Senhor que
12-23 O Senhor diz a Ezequiel: "Se desolará a terra por causa de sua infideli-
eu punir uma nação por sua infidelidade dade (8).
ao enviar a fome sobre ela, mesmo aque- Nota. 7 "O fogo os consumirá": um
les com caráter exemplar serão capazes de outro cerco acontecerá.
salvar apenas a si próprios" (13,14). "Se
bestas-feras forem enviadas para assolar a 16. 1-63 Jerusalém: a esposa
terra, ou se a guerra for declarada contra a promíscua e infiel
nação, ou se a peste se espalhar por toda Israel é descrito como uma esposa adúl-
a nação, aqueles com caráter exemplar se- tera, que se entrega à prostituição com os
rão capazes de salvar apenas a si mesmos. egípcios, assírios e babilônios. Seu castigo
Nem mesmo seus filhos e filhas serão sal- virá pelas mãos dos próprios amantes que
vos (15-20). Assim será para Jerusalém, procurou.
embora alguns sejam salvos" (21,22). A imagem pode parecer um tanto forte
Nota. 14 "Noé, Daniel e Jó": esses três para o gosto moderno, mas a escolha da
são destacados por sua extraordinária re- metáfora foi muito apropriada. Em seus re-
tidão. O nome "Daniel" é escrito de ma- lacionamentos internacionais, Israel tinha
neira diferente do usual (cf também 28.3) rapidamente absorvido outras religiões,
e pode se referir a um herói da literatura crenças e práticas. Seu relacionamento com
ugarítica. Muitos comentaristas acreditam outras sociedades o tinha exposto a mui-
que o Daniel do AT ainda não era conheci- tas ideias pagãs. Algumas dessas práticas
do nesse período. 21 "Quatro [...] juízos": incluíam o sacrifício de crianças e a ado-
os mesmos quatro que são citados em ração a ídolos (20,21); outra linha impor-
Apocalipse 6.8. tante incluía rituais de práticas sexuais. A
atividade sexual não era incluída nesses
15.1-8 Jerusalém: a videira inútil rituais meramente para a satisfação dos
A videira é geralmente vista como uma participantes, mas estava ligada à fertilida-
planta produtiva e valiosa nas imagens do de, e a fertilidade, quando aplicada à terra,
AT e como um símbolo de Israel, o povo significava alimento e sobrevivência. Não
escolhido de Deus (cf Is 5). Neste oráculo, obstante, luxúria e promiscuidade devem
destaca-se que o galho seco da videira não ter estado presentes nesses rituais.
tem valor. Tem menos valor ainda depois As práticas condenadas neste capítulo
de lançado ao fogo e queimado. O povo de incluem atos sexuais com ídolos (17) e pros-
Jerusalém tem sido como esse galho seco tituição como parte do culto (16,24,25,31).
EZEQUIEL 16 1094

Parece que a prostituição como parte do daquilo que fiz por ti (15-22). Ai de ti! Tua
culto, que tinha sido parte do ritual nos "lu- promiscuidade aumentou. Tu te entregaste
gares altos", isto é, nos santuários dos mon- publicamente a estrangeiros, de todos os
tes (16), veio a ser praticada abertamente lugares ao teu redor, e até mesmo os su-
nas próprias ruas de Jerusalém (24,25). bornaste para que viessem adulterar con-
Uma peculiaridade interessante sobre tigo (23-34).
o tema sexual no capítulo é o fato de que 35-42 "Por causa de tua promiscuida-
Sodoma e Samaria são citadas como ir- de e dos rituais pagãos eu te humilharei
mãs em pecado de Jerusalém (46,47). No e punirei diante dos teus amantes. Eles te
entanto, o pecado de Sodoma, aqui desta- despirão e apedrejarão. A tua prostituição
cado, é sua arrogância e falta de preocu- cessará e minha fúria se aquietará.
pação social pelos pobres e necessitados 44-58 "Teu comportamento é coisa de
(49,50). Jerusalém é citada como sendo família. Tuas irmãs, Samaria e Sodoma,
mais comprometida com a iniquidade do eram como tu, mas tu és ainda mais depra-
que suas irmãs. Além disso, tanto Sodoma vada do que elas. Eu restaurarei a sorte de
como Samaria serão restauradas, aumen- Sodoma e Samaria, aumentando assim a
tando a vergonha de Jerusalém (53-55). tua vergonha. Mesmo agora todos ao teu
Entretanto, há esperança. Depois da que- redor zombam de ti.
da e a punição de Jerusalém, o mesmo 59-63 "Embora tenhas quebrado a mi-
pretendente que a salvou no nascimento nha aliança, eu me lembrarei da aliança
(4-7), que a tomou em casamento (8), que que fiz contigo, e estabelecerei contigo
a vestiu com elegância, ainda lembrará de uma aliança eterna. Então te lembrarás,
sua promessa (59-62). com vergonha, do que fizeste".
O amor de Deus para com o seu povo é Notas. 3 "Amorreu [00'] heteia": Jeru-
frequentemente comparado ao amor de um salém existira muito antes se tomar uma ci-
marido por sua esposa; porém, enquanto dade de Israel. 4 "Esfregada com sal": uma
um marido, como ser humano mortal, pode prática que provavelmente tinha um efeito
rejeitar, desprezar e até mesmo odiar uma antisséptico. O ponto do versículo é que
esposa promíscua e infiel, Deus é paciente a recém-nascida fora ignorada ao nascer.
e justo e se lembrará de suas promessas a 5,6 O bebê fora abandonado a céu aberto,
seu povo, mesmo quando este se desviar. ainda esperneando no sangue do parto.
A demanda pela fertilidade aparece Essa prática não era incomum nas socieda-
nos dias de hoje nessa frenética busca do des antigas. 8 "Estendi sobre ti as abas do
mundo "desenvolvido" por prosperidade meu manto": Este ato representava pedir a
econômica como o principal objetivo da donzela em casamento (cf Rt 3.9). 9 "Te la-
vida. A adoração de bens materiais e das vei com água e te enxuguei do teu sangue":
forças de mercado tomou o lugar de Baal, esses versículos transmitem a total mudan-
mas não é menos idólatra. ça na condição de Jerusalém. Quando nas-
1-34 Ezequiel é instruído a confrontar ceu, fora abandonada suja de sangue, nua,
Jerusalém e proclamar: "Quando nasceste, envolta no sangue do próprio nascimento.
foste desprezada (2-5). Tive dó de ti e te Agora fora pedida em casamento, lavada e
salvei. Quando alcançaste a maturidade, vestida com as mais finas roupas. 15-19 As
tomei-te como esposa e te adornei com próprias roupas e ornamentos que a noiva
joias e roupas (6-14). Eras famosa por tua recebera como presentes são usados para
beleza. Contudo, usaste essa beleza para te sua prostituição. 27 "Diminuí a tua por-
entregares à prostituição. Tu te entregaste ção": "Reduzi o seu território" (NVI) - Um
aos ritos sexuais pagãos e a outros tipos exemplo em que a alegoria relata um fato:
de práticas de idolatria. E te esqueceste em 701 a.C., Senaqueribe deu uma parte
1095 EZEQUIEL 18 <
do território de Jerusalém aos filisteus. 9-21 "O Senhor Deus pergunta: 'A vi-
35-42 O castigo de Jerusalém será como o deira sobreviverá? Suas raízes não serão
de uma prostituta - humilhação e destrui- arrancadas e então ela não secará?' (9,10).
ção. 60-63 A promessa da aliança eterna Não sabeis o que significam essas coisas?
ainda subsiste, embora Jerusalém venha a O rei da Babilônia veio a Jerusalém e to-
se envergonhar de seu passado. mou o rei e seus príncipes e os levou consi-
go para a Babilônia (11,12). Tomou um da
17. 1-24 Águias, cedros e uma família real, e fez aliança com ele; também
videira - uma parábola política tomou dele um juramento, levou os pode-
O capítulo se divide em três seções: Os rosos da terra, para que o reino ficasse sub-
v. 3-10 trazem a alegoria das águias e da jugado e mantido sob seu controle (13,14).
videira; os v. 11-21 trazem a explicação Entretanto, o rei se rebelou e pediu ajuda
dessas alegorias; e os v. 22-24 trazem uma militar ao Egito. Será ele bem-sucedido?
futura promessa alegórica. Não, ele morrerá na Babilônia. O Egito
A alegoria se relaciona a acontecimen- não será de grande ajuda. E ele será punido
tos políticos da época. A primeira águia por quebrar seu juramento (15-21).
representa Nabucodonosor e a segunda 22-24 "Também eu tomarei a ponta de
representa o faraó. O cedro do Líbano re- um cedro e a plantarei sobre um monte alto
presenta a família real em Jerusalém, e e sublime. No monte alto de Israel, eu o
seu ramo mais alto, a nobreza. A "muda plantarei, e produzirá ramos, dará frutos e
da terra" era um membro da família real, a se fará cedro excelente. Saberão todos que
saber, Zedequias, que fora colocado como eu, o Senhor, o fiz" (22-24).
governante em Jerusalém. Ele já não era Notas. 11-14 A Babilônia tinha colo-
um cedro alto, mas uma "videira mui larga, cado em prática a clássica estratégia de
de pouca altura", isto é, seus poderes eram transformar Israel em um estado- fantoche.
limitados. No entanto, Zedequias plane- Deportaram a família real, mas deixaram
jou se rebelar contra Nabucodonosor, com um de seus membros, o mais fraco, no
a ajuda do Egito. Esse plano resultou em cargo. Esse indivíduo, isto é, Zedequias,
grande fracasso. foi forçado a assinar um tratado com a
Essa parábola ilustra o ponto de que Babilônia, assegurando a "sujeição" de
a arena política não está fora do alcan- Israel. Todo mundo que fosse considera-
ce da lei de Deus. Zedequias, em nome do significativo no governo do país foi
de Deus, tinha firmado um tratado com deportado. Essa ação assegurou que fos-
Nabucodonosor. Embora Nabucodonosor se dificultada a organização (e adminis-
possa ter sido um rei pagão bastante cruel, tração) de qualquer eventual resistência.
Zedequias ainda assim tinha a obrigação 16 "No meio da Babilônia será morto":
moral de honrar seu juramento. 2Reis 25.1-17 relata o cerco de Jerusalém
1-8 Ezequiel deve contar esta parábola e a consequente captura de Zedequias por
a Israel: "Uma linda águia veio do Líbano Nabucodonosor. Cegaram a Zedequias e
e arrancou a ponta mais alta do cedro e a o levaram acorrentado para a Babilônia.
plantou em uma cidade famosa por sua 22-24 Uma outra mensagem de esperan-
atividade comercial (2-4). Também tomou ça: um dia um novo rei aparecerá e come-
uma muda da terra e a plantou em solo fér- çará um reinado.
til. A muda cresceu e se tomou numa fron-
dosa videira. A princípio, a videira virava 18.1-32 A responsabilidade
seus ramos para a águia (5,6). Quando uma do indivíduo
segunda águia apareceu, a videira estendeu Este oráculo tem o objetivo direto de des-
seus ramos para ela" (7,8). truir a crença de que as pessoas carregam a
EZEQUIEL 19 1096

culpa ou o mérito de seus pais. Essa crença Notas. 2 (cf Jr 31.29) Jeremias também
toma expressão na forma de um provérbio havia profetizado que esse provérbio teria
já citado no v. 2. Essa visão podia funcio- fim. O provérbio pressupõe que as pessoas
nar nos dois sentidos. O oráculo prosse- possam sofrer devido aos pecados de seus
gue, expondo um exemplo de cada: (a) um ancestrais. 6-9 Uma lista seletiva de peca-
filho iníquo não escapará do castigo por dos é fornecida aqui. A lista tem correlação
causa da retidão de seu pai (5-13) e (b) um com aquela dos v. 11-13 e 15-17. 19 Parece
filho que age com retidão não será castiga- ter sido este o ponto em que o pronuncia-
do pelo mal praticado por seu pai (14-18). mento do profeta foi questionado. A grande
Este é um princípio declarado no v. 4: A importância que herança e comunidade ti-
alma que pecar, essa morrerá. Ezequiel nham nas culturas do Oriente Médio toma-
também se opõe à ideia de que a salvação va essa visão mais penosa do que pode pa-
consiste unicamente em acumular méritos recer às sociedades individualistas de hoje.
durante toda a vida de um indivíduo, e usar Hoje culpamos a "sociedade", em vez de
esse saldo positivo para contrabalançar nossos ancestrais, por nossas aflições. Em
suas iniquidades. Essa noção é rejeitada ambos os casos não aceitamos a culpa que
com firmeza. Caso um homem perverso se nos cabe e somos tentados a colocá-la em
converter de seus caminhos, ele viverá. Se outra pessoa.
um homem bom se voltar para o mal, ele
será castigado (21-28). Esse conjunto de 19.1-14 Lamentos pelos
pronunciamentos parece ter sido conside- príncipes de Israel
rado injusto (29). Esse capítulo é um lamento que retrata de
2-4 A palavra do Senhor é contrária ao forma alegórica a queda da dinastia daví-
ditado popular, pois a pessoa que comete dica. Uma leoa (Israel) dá à luz a vários fi-
o pecado será também a castigada por co- lhotes (reis) que crescem e se tomam fortes
metê-lo. 5-9 Se um homem justo fizer o leões. Entretanto, um dos reis é capturado
que é justo e direito, viverá. 10-13 Se tiver e levado para o Egito. Outro é apanhado,
um filho violento, impuro e opressor, esse preso e levado para a Babilônia (em 597
filho deverá morrer devido a seus próprios a.c. cf 2Rs 25.1-7).
pecados. 14-18 Por outro lado, se um ho- No v. 10, a imagem muda, e Israel é
mem tiver um filho que evita a iniquidade comparado a uma vinha que, embora forte
de seu pai e age com retidão, esse filho no passado, foi arrancada e transplantada
não será castigado pelos pecados de seu no deserto (isto é, na Babilônia). O fogo
pai. Ele viverá. 19,20 O filho não compar- se espalhou por um de seus ramos e con-
tilhará da culpa do pai, nem o pai da do sumiu seus frutos. Nenhum de seus fortes
filho. 21,22 Entretanto, se um homem per- ramos foi poupado. Essa é uma referência
verso se afastar de seus pecados e começar à deportação dos príncipes de Israel para
a fazer o que é justo e direito, ele deve vi- a Babilônia, por Nabucodonosor. A rebel-
ver. 24 Por outro lado, se um homem justo dia de Zedequias (o fogo de um dos ramos
e direito se voltar para a iniquidade, ele da videira) causou uma reação tão forte
deve morrer. na Babilônia que a dinastia davídica foi
25-29 Apesar do que diz Israel, esse exterminada.
ensinamento não é injusto. 30,31 Cada O lamento salienta o fato de que as
pessoa será julgada de acordo com o que glórias passadas não são garantia para o
fez. Assim, arrependam-se - e busquem futuro. A civilização ocidental tem vivido
um coração novo e um espírito novo. O em função de sua herança cristã, mas a fé
Senhor não tem prazer na morte de nin- verdadeira ficou para trás. A herança está
guém (23,32). desaparecendo rapidamente.
1097 EZEQUIEL 20 - : :

1-9 Ezequiel deve levar este lamento O oráculo de Ezequiel começa, muito
aos príncipes de Israel: "Sua linhagem real apropriadamente, com referências ao tem-
uma vez produziu um leão que se tomou po em que o povo de Israel foi forçado a
forte e devorador de homens. As nações viver nas terras de outra superpotência
ouviram falar dele, capturaram-no e o leva- - o Egito. O ciclo de advertência, rebel-
ram com ganchos para o Egito" (2-4) Um dia e restauração é repetido várias vezes.
segundo leão se tomou forte. Ele era um Mesmo ferido, o povo de Israel prefere se-
devorador de homens. Ameaçava as cida- guir as religiões das outras nações (24,32).
des e aterrorizava os habitantes da terra. As Enfim, as promessas e advertências são
nações vieram, capturaram-no numa arma- combinadas. O povo de Israel será reunido
dilha e o levaram para o rei da Babilônia, dos países pelos quais está espalhado, mas
onde o prenderam (5-9). detestará a si mesmo pelo que fez.
10-14 Sua linhagem real já fora como O oráculo ilustra a tolerante paciência
uma videira exuberante com muitos ramos. de Deus ao lidar com seu povo ao longo
Então, foi arrancada. O vento oriental se- dos séculos. Ele permanece fiel, apesar da
cou seus frutos, secou seus ramos, e o fogo teimosa rebeldia.
a consumiu. Agora ela está plantada no 1-17 Alguns dos anciãos de Israel visi-
deserto. O fogo consumiu os seus ramos tam Ezequiel para uma consulta. Ezequiel
e frutos. Nela não há mais nenhum ramo recebe a ordem de proclamar: "Tão certo
forte que sirva como cetro real. como eu vivo, vós não me consultareis
Nota. 12 "Vento oriental": isto é, a (2,3). No dia em que escolhi a Israel e me
Babilônia. revelei a eles no Egito, eu jurei tirá-los do
Egito para uma terra de fartura (5,6). Pedi a
20. 1-44 A persistente eles que abandonassem a idolatria egípcia,
rebeldia de Israel mas eles não o fizeram. Em vez de puni-
Como em 14.1-11, alguns anciaos de los, por amor do meu nome, eu os tirei da
Israel visitam Ezequiel para uma consul- terra do Egito (7-10). No deserto lhes re-
ta. Ezequiel é avisado novamente sobre a velei minha lei (11,12). Mesmo no deserto
duvidosa lealdade de seus visitantes. Ele eles se rebelaram, mas não foram destruí-
profere um longo oráculo, lembrando vá- dos - apesar das advertências (13-17).
rios exemplos da história de Israel em que 18-26 "A seus filhos pedi e adverti (18-
o povo havia praticado a idolatria. 20), mas não os destruí, a despeito de sua
O fato de que vieram consultar Ezequiel desobediência (21,22). Eu jurei a eles no
demonstra que os anciãos não trocaram in- deserto que seriam dispersos entre as na-
teiramente sua devoção a Deus por outros ções devido à sua desobediência (23,24).
deuses. Contudo, a pressão estava presen- Também os entreguei a decretos injustos e
te. Os exilados eram uma pequena minoria leis intoleráveis (25). Permiti que se conta-
em uma imensa sociedade multicultural. A minassem com práticas como o sacrificio
religião da Babilônia cultuava uma grande dos primogênitos. Eu o fiz para horrori-
quantidade de deuses. Sem dúvida a rique- zá-los e para que soubessem que eu sou o
za material e o poderio da Babilônia - até Senhor" (26).
mesmo suas magníficas edificações - pa- 27-38 "Vossos pais também me insul-
reciam provar a alguns dos exilados que taram ao usar todo o tipo de lugares altos
valia a pena seguir os deuses da Babilônia. e árvores frondosas como local de sacri-
Assimilar o modo de vida e seguir os ca- ficios (27,28). Ireis contaminar-vos como
minhos do povo da Babilônia seria fácil. vossos pais (30)? Eu não serei consultado
(Para um comentário sobre o assunto, v. por vós (31). Talvez desejais ser como as
cp. 1 do livro de Daniel). outras nações, servindo às arvores e às
EZEQUIEL 20 1098

pedras, mas isso de maneira alguma acon- 46-49 Ezequiel deve proclamar para o
tecerá (32). Eu hei de reinar sobre vós e sul e para o bosque do campo do sul (46):
julgar-vos. Sereis separados daqueles que "O Senhor diz que está a ponto de incen-
se rebelam contra mim. Então sabereis que diá-lo. A chama não se apagará. Todos os
eu sou o Senhor" (33-38). rostos serão queimados. E todos os homens
39-44 "Servi a vossos ídolos, Israel, verão que eu, o Senhor, o acendi" (47,48).
mas mais tarde me ouvireis. No meu san- Os ouvintes de Ezequiel diziam que ele es-
to monte toda a casa de Israel me pres- tava proferindo parábolas (49).
tará culto (39-41). Sabereis que eu sou o Notas. 46 "Sul" aqui se refere a
Senhor quando eu vos trouxer para a terra Jerusalém e aJudá. 47 "Desde o Sul até
de Israel (42). Tereis nojo de vós mesmos, ao Norte": A profecia na verdade adverte
quando lembrardes de vossa conduta pas- sobre uma calamidade que consumirá toda
sada. Sabereis que eu sou o SENHOR quan- a terra de Israel. 49 Parece que Ezequiel
do eu proceder para convosco por amor do algumas vezes enfrentava falta de credibi-
meu nome" (43,44). lidade. Suas profecias sobre o julgamento
Notas. 1 "Sétimo ano"; isto é, 591 a.C. eram consideradas "simbólicas".
"Consultar" cf 8.1; 14.1 9 "Por amor do
meu nome"; o nome do Senhor identifica 21.1-7 Julgamento pela espada
toda a personalidade de Deus, não apenas Nesta segunda profecia a imagem se tor-
sua reputação. 25 Lhes dei - Deus per- na mais precisa. A referência à espada
mitiu que escolhessem seus caminhos, - símbolo da guerra - dá uma clara
mesmo que estes os levassem a práticas indicação da natureza militar do desas-
injustas (como o sacrifício de crianças). tre. Ezequiel é conhecido por sua ênfase
29 "Lugar alto"; "Bama" (NIV) - um leve na responsabilidade e recompensa indivi-
trocadilho é usado aqui. A palavra bãmâ, duais (cf 3.16; 33.1-20); portanto, é digna
que significa lugares altos, começa como de nota a sua afirmação de que o iminente
a palavra bã 'im, que significa cantos. 37 desastre afligirá tanto o justo como o per-
"Debaixo do meu cajado": (cf Lv 27.32; verso. Ser correto não garante imunidade
Jr 33.13). A imagem é de um rebanho pas- contra a aflição. Aqueles que reivindicam
sando sob o olhar perspicaz do pastor. proteção exclusiva do Senhor podem estar
exercitando grande fé, mas também es-
20.45-49 Julgamento pelo fogo tão ignorando boa parte das advertências
Este oráculo é o primeiro de um grupo de das Escrituras.
quatro profecias que advertem sobre a imi- Ezequiel deve proclamar a Jerusalém:
nente calamidade que recairia sobre a terra "O Senhor está contra ti. Empunhará sua
de Israel. As profecias ficam progressiva- espada para eliminar tanto o justo quanto
mente mais específicas. o ímpio" (2-4).
Como alguns dos outros oráculos (e.g., Deus diz a Ezequiel: "Suspira de cora-
12.26-28), a mensagem de Ezequiel encon- ção quebrantado e com amargura! Quando
tra obstinação e incredulidade. Seus pro- o povo te perguntar por que estás fazendo
nunciamentos são vistos como parábolas isso, dize-lhes que é por causa das terríveis
- símbolos brutais para uma realidade que notícias que estão chegando (6,7). E eis
eles esperavam ser menos brutal. Estamos que elas vêm e se cumprirão".
sempre ávidos para saber o que o futuro Notas. 3 "Espada": a imagem da espa-
pode nos trazer, mas somente se estiver de da também é utilizada nos dois oráculos
acordo com aquilo que queremos. De outro seguintes. 6 "Suspira": A proclamação de
modo, temos a tendência de não levar em Ezequiel deve ser acompanhada por um
conta nem mesmo os sinais mais óbvios. outro ato simbólico (o sétimo).
l1li
1099 EZEQUIEL 22 l1li-
l1li.

21.8-17 A espada é afiada Nabucodonosor é quem merece a punição


No terceiro oráculo desse grupo a lingua- divina, e a condenação sobre Israel pudes-
gem se toma poética - quase como se fos- se ser retirada. Contudo, Ezequiel, sob ins-
se um cântico de preparação para guerra. piração, descreve Nabucodonosor como
O tema da espada afiada e pronta permeia instrumento de Deus para punir a iniqui-
a passagem. dade de Israel.
O tema da guerra como uma punição 19,20 Ezequiel é instruído a desenhar
enviada por Deus era provavelmente me- um mapa mostrando o caminho pelo qual
nos popular no tempo de Ezequiel do que o rei da Babilônia virá. Em um cruzamento
o é nos dias de hoje. O raio de esperança da estrada, ele deve colocar um marco indi-
estava no fato de que a ira de Deus final- cador que aponte de um lado a direção para
mente cessaria. Rabá e de outro a direção para Jerusalém.
9-11 A espada afiada está pronta. 12 A 21-23 O rei da Babilônia vai parar nesse
espada será contra o povo e todos os prín- cruzamento e consultará seus oráculos.
cipes de Israel. 14-16 Ela golpeará repeti- Eles indicarão o caminho de Jerusalém, a
das vezes. 17 Então, o furor de Deus dimi- qual ele cercará.
nuirá. Foi o Senhor que falou. 24-27 A palavra de Deus para o sobera-
Notas. 10,12,13 "Cetro [...] príncipes": no de Israel é: "Teu povo será levado cativo
um elemento não mencionado nos dois em virtude das tuas ostensivas iniquidades
oráculos anteriores é o objetivo de punir os (24). E tu, profano e perverso príncipe de
líderes de Jerusalém. O oráculo seguinte Israel, serás destituído do poder" (25-27).
explicará melhor esse tópico. 28-32 Ao povo de Amom Ezequiel
deve proclamar: "Vosso tempo é chega-
21.18-32 A espada do. A despeito das falsas profecias de paz,
do rei da Babilônia sereis entregues à destruição em vossa
No último dos quatro oráculos o texto se própria terra (28-31). E caireis no esqueci-
toma mais explícito sobre aquilo que vai mento. Eu, o Senhor, é que falei" (32).
acontecer. O rei da Babilônia (Nabuco- Notas. 20 Rabá (moderna Amã) - ca-
donosor) dará início a uma campanha mili- pital de Amom. Amom também foi tema
tar contra as terras a oeste da Babilônia. Em de uma profecia posterior (cf 25.1-7). 21
algum ponto de sua jornada ele irá parar à "Examina o fígado": O povo da Babilônia
procura de um sinal que aponte qual cidade praticava a "hepatoscopia" um método
atacar: Jerusalém ou Rabá. O sinal apontará para prever o futuro ao se examinar e ob-
para Jerusalém. Então Nabucodonosor em- servar a presença de quaisquer marcas sig-
preenderá um cerco a Jerusalém. O monar- nificativas no figado de um animal morto.
ca de Israel será deposto e levado cativo. 23 "Juramentos solenes": os líderes em
Os amonitas também não escaparão, Jerusalém já tinham sido forçados a fa-
pois o dia do seu castigo também chega- zer uma "aliança" com a Babilônia, mas
rá. As pessoas até esquecerão de que eles se rebelaram (cf 17.11-13).26 "Remove
existiram. a coroa": a queda da monarquia. 28,29 Os
A passagem se divide em três partes. amonitas pensaram que tinham escapado
V. 18-23: As ações de Nabucodonosor; v. da calamidade. Evidentemente tinham até
24-27: a mensagem para Israel; v. 28-32: a mesmo recebido falsas profecias para re-
mensagem para Amom. forçar essa ilusão de segurança.
Essa profecia deveria nos deixar pre-
cavidos contra julgamentos apressados 22. 1-16 Os pecados de Jerusalém
sobre quem deve ser punido, por quem Esse oráculo volta seu foco aos pecados
e por quê. Talvez pareça que o perverso de Jerusalém, defendendo a tese de que
II1II
II1II. EZEQUIEL 22 1100
II1II-

sua iniquidade acelerou seu fim. A lista de 17-22 Ezequiel recebe a palavra de que
maldades vai do social ao sagrado: derra- Israel se tomou como as impurezas encon-
mamento de sangue (3,9), idolatria (3,4), tradas na prata ainda não refinada. (18)
abuso de poder (6), tratamento cruel de Assim ele deve proclamar: "Eu vos ajunta-
vários grupos sociais (7), profanação rei no meio de Jerusalém do mesmo modo
dos sábados (8), paganismo (9), conduta que os homens ajuntam a prata com suas
sexual imprópria e incesto (10,11), su- impurezas em uma fornalha. O forte calor
borno e extorsão (12). A punição devida de minha ira fará com que sejais fundidos
significará a dispersão do povo por todas como os metais no processo de fundição.
as terras. Sabereis que derramei meu furor sobre
1-16 Ezequiel deve confrontar Jeru- vós" (19-22).
salém por todas as suas práticas abomi- Nota. 19 "Eis que vos ajuntarei no
náveis (2) e proclamar a ela: "Você é uma meio de Jerusalém": aqui e no v. 20 há a
cidade que se tomou culpada por derramar indicação do iminente cerco da cidade.
sangue em seu próprio meio e por fazer
ídolos para se contaminar. Você será obje- 22.23-31 Injustiça na terra:
to de zombaria das nações (3-5). Há todo o corrupção em todos os níveis
tipo de corrupção em seu meio, mas eu po- A corrupção na sociedade de Israel trans-
rei um fim nisto (6-13). Você será dispersa cendia posição e classe social. Ela também
entre as nações. Então saberá que eu sou o assumia as mais variadas formas.
SENHOR" (14-16). A corrupção de uma sociedade pode ir
Notas. 2 "Abominações": essa ex- além do nível individual. Pode se tomar
pressão ocorre muitas vezes em Ezequiel, parte das instituições - tanto civis quanto
frequentemente para denotar ações que religiosas - da sociedade. Pode ser fácil
tomavam o agente ritualmente impuro aceitar certas práticas só porque elas são
(cf v. la). 9 "Comem carne sacrificada "o que todo mundo faz", ou por serem
nos montes": isto é, comem a carne que apoiadas pelas hierarquias, mas isso não
tinha sido sacrificada aos ídolos nos "lu- as justifica. Algumas vezes o suborno tam-
gares altos" (cf 18.6; 6.3). 10 "No prazo bém pode se tomar parte do dia-a-dia na
de sua menstruação": como sacerdote, condução de negócios. O tratamento injus-
Ezequiel estava claramente preocupado to dos mais fracos na sociedade também
com a pureza cerimonial e a profanação. é largamente difundido. Normalmente os
Muitos dos pecados listados nesses versí- indivíduos se sentem impotentes em face
culos eram mencionados na lei (cf Lv 18; de tal corrupção.
20). 16 "Profanada": A própria punição de 23-31 Ezequiel deve dizer à terra: "Tu
Israel é chamada de profanação. és uma terra árida (24), teus governantes
oprimem o povo (25); teus sacerdotes
22.17-22 A fundição de Israel profanam a minha lei (26); teus oficiais
A punição de Israel é comparada ao fogo matam por dinheiro (27); teus profetas di-
de uma fornalha: a escória será removida. vulgam visões falsas (28), teu povo opri-
As ideias modernas de guerra ou puni- me, extorque e rouba (29). Eu procurei
ção normalmente incluem conceitos como nessa terra por alguém que permanecesse
retribuição e ou regeneração. Aqui encon- firme, mas não pude encontrá-lo. Por isso
tramos o conceito de purificação. A cor- derramei a minha indignação sobre teus
rupção estava arraigada demais para que habitantes" (30,31).
fossem feitas mudanças sociais menores. Nota. 30 "Tapasse o muro": não havia
Tudo teria de ser mudado para que fosse ninguém que fosse suficientemente reto para
possível um novo recomeço. interceder junto a Deus em favor do povo.
1101
...
EZEQUIEL 23 . . .

23.1-49 Oolá e Oolibá - irmãs ela passou a ter saudades dos tempos do
adúlteras Egito, com seus bem dotados garanhões
Este capítulo tem um tema bastante seme- egípcios" (11-21).
lhante ao do cp. 16: Jerusalém e sua irmã 22-35 Ezequiel deve proclamar a
Samaria se prostituíram com as práticas Oolibá: "Eu suscitarei contra ti os teus
pagãs das nações vizinhas, em particular amantes. Os assírios e os babilônios te cer-
o Egito, a Assíria e a Babilônia. Elas de- carão e punirão. Eu trarei minha ira con-
vem arcar com as consequências de seus tra ti e colocarei um fim em tua perversão
atos. As diferenças entre os dois capítu- (22-27). Eu te entregarei nas mãos de seus
los se encontram principalmente em suas ex-amantes, a quem agora detestas (28).
ênfases. A natureza militar e política da Eles te humilharão (29,30). Assim como
associação de Israel com a Assíria e com tua irmã Samaria, beberás do copo da de-
a Babilônia é destacada pela descrição solação (31-34). Uma vez que me viraste
de seus amantes assírios e babilônicos as costas, deves suportar o peso de tua ini-
como guerreiros em uniformes completos quidade" (35).
(5,14,15). Eles trarão sobre ela a retribui- 36-49 Ezequiel deve confrontar Oolá
ção por seus atos. Essa retribuição é tam- e Oolibá sobre suas más ações: adultério,
bém descrita em termos de ataque militar derramamento de sangue, rituais sexuais
e pilhagem (24-26; 46-47). pagãos, sacrifícios de crianças, e profana-
Aqui as alianças políticas de Israel ção tanto do santuário quanto do sábado
não são condenadas por si mesmas. Elas (36-39). A sedução de estrangeiros (40-42)
formaram a base para uma penetração so- acabou em prostituição, adultério e der-
cial e religiosa de crenças pagãs na cultu- ramamento de sangue (43-45). Ele deve
ra de Israel que os israelitas prontamente proclamar: "Deixai-as morrer e assim farei
acolheram. cessar a luxúria na terra (46-49). Então sa-
Os pecados do povo de Israel não são bereis que eu sou o Senhor".
vistos por Deus de maneira neutra e im- Notas. 4 Os nomes Oolá e Oolibá pa-
parcial. Antes, como um marido vê a infi- recem ter ligação com a palavra "tenda"
delidade de sua mulher tanto com tristeza no hebraico. Embora muitos comentaris-
quanto com ira, assim Deus enxerga o pe- tas sugiram que isso implica uma conexão
cado de seu povo (cf cp. 16). com o culto (e.g., com a tenda do santuá-
1-10 O Senhor diz a Ezequiel: "Havia rio), isso pode simplesmente indicar a ori-
uma vez duas irmãs, Oolá, isto é, Samaria, gem nômade do povo. "Minhas": embora o
e Oolibá, isto é, Jerusalém. Em sua juven- texto não diga explicitamente que as filhas
tude, no Egito, elas se perderam na pros- eram noivas do Senhor, este versículo e o
tituição (3,4). Elas eram minhas esposas, v. 5 sugerem implicações desse relaciona-
mas Oolá se encheu de cobiça pelos assí- mento (cf 16.8,9). Assim, a prostituição
rios, e se prostituiu com eles (5-8). No final de Israel também é adultério. 5-10 A ob-
eu a entreguei nas mãos dos assírios, eles a sessão de Samaria pela Assíria provoca
despiram e a mataram (9,10). sua destruição. Samaria caiu nas mãos da
11-21 "Oolibá era pior que sua irmã. Assíria em 722-721 a.C. 14 "Caldeus":
Ela também cobiçou os assírios, depois embora o termo mais tarde passasse a ser
desenvolveu desejo pelos babilônios. sinônimo de "babilônios", os caldeus eram
Depois que estes a violaram, ela se afas- uma raça distinta do sul da Babilônia (cf
tou desgostosa. Do mesmo modo, dela 23). 23 "Pecode": uma região no leste da
me afastei (como também tinha me afas- Babilônia. A identificação de Soa e Coa
tado de sua irmã) quando sua prostituição é duvidosa. 24 "Multidão de povos": em
se tomou exageradamente flagrante. Aí Ezequiel esse termo (cf 46-47 - "turba")
EZEQUIEL 24 1102

é frequentemente usado para descrever um (3-7,13). Aquece ainda mais a panela,


grande número de pessoas com a intenção queimando os ossos. Deixa que a panela
de destruir. 36-39 Algumas das práticas fique incandescente de modo que a man-
pagãs que Israel adotara são listadas aqui. cha seja queimada e desapareça (9-12). a
42 "Bêbados": "Sabeus" (NVI). a termo julgamento de Jerusalém não poderá ser
pode de fato ser traduzido por "bêbados". evitado agora" (13,14).
a sentido geral é o de uma multidão sem Notas. 6 "Ferrugem" ou "crosta" (NVI):
compromisso, vinda de qualquer canto e à medida que o líquido se reduzisse, ficaria
tirando vantagens das irmãs. uma mancha ou uma crosta no interior da
panela. "Sem escolha": se esta expressão
24.1-14 A parábola da panela: foi reproduzida de forma correta, o pensa-
Jerusalém cercada mento que está por trás dela pode ser que
Este oráculo representa um ponto de vi- o conteúdo da panela, isto é, o povo, seria
rada no livro. Até agora as profecias de espalhado aleatoriamente. 12 Como está, o
Ezequiel eram principalmente advertên- versículo pode sugerir que a ferrugem (ou
cias sobre o desastre vindouro. Mas agora a crosta) da panela não sairá mesmo depois
começou o cumprimento das profecias. do segundo aquecimento. Seria mais coe-
Já não há volta. a cerco de Jerusalém rente considerar o versículo uma síntese da
começou. A data do oráculo é bastante tentativa passada: "todos os esforços ante-
precisa: 15 de janeiro de 588 a.C. Eis o riores foram frustrados".
dia em que Nabucodonosor deu início ao
cerco da cidade. Depois de 18 meses, os 24.15-27 A morte da
babilônios tomariam Jerusalém e toca- esposa de Ezequiel e o
riam fogo em tudo. A cidade seria com- significado do lamento
pletamente destruída. Este era o segundo A revelação da morte de sua esposa
cerco a Jerusalém em 12 anos. a próprio deve ter sido algo muito doloroso para
Ezequiel tinha sido deportado depois do Ezequiel. Contudo, até mesmo esse fato
primeiro cerco. será usado como um meio de transmitir a
A mensagem do oráculo tem a forma terrível mensagem sobre o destino tanto
de uma parábola. Jerusalém é comparada de Jerusalém quanto do templo. Até nos
a uma panela, e o seu povo ao conteúdo momentos de luto, Ezequiel continua a
dessa panela. Depois que o fogo é aceso, ser um profeta de Deus.
uma mancha de fuligem permanece na pa- a modo de agir de um crente durante
nela, isto é, mesmo depois do primeiro cer- as crises pessoais muitas vezes pode falar
co as impurezas de Israel permaneceram. mais alto do que muitas palavras, embora
Um segundo fogo mais forte (o segundo a recusa em tomar as providências adequa-
cerco) será necessário para queimar as im- das ao luto possa ser muito prejudicial à
purezas, isto é, punir a iniquidade do povo. pessoa enlutada. Essa ordem foi especifi-
Novamente a punição é retratada como pu- camente dirigida a Ezequiel e não significa
rificação (cf 22.17-22). que deva ser aplicada de modo geral.
1-14 A Ezequiel é dito: "Registra 15-24 A Ezequiel é dito que sua espo-
esta data porque hoje Nabucodonosor si- sa vai morrer, porém ele não deve realizar
tiou Jerusalém" (2). Ele deve proclamar: os rituais fúnebres costumeiros (16,17).
"Enche uma panela com água e junta pe- Quando o povo lhe perguntar o que suas
daços de carne com ossos. Cozinha-a no ações significam, ele lhes responderá com
fogo. Da crosta [cf NIV] resultante na pa- a palavra do Senhor para Israel: "Eu es-
nela o resíduo não desaparecerá. As man- tou prestes a profanar meu santuário. as
chas são como as impurezas de Jerusalém parentes que deixastes para trás cairão
1103 EZEQUIEL 26 <
pela espada. Contudo, não seguireis os Judá, eles serão invadidos e saqueados pe-
costumes fúnebres de praxe, assim como los povos do Oriente (1-5). Por terem se
fez Ezequiel. Então sabereis que eu sou o alegrado maldosamente com a desgraça de
Senhor" (20-24). Israel, serão destruídos (6,7).
25-27 Além disso, Deus diz a Ezequiel: Moabe. Visto que Moabe olhava para
"Quando a cidade cair, alguém que esca- Israel com desprezo, será subjugado pelos
par virá te levar. Naquele dia recupera- povos do Oriente (8-11).
rás totalmente a tua fala. Serás um sinal Edom. Pelo fato de Edom ter se vinga-
para o povo, e eles saberão que eu sou do de Judá, sofrerá devastação pelas mãos
o Senhor". de Israel.
Notas. 17 Havia uma grande diver- Filístia. Por causa de sua vingança
sidade de rituais fúnebres (cf 27.30-32). contra Judá, os queretitas e os que restarem
27 "Falarás": A perda parcial da fala de no litoral serão destruídos.
Ezequiel seria revertida quando ele ouvis- Notas. 4 "Filhos do Oriente"; tribos
se a notícia da queda da cidade. Essa recu- nômades do deserto. 5 "Rabá": capital de
peração da fala é relatada em 33.21,22. Até Amom (cf 21.20). 8 "Seir": outro nome
esse acontecimento serviria de sinal para para Edom. 16 "Queretitas": um povo pro-
o povo. ximamente ligado aos filisteus.

25.1-17 Profecias contra 26.1- 28.19 Profecias


as nações vizinhas contra Tiro
Esta seção dá início a uma série de orácu- Em termos geográficos, Tiro era minúscu-
los contra as nações estrangeiras vizinhas la. Em termos econômicos, entretanto, era
a Israel (cp. 25-32). Tanto o Egito quan- muito importante e, portanto, uma significa-
to Tiro recebem maior atenção, mas este tiva força política do antigo Oriente Médio.
oráculo se concentra especificamente nos A antiga cidade de Tiro era um impor-
vizinhos mais próximos de Judá: Amom, tante porto para a área que hoje é conheci-
Moabe, Edom e Filístia. Essas nações ti- da como o sul do Líbano. (Localizava-se
nham assistido à desgraça do povo de Israel aproximadamente na metade do caminho
com prazer (Amom) e escárnio (Moabe). entre Beirute, ao norte, e Haifa, ao sul). A
Elas até mesmo aproveitaram a oportu- cidade tinha dois portos, um deles loca-
nidade para se vingar de Judá (Edom e lizado em uma ilha próxima à costa. No
Filístia). O oráculo de Ezequiel as adverte livro de Ezequiel há várias referências ao
de que o castigo virá. íntimo relacionamento de Tiro com o mar.
O oráculo começa com Amom, situado Tanto sua bravura quanto sua profetizada
a leste de Israel, e então se move em sen- destruição são descritas por meio de alu-
tido horário na direção de Moabe, Edom sões ao mar. Parte substancial do poder de
e Filístia. Tiro residia em suas habilidades de explo-
É fácil condenar essas nações vizinhas ração marítima.
por suas atitudes em relação a Israel. Mas A riqueza de Tiro provinha de seu co-
essas atitudes também podem ser as nossas mércio. Seus comerciantes frequentemente
quando problemas acometem um de nos- viajavam por todo o mundo antigo e nego-
sos próximos. Entretanto, Deus é o Deus ciavam uma imensa variedade de mercado-
de toda a terra e está, em última instância, rias. Seu povo era muito conhecido por suas
no controle do destino tanto das nações habilidades mercantis. Essas habilidades,
quanto dos indivíduos. por sua vez, levaram-na à prosperidade.
Amom. Pelo fato de os amonitas terem Tiro tem uma história longa e signifi-
se regozijado com a destruição de Israel e cativa. A cidade é mencionada nos textos
EZEQUIEL 26 1104

egípcios de execração, por volta de 1850 26.1-21 A autossatisfação


a.C. De acordo com Heródoto, o alfabeto denunciada
escrito foi introduzido na Grécia pelos fe- Neste oráculo, Tiro é repreendida por con-
nícios que vieram com Cadmo, rei de Tiro. siderar a queda de Jerusalém meramente
A cidade-estado também fundou a colônia como um acontecimento que aumentará
de Cartago, por volta de 825-815 a.C. sua própria prosperidade. A Babilônia,
Frequentemente as relações entre Tiro sob o comando de Nabucodonosor, sitiará
e Israel tiveram um elemento econômi- e destruirá a cidade. O prazer na desgraça
co. Hirão I, rei de Tiro, tinha fornecido alheia é uma emoção com a qual os cris-
a Davi os materiais necessários para a tãos, bem como os demais, devem saber
construção do palácio real em Jerusalém lidar apropriadamente, sendo uma emoção
(2Sm 5.11; 1Cr 14.1). Também havia for- que, embora bastante comum, não costuma
necido a Salomão os materiais necessários ser prontamente reconhecida.
para a construção do templo e fizera um 1-21 A palavra de Deus para Ezequiel
tratado com ele. Um século mais tarde, o é: "Tiro disse que a ruína de Jerusalém
rei Acabe fez um acordo para se casar com assegurará sua própria prosperidade"
Jezabel, filha do rei de Tiro (1Rs 16.31). (1,2). Portanto, Ezequiel deve proclamar:
Por meio de Jezabel a adoração ao deus "Muitas nações pilharão as tuas riquezas,
de Tiro - Baal Melqart - foi introduzida Tiro. Então saberão que eu sou o Senhor
em Israel. (3-6). Nabucodonosor irá sitiar-te e des-
Antes da época de Ezequiel, Tiro tinha truir-te. Nunca mais serás reconstruída (7-
vivido um período de grande prosperida- 14). As tribos do mar ficarão aterrorizadas
de. Entretanto, Ezequiel, Jeremias (25.22; com tua queda e lamentarão o teu colap-
27.1-11) e Zacarias (9.2-7) profetizaram so (15-18). Serás arrastada para a cova.
a queda de Tiro diante dos babilônios. O Jamais serás reconstruída" (19-21).
cerco de Tiro por Nabucodonosor (cerca Notas. 1 "No undécimo ano": isto é,
de 587-574 a.C.) foi evidentemente uma 587/6 a.c. 2 Tiro viu a queda de Jerusalém
campanha dificil (Ez 29.18). A cidade ao como mera oportunidade de negócios.
final rendeu-se ao domínio babilônico. Por sua localização geográfica, as terras
Os oráculos contra Tiro e Egito são da Palestina eram o centro de numerosas
orientações instrutivas a respeito da natu- rotas comerciais que ligavam a África à
reza do orgulho nacional. A maioria dos Eurásia. 3-5 Grande parte das imagens re-
povos cultiva certo orgulho pelo progres- lacionadas a Tiro se refere a seu contexto
so de sua nação e até mesmo apoia isso. marítimo. 6 "Suas filhas que estão no con-
No caso de Tiro, podemos ver a confiança tinente": Tiro havia expandido seu controle
arrogante pela construção de seu próprio para áreas bem além da ilha e do porto do
sucesso econômico. A riqueza que tinha continente. 7-14 Nabucodonosor é agora
adquirido era para ela um sinal de que era mencionado pelo nome pela primeira vez
superior às demais nações. A cidade esta- no livro de Ezequiel. Relatos afirmam que
va disposta a apoiar práticas comerciais seu cerco à cidade deTiro durou 13 anos.
corruptas para manter sua prosperidade. A Essa campanha evidentemente se mostrou
destruição de Israel era vista simplesmente muito difícil, mesmo para os babilônios
como uma oportunidade de negócio. (cf 29.18). A cidade-estado reconheceu e
Tiro foi condenada por tais atitudes, se sujeitou ao domínio babilônio. 15 "As
que prevalecem ainda nas sociedades de terras do mar": outras cidades-estado do
hoje. Não devemos deixar que o sucesso Mediterrâneo que provavelmente eram
material de nossa nação se tome seu único aliadas nos negócios de Tiro. 19 A imagem
critério de realização. aqui é de uma ilha afundando sob as ondas.
20 "Eu te farei descer com os que descem
1105 EZEQUIEL 28 _.

zada em sua construção era das melhores.


-.-
à cova". A "cova" e a terra abaixo dela são "Senir": nome amorreu para Hermom (cf
referências ao túmulo ou ao sheol, isto é, Dt 3.9). 7 "Elisá": provavelmente se refere
ao domínio da morte. a Chipre. 8 "Sidom e Arvade": essas duas
cidades situavam-se ao norte de Tiro. 9
27. 1-36 Um lamento "Gebal": o porto marítimo de Biblos, um
Esse oráculo é dado como um lamento. importante porto fenício. A grande procura
Aqui Tiro é comparada a um maravilhoso por trabalho na cidade de Tiro era mais um
navio mercante. Os fornecedores da ma- sinal de seu poderio econômico. 10 "Pute":
deira utilizada em sua construção e de suas Líbia. As três nações mencionadas aqui
mercadorias eram seus parceiros comer- eram distantes. Foram listadas para mos-
ciais. A extensa lista de países e produtos trar como Tiro podia atrair mercenários
nos dá um claro panorama do motivo de de toda a parte do mundo antigo - seja
Tiro ser famosa por suas atividades econô- da Líbia (Pute) no oeste, da Lídia no norte
micas. Suas ligações comerciais se espa- ou da Pérsia no leste. 11 Arvade também
lhavam pela maior parte do Mediterrâneo, fornecia mão-de-obra naval (8). "E o teu
norte da África, Ásia Menor e Oriente exército (00'] e os gamaditas": "Heleque
Médio. A cidade era capaz de empregar (00'] Gamade" (NIV). A localização geo-
estrangeiros tanto na indústria como nas gráfica de ambas é incerta. Heleque pode
suas forças armadas. Contudo, este navio- estar na região da Cilícia, e Gamade, na
estado estava prestes a afundar, isto é, Tiro Capadócia. (Ambas as áreas ficavam no
seria destruída. leste da Ásia Menor). 12 A lista dos parcei-
Quando uma grande empresa de tradi- ros comerciais de Tiro em ordem geográ-
ção vai à falência e fecha suas portas, não fica de proximidade se estendia de Társis,
apenas seus próprios empregados, mas no Mediterrâneo ocidental, até o deserto da
também muitos outros em indústrias-sa- Arábia e Mesopotâmia. 16 "Síria": "Arã
télites, fornecedores de mercadorias e (NIV)". A melhor leitura aqui seria "Edom",
de serviços passam a ser desnecessários. 23 "Éden": não é o jardim do Éden; em he-
A recessão e o colapso econômico são braico a palavra "Éden", nesses dois casos,
alguns dos castigos atuais que um país tem grafias diferentes. O Éden mencio-
pode enfrentar. nado aqui ficava na Mesopotâmia. 26 O
1-36 Ezequiel é intruído a proclamar a "vento oriental" pode se referir não apenas
Tiro: "Tu te vanglorias de tua beleza (3,4). a uma tempestade marítima (cf SI 48.7),
Foste edificada com os mais finos mate- mas também pode ser uma alusão ao local
riais (5-7). Empregaste mão-de-obra de de onde vinha a ameaça a Tiro: a Babilônia
muitas nações para construí-la, operará-la se encontrava a leste de Tiro. 30,31 Sete si-
e defendê-la (8-11). Tinhas muitos parcei- nais tradicionais de luto são listados aqui:
ros comerciais importantes, próximos e gritos de lamento, os costumes de lançar
distantes, e tuas mercadorias eram da mais pó da terra sobre a cabeça, de revolver-se
alta qualidade e variedade. (12-25). Mas nas cinzas, de raspar a cabeça, de vestir-se
perderás tudo isto no dia de teu naufrágio de pano de saco, de chorar com amargura
(26,27). Teus vizinhos e parceiros comer- e de lamentar.
ciais ficarão abismados (28-36). Jamais
subsistirás" (36). 28.1-10 Contra a arrogância
Notas. 3 "Eu sou perfeita em formo- A conquista da riqueza econômica tinha
sura": a grande riqueza de Tiro resultou trazido consigo um sentimento de arrogân-
em muitos adornos dos quais a cidade se cia. O processo é resumido no v. 5 - a
orgulhava (cf 28.12). 5,6 A madeira utili- grande habilidade nos negócios levara à
EZEQUIEL 28 1106

grande riqueza, e a grande riqueza leva- uma conduta acima de qualquer acusação
ra à arrogância. O rei de Tiro é descrito (15). Contudo, tua vasta atividade comer-
como aquele que acreditava ser tão sábio cial te levou à opressão. Teu esplendor te
quanto um deus. A profecia advertia que a deixou orgulhoso e corrompeu o teu pen-
pena para tal arrogância seria humilhante e samento. Tuas variadas práticas comer-
definitiva. Outros exemplos desse tipo de ciais desonestas levaram à profanação de
arrogância e da subsequente queda são fa- teus santuários. Assim, foste expulso de
cilmente encontrados na história e nos dias teu paraíso e lançado por terra (16-18). As
de hoje. nações que te conheciam espantaram-se
1-10 Ezequiel deve proclamar ao rei ao te ver" (19).
de Tiro: "Tu pensas ser um deus, mas não Notas. 13 As pedras preciosas aqui
és (1,2). Tua astúcia e perspicácia co- listadas foram usadas como uma alusão às
mercial te trouxeram grande recompensa vestes do sumo sacerdote (Êx 28.17-20),
econômica (3-5a), o que a seu turno te embora as divindades pagãs também fos-
tornou orgulhoso (5b). Devido a esse or- sem algumas vezes vestidas com trajes re-
gulho, terás morte humilhante nas mãos pletos de joias. A ênfase aqui é colocada na
de estrangeiros. Quando eles te confron- riqueza do rei (e também na opulência da
tarem, serás apenas um mortal, e não um cidade de Tiro). 14-16 O exato significado
deus" (7-10). da palavra "querubim" não é muito claro
Notas. 2 "No coração dos mares": par- e depende de qual versão bíblica esteja
te da cidade de Tiro consistia em uma ilha sendo seguida. Na NVI, e.g., o rei de Tiro
(v. comentários anteriores). 3 "Daniel": v. é elevado à posição de querubim, ou teve
nota em 14.14,20. 7 "Os mais terríveis es- um querubim designado como seu guar-
trangeiros dentre as nações": uma alusão à dião. Ambas as versões apontam para sua
Babilônia. 10 Os habitantes de Tiro prati- posição elevada. "brilhantes pedras": lite-
cavam a circuncisão, de modo que morrer ralmente "pedras de fogo"; possivelmente
"da morte dos incircuncisos" seria consi- uma referência às pedras preciosas mencio-
derado humilhação. nadas no v. 13. Uma alternativa é que seja
a descrição de algo radiante ou brilhante
28.11-19 Expulsão do "Éden" que se encontrava no monte de Deus. 15
Esse lamento descreve a ascensão e queda "Perfeito": novamente uma alusão ao re-
do rei de Tiro, e consequentemente a as- lato do Éden. 18,19 Aqui o assunto muda:
censão e queda da própria cidade-estado. A antes, o relato falava do rei; agora, passa a
imagem lembra bem a narrativa do jardim falar da cidade de Tiro.
do Éden. Entretanto, não há nenhuma ten-
tativa de fazer um paralelo com o relato do 28.20-26 Profecia contra Sidom:
livro de Gênesis, Como sempre ocorre no "Saberão que eu sou o SENHOR"
livro de Ezequiel, as metáforas são livre- Sidom, cidade vizinha de Tiro, também
mente combinadas, alteradas e adaptadas receberá o devido castigo. Uma caracte-
segundo a conveniência da linguagem da rística notável deste pequeno oráculo é a
profecia. A linguagem poética serve para frequente repetição da frase e saberão que
destacar a extensão da queda que a cidade eu sou o SENHOR. Além disso, a profecia
de Tiro experimentou; foi como uma ex- reafirma a promessa de restauração para o
pulsão do paraíso. povo de Deus (25,26), um tema que, mais
11-19 O lamento para o rei de Tiro é: tarde, receberá ênfase maior.
"Já foste um exemplo de sabedoria e be- 20-26 Ezequiel deve proclamar a
leza (12), morando no paraíso, adornado Sidom: "Estou contra ti, Sidom, e serei
com joias esplêndidas (13,14) e exibindo glorificado no meio de ti. Quando em ti
11
1107 EZEQUIEL 29 1111
1111

executar meus juízos e me santificar, eles 601 - As forças egípcias e babilônicas


saberão que eu sou o Senhor (22). Quando se encontram novamente. Ambos os lados
a ti eu afligir, eles saberão que eu sou o sofrem baixas pesadas.
Senhor (23). Quando Israel já não tiver vi- 597 - Nabucodonosor subjuga Jeru-
zinhos que o desprezem, eles saberão que salém. O Egito se mantém neutro. Zede-
eu sou o Senhor (24). Quando eu congre- quias é empossado no trono como vassalo
gar a casa de Israel dentre os povos eu me de Nabucodonosor.
santificarei entre eles. Israel habitará em 589 - Judá, sob a liderança de Ze-
segurança na terra que lhe dei, e então eles dequias, rebela-se abertamente contra os
saberão que eu sou o Senhor" (25,26). babilônios.
Notas. 25 "A meu servo, a Jacó": 588 (janeiro) - Os babilônios avan-
cf 37.25. çam para cercar Jerusalém.
588 - O cerco é suspenso temporaria-
29.1-32.32 Os oráculos mente, enquanto os babilônios reorgani-
egípcios zam suas forças para enfrentar o exército
O livro de Ezequiel contém um total de egípcio (Zedequias pedira ajuda aos egíp-
sete oráculos contra o Egito - mais do cios). Entretanto, os egípcios são repelidos
que qualquer outra nação. A pergunta que rapidamente, e os babilônios retomam o
se faz aqui é por que um profeta judeu, re- cerco a Jerusalém.
sidente na Babilônia, se incomodaria com 587 (julho) - Uma brecha se abre nos
um país localizado a centenas de quilô- muros de Jerusalém. A cidade e o templo
metros. A resposta se toma clara quando são queimados. O estado de Judá encontra
consideramos a história do período e a seu fim. A nação está em ruínas.
cronologia dos oráculos. Os oráculos egípcios em Ezequiel são
No tempo de Ezequiel, o Egito era uma incomuns, pelo fato de que todos eles, com
superpotência em lento declínio. No auge exceção de um, são datados. Quase a meta-
de seu poder, sua esfera de influência ti- de das 13 datas fornecidas no livro encon-
nha se estendido por todo o Mediterrâneao tram-se na seção egípcia. Quando coloca-
oriental, incluindo a Palestina e os territó- das em ordem cronológica, ficam assim as
rios que hoje pertencem ao Líbano e à Síria datas dos oráculos:
ocidental. Quando os babilônios tomaram 587Uaneiro) - 29.1-16; 587 (abril)-
o lugar da Assíria como superpotência 30.20-26; 587 (junho) - 31.1-18; 586/585
político-militar dominante no Oriente -32.17-32; 585 (março)-32.1-16; 571
Médio, o Egito se aliou à Assíria na ten- (abril) - 29.17-21. O oráculo em 30.1-19
tativa de impedir o avanço babilônico. O não é datado, mas seu conteúdo é seme-
resultado foi um complexo jogo de poder, lhante ao dos demais.
e os estados menores da região, tais como Assim como Tiro, o Egito tinha um
Jerusalém/Judá, tiveram de escolher seus grande orgulho nacional. Se Tiro era "di-
aliados com cuidado. nheiro novo" então o Egito era "dinheiro
A seguir apresentamos a cronologia das antigo". Seu orgulho baseava-se naquilo
relações entre o Egito e a Babilônia até a que tinha herdado e aparentemente seria
época das profecias de Ezequiel bem como mantido para sempre. Sua extensão ter-
ao longo desse período: ritorial era grande e dotada de considerá-
605 - Os babilônios derrotam as for- veis recursos naturais (especialmente o rio
ças egípcias em Carquemis (cf Jr 46.2) e Nilo). Possuía uma maravilhosa história
então fazem pressão sobre o sul (Carque- imperial, um numeroso exército e influên-
mis se localizava no noroeste da Síria). Se- cia política difundida por todo o Oriente
guem escaramuças. Médio. Contudo, sua confiança em seu
EZEQUIEL 29 1108

passado glorioso era equivocada. Seu des- O oráculo significa que o Egito sofrerá
tino era ser humilhado. Do mesmo modo, derrota e destruição. A nação se recupe-
em nossa época, não devemos deixar que rará, mas nunca mais será a potência que
um passado nacional de glórias (sejam elas foi (14,15).
atuais ou não) distorça nossa percepção 1-16 A palavra do Senhor para o faraó
das verdadeiras necessidades da nação. É é: "Devido à tua arrogância, faraó, serás
fácil sentir-se confiante de que os proble- destruído. Então, todo o Egito saberá que
mas e os desastres que acontecem a outros eu sou o Senhor (3-6). Por ter se mostrado
jamais nos atingirão. No entanto, este tipo uma ajuda inútil para Israel, o Egito será
de complacência nunca é realista. destruído pela guerra. Então saberão que
eu sou o Senhor (6-8). Devido à tua arro-
29. 1-16 Egito: declínio e queda gância, o Egito será arrasado e os egípcios
Quando comparamos as datas dos orácu- dispersos (9-l2).Todavia, após determi-
los aos acontecimentos da época, perce- nado tempo, eles serão trazidos de volta
bemos que os oráculos foram proferidos ao alto Egito, mas o seu reino permane-
em um contexto em que Judá oscila entre cerá humilde. O Egito será um lembrete
o domínio egípcio e o domínio babilôni- para Israel. Então, saberão que eu sou o
co. Durante os últimos 20 anos que ante- Senhor" (13-16).
cederam os acontecimentos cataclísmicos Notas. 1 A data era janeiro de 587 a.C.
de 588-587 a.C., o estado de Judá havia 3 "Crocodilo enorme": era um crocodilo ou
se aliado, voluntariamente ou não, ora a talvez uma criatura como o "leviatã" (cf
uma, ora a outra dessas duas grandes po- Is 27.1). 6,7 "Bordão de cana": cf Isaías
tências militares. 36.6. Assim como um bordão de cana que-
A série de oráculos de Ezequiel contra o bra e machuca qualquer um que nele bus-
Egito teve início durante a época mais ne- que apoio, assim o suposto apoio do Egito a
gra da história de Jerusalém. As manobras Jerusalém falhou, aumentando ainda mais
egípcias não tinham conseguido romper o desespero da cidade. 10 "Desde Migdol
o cerco babilônico imposto a Jerusalém. até Sevene": uma expressão que implicava
Ezequiel já havia previsto a queda da ci- uma referência a toda a terra do Egito: (de
dade. Ele agora tem terríveis notícias para norte a sul). "Etiópia": país localizado ao
seu suposto salvador. Seus oráculos adver- sul do Egito.
tem que o Egito cairá finalmente em mãos
babilônicas e que deixará de ser a grande 29.17-21 A recompensa
nação que foi outrora. de Nabucodonosor
Jerusalém já estivera sob cerco por A data deste oráculo (abril de 571 a.c.) faz
um ano. Tinha havido uma breve pausa, dele o último dos oráculos egípcios. Ele
quando os babilônios temporariamente se faz a ligação desses oráculos com os pro-
afastaram devido a um fracassado ataque clamados contra Tiro.
egípcio. O oráculo de Ezequiel reflete o 17-20 O Senhor diz a Ezequiel: "Nabu-
desespero que deve ter tomado conta de codonosor fez que seu exército me prestas-
Jerusalém quando se tomou claro que o se um grande serviço e não houve recom-
socorro egípcio não obteria resultado: o pensa para ele e nem para seu exército"
Egito se tomou um bordão de cana para a (18). Portanto, Ezequiel deve proclamar:
casa de Israel (6); e já não será uma fonte "Eis que darei a Nabucodonosor a terra do
de segurança para o povo de Israel (16). A Egito. Ele tomará o seu despojo e a rouba-
confiança depositada tanto no poderio mi- rá, e isso será a paga para o seu exército.
litar como no econômico sempre é, a longo Eu lhe dei a terra do Egito, visto que traba-
prazo, uma confiança indevida. lhou para mim".
1109 EZEQUIEL31 /
••
"Eu restaurarei a casa de Israel, e te é afastada por este oráculo. Os egípcios já
darei, Ezequiel, que fales livremente no tinham sido expulsos em 588 (quebrei o
meio deles. Então, saberão que eu sou o braço de Faraó, v. 21), e ainda sofreriam
Senhor" (21). mais derrotas (e quebrarei os seus braços
Notas. 18 "Toda cabeça se tornou cal- [do faraó], v. 22).
va": os uniformes dos soldados esfolavam 20-26 É dito a Ezequiel: "O poder do
a pele de quem os usava (um problema co- faraó já foi reduzido (21). Futuramente será
mum mesmo nos nossos dias). 21 "Farei reduzido ainda mais. Os egípcios sofrerão
brotar o poder!": o povo de Israel recobra- o exílio e a dispersão. Nabucodonosor e os
ria sua força. "E te concederei que abras babilônios se tornarão mais poderosos, en-
a boca": Ezequiel recuperaria a fala (cf quanto o Egito se desintegrará. Então, sa-
3.26; 33.32). berão que eu sou o Senhor (22-25). Quando
os egípcios forem espalhados, eles saberão
30.1-19 Um dia negro para o Egito que eu sou Javé" (26).
Este oráculo não é datado, mas seu tema Nota. 26 "Espalharei os egípcios en-
é similar aos outros oráculos de 587 a.C.: tre as nações": este versículo poderia ser
o Egito e seus aliados cairão nas mãos de visto como uma descrição da dispersão das
Nabucodonosor. forças expedicionárias do Egito, depois da
2-9 A guerra chegará ao Egito. Seus derrota, em vez da dispersão da nação.
vizinhos e aliados serão arrasados. 10-12
O poderio militar do Egito será destruído 31.1-18 A lição do cedro com
pelos babilônios, sob a liderança de muitos ramos para o Egito
Nabucodonosor. A terra será devastada. A glória do Egito e a extensão de sua que-
13-19 A nação ficará sem liderança. Seus da são ilustradas pela alegoria do majesto-
ídolos serão destruídos e sua cidades to- so cedro que foi cortado.
madas pela destruição avassaladora. 1-18 Ezequiel recebe a ordem de pro-
Notas. 5 As nações e povos aqui men- clamar ao Egito: "Tua grandeza pode ser
cionados eram todos aliados do Egito. comparada à de um frondoso cedro (2,3).
"Etiópia": uma região ao sul do Egito. Este cedro tinha uma fonte abundante de
"Pute": Líbia. "Os filhos da terra da alian- água (3,4). Por isso se elevou a sua es-
ça": provavelmente mercenários judeus tatura sobre todas as outras árvores, e se
que tinham se estabelecido no Egito. 6 multiplicaram os seus galhos, e se alonga-
"Migdol até Sevene": cf 29.10. 15-18 A ram seus ramos (5). Todos confiavam nele
lista das cidades do Egito e das regiões para proteção e abrigo (6). Era formoso na
mencionadas aqui enfatizam o quanto a sua grandeza e na extensão de seus ramos
destruição se alastrou. (7). Não tinha rivais (8). Todas as árvores
o invejavam (9). Porque sobremaneira se
30.20-26 Os braços elevou acima das outras, e seu coração se
quebrados do faraó orgulhou, eu o entreguei nas mãos da mais
Na época deste oráculo - (abril de 587 poderosa das nações que há de tratar dele
a.C.) - os habitantes de Jerusalém teriam (10,11). Ele foi cortado. Aqueles que nele
estado sob o cerco babilônico por mais confiavam o abandonaram (12). Nenhuma
de um ano. Qualquer esperança de que o outra nação terá a sua grandeza (14). O dia
Egito pudesse libertar a cidade, por meio da sua destruição foi um dia negro para
de um novo ataque contra Nabucodonosor, muitos (15,16). Os que procuraram sua
proteção terão um fim parecido (17). Tu
I Algumas versões trazem "brotar um chifre" (TB). O chifre
e teu poderio militar sereis destruídos da
era um simbolo de poder (N. do T.). mesma maneira" (18).
EZEQUIEL 32 1110

Notas 3 "Considere a Assíria": Uma de outras nações derrotadas na batalha. As


leve emenda textual alteraria a referência imagens não devem ser vistas como uma
à Assíria para uma referência a um cipres- descrição da vida após a morte em termos
te, como em "considere um cipreste, um teológicos. Elas eram uma maneira conve-
cedro no Líbano". A alteração toma a ale- niente de transmitir a degradação em que
goria mais direta, embora o sentido geral se encontrava o Egito.
permaneça o mesmo. 10 Foi o orgulho que 17-32 Ezequiel recebe a orientação de
levou o cedro à queda - e, por implica- lamentar pelo Egito, enquanto este desce à
ção, à queda do Egito. 12 "Os mais terrí- cova, às profundezas da terra. O Egito se
veis [...] das nações": uma frase já utiliza- juntará aos incircuncisos. Outros já se en-
da anteriormente (30.11) para descrever os contram ali: Assíria (22,23), Elão (24,25);
babilônios. 18 "No meio dos incircuncisos, Meseque e Tubal (26,27); Edom (29), os
jazerás com os que foram traspassados à príncipes do norte (30); os sidônios (30).
espada". Como os egípcios praticavam a Faraó e todo o seu exército se juntarão a
circuncisão e atribuíam grande ênfase aos eles (28,32).
rituais fúnebres, essa predição deve ter Tudo isso tem uma surpreendente li-
sido duplamente repugnante para eles. gação com os dias de hoje; muitos gover-
nos, de nações grandes ou pequenas, su-
32.1-16 Lamento pelo faraó cumbiram no último século, por exemplo.
O Egito é avisado outra vez de sua destrui- Contudo, um estudo mais detalhado da his-
ção pelos babilônios. tória mostra que este é o fluxo normal de
1-16 O lamento para o faraó é: "Você ascensão e queda das nações. O "terreno
é como um crocodilo nos mares que será sem obstáculos" e a existência segura que
capturado em uma rede e deixado a apodre- consideramos normal é uma esperança que
cer na terra (2-4). Muitos se alimentarão de não se sustenta. A segurança eterna pode
seus restos (4-6). Haverá grande escuridão ser encontrada apenas no Senhor; o contrá-
sobre a terra quando isso acontecer (7,8). rio é pura ilusão.
Muitas nações se amendrontarão diante Notas. 24 "Elão": um país a leste da
desse acontecimento (9,10). O Senhor diz: Babilônia. 26 "Meseque e Tubal": países
"A espada do rei da Babilônia virá contra da Ásia Menor (cf 27.13). 27 "A espada
ti e te destruirá (Ll ,12). O Egito será deso- debaixo da cabeça": seriam enterrados sem
lado" (13-15). as devidas honras militares. Eles teriam
Nota. 2 "Um monstro nos mares" (NVI) apenas uma simples lápide de guerra.
- cf 29.3-5 em que uma imagem seme-
lhante é usada. 33.1-20 O escopo da
responsabilidade
32.17-32 A descida do Egito Este oráculo inicialmente prega um tema
para o domínio da morte semelhante ao do oráculo de 3.16-21.
Esse lamento desenvolve dois temas que Ezequiel deve agir como um atalaia para
já haviam sido mencionados nos oráculos: Israel. Junto com a tarefa vêm tanto res-
(l) O Egito se deitará em seu leito de mor- ponsabilidades como punições. (Podemos
te ao lado de outras nações "mortas" na observar que nenhuma recompensa é ex-
batalha, e (2) compartilhará do destino dos plicitamente mencionada). Ezequiel deve
incircuncisos (cf 31.18). confiar a natureza de sua tarefa a Israel.
Ezequiel usa imagens poéticas para O oráculo prossegue, atacando duas
descrever o Egito em seu estado de mor- noções sobre a natureza do pecado de
te. Descreve o Egito como que deitado na Israel. A primeira (lO, 11) é um tipo de fa-
terra e cercado pelas sepulturas de guerras talismo, por meio do qual o povo alega ter
sido pego em seus próprios delitos, e que
1111 EZEQUIEL 33 _-

na morte do perverso (10,11). Se um ho-


-.-
até mesmo Deus fica feliz em vê-los em memjusto, confiando na sua justiça, fizer o
tal situação (e então, se Deus assim o quis, mal, não me virão à memória todas as suas
não há por que tentar mudar). Essa ideia é justiças, e ele morrerá por seus pecados
refutada: Deus não se compraz mesmo na (12,13). Se um homem perverso se desviar
morte dos perversos. Cabia a eles mudar os de seu pecado e fizer o que é justo e reto,
seus caminhos. seus pecados anteriores serão esquecidos,
A segunda noção é a de que o povo e ele viverá (14-16). Embora vós, povo de
armazenou certa quantidade de méritos Israel, dizeis que meu caminho não é reto,
(cf 18.21-32). Assim, uma série de boas é o vosso caminho que é injusto. Mas eu
ações podem ser usadas para compensar vos julgarei, cada um segundo os seus ca-
outra série de más ações. Esse ponto de minhos" (17-20).
vista significa que não há esperança para a Nota. 2 "Atalaia": ver comentário em
pessoa que tenha levado uma vida repleta 3.16-21.
de maldades - esta pessoa não será capaz
de compensar jamais o mal que fez com 33.21,22 Ezequiel
quaisquer atos de bondade que fossem. recupera sua fala
Além disso, significa que aqueles que pen- Este incidente é único no livro de Ezequiel
sam já ter armazenado méritos suficientes pelo fato de que sua experiência profética
podem cometer os pecados que quiserem, ("A mão do SENHOR estivera sobre mim")
desde que não ultrapassem sua cota. Essa não resultou em uma visão ou em um orá-
ideia também é refutada. Um arrepen- culo. Em lugar disso, Ezequiel recuperou
dimento sincero pode superar qualquer sua fala, que lhe fora parcialmente tirada
histórico de más ações. As más ações no no início de seu ministério (3.26,27).
presente não podem ser compensadas por A escolha do tempo desse evento foi
boas ações praticadas no passado. significativa. No dia seguinte chegou a no-
1-6 Ezequiel deve proclamar para seus tícia de que Jerusalém tinha caído. As pre-
patricios: "Considerai que uma nação seja visões de Ezequiel se tomaram realidade.
ameaçada de guerra, e que a um determi- Nota. 21 "No duodécimo ano":
nado indivíduo seja dada a tarefa de dar Jerusalém caiu em 587 a.c. Um grande
o sinal para avisar o povo de um possível número de versões e manuscritos traz "un-
ataque (2). Se essa pessoa fizer soar o alar- décimo ano". Se esta leitura for correta, e
me quando o ataque estiver próximo, então o ano se referir ao reinado de Zedequias,
a responsabilidade por quaisquer baixas então o intervalo decorrido entre a queda
será dos próprios cidadãos (3-5). Mas se da cidade e a visita a Ezequiel de alguém
não for dado o alarme quando o ataque for que escapou de Jerusalém foi de seis me-
iminente, o atalaia será responsabilizado ses. Cf Esdras 7.9, em que uma jornada
pela morte de qualquer dos cidadãos" (6). direta da Babilônia a Jerusalém levou
7-9 Ezequiel recebeu essa tarefa. Ele quatro meses inteiros.
deve transmitir ao povo de Israel os avi-
sos que Deus lhes envia (7). Caso Ezequiel 33.23-33 A posse ilegal de Israel
não transmita esses avisos a todos, ele será O cerco a Jerusalém terminou. A cida-
responsabilizado pelo destino dessas pes- de caiu e a terra está devastada. Muitos
soas. Mas se o fizer, ele terá livrado a si morreram, outros foram deportados ou
mesmo (8,9). forçados a fugir. Contudo ainda há alguns
10-20 Ezequiel recebe a ordem de pro- sobreviventes.
clamar: "Dizeis que estais desfalecendo em A calamidade nem sempre traz à tona
vossos pecados. Não tenho prazer nenhum o melhor das pessoas. Depois do primeiro
11
11l1li EZEQUIEL 34 1112
ri'
cerco de 597 a.C., um grupo de sobrevi- Notas. 24 "Abraão era um só": Seu
ventes na cidade exultou malignamente raciocínio era que se Abraão, um único
com a perspectiva de tirar vantagem da indivíduo, tinha conseguido se apossar da
situação (11.2-12). Depois do segundo terra, então não haveria nenhum problema
cerco, a terra estava despovoada. Aqueles para eles, uma vez que eram muito mais
que ali foram deixados, longe de se vol- numerosos. 33 A marca de um verdadeiro
tarem para Deus, mantiveram suas práti- profeta era que o que ele havia predito vi-
cas idólatras. Além disso, começaram a nha a se cumprir.
se apossar dos bens e das terras de seus
vizinhos, chegando mesmo a abusar das 34.1-48.35 Profecias
esposas que foram deixadas na cidade de restauração
(24-26). O oráculo de Ezequiel adverte As profecias nos cp. 34-48 contêm temas
que mais desolação seguirá devido ao que muito diferentes dos capítulos anteriores.
estão praticando. Enquanto os oráculos dos cp. 1-33 con-
Ao final do oráculo Ezequiel é adverti- sistem principalmente em advertências
do de um problema que muitos pregadores sobre o desastre que recairá não somente
enfrentam. O povo gostava de escutar o sobre o povo de Israel, mas também sobre
que ele dizia, mas não colocava em prática seus vizinhos, a ênfase dos cp. 34-48 está
o que ouvia. Um pregador pode ser capaz tanto na restauração como na esperança.
de entreter as pessoas, mas isso não signi- Tanto Jerusalém quanto o templo estão
fica que ele esteja sendo ouvido. destruídos. O povo foi levado ao exílio.
A privação, assim como a calamida- Contudo, há esperança.
de, também não costuma trazer à tona o Para os leitores contemporâneos es-
melhor das pessoas. Circunstâncias de- ses capítulos são difíceis de interpretar,
sesperadoras às vezes provocam ações em parte pela estranheza das imagens e
desesperadas, e nesses casos devemos ser em parte pela tendência comum a pro-
compreensivos. Entretanto, há momentos, curar acontecimentos contemporâneos
como o deste oráculo, em que o caos e a específicos nas descrições proféticas. É
desgraça são tratados simplesmente como importante lembrar que a natureza desses
um momento de oportunidade por pessoas oráculos é essencialmente parecida com
gananciosas e sem escrúpulos. os oráculos das partes anteriores do livro.
23-29 A palavra do Senhor para Diversas características dos últimos ca-
Ezequiel é: "Os moradores que habitam as pítulos têm paralelos nos capítulos ante-
ruínas da terra de Israel pensam que agora riores, por exemplo, a promessa da nova
são seus proprietários (24,25). Proclame aliança (16.60), o retomo à terra (28.25), o
a eles: 'Vós executais práticas violentas uso simbólico dos números (4.5,6; 14.21;
e pagãs - deveria a terra ser dada como 29.13) e a identificação de uma nação por
posse a vós? (25,26). Por causa do que es- meio de seu regente (29.1-6; 31.2-18). Há
tais fazendo, a terra será desolada. Então referências que parecem deliberadamente
sabereis que eu sou o Senhor'" (27-29). vagas ou simbólicas, por exemplo, Davi
30-33 Novamente Ezequiel ouve: "Os e Gogue, ou que apontam para o final
filhos do teu povo falam de ti em todos os dos tempos, por exemplo: "e Davi, meu
lugares. Eles se ajuntam para te ouvir, mas servo, será seu príncipe eternamente"
não praticam aquilo que ouvem. Para eles, (37.25). Tais referências levaram alguns
és como um cantor que canta canções de comentaristas a classificar Ezequiel como
amor. Entretanto, quando o que proclamas "proto-apocalíptico".
vier a acontecer, eles saberão que houve no Para nós, as imagens podem ser dis-
meio deles um profeta". tantes e difíceis de retratar. Contudo, elas
1113 EZEQUIEL 34 ••

••
devem ter produzido associações doloro- repreendidos por se preocuparem apenas
sas para os exilados. A descrição detalha- com seus próprios interesses e pela falta de
da do templo (40---48) é, para nós, algo cuidado para com o seu rebanho. Além dis-
muito dificil de acompanhar, mas deve ter so, algumas ovelhas engordaram à custa de
trazido muitas lembranças àqueles que não outras, isto é, algumas pessoas adquiriram
somente conheceram o templo como tam- poder e fortuna por meio da opressão dos
bém ali adoraram ao Senhor. As imagens mais pobres e fracos. Ezequiel adverte que
do vale dos ossos secos (37), das ovelhas a justiça será restaurada.
desgarradas (34), dos edificios em ruínas e A advertência se toma uma promessa
abandonados (35,36), de uma terra coberta para o futuro (21-24). O Senhor não ape-
de armas (39) e de animais e aves de rapi- nas salvará suas ovelhas, mas também
na se alimentando de soldados mortos (39) nomeará Davi como seu pastor, e estabe-
são todas imagens de guerra. São imagens lecerá com elas uma aliança de paz. Como
de uma terra tão desolada que seus mortos em outros oráculos, o nome é simbólico. A
não são enterrados, seus corpos apodrecem referência a Davi não significa que o anti-
a céu aberto e suas armas se enferrujam. go rei Davi será literalmente ressuscitado e
Essas imagens devem ter sido bastante re- entronizado como rei. Sua força se encon-
ais e dolorosas para quem testemunhara a tra no fato de que o próximo governante
destruição do exército de Israel. terá os atributos exemplares de Davi - al-
Essas profecias são dirigidas em primei- guém em quem o Senhor se compraz e que
ro lugar ao povo da época de Ezequiel. Seu triunfou sobre os inimigos de Israel. Uma
conteúdo é expresso em termos que o povo referência a Davi também pode ser encon-
daquela época conhecia e conseguia enten- trada em 37.24-26, em que o seu governo é
der. A realização das profecias não deveria descrito como eterno. A mesma passagem
ser vista como um fato isolado, mas como também se refere à eterna aliança de paz
um processo. Sua finalidade é dar esperan- que o Senhor estabelecerá com o seu povo,
ça quando a esperança já não existe, e dar um tema quase idêntico ao de 34.25-30.
orientação quando viver já não faz sentido. As duas passagens não apontam so-
Seu cumprimento tem início no dia em que mente para o futuro imediato de Israel, mas
são proferidas. O povo de Deus jamais será também para um futuro de longo prazo.
abandonado, não importa o tipo de dificul- Deus estabelecerá a paz com o seu povo, e
dade que tenha de enfrentar. apontará um pastor para dirigi-los.
Não podemos concluir que tais profe- O oráculo traz uma promessa de es-
cias não tenham significado algum para nós perança. Mesmo que o povo de Deus seja
nos dias de hoje. Como já vimos, a queda espalhado e oprimido, um dia terá justiça.
das nações e a devastação provocada pelas Os leitores do NT testemunharão esse dia
guerras são coisas familiares nos noticiá- com a volta de Jesus Cristo, uma promes-
rios de televisão, bem como o eram para sa selada com a sua primeira vinda, morte
as profecias de Ezequiel. Contudo, esse e ressurreição.
mesmo Deus garante a todos nós a mesma 1-31 Ezequiel deve proclamar aos
esperança de uma restauração futura. pastores de Israel: "Ai de vós pastores de
Israel. Não cuidastes do rebanho. Ele se
34. 1-31 Os pastores de espalhou pelas terras. Vós vos preocupas-
Israel são denunciados tes somente convosco mesmos (2,5-8). Eis
A imagem do povo de Deus como um reba- que me levanto contra os pastores. Eles se-
nho de ovelhas ocorre inúmeras vezes em rão responsabilizados pelo rebanho, porei
toda a Bíblia. Neste oráculo, os então pas- fim ao seu pastoreio. Eles já não se alimen-
tores, isto é, os governantes de Israel, são tarão de meu rebanho (lO). Eu buscarei e
EZEQUIEL 35 1114

ajuntarei minhas ovelhas. Eu as ajuntarei de Israel (35.12,15; 36.5). Terceiro, o povo


de todas as nações e as trarei para uma ter- de Edom aproveitara a oportunidade para
ra de boa pastagem, a terra de Israel. Eu anexar algumas terras de Israel durante
mesmo cuidarei delas e serei para elas um esse tempo de conturbação (35.12; 36.2,5).
bom pastor (11-15). Eis que julgarei entre Inimizades e rixas antigas são dificeis de
ovelhas e ovelhas. Algumas engordaram à esquecer. É fácil se alegrar ou mesmo tirar
custa de outras. O rebanho já não servirá vantagem do infortúnio de um vizinho de
de rapina (17-22). Apontarei meu servo quem não se gosta. Contudo, nossas rela-
Davi como seu único pastor. Eu serei o seu ções devem ser justas, mesmo quando as
Deus e Davi o seu príncipe (23,24). Eu ce- consideramos dificeis.
lebrarei com elas uma aliança de paz. Elas Edom pode ser tomado como um sím-
habitarão em uma terra fértil e segura. Elas bolo da incessante hostilidade entre o povo
serão resgatadas da escravidão. Saberão, de Deus e o "mundo". Visto que Davi foi
porém, que eu, o seu Deus, estou com elas, o rei que conquistou e ocupou Edom (v.
e que elas são o meu povo" (25-31). comentário de 34.21-24 e 2Sm 8.12-14), e
Notas. 13 "Tirá-las-ei [...] e as congre- que ele era o símbolo do triunfo de Israel,
garei": a promessa da restauração recebe a queda de Edom simboliza o início da
ênfase especial nos cp. 34-48. Entretanto, nova ordem. O retomo de "Davi" nos faz
isso também acontece em oráculos an- lembrar da vinda do Messias e do estabe-
teriores: 11.17; 16.60; 20.34,42; 28.25. lecimento da nova ordem, o reino de Deus,
25 "Aliança de paz": a nova aliança pro- que Jesus Cristo veio proclamar.
metida (cf Jr 31.31-34). 35.1-15 Ezequiel deve proclamar con-
tra Edom: "Eis que estou contra ti, Edom.
35.1-36.15 Profecias e Farei desertas as tuas cidades e tu serás
montes: advertências a Edom desolada, e saberás que eu sou o Senhor
e encorajamento a Israel (3,4). Tua perpétua rivalidade te levou a
É importante observar que 35.1-15 e 36.1- abandonar Israel em sua hora final (5). O
15 formam um único oráculo. A imagem sangue te perseguirá, farei de ti extrema
descrita nos dois capítulos é a dos mon- desolação. Assim saberás que eu sou o
tes. Seir, o monte de Edom, será desolado Senhor (6-9). Pensaste que podias ane-
(35.7,14), enquanto os montes de Israel se xar territórios de Israel e de Judá, quando
tomarão frutíferos (36.8,9), e a população estes estivessem desolados. Tu te engran-
será multiplicada (36.10-12). deceste contra mim. Por teres te alegrado
Edom era uma nação vizinha e anti- quando Israel se transformou em deserto,
ga rival de Israel. Apesar de etnicamente tu serás transformado em deserto (10-
próximas, essas nações mantinham uma 15). Então saberás que eu sou o Senhor"
inimizade antiga. A terra de Edom fica- (4,9,15).
va na fronteira leste ou oriental de Israel, 36.1-15 Mas, para os montes de Israel,
ao sul do mar Morto. De Seir, o monte Ezequiel deve proclamar: "O inimigo pen-
de Edom, era possível observar o flanco sou que vos podia saquear e anexar (36.1-
oriental de Israel. Os edomitas podiam 4). Sofrestes o escárnio das nações, mas
monitorar facilmente a miséria que sobre- essas nações ao vosso redor também sofre-
veio aos israelitas. rão escárnio (36.5-7). Contudo, sereis fér-
Edom é condenada por várias acu- teis e prósperos, com muitas edificações.
sações. Primeiro, evidentemente traíra Então sabereis que eu sou o Senhor. Meu
Israel em sua hora de maior aflição (35:5). povo vos possuirá como sua herança (36.8-
Segundo, os edomitas se engrandeceram e 12). Os montes de Israel já não privarão a
até mesmo se regozijaram com a destruição nação do seu povo" (36.12-15).
Notas. 35.10 "Os dois povos": Israel e
1115

esta é a palavra de Deus para Israel: 'Pelo


.
EZEQUIEL 37 . . -

Judá. 36.2 "Eternos lugares altos": a maior meu santo nome, vindicarei a santidade do
parte do território de Israel e de Judá se lo- meu grande nome através de vós perante
calizava nas regiões montanhosas entre o as nações. Então elas saberão que eu sou o
mar Morto e o mar Mediterrâneo. 36.12,13 Senhor (22,23). Eu vos trarei de volta para
"Tu és terra que devora os homens e és ter- a vossa própria terra e vos purificarei. O
ra que desfilha o seu povo": aqui os mon- vosso coração de pedra será trocado por
tes são descritos como algo que contribuiu um coração de carne. Eu colocarei o meu
para a destruição do povo. A expressão espírito sobre vós e farei com que obede-
pode ser puramente poética; mas, sem dú- çais às minhas leis. A terra será abundan-
vida, muitos de fato morreram nas batalhas te [e] detestareis e vos envergonhareis de
das regiões montanhosas. vossa conduta passada. Não é por causa de
vós que faço isso (24-32). Quando eu vos
36. 16-38 A restauração de Israel purificar de todos os pecados, a cidade será
Este oráculo é o âmago do livro de Eze- reconstruída e os campos serão novamente
quiel. Sua mensagem é uma síntese do li- cultivados. Então, as nações vizinhas que
vro. Israel ofendeu o Senhor com derrama- ainda restarem saberão que eu reedifiquei
mento de sangue e práticas idólatras (18). as cidades destruídas e plantei o que es-
Seu castigo foi sua dispersão entre as na- tava desolado (33-36). O povo de Israel
ções, o exílio (19). Contudo, o Senhor não se tomará tão numeroso quanto um reba-
os deixará ali. Eles retomarão à sua terra nho. Então as nações saberão que eu sou o
(24). O Senhor os transformará, purificará, Senhor'" (37,38).
e assim eles o seguirão (25-28). A terra e Notas. 25 "Aspergirei água pura": um
seu povo florescerão novamente (29-38). ato cerimonial de purificação. 26 "Coração
As nações vizinhas saberão que o Senhor de carne": a utilização do termo "carne"
agiu (36). aqui não deve ser confundida com a sua
A razão de o Senhor libertar seu povo utilização em outras partes da Bíblia, em
do exílio é claramente expressa. Ela não que frequentemente denota uma inclinação
tem relação alguma com qualquer bonda- para o pecado ou corrupção. Nesse trecho
de inata ou mérito do povo. Antes, ela está há um contraste entre o "coração de carne"
relacionada ao desejo de Deus de que seu e o "coração de pedra" para dizer que a na-
nome não seja profanado. O próprio fato tureza fria, desumana e cruel do povo de
de Israel estar em exílio levava as outras Israel seria substituída por uma espiritua-
nações a pensar que o Deus de Israel não lidade viva e calorosa.
conseguia ou não queria cuidar do seu pró-
prio povo. Essa situação denegria o caráter 37.1-14 O vale dos ossos secos
de Deus, e por esta razão Deus restauraria Depois da queda de Jerusalém o povo foi
o seu povo (20-23). espalhado e ficou muito abatido. O oráculo
Este oráculo traz esperança para todos tem uma mensagem simples: A nação de
nós. Deus age para salvar, não com base Israel, que se encontrava morta, um dia
em nosso merecimento, mas pela riqueza será restaurada e trazida de volta à sua pró-
da sua misericórdia. pria terra. Os ossos secos se transformarão
16-380 SenhordizaEzequiel: "Quando em um exército de guerreiros vivos. Uma
Israel habitou sua própria terra, ele a pro- transformação igualmente poderosa se apli-
fanou com suas iniquidades. Assim, eu os cará um dia também a Israel.
espalhei por outras terras. Mesmo assim, A força desta visão deu esperança a
sua dispersão profanou o meu nome, as- muitos ao longo dos séculos. O poder de
sunto de meu interesse (16-21). Portanto, Deus pode mudar não somente as coisas
>
EZEQUIEL 37 1116

mais impossíveis da vida, mas também as terá todos os valorosos atributos do rei
mais terríveis situações. Davi, como também todos os privilégios
1-11 Ezequiel tem uma visão na qual de sua linhagem, o direito ao trono e de
ele é transportado para o meio de um vale estar diante de Deus à luz de suas promes-
repleto de ossos secos. O Senhor lhe diz sas. O futuro de Israel é descrito como uma
para profetizar aos ossos e lhes dizer que versão idealizada de seu passado. Até as
eles serão recobertos de carne e voltarão mais profundas feridas da história podem
à vida. Ezequiel assim o faz, e, enquanto ser curadas pelo poder de Deus.
profetiza, os esqueletos se reconstituem 15-23 Ezequiel é instruído a fazer o
com estrépito. São recobertos por carne, seguinte: "Toma dois pedaços de madei-
tendões e pele, mas ainda estão mortos ra. Escreve em um deles: Para Judá e seus
(1-8). Então o Senhor lhe disse para orde- companheiros, e no outro escreve: Para
nar ao vento que soprasse sobre os corpos. Israel e seus companheiros. Junta-os, fa-
Ele profetiza como fora ordenado, e os zendo deles um só pedaço de madeira, para
ossos revivem e põem-se de pé, forman- que se tomem apenas um em tua mão"
do um exército numeroso (9,10). O Senhor (16,17). Quando alguém te perguntar, ex-
então lhe explica: "Esses ossos represen- plica o significado deste ato, o qual é: 'Eu,
tam Israel, que anda dizendo que sua espe- o Senhor, ajuntarei os pedaços de madei-
rança pereceu e secou" (11). ra de Israel e de Judá, para que se tomem
12-14 Ezequiel deve proclamar a todo apenas um' (18,19). Mostra-lhes os peda-
o povo de Israel: "Eu vos tirarei das suas ços de madeira (20), e proclama: 'Tomarei
sepulturas e vos levarei à terra de Israel. os filhos de Israel dentre as nações e os
Então sabereis que eu sou o Senhor ajuntarei e os levarei para sua própria ter-
(12,13). Porei em vós o meu espírito e vos ra. Eles terão apenas um rei e nunca mais
estabelecerei em vossa própria terra. Então serão divididos em dois reinos. Eles jamais
sabereis que eu sou o Senhor; eu o disse e profanarão a si mesmos. Eu os purificarei.
o farei" (14). Eles serão o meu povo, e eu serei o Deus
Notas. 1 "A mão do SENHOR": esta ex- deles" (21-23).
pressão indica que Ezequiel estava pres- 24-28 "Meu servo Davi será o seu rei
tes a experimentar uma visão muito mais para sempre. Eles observarão os meus es-
intensa, em vez da costumeira mensagem tatutos. Eles e seus descendentes habita-
"verbal". 5,14 "espírito, Espírito": o ter- rão sua terra para sempre (24,25). Farei
mo hebraico pode ser traduzido também com eles uma aliança eterna. Eu os es-
por "sopro". tabelecerei e os multiplicarei (26). Meu
santuário estará eternamente no meio de-
37.15-28 A reunião de Israel les. Eu serei o seu Deus, e eles serão o
Quase três séculos antes, desde o final meu povo. Então as nações saberão que
do reinado de Salomão, o povo de Israel eu, o Senhor, santifico Israel, porque o
fora dividido em dois reinos, Israel e Judá. meu santuário estará para sempre no meio
Serão não somente restaurados, como pro- deles" (27,28).
metido no oráculo anterior, mas também Notas. 16 "O pedaço de madeira de
formarão novamente uma única nação. Efraim": o nome "Efraim" era menos ambí-
Eles terão um único soberano, que guo que "Israel". O nome Efraim designa-
aqui é descrito como "meu servo Davi". va claramente o Reino do Norte, enquanto
(Y. comentário de 34.1-31, em que o ter- o nome "Israel" podia ser aplicado ao povo
mo também é utilizado). Ao chamar o de ambos os reinos. 26 "Meu santuário":
novo soberano de "Davi", a profecia quer essa promessa a respeito do santuário é de-
dizer que o novo soberano não somente senvolvida nos cp. 40--48.
1117 EZEQUIEL 39 ••

••
38.1-39.29 Profecias contra (14-16). Eu falei sobre ti no passado por
aqueles que se opunham a Israel meio dos meus servos, os profetas (17).
Nada se sabe ao certo sobre algum gover- Quando atacares Israel, haverá um gran-
nante chamado Gogue. As terras que go- de terremoto acompanhado de violentas
vernava - Magogue, Meseque e Tubal - tempestades. Ao te afligir com tudo isso,
provavelmente se localizavam nas regiões eu me darei a conhecer aos olhos de mui-
da Ásia Menor e do mar Negro (v. comen- tas nações. Então, sabereis que eu sou o
tário do v. 1). Essas terras estavam locali- Senhor"(18-23).
zadas a uma grande distância do mundo do 39.1-16 "Nos montes de Israel, eu ar-
Oriente Médio. Pode ser que tanto Gogue rancarei as armas das tuas mãos. Ali, cai-
quanto suas nações representassem simbo- rás, não só tu, mas todos os que te acom-
licamente o povo da época que era contrá- panham, e servireis de alimento a todas as
rio ao povo de Deus, ou seja, seu inimigo. espécies de aves de rapina e animais do
(O livro do Apocalipse se refere a Gogue campo (39.1-5). Farei meu nome santo
e Magogue com esse mesmo sentido em no meio de meu povo, Israel, e as nações
Ap 20.8). Visto dessa maneira, o oráculo saberão que eu sou o Senhor, o Santo de
se toma uma advertência de que, mesmo Israel. Isso com certeza se cumprirá (6-8).
depois do seu retomo do exílio, o povo de Os habitantes de Israel utilizarão todo ar-
Israel enfrentaria enormes dificuldades. mamento ali deixado para fazer fogo pelo
Contudo, essas forças seriam derrotadas e período de sete anos (8-10). O lugar de
seria grande a sua destruição. sepultura de Gogue será chamado de vale
A intensidade da imagem no oráculo das Forças de Gogue. Durante sete meses
- os grandes exércitos e o enorme número Israel sepultará as forças de Gogue para
de baixas - levou alguns intérpretes a ver limpar a terra." (11-16).
esse oráculo como a predição de uma ba- 39.17-29 Ezequiel também deve pro-
talha final específica. Entretanto, se com- clamar a toda espécie de aves e animais
pararmos este oráculo, por exemplo, aos do campo: "Preparai-vos para o grande sa-
dirigidos ao Egito em 32.1-16 e a Tiro em crificio. Comereis carne e bebereis sangue
28.11-19, encontraremos simbolismo de se- desses exércitos até ficardes fartos (17-20).
melhante extravagância. Todas as nações verão o meu juízo. Desse
A implicação do oráculo é que em dias dia em diante Israel saberá que eu sou o
futuros o povo de Deus veria as forças do Senhor, seu Deus, e as nações saberão que
mal perfiladas em massa contra ele. A pro- Israel, por causa da sua iniquidade, foi le-
babilidade de vencê-las parece remota, mas vado para o exílio (21-24). Eu trarei Israel
o poder de Deus protegerá o seu povo. O de volta do cativeiro e vindicarei neles a
inimigo será derrotado. Para nós, a vitória minha santidade. Então eles saberão que
ainda se encontra no futuro, mas o golpe eu sou o Senhor, seu Deus, e derramarei
final foi dado na cruz do calvário. meu Espírito Santo sobre eles" (25-29).
38.1-23 Deus pede a Ezequiel para pro- Notas. 38.1 Meseque e Tubal provavel-
clamar a Gogue: "Estou contra ti, Gogue. mente se localizavam na Ásia Menor (cf v.
Tu e os teus aliados sofrereis a derrota 6). "Magogue" aparece como o nome de
(38.2-5). Prepara-te porque nos anos que um dos filhos de Jafé, em Gênesis 10.2 e
estão por vir, tu e tuas hordas invadireis a lCrônicas 1.5 e, portanto, é o nome de um
terra de Israel (38.7-9). No tempo devido, povo. O termo "Magogue" pode signifi-
planejarás pilhar e saquear uma terra rica e car simplesmente "terra de Gogue". 38.5
pacífica (10-13). Tu e teu grande número "Etiópia": o alto Egito. "Pute": Líbia. 38.6
de aliados avançareis vindos do norte. Eu "Gômer" localizado na Ásia Menor. "Bete-
vos trarei para que as nações me conheçam Togarma": Armênia. Podemos observar
EZEQUIEL 40 1118

que entre os filhos de Jafé, em Gênesis tas especiais e aos dias comemorativos.
10.2, encontram-se Gômer, Magogue, Ele observa um rio miraculoso jorrar de
Tubal e Meseque. 38.12 "No meio da ter- sob o templo, aumentando cada vez mais,
ra": em Jerusalém (cf 5. 5). 38.17 "Não refrescando a terra e revivendo perpetu-
és tu aquele de quem eu disse...7" - Essa amente o mar Morto. As fronteiras e as
pergunta pode ser tomada como mais uma divisões da terra são então especificadas.
indicação de que Gogue é apenas simbó- O oráculo termina com a nota triunfante
lico. A implicação aqui é que Israel já foi que o novo nome da cidade será "o SENHOR
avisado de tal acontecimento. 39.9 "Sete está ali" (48.35).
anos": o número sete (também em 39.12 É importante lembrar que esses capí-
- "sete meses") simboliza que o evento tulos representam uma visão. Esse orácu-
foi concluído. 39.12 "Sepultá-los, para lo não é puramente uma revelação de um
limpar a terra": qualquer um que tocasse novo ensinamento, nem uma predição dos
um cadáver era considerado cerimonial- acontecimentos que estão por vir (embora
mente impuro (Nm 19.11). 39.18 "Basã": alguns acreditem que este templo um dia
uma região a leste da Galileia, conheci- será construído). É também um lembrete
da pela qualidade de seu rebanho bovino de como é e de como deve ser a religião
e de seus carvalhos. 39.25-29 Esta seção de Israel.
não denota ainda outra reunião do povo de A visão em si se alterna gradualmente
Israel. Pode ser vista como um resumo das do descritivo para o prescritivo, do simbó-
intenções de Deus para o seu povo. lico para o apocalíptico. Entre os detalhes
sobre as dimensões do templo e os regula-
40.1-48.35 Visões do novo mentos relativos aos sacerdotes está o rela-
templo e da nova terra to do retomo da glória de Deus ao templo.
Este último oráculo é o maior de todo o As cláusulas a respeito das oferendas e as
livro. Pertence ao grupo de oráculos que normas que regulam a distribuição da terra
Ezequiel introduz com a expressão: "veio são separadas por uma passagem, que des-
sobre mim a mão do SENHOR" (40.1). creve um maravilhoso rio que corre de sob
Trata-se, portanto, de uma dessas visões o templo e renova até mesmo as águas do
que Ezequiel experiencia fisicamente; ele mar Morto.
é transportado, dentro da visão, para um Essa mistura de simbolismo e de de-
outro lugar. talhes práticos deve ter levado o povo de
A visão é datada por volta de abril de Israel a refletir sobre seu passado e a re-
573 a.C. (40.1). Tanto Jerusalém quanto novar sua determinação para mudar o pre-
o templo estão destruídos há 12 anos. O sente. Somente ao abandonar os deuses de
povo de Israel está espalhado pelas nações seus conquistadores e retomar à fé de seus
ou vivendo na miséria em sua própria terra, pais Israel poderá tomar posse da promes-
agora destruída. A família real desapare- sa de uma nova Jerusalém.
ceu. Não havia nenhuma grande indicação A descrição da área do novo templo.
de que seu antigo estilo de vida voltaria. 40.1-4 Ezequiel tem uma visão na qual é
É nesse ponto que Ezequiel tem sua transportado para um alto monte. Um ho-
visão. É uma mistura do real com o ideal. mem carregando instrumentos de medição
Ele é trazido e conduzido pelas instalações instrui Ezequiel a retransmitir a Israel tudo
de um novo templo. Vê a glória de Deus o que ele está prestes a ver.
inundar o templo e ouve o Senhor declarar 40.5-16 O homem mede a parede que
que estará ali para sempre. Ele vê o altar e cerca a área do templo. Então se diri-
é instruído sobre os regulamentos relacio- ge à porta que dá para o Oriente (isto é,
nados ao príncipe, aos sacerdotes, às ofer- a entrada dianteira) e mede todos os seus
1119 EZEQUIEL 47 fi"
II1II
l1li

aspectos. 40.17-27 Ele leva Ezequiel atra- acompanham. Registra tudo isso de modo
vés da entrada ao átrio exterior. Há outras que possam ser fiéis à planta e sigam suas
duas portas para o átrio, uma que dá para o especificações".
norte e outra que dá para o sul. Estas têm Prescrições para a adoração no tem-
as mesmas dimensões que a porta que dá plo: os papéis dos sacerdotes e do prín-
para o Oriente. cipe. 43.13-27 As medidas do altar são
40.28-37 No interior do átrio exter- dadas, e em seguida é prescrita a forma da
no há um átrio interno em que também sua consagração.
há portas para os lados sul, leste e norte. 44.1-4 A porta que olha para o Oriente
As dimensões são as mesmas das do átrio deve permanecer fechada. Ezequiel é
externo. 40.38-43 Próximos a essas portas conduzido à frente do templo. Lá, ele vê
internas ficam os cômodos onde os sacrifi- a glória de Deus encher o templo. 44.5-9
cios devem ser lavados. Há também mesas Nenhum estrangeiro deve entrar no san-
e instrumentos para o abate dos animais sa- tuário, ao contrário dos atos precedentes
crificados. 40.44-47 Dois outros cômodos de profanação. 44.10-16 Os levitas que
são designados aos sacerdotes responsá- anteriormente tinham cometido práticas
veis pelo templo e pelo altar. idólatras podem ainda servir no santuário,
40.48--41.4 No interior do átrio in- mas somente os filhos de Zadoque podem
terno se encontra o edificio do templo e o se aproximar do Senhor para a oferta de
altar (o altar fica na frente do templo). O sacrificios. 44.17-37 São dados os regula-
homem leva Ezequiel ao pórtico do tem- mentos a respeito da aparência e conduta
plo e mede suas dimensões. Então conduz dos sacerdotes.
Ezequiel ao santuário externo e mede sua 45.1-9 Os sacerdotes devem residir na
entrada. Vai além, entrando no santuário porção da terra que é destinada ao Senhor.
interno e o mede também. Este santuário Ao príncipe também deve ser destinada
é o Santo dos Santos. 41.5-26 Mede então uma porção de terra. Ele nunca mais opri-
a parede do templo e suas adjacências. O mirá Israel por meio da desapropriação
próprio templo fica em uma base elevada e da propriedade.
tem assoalho de madeira. Há esculturas de 45.10-46.15 Balanças precisas de-
querubins e de palmeiras nas paredes e nas vem ser utilizadas. As porções para os
portas. Um altar de madeira fica no Santo sacrificios são especificadas. Os proce-
dos Santos. 42.1-20 Em outro lado do tem- dimentos dos sacerdotes, príncipe e povo
plo, em frente ao pátio, ficam os quartos para os dias comemorativos e santificados
dos sacerdotes, onde os sacerdotes devem são estabelecidos.
comer e guardar as ofertas santificadas. 46.16-18 O príncipe pode apenas dei-
Esses aposentos são santificados. xar por herança a seus descendentes sua
43.1-11 O homem conduz Ezequiel à própria propriedade. 46.19-24 Aqui é feita
porta oriental. Ezequiel vê a glória de Deus a descrição dos lugares onde os sacerdotes
se aproximar pelo leste e encher o templo. devem cozer as ofertas.
E então Ezequiel ouve: "Este é o lugar do A terra além do templo 47.1-12 Eze-
meu trono. Eu habitarei aqui com Israel quiel vê então um grande rio que flui do
para sempre. Eles não profanarão meu san- templo em direção ao mar Morto. As águas
to nome outra vez. Deixa que eles se arre- do mar Morto são constantemente renova-
pendam de seu pecado, e viverei com eles das e refrescadas pelas águas desse rio, que
para sempre. Descreve o templo a Israel. também tem uma profusão de peixes. As
Se eles se sentirem envergonhados de árvores frutíferas crescem às margens do
seus pecados, descreve-lhes os detalhes da rio, mas as águas de seus pântanos e char-
planta do templo e os regulamentos que o cos permanecem salgadas.
>
EZEQUIEL 47 1120

rem de suas ações passadas, então devem


47.13-23 Então Ezequiel recebe uma
descrição dos limites da terra que será ser encorajados a respeitar as leis e regula-
dividida entre as tribos de Israel. 48.1-29 mentos que acompanhavam a planta. Não
Além disso, são separadas áreas da cidade está explícito se eles devem reconstruir o
e de seus arredores aos levitas e aos filhos templo de acordo com a planta dada aqui.
de Zadoque. 48.30-34 A cidade deve ter 12 43.19; 44.15 "Zadoque": ele era sacerdo-
portas, três em cada lado. As portas devem te da época de Davi (2Sm 15.24-29). Os
ser nomeadas de acordo com as tribos de sacerdotes que não são filhos de Zadoque
Israel. 48.35 O nome da cidade deve ser: devem ser punidos por sua desobediência
"O SENHOR está ali". no passado ao serem impedidos de exercer
Notas. 40 "Em visões, Deus me levou": as altas funções sacerdotais. 45.1-48.29
uma expressão também usada em outros Uma nova distribuição de terras é consi-
oráculos visuais (1.1; 8.3). 40.3 "Cordel de derada. 47.10 "En-Gedi": uma cidade na
linho": instrumento usado para fazer medi- costa oeste do mar Morto. "En-Englaim":
ções (cf 47.3). 40.6--43.17 Ezequiel é le- talvez estivesse localizada ao norte de En-
vado para conhecer o novo templo, embora Gedi. 48.35 "O SENHOR está ali": as últi-
permaneça do lado de fora do santuário in- mas palavras do livro representam tanto
terno. Somente os altos sacerdotes podem o nome da nova Jerusalém quanto a espe-
entrar ali (Lv 16; cf Hb 9.7). 43.2 A glória rança para o povo de Deus. O Senhor es-
de Deus volta ao templo nesta visão. Em tará não apenas no templo, não apenas em
uma visão anterior (11.22,23) a glória de Jerusalém, mas, em Espírito, no coração
Deus abandonara o templo. Aqui está im- de cada um dos verdadeiros adoradores em
plícita a ideia de que Deus está retomando todo o mundo, em todos os tempos e para
para seu povo. 43.10,11 O significado dos todo o sempre.
cp. 40-48 é explicado nesses dois versí-
culos. O povo de Israel deve contemplar a
planta do templo. Se eles se envergonha- L. John McGregor
' " DANIEL

INTRODUÇÃO
o livro de Daniel conta a história de um ticos (e.g., Ez 1), fica claro que aqui temos
jovem judeu levado de Jerusalém nos dias um tipo diferente de literatura. Em certo
de Nabucodonosor, rei da Babilônia (605- sentido, as impressões criadas no leitor
562 a.C.). Apesar de viver no exílio por são tão importantes quanto a compreen-
toda a vida e sofrer muita oposição, ele são dos detalhes. É teoricamente possível
permaneceu fiel a Deus. Como José, bem compreender os detalhes e, no entanto,
antes dele (Gn 37-50), Daniel tinha a não experimentar o impacto que o livro
capacidade de interpretar sonhos e visões pretende produzir.
(1.17). Alcançou lugar de destaque em Em vista disso, o livro de Daniel é
uma corte estrangeira e teve o privilégio geralmente classificado como literatura
de receber visões dos futuros propósitos apocalíptica, como o livro de Apocalipse
de Deus na história. (v. Apócrifos e Literatura Apocalíptica).
Embora predominantemente escrito na Entretanto, provavelmente seria sábio
terceira pessoa, toda a segunda metade do não definir de forma tão rígida o que isso
livro (7.2-12.13) contém uma série de vi- implica para o livro de Daniel. Assim
sões dramáticas e é apresentada em forma como a forma literária relativamente re-
de autobiografia. Embora na Bíblia o livro cente do romance moderno (que é nor-
seja incluído entre os Profetas, na Bíblia malmente datada por volta do início do
Hebraica ele se encontra entre os Escritos. século XVIII), esse tipo de literatura tam-
Nesse contexto, o livro ilustra a natureza e bém não apareceu da noite para o dia, de
bênçãos de uma vida de fidelidade à alian- forma acabada e com características bem
ça com Deus sob condições bastante des- definidas. O que é característico dos es-
favoráveis (cp. 1-6), e revela os conflitos critos apocalípticos, entretanto, é que sua
nos quais o povo da aliança se envolverá, mensagem envolve Uma "revelação" (do
mas será protegido por Deus (cp. 7-12). grego apokalypsis) de ordem transcen-
dente e a forma como isso se relaciona à
Tipo de literatura história, à medida que esta se move rumo
Fica logo evidente que o livro de Daniel é à consumação dos tempos. Na condição
um tipo de literatura completamente dife- de revelação, carrega o apelo "venha e
rente da maior parte da literatura histórica veja" bem como "ouça e entenda".
e profética do AT. Diferentemente dos li-
vros históricos, ele é dominado por visões; Estrutura
diferentemente dos livros proféticos, suas O livro de Daniel é dividido em duas se-
visões são frequentemente surreais, des- ções e escrito em duas línguas: hebrai-
crevendo um mundo no qual gigantescas co (1.1-2.4a; 8.1-13.13) e aramaico
estátuas são postas abaixo por misteriosas (2.4b-7.28). Os cp. 1-6 são biográficos,
pedras e onde estranhas bestas se levantam já os cp. 7-12 são apocalípticos. A textura
para lutar umas contras as outras. daobra, entretanto, é mais sutil do que isso,
Ainda que alguns desses elementos conforme indicado pelo uso do aramaico
possam ser encontrados nos livros profé- em 2.4-7.28 (isto é, em partes de ambas
DANIEL 1122

as seções). Tem-se sugerido que esses ca- uma percepção mais clara e mais completa
pítulos teriam significado especial para não das coisas. Por essa razão, o material trata
hebreus (daí o uso de uma língua interna- do mesmo assunto em mais de uma ocasião,
cional). Além disso, em vez de separar as embora o desenvolva a cada vez de maneira
duas seções de forma radical, tal uso tem mais completa. O mesmo padrão pode ser
o efeito de uni-las, enquanto indica que os detectado nos ensinos de Jesus em Marcos
cp. 2-7 contêm o âmago do livro. Se este 13, e no próprio livro de Apocalipse.
de fato for o caso, o cp. 1 serviria como
uma explicação introdutória, enquanto os Mensagem
cp. 8-12 desenvolveriam o padrão da his- O contexto em que a vida de Daniel é apre-
tória mundial já apresentado anteriormente sentada é sintetizado pela pergunta feita
no livro. A forma como o aramaico abarca pelos exilados na Babilônia, registrada em
tanto a seção biográfica quanto a visionária Salmos 137.4: "Como, porém, haveriamos
do livro é um forte argumento a favor de de entoar o canto do SENHOR em terra es-
sua coesão literária. tranha?". O livro inteiro, tanto a parte bio-
Na parte central (cp. 2-7), outro pa- gráfica quanto as visões, nos ensina que
drão mais comum à narrativa do AT pode ser este mundo sempre será uma "terra estra-
detectado. Os cp. 2 e 7 apresentam visões nha" para o povo de Deus (cf Jn 17.16;
de quatro reinos mundiais que se opõem ao Fp 3.20a). O povo de Deus é "forasteiro"
reino de Deus; os cp. 3 e 6 são narrativas no mundo (1Pe 1.1,17), cercado de inimi-
do milagroso livramento divino; os cp. 4 gos malignos e destrutivos (1Pe 5.8,9).
e 5 descrevem o juízo de Deus sobre os Contudo, é possível viver de uma manei-
governantes mundiais. Assim, os motivos ra que traga louvor e honra a Deus, assim
empregados nos cp. 2, 3 e 4 reaparecem na como fez Daniel. Ele é a personificação
ordem inversa nos cp. 5, 6 e 7. O efeito é dos ensinamentos do salmo 1.
de um espelhamento da narrativa, cuja in- Tal vida de fé (cf Hb 11.33,34) é alimen-
tenção é intensificar certas expectativas no tada pelo conhecimento de Deus (11.32b),
leitor que já conhece esse recurso, assim pela consagração a ele (1.8; 3.17,18; 6.6-
como aumentar seu prazer na leitura. 10) e pela comunhão com ele em oração
Os leitores contemporâneos estão geral- (2.17,18; 6.10; 9.3; 10.2,3,12). Ela extrai
mente acostumados com livros que seguem sua confiança do fato de que Deus é sobera-
uma ordem cronológica direta. Mesmo no sobre toda a obra humana (2.19,20; 3.17;
quando apresentados sob a forma de remi- 4.34,35) e está edificando seu próprio reino
niscências, relatadas muito tempo depois (2.44,45; 4.34; 6.26; 7.14). Nosso tempo
dos acontecimentos, os temas tendem a ser está em suas mãos (1.2; 5.26), uma vez que
desenvolvidos seguindo-se uma linha do as coisas da terra não estão desconectadas
tempo. O livro de Daniel não segue essa das coisas do céu (10.12-14,20). Ele é um
forma. As experiências dos cp. 1-6 de fato Deus que toma a si mesmo e seus propó-
se orientam por uma sequência cronológi- sitos conhecidos, de modo que seu povo
ca em sua apresentação; mas as revelações possa conhecê-lo e confiar em sua palavra
ao longo de todo o livro seguem a forma (1.17b; 2.19,28-30,47). Tal conhecimento
de um paralelismo progressivo, cobrindo permite ao povo de Deus resistir à pressão,
o mesmo período. A estrutura literária é sabendo que compartilhará da consumação
semelhante à de uma escada em espiral, de seu reino (7.22,26-27; 12.2,3).
que se move sempre ao redor do mesmo
ponto no tempo, mas nos conduz a uma Autoria e data
visão mais vantajosa de uma perspectiva Nenhuma declaração explícita sobre a au-
superior, a partir da qual podemos obter toria do livro é feita em Daniel, embora
11II
1123 DANIEL ..:
11II

metade dele seja escrita em forma autobio- cisão muito maior do que os demais livros
gráfica. Numerosos estudiosos contemporâ- do AT. O autor estava consciente da pro-
neos do AT (mas nem todos) defendem a tese fanação do templo (a qual pode ser preci-
(primeiramente defendida por Porflrio, um samente datada em dezembro de 167 a.C.,
neoplatonista do século III que se opunha à cf 11.31) e da heroica resistência liderada
fé cristã) de que o livro não foi composto por Judas Macabeu em 166 (11.33-35),
no século VI (seu contexto literário), mas mas ele evidentemente nada sabia sobre a
no século n, nos dias de Antíoco Epifânio morte de Antíoco em 164 (11.40-45 é lido
(cf 8.9-14,23-27; 11.4-35). como uma genuína tentativa de profecia,
De acordo com esse ponto de vista, embora equivocada). Os críticos sugerem
as histórias dos cp. 1-6 sem dúvida têm que, por mais que o livro possa ter passado
sua origem nas tradições do povo hebreu. por periodos anteriores de composição e
Daniel é apresentado na figura de um herói, de revisão, sua edição final pode ser data-
fiel às leis de Deus, mesmo nos momentos da com precisão por volta de 165/164 a.C.
em que enfrenta oposição. As visões são de Essa data, por sua vez, toma-se o principal
modo geral interpretações do passado, em argumento para se acreditar que o quarto
vez de revelações sobrenaturais do futuro. reino nos cp. 2 e 7 seja a Grécia.
Em lugar de fornecer um relato histórico, De acordo com os críticos, portanto,
a autobiografia e as visões de Daniel, de Daniel é um livro de histórias edificantes
várias maneiras, empregam, expõem e e visões dramáticas, uma incrível peça de
aplicam outras passagens das Escrituras literatura da resistência do segundo sécu-
para levar força e encorajamento aos ju- lo a.C. Por ter sido escrita de uma manei-
deus do segundo século. Assim, por exem- ra que nenhum de seus primeiros leitores
plo, a sua própria experiência é vista como a teria confundido com uma história do
algo que se espelha na experiência de José passado, ou profecia do futuro, eles a te-
(o exilado que chegou ao poder em uma riam aceitado pelo que ela era, teriam sido
nação estrangeira e, mesmo assim, per- desafiados por ela, e se fortalecido por
maneceu fiel a Deus); a sua oração no cp. meio de sua mensagem - assim como
9 é vista como dependente das orações qualquer leitor de hoje pode se comover
em Neemias; enquanto partes das visões ao ler Hamlet de Shakespeare ou Os ir-
são vistas como exposições sutis das mãos Karamazov de Dostoievski.
Escrituras (11.33; 12.3 são vistas como Ao buscar confirmação para esse pon-
uma exposição de Is 52.13-53.12). O to de vista, frequentemente se tem apela-
autor estava escrevendo seu livro nos anos do às evidências do próprio livro, e.g., a
160 a.c., quando o povo de Deus estava utilização de termos gregos para alguns
sofrendo feroz perseguição de Antíoco dos instrumentos musicais em 3.5; a fal-
Epifânio e precisava desesperadamente ta de evidências sólidas para a loucura de
saber que havia um sentido para a vida, Nabucodonosor ou de seus decretos no
que a fidelidade a Deus era importante, cp. 4; as referências duvidosas a Dario, o
que o sofrimento não era algo pennanen- medo, nos cp. 5 e 6, e a inadequada históri-
te, que Deus reinava e seu povo triunfaria. ca da descrição do fim de Antíoco Epifânio.
A questão levantada em 12.6 ("Quando Embora discutida apenas de forma breve
se cumprirão estas maravilhas?") ecoa o neste comentário, uma discussão mais de-
clamor do povo de Deus. As misteriosas talhada dessas questões poderá ser encon-
profecias contêm a resposta: isso não será trada nos comentários de J. G. Baldwin
para sempre. (Daniel: introdução e comentário. SCR
Esse ponto de vista também sugere que Vida Nova, 1983.) e de E. J. Young (Daniel
o livro de Daniel pode ser datado com pre- [Eerdmans, 1949]).
11
11l1li DANIEL 1124
1111

Esse ponto da vista, anteriormente de- fosse assim, o conhecimento e a autorida-


fendido somente por teólogos liberais, tem de de Cristo como o Senhor das Escrituras
sido mais recentemente compartilhado seriam colocados em dúvida por uma data-
por outros de tradição mais conservadora. ção posterior. Como também a habilidade
Argumenta-se que o próprio livro indica dos autores do NT em detectar a ficção dois
que as histórias não devem ser compreen- séculos após ter sido escrita - uma falha
didas como história literal e que as visões notável, comparável à de alguém que les-
são, obviamente, interpretações do passa- se hoje a obra de Emily Brontê, Wuthering
do (e não revelações sobre o futuro). Uma Heights, como história.
passagem como 11.4-12.3 é uma "quase 3. Há uma falha psicológica, bem como
profecia" e não teria sido lida efetivamen- teológica, na ideia de que uma obra sabida
te como profecia pelo público ao qual fora e obviamente ficcional seja apropriada a
originariamente destinado. Para defender inspirar os leitores à fidelidade até à mor-
teologicamente essa posição é dito que, te. De acordo com uma teoria que defende
embora Deus pudesse, se assim quisesse, a datação no segundo século, esse não é
salvar alguns homens em meio às chamas, meramente um efeito possível, mas a ver-
enquanto outros morreriam, bem como fa- dadeira função do livro. Isso é o mesmo
zer previsões detalhadas de acontecimentos que pedir ao povo que confie no poder, co-
futuros, esse, entretanto, não é o tipo de coi- nhecimento e sabedoria de Deus quando,
sa que o Deus das Escrituras de fato faz. na verdade, as evidências para esses atri-
Embora esse ponto de vista tenha, no butos eram uma invenção da imaginação
século passado, praticamente subjugado a do autor, e não revelação e ação genuínas
perspectiva conservadora, ele enfrenta di- de Deus. Apesar dos protestos de que Deus
ficuldades consideráveis, das quais apenas era capaz de fazer os milagres de Daniel e
algumas serão aqui mencionadas: revelar o futuro em detalhes, embora ele
1. Se o livro fosse de caráter tão eviden- não o tenha feito dessa maneira, não nos
temente ficcional, era de esperar que en- é dada razão alguma para acreditar que ele
contrássemos os primeiros indícios disso pode ou fará tais coisas. Aqui a lógica de
na tradição interpretativa, antes e inde- Paulo com relação a um outro milagre não
pendentemente do ataque de Porfirio ao é inapropriada (v. 1Co 15.15-17).
cristianismo; mas não se encontra nenhum 4. Algumas características acidentais
indício nesse sentido. Se o livro é tão "ob- encontradas no livro apontam para um
viamente" composto por lendas, é dificil autor de origem babilônica, com conheci-
compreender a tradição evidentemente mento sobre o tipo de vida desse povo que
contínua de interpretá-lo como história au- dificilmente se poderia esperar de um autor
tobiográfica, teológica e como visões. palestino do segundo século a.c. Dentre es-
2. Os autores do NT viam o livro de sas características está o conhecimento do
Daniel como histórico. Jesus considera- uso do sistema de datas babilônico (1.1);
va Daniel um profeta (Mt 24.15) e, con- familiaridade com a predileção deste povo
sequentemente, o conteúdo de seu livro para com o número seis e seus múltiplos
como uma genuína profecia do futuro. O (3.1; NVI mrg.); a ilação de que o título de
autor de Hebreus se refere a dois acon- "rei" de Belsazar implicava no fato de ele
tecimentos de Daniel num contexto de agir como regente (5.7); e a referência ao
outros eventos e personagens históricos costume persa de punir os parentes de al-
(Hb 11.33,34). É muito dificil resistir à guém considerado culpado (6.24). Mesmo
conclusão de que tanto Jesus como os au- a referência à "caiadura da parede" (5.5) é
tores do NT consideravam o livro de Daniel impressionante, uma vez que sabemos por
verdadeiramente histórico e profético. Não descobertas arqueológicas que as paredes
1125

DANIEL - : .

do palácio da Babilônia eram cobertas por sagem do livro de Daniel é a de que Deus
reboque da cor branca. pode e de fato faz aquilo que suas criaturas
5. A teoria de datação do segundo sé- não podem fazer (2.10,11). Nenhum intér-
culo supõe que o livro de Daniel foi escri- prete desse livro pode escapar do desafio
to em 165/164 a.c. e estava enganado em que ele traz, o desafio de se confiar em um
sua genuína tentativa de profetizar o fim Deus que pode deter o fogo e fechar a boca
de Antíoco Epífanes. Dada a autoridade do dos leões (Hb 11.33,34) ou em um Deus
cânon do AT, é inexplicável (por esse ponto que ressuscita os mortos, quando toca nes-
de vista) o fato de o livro não ter sido revi- se assunto (12.2; cf Me 12.18-27). (v. tam-
sado com cuidado e exatidão ou o fato de bém o quadro na página 949).
o livro ter sido aceito como canônico, uma
vez que já era sabido que continha erros. Leitura adicional
A abordagem adotada neste comentário FERGUSON, S. R Daniel. cc Word, 1988.
segue a posição há muito defendida pela WALLACE, R. S. A mensagem de Daniel.
igreja cristã de que o livro de Daniel foi es- BFH. ABU, 1985.
crito no século VI a.c., na Babilônia. Isso BALDWIN, 1. G. Daniel: introdução e co-
não quer dizer que não haja dificuldades mentário. SCR Vida Nova, 1983.
concernentes ao conteúdo histórico do li- ARCHER, G. L. Daniel em GAEBELEIN, Frank
vro ou em se acreditar em suas profecias e E., ed. Daniel and the minar prophets.
milagres. As dificuldades históricas conti- EBC. Zondervan, 1985.
nuam a requerer a pesquisa dos estudiosos; YOUNG, E. J. The prophecy of Daniel.
o segundo fator, entretanto, está relaciona- Eerdmans, 1949; Geneva Series,
do à nossa visão de Deus. Parte da men- Banner of Truth, 1972.

ESBOÇO
1.1-21 A soberania de Deus e seus servos fiéis
1.1,2 O homem propõe, Deus dispõe
1.3-7 Reeducação na Babilônia
1.8-21 Aprovado no primeiro teste

2.1-49 A soberania de Deus em subjugar reinos


2.1-13 Os sonhos perturbadores de Nabucodonosor
2.14-23 Daniel recebe iluminação
2.24-49 A explicação do sonho

3.1-30 A soberania de Deus em julgamentos flamejantes


3.1-18 Idolatria ou morte
3.19-30 "Não te queimarás, nem a chama arderá em ti"

4.1-37 A soberania de Deus humilha Nabucodonosor


4.1-18 O sonho da árvore cósmica
4.19-27 Uma advertência em relação ao juízo
4.28-37 Humilhado e curado
DANIEL 1 1126

5.1-30 A soberania de Deus na remoção de Belsazar


5.1-9 A inscrição na parede
5.10-17 Daniel é lembrado
5.18-31 O rei é pesado na balança de Deus

6.1-28 A soberania de Deus sobre os animais selvagens


6.1-9 Dario é derrotado
6.10-17 Obedecendo a Deus em vez de aos homens
6.18-28 Protegido pelo poder de Deus por meio da fé

7.1-28 A soberania de Deus sobre reinos cruéis


7.1-14 Quatro bestas, um homem
7.15-28 O chifre que guerreava

8.1-27 A soberania de Deus dura para sempre


8.1-4, 15-20 O carneiro com dois chifres
8.5-8, 21,22 O bode de um chifre
8.9-14,23-27 O pequeno chifre que cresceu

9.1-27 A soberania de Deus como base da fé e profecia


9.1-3 Daniel procura nas Escrituras
9.4-19 Oração, uma obra da aliança
9.20-27 Outras "setenta" semanas

10.1-12.4 A soberania de Deus sobre toda a história


10.1
10.4-9 Uma visão gloriosa
10.10-11.1 As forças do mal nas regiões celestiais
11.2-45 Os reis do norte e do sul
12.1-4 As últimas coisas

12.5-13 A soberania de Deus e o descanso do servo

COMENTÁRIO ocasiões. O cerco aqui mencionado ocor-


reu em 605 a.C., o terceiro ano do reina-
1.1-21 A soberania de do de Jeoaquim pelos cálculos dos babi-
Deus e seus servos fiéis lônios (Jr 25.1, que se refere ao mesmo
incidente usando os cálculos dos judeus,
1.1,2 O homem propõe, contava a partir do ano novo que antece-
Deus dispõe dia a ascensão de um rei). Observe que
A história de Daniel é introduzida por esta perspectiva horizontal da história é
duas declarações que fornecem o contexto combinada com uma perspectiva vertical
tanto histórico quanto teológico para toda ou teológica: O Senhor lhe entregou nas
a narrativa. Véio Nabucodonosor, rei da mãos a Jeoaquim, rei de Judá. São-nos
Babilônia, a Jerusalém e a sitiou. Nabu- apresentados imediatamente os temas que
codonosor invadiu a Palestina em diversas formam o livro todo:
1. Babilônia versus Jerusalém, a cida-
1127 DANIEL 1 _li

Esse tipo de educação sem dúvida in-


-.-
de deste mundo contra a cidade de Deus cluía a astrologia, adivinhação e outros
(Agostinho), um conflito que nas Escrituras tipos de "artes". Os jovens precisavam
atinge seu clímax no livro de Apocalipse depender da promessa de Isaías 31.1-3
(v. Ap 14.8; 17.5; 18.2-24). Esse conflito, por muito tempo antes dos acontecimen-
em última análise, tem raízes na declara- tos do cp. 3!
ção de Gênesis 3.15. A reeducação começou com o ato de se
2. O soberano reino de Deus, apesar dar novos nomes aos escolhidos. Cada um
de toda a aparência contrária. Na queda desses nomes tinha um significado religio-
de Jerusalém há o cumprimento de uma so, como os sufixos dos nomes em hebraico
profecia (e.g., Is 39.6,7; Jr 21.3-10; 25.1- podem indicar - Dani-el significa "Deus
11), e os juízos da aliança de Deus (sobre é meu juiz"; Hanan-ias significa "Javé
os quais os profetas tinham advertido) foi gracioso"; Misa-el significa "Quem é
tiveram seu início (i.e., Dt 28.36,37,47- como Deus?" e Azar-ias "Javé ajudou".
49,52,58). O exílio era um juízo sobre Enquanto as formas de seus nomes babilô-
o reino de Jeoaquim (2Cr 36.5-7), em- nicos talvez pareçam corrupçoes delibera-
bora a podridão tenha se estabelecido das (um sinal para o leitor da mentira neles
bem antes (2Rs 24.1-4). Aparentemente envolvida), os nomes de deuses pagãos
Nabucodonosor foi vitorioso e o nome (e.g., Bel, Nabu e possivelmente Aku)
de Deus envergonhado (a colocação dos eram neles conservados. Tinha-se em vis-
utensílios do templo na casa do tesouro ta uma mudança de identidade (não mais
do seu deus marcava o triunfo da divinda- filhos de Deus) e de destino (Babilônia e
de pagã Nabu sobre Javé). Na realidade, não Jerusalém), sendo que ambas seriam
entretanto, nada está fora do controle divi- reforçadas pelo uso constante.
no (cf Is 45.7; Ef 1.1lb), como o próprio
Nabucodonosor foi levado a reconhecer 1.8-21 Aprovado no primeiro teste
mais tarde (4.35). Em Daniel, a experiên- Tendo explicado cuidadosamente os empe-
cia de José é repetida (Gn 45.4-7; 50.20). cilhos à fidelidade, a narrativa agora con-
ta novamente como Deus levou adiante o
1.3-7 Reeducação na Babilônia seu plano soberano de sustentar seu povo
Na Babilônia alguns do povo de Israel fiel contra tudo e todos. Aquele que está
foram selecionados para receber educa- no controle das questões concernentes às
ção especializada. Entre os que foram nações (1,2) também trabalha na vida de
escolhidos estavam os mais prováveis cada indivíduo. Cf o Senhor lhe entregou
líderes naturais (da família real e da no- (2) com Deus concedeu a Daniel miseri-
breza), (3) que já tinham demonstrado córdia e compreensão da parte do chefe
certa intelectualidade. Eles deveriam dos eunucos (9) e Deus deu (17).
ser reeducados e tratados como nobres. Daniel acreditava que se comesse das
Vários objetivos estavam em vista, e.g., finas iguarias do rei ou bebesse do vinho
uma reprogramação religiosa (lingua- que ele bebia, ele se contaminaria (8; cf
gem, literatura e dieta todas continham Ez 4.9-14). A razão era provavelmente
conotações religiosas e culturais) - e bem mais sutil do que mera obediência
uma "lavagem cerebral" que, ao mesmo às leis levíticas acerca da proibição de se
tempo em que enfraqueceria a perspec- comer alimentos "impuros" (uma vez que
tiva de uma futura liderança capacitada não havia proibição alguma em relação ao
entre os israelitas, potencialmente forta- vinho), ou do que o fato de aquele alimen-
leceria a sociedade babilônica quando o to ter sido oferecido aos ídolos (a menos
processo fosse completado (5b). que os vegetais escapassem de tal consa-
111
DANIEL 2 1128

gração). Diante disso, sua resolução pode as ações de Nabucodonosor revertidas.


ter sido simplesmente a sua determinação Enquanto o rei da Babilônia se encontrava
em não se permitir assimilar (e espiritual- morto havia muito tempo, o servo de Deus
mente se condicionar) à cultura babilônica, continuava vivo, e o seu povo era restau-
quando lhe era possível resistir ativamen- rado. Assim, somos preparados para as
te a ela. A respeito de sua educação e de narrativas do conflito que vêm a seguir e
seu novo nome havia muito pouco a fazer. para as visões do livro sobre o triunfo final
Assim, a narrativa destaca a sabedoria de do reino de Deus.
Daniel em saber sobre qual ponto deveria
concentrar sua resistência. 2.1-49 A soberania de Deus
Daniel é apresentado aqui como um em subjugar reinos
modelo da testemunha fiel pelo poder de
atração de sua vida, pela graciosidade de 2. 1-13 Os sonhos perturbadores
sua resistência (então, pediu, 8; experi- de Nabucodonosor
menta, peço-te, 12) e pela maneira como Os eventos do segundo capítulo ocorre-
seu procedimento evocou o favor e a sim- ram durante o segundo ano do reinado de
patia do oficial (9) e a concordância do Nabucodonosor (604 a.C.; cf 1.1,2).
chefe da guarda (14). No antigo Oriente Próximo, acreditava-
Por meio de sua dieta vegetariana, se que os reis recebiam mensagens dos deu-
Daniel e seus companheiros se desenvol- ses. Portanto, os sonhos de Nabucodonosor
veram muito bem fisicamente. Por impli- eram especialmente interessantes, situa-
cação, isso também foi obra de Deus. As dos, como estavam, no contexto de sua
forças humanas fornecem alimentos, mas ambiciosa política externa. (Sua vitória
somente Deus fornece sustento fisico. O sobre o Egito, em Carquemis e Hamate,
teste de dez dias (14) se tomou um menu tinha lhe assegurado o controle da Síria;
permanente (15,16). novas campanhas seguiram em anos pos-
Adicionalmente, Daniel e seus com- teriores.) O conteúdo de seus sonhos fez
panheiros receberam talentos especiais dele um homem cansado e perturbado (1).
(17-19). Crescimento intelectual e suces- Então chamou vários de seus conselheiros,
so verdadeiro podem ser alcançados sem cujos títulos são indicativos da natureza da
comprometer o aspecto espiritual; o ho- ciência e religião babilônicas (e.g., para
mem de Deus pode dominar e empregar feiticeiros v. Dt 18.10-12; MI3.5).
com maestria o conhecimento do mundo. Não há muita certeza de quanto do so-
Deus faz da sabedoria do mundo loucura e nho Nabucodonosor conseguia se lembrar
aperfeiçoa seu poder nas fraquezas de seu (3; cf NVI mrg.). Algumas das declarações
povo (ICo 1.19-25; cf Is 44.24-26). A vida implicam que ele reteve pelo menos um
e o caráter de Daniel não apenas retratam, sentido geral dele (e.g., v. 9c). O sonho
com muitas semelhanças, a vida e caráter tinha deixado uma impressão tão pertur-
de José, mas são também um reflexo da badora que ele exigia a garantia de uma
vinda do Messias (Is 11.2,3). interpretação acurada sob ameaça de mor-
Os críticos consideram que o v. 1 do te (5). Assim, somente se seus conselhei-
cp. 10 contradiz o comentário final (21). ros pudessem lhe dizer o conteúdo de um
Mas o sentido aqui não é fornecer a data sonho, o qual eles ignoravam totalmente,
da morte de Daniel; a questão é teológica, ele confiaria em sua habilidade de inter-
não simplesmente cronológica. O primeiro pretá-lo. As respostas dos conselheiros
ano do reinado de Ciro (538 a.C.) marca o foram tanto razoáveis (4,7) quanto cres-
início da era da restauração (2Cr 36.22- centemente desesperadas (10,11) - um
24). O ponto é que Daniel viveu para ver sinal intencional por parte do narrador da
1129 DANIEL 2 ,.r1
1111

perversidade do rei e da falência da sabe- e com ousadia apropriada, colocando em


doria de sua corte. contraste a impotência dos conselheiros do
As palavras em aramaico (4) sinalizam rei e o conhecimento do conselheiro celes-
a mudança da linguagem do hebraico para tial de Daniel.
o aramaico, a qual é sustentada até 7.28 (v. Nabucodonosor tinha visto uma gran-
Introdução). de estátua com forma humana e construída
A ameaça de Nabucodonosor de uma em sua maior parte com metais cujo va-
punição excessiva e excêntrica (5) - (mas lor ia decrescendo (ouro, prata, bronze e
de forma alguma sem paralelos) - e sua ferro misturado com argila). Nesse sonho
suspeita quanto à existência de uma cons- apareceu uma pedra que feriu e destruiu
piração entre seus conselheiros (9) denun- a estátua (observe ecos de SI 2.9b nos v.
ciam um profundo sentimento de insegu- 34b,35a). A pedra tinha duas característi-
rança, apesar de suas realizações. O decre- cas dignas de nota: foi cortada, mas sem o
to que baixou (12) incluía a Daniel e seus auxílio de mãos humanas (34), isto é, sua
companheiros, cuja ausência (inexplicada) origem repousa na ação de Deus, e trans-
intensifica o drama da narrativa. formou-se em grande montanha, que en-
cheu toda a terra (35), isto é, sua atividade
2. 14-23 Daniel recebe iluminação era universal.
A força e a graça do caráter de Daniel são O sonho se referia ao que há de ser
manifestadas uma vez mais (cf 1.8,12) na (28). Uma vez que a cabeça de ouro fora
"sabedoria e bom senso" (NVI; avisada e identificada especificamente como o reino
prudentemente, ARA) com que ele fala ao de Nabucodonosor (38), podemos assu-
chefe dos eunucos, assim como em seu pe- mir que as outras partes da estátua repre-
dido cortês a Nabucodonosor (16). Há mo- sentavam também impérios ou dinastias
mentos que exigem não somente paciência específicas. Suas identidades não haviam
e educação como também uma honesta re- sido ainda reveladas a Daniel e a seus con-
provação (cf 5.17-28; Mc 6.18). temporâneos (mas cf 8.19-21). Se fossem
Nenhuma característica da vida de Da- identificadas em retrospecto (e à luz de
niel se destaca mais claramente do que 8.9-21), o peito e os braços, de prata (32)
sua devoção (18; cf 6.10; 9.3-23; 10.12). representam o Império Medo-Persa (que
Aqui, ele e seus companheiros pedem por o livro de Daniel vê como uma única en-
misericórdia (18), uma vez que o futuro tidade, personificada na ascensão de Ciro
do reino de Deus e de suas testemunhas na em 539 a.C.; cf 5.28; 8.20). O ventre e os
Babilônia parece depender da preservação quadris, de bronze (32) simbolizariam en-
de sua vida. Daniel acreditava ter acesso a tão o Império Grego, o qual terá domínio
domínios aos quais os astrólogos babilôni- sobre toda a terra (39), seguido, por sua
cos não tinham (11). O caráter de Deus, o vez, pelo Império Romano (embora alguns
Revelado e o Revelador (22,23a), consti- intérpretes conservadores acreditem que as
tuía a base de sua petição. Ele é o Senhor do pernas e os pés possam se referir aos su-
poder e da sabedoria (20), o Senhor da his- cessores de Alexandre, o Grande).
tória (21a), capaz de se comunicar com seu Essa interpretação conduzia frequen-
povo (22; cf At 4.24-30). De maneira não temente ao entendimento da pedra como
plenamente explicada,foi revelado o misté- Cristo e seu crescimento como uma refe-
rio a Daniel numa visão de noite (19). rência ao avanço do Reino de Deus. Pode
haver alusões a essa interpretação em Lucas
2.24-49 A explicação do sonho 1.33 e 20.18. Deve ser também observado,
Daniel retomou à presença do rei, agora entretanto, que a pedra destrói todos os rei-
em posição para falar mais detalhadamente nos representados pela estátua. Em sentido
DANIEL 3 1130

mais geral, portanto, a mensagem da visão tar a superficialidade de sua confissão em


é que, enquanto os reinos construídos pe- 2.47 agora se toma bastante clara.
los homens se sucedem um ao outro num As proporções incomuns da estátua
processo de sobrevivência do mais apto, é (vinte e sete metros e meio de altura e qua-
a mão de Deus que em última análise os se três metros de largura) sugerem que a
destrói, à medida que constrói seu próprio estátua deveria ter uma base substancial.
reino, aquele que persistirá. Duas características na narrativa salien-
Os críticos, vendo a ideia de um Im- tam a tensão que envolve sua mensagem.
pério Medo-Persa como algo que não cor- Primeiro, a repetição das listas do que se
responde à história, geralmente enxergam via e ouvia (v. 2,3 para vistas; v. 5,7,10
os reinos representados aqui como sendo a para os sons. Cítara, harpa e gaita de foles
Babilônia, a Média, a Pérsia e a Grécia, e a parecem instrumentos de origem grega e
interpretação de Daniel como uma "profe- podem ser uma indicação do quanto a cul-
cia posterior ao evento" (v. Introdução). tura grega estava difundida). O leitor está
O efeito dessa revelação é descrito "lá". Observe-se que uma aura religiosa
nos versículos seguintes (46-49). Nabu- envolvia a ocasião, cujo impacto estético
codonosor não somente honrou a Daniel foi sem dúvida magnífico. Em contraste,
como também reconheceu expressamente os três hebreus reconhecem que a adoração
a seu Deus. A nomeação dos companhei- bíblica aceitável envolve a submissão da
ros de Daniel (49) explica sua presença mente à verdade (cf 104.24; Rm 12.1,2).
no evento que segue no cp. 3, o qual, por Em segundo lugar, nota-se a natureza os-
sua vez, revela que a profissão de fé de tensiva do conflito entre a cidade deste
Nabucodonosor fora superficial. mundo e a cidade de Deus. A escolha era
a idolatria ou a morte (4-6). Em jogo está
3.1-30 A soberania de Deus não somente a obediência a Êxodo 20.4-6,
em julgamentos flamejantes mas também se aqueles destinados a se-
rem a imagem de Deus, e de fato recria-
3. 1-18 Idolatria ou morte dos a essa imagem (Gn 1.26,27; Ef 4.24;
O autor de Daniel pretende claramente C13.10; cf Mt 22.20,21), deveriam curvar-
que vejamos uma íntima ligação entre se ante a imagem de um homem. Nessas
o sonho de Nabucodonosor e a estátua circunstâncias a fé de Sadraque, Abede-
que erigiu no campo de Dura (l). A es- Nego e Mesaque é muito mais brilhante do
tátua pode ter sido uma representação do que as chamas da fornalha (Hb 11.34), pois
próprio rei (cf 2.38, "tu és a cabeça de ilustram de maneira grandiosa a fidelidade
ouro"). Nesse caso, o fato de que essa se- à palavra de Deus (2Co 4.11, 13b,18).
gunda estátua, diferentemente da estátua Nabucodonosor evidentemente acre-
do sonho (2.31-33), foi feita inteiramente ditava que cada pessoa tinha seu pre-
de ouro (isto é, provavelmente coberta e ço; ninguém desafiaria uma ordem sua.
folheada a ouro), sugere a reação insana Certamente este era um teste ainda mais
e egoísta de Nabucodonosor à interpreta- difícil para os judeus do que o que já ha-
ção de Daniel (2.44,45). Observe as sete viam passado nos cp. 1 e 2 (aquele ago-
vezes em que o texto dá ênfase ao fato ra pode ser visto como preparatório para
de que Nabucodonosor tinha erigido a este). Sua fidelidade e coragem receberam
estátua (cf os v. 1,2,3,5,7,12,14). O rei um verdadeiro testemunho por parte dos
Nabucodonosor, "a quem o Deus do céu astrólogos, ainda que maldosamente exa-
conferiu o reino, o poder, a força e a gló- gerado (não fizeram caso de ti) e intencio-
ria" (2.37), fez mau uso de tudo isso, em nal. Entretanto, eles entenderam a questão
proveito próprio. A chave para interpre- que estava emjogo: a teus deuses não ser-
1131 DANIEL 3 (
11

vem, nem adoram a imagem de ouro que Evidentemente, a fornalha tinha acesso
levantaste (12; cf Êx 20.3,4,23). tanto pelo nível superior quanto pelo nível
O rei, que tinha tido um contato prévio inferior, de modo que a execução por meio
com os três judeus (1.18-20; 2.49), já sa- da cremação pudesse ser assistida como
bia a resposta à sua pergunta (14) e agora um espetáculo público. Nabucodonosor
desafiava não somente a coragem dos três foi forçado a reverter seu dogmatismo an-
como também a seu Deus (15). O rei não terior (26; cf v. l5c) quando ele viu que
contava com as duas principais caracterís- estavam vivos os três que professavam
ticas dos três: o conhecimento que tinham a sua fé, e mais uma quarta figura com
do poder de Deus (17) e o compromisso aspecto semelhante a de um filho dos deu-
deles com sua palavra revelada (18). A fé ses (24,25). Agora, o rei reconhecia que
que tinham era carregada de expectativa era somente pela intervenção milagrosa
(17; cf 1.12,13; 2.16), mas não mostra- do Deus dos três judeus que eles estavam
va nenhuma presunção (18) e trazia ecos salvos. O evento é um cumprimento lite-
tanto do exemplo de Abraão (cf Rm 4.20) ral de Isaías 43.1-4: "Não temas [...] eu
como do testemunho de Jó (Jó l3.l5a). serei contigo; [...] quando passares pelo
fogo, não te queimarás, nem a chama
3.19-30 "Não te queimarás, arderá em ti". Os antigos comentaristas
nem a chama arderá em ti" cristãos enxergavam essa quarta figu-
A hostilidade do rei da Babilônia em rela- ra como uma aparição do Filho de Deus
ção aos cidadãos de Jerusalém chega a seu ou do Anjo do Senhor (cf v. 28), ponto
clímax. Anteriormente "irado e furioso" de vista em que foram frequentemente
(13; cf v. 19), agora se tinha transtornado seguidos. A ênfase, entretanto, está na
o aspecto do seu rosto contra Sadraque, integralidade da proteção de Deus, mos-
Mesaque e Abede-Nego (19), em face de trada pelo fato de que nem cheiro de fogo
sua calma determinação. Ordenou que a passara sobre eles (27). Salmos 34.19,20,
fornalha fosse aquecida ao máximo (o pro- que devia encontrar seu cumprimento em
vável significado de sete vezes mais do que Cristo (cf Jo 19.26), encontra aqui um
se costumava) e aos homens mais podero- primeiro cumprimento.
sos para amarrá-los (20) de modo que esti- O cp. 3 começa com um decreto de
vessem firmemente atados (23). Tão quen- Nabucodonosor que ameaçava destruir o
te estava a fornalha que as chamas do fogo Reino de Deus e termina com um decreto
mataram os soldados (22). Por meio desses adicional de que todos os demais reinos
detalhes o narrador destaca a impossibili- (povos de todas as nações ou línguas; 29)
dade humana de sobrevivência dos judeus, estariam ameaçados com a destruição se
mas a descrição de suas roupas serve como ofendessem o Reino de Deus. Ao mesmo
um sinal do triunfo inesperado que estava tempo em que esse fato registra um triun-
por acontecer. Enquanto o rei se enfurecia fo para o Reino de Deus e (em contraste
e os soldados morriam queimados, os três com 2.47) expressa a humilhação do rei
amigos apareciam em trajes de festa (ob- (28b), o narrador nos sugere que Nabuco-
serve o colorido do relato de seus mantos, donosor de maneira nenhuma foi um ho-
suas túnicas e chapéus e suas outras rou- mem de fé genuína. Ele se impressionou
pas; 21); em contraste com os reinos des- unicamente com o milagre (cf At 8.9-23);
te mundo, o reino de Deus é "justiça, paz sua resposta foi promover os judeus (30),
e alegria no Espírito Santo" (Rm 14.17). não compartilhar de sua fé (28). Ainda
Isto é destacado pela atividade dos judeus que alguns aspectos de sua humilhação
na fornalha (andam passeando dentro do tivessem mudado sua percepção, não ti-
fogo, sem nenhum dano; 25). nham suavizado seu coração (cf v. 29, e
11
1111II DANIEL4 1132
11II-

contraste isso com a confissão de Jonas animal, até que se passem sete tempos";
depois de sua humilhação; Jn 2.8). 15b,16, NVI); um indivíduo será humilha-
do, vivendo como um animal, "será mo-
lhado com o orvalho do céu" (15b). Foi
4.1-37 A soberania de Deus
humilha Nabucodonosor este elemento no sonho que supostamente
encheu Nabucodonosor de pressentimen-
4. 1-18 O sonho da árvore cósmica tos (5) e confundiu os magos do reino (7).
A narrativa do quarto capítulo é feita no Novamente foi o Deus de Daniel, "o es-
contexto de uma carta um tanto poética trangeiro", o único que pôde ajudar.
(1-18,34-37, possivelmente composta por Observe que Nabucodonosor interpre-
orientação do próprio Daniel). Seu pon- tou instintivamente a realidade da vida
to principal está na narrativa da queda de espiritual de Daniel nos termos de sua pró-
Nabucodonosor, contada na terceira pes- pria estrutura religiosa (há em ti o espírito
soa, enfatizando assim que, durante os dos deuses santos; 18b). Suas confissões
acontecimentos ali registrados, o rei estava de fé anteriores não o tinham libertado do
sem condições para avaliar suas próprias politeísmo. Ele é retratado como alguém
experiências. O relato da adoração e lou- que experimentou convicções religiosas,
vor (3) nos prepara para a obra de Deus a mas não uma conversão bíblica (cf v. 8).
ser descrita.
Nabucodonosor é descrito como al- 4.19-27 Uma advertência
guém que estava no auge de seu poder: em relação ao juízo
estava tranquilo em minha casa e feliz no A perplexidade e terror de Daniel (19) es-
meu palácio (4). Aqui, em contraste com tavam relacionados muito mais à interpre-
os v. 2,3, não há nenhuma sugestão da be- tação do sonho do que a qualquer inabili-
nevolência ou grandeza de Deus, elevando dade de compreendê-lo. Sua sensibilidade
assim a expectativa do leitor de que uma é notável (v., e.g., o uso que faz de um
grande mudança está prestes a acontecer cortês prólogo do Oriente Próximo para a
(cf Lc 12.16-19). interpretação; 19b). A revelada humilha-
Nabucodonosor teve um sonho terrí- ção do rei não lhe trazia nenhum prazer, e
vel. Apesar das lições dos cp. 1-3 e das nisto ele refletia o coração divino e o espí-
confissões de 2.47 e 3.28,29, foi a seus rito messiânico (Ez 18.23; Mt 23.37). Sem
mágicos que ele recorreu outra vez (Pv dúvida Nabucodonosor era um nome que
26.11; 2Pe 2.22), mas esses não puderam aparecia com frequência na vida regular de
interpretar os seus sonhos (7). A entrada oração de Daniel (cf 6.10).
de Daniel (8) leva luz a um lugar escuro Então Daniel deu sua interpretação
(cf Mt 5.14; Fp 2.14-16). (24-26). O decreto celeste foi um juízo.
O tema central no sonho era uma ár- Era um decreto contra Nabucodonosor
vore cósmica que claramente representa- (24), estabelecido no contexto da sobera-
va um império mundano, que alcançaria e nia absoluta de Deus (25,27). Mas era justo
dominaria os demais (10-12; cf 2.37,38). e repleto de misericórdia: o terrível juízo
Sobre este império um decreto celeste foi que transformaria Nabucodonosor em um
pronunciado: ele deveria ser reduzido a animal não era impróprio para alguém
um tronco de árvore (15a). Mas o império que havia se comportado como uma bes-
foi personificado ("fique ele no chão, em ta selvagem em relação ao povo de Deus
meio à relva do campo. Ele será molhado (além da atitude que tinha em relação aos
com o orvalho do céu e com os animais oprimidos, 27; sempre um sinal signifi-
comerá a grama da terra. A mente hu- cativo do coração no AT, Is 1.17; 58.6).
mana lhe será tirada, e ele será como um Além disso, tinha a função de humilhar
11
1133 DANIEL4 ti'
11II
11II

o rei, levando-o a um arrependimento in- sua mente (cf Jr 25.15,16). Depois de ter
centivado pela esperança de que o Deus se considerado um super-homem (3.1-6;
que humilha também enaltece. 4.30), tomou-se sub-humano; depois de ter
Os juízos de Deus nunca são arbitrários; erigido sua própria estátua para ser adora-
eles sempre são moralmente justos. Isso é da como a imagem de um deus, sua vida
sublinhado pelos conselhos de Daniel (ou- deixara de refletir a imagem de Deus (Gn
tra vez, bastante cortês) ao rei. Uma vez 1.26,27) e os últimos resquícios da verda-
que o juízo é resposta de Deus à violação deira glória (cf Rm 3.23). Depois de ter se
flagrante de sua lei moral, o arrependimen- comportado de forma bestial, agora colhia
to que se demonstra ao obedecer a essa lei aquilo que ele mesmo plantara (GI6.7,8).
pode levar à misericórdia (cf Pv 28.13; Um arrependimento anterior de Nabu-
Is 58.9b,1O; Jn 4.2). Mesmo alguém im- codonosor talvez tivesse encontrado mi-
piedoso pode encontrar misericórdia; mas sericórdia (27). Mesmo agora, a obra de
a evidência de que eles desejam essa mi- Deus para humilhá-lo não ia além do ne-
sericórdia de Deus está no fato de que eles cessário; o divino até que (32) traz em si
mesmos demonstrarão misericórdia para a possibilidade de restauração. Mas sua
com os outros (cf Mt 6.12; 18.21-35). remissão não era "espontânea". Ocorreu
no contexto da oração humilde (Eu,
4.28-37 Humilhado e curado Nabucodonosor, levantei os olhos ao céu;
O decreto de Deus foi cumprido. Depois 34) e levou à adoração e à confissão de que
de um ano de oportunidade para o arrepen- somente Deus tem poder ilimitado (35). As
dimento (29), Nabucodonosor foi visto palavras do rei, pela primeira vez, contêm
outra vez exaltando-se a si mesmo (30): um reconhecimento da ação de Deus na
Não é esta a grande Babilônia que eu aliança (de geração em geração, 34; cf
edifiquei para a casa real, com o meu Êx 20.5,6; SI 103.17,18), como também
grandioso poder e para glória da minha um reconhecimento de sua verdade e justi-
majestade? (cf Is 13.19). Seus feitos fo- ça (37). Ele resiste aos soberbos e concede
ram notáveis, incluindo um programa de sua graça aos humildes (37; cf lPe 5.5).
restauração e reconstrução. Ele construiu Em Nabucodonosor as palavras de Salmos
os Jardins Suspensos, uma das sete mara- 18.25-27 encontram rica ilustração.
vilhas do mundo antigo, para que sua es- Os comentaristas cristãos têm frequen-
posa, Amytis, originariamente dos medos, temente duvidado da verdadeira "conver-
pudesse se lembrar de sua terra natal. Mas são" de Nabucodonosor. Se essa conversão
ele seguira de maneira consciente uma po- teve vida curta, não é de se admirar que
lítica de expansão, reivindicando ter sido não existam registros seculares sobre ela.
apontado como monarca universal por Um documento intitulado The Prayer
Marduque; ele não tinha levado em consi- of Nabonidus [A Oração de Nabonido],
deração Salmos 127.1. descoberto recentemente nas cavernas de
O juízo divino (anunciado nos v. 31,32) Qumran, tem fortalecido o ponto de vista
envolvia a completa humilhação do rei; sua crítico de que esse capítulo se originou na
autoridade (31) e sua sanidade (34) foram história que era contada sobre a doença
removidas no mesmo instante (33). Sua do rei Nabonido (que reinou de 556 a 539
confissão no v. 33 de que seu entendimen- a.C.). A oração registra uma enfermidade
to lhe fora restaurado dá crédito à teoria com duração de sete anos, provocada por
de que a reação do rei ao juízo de Deus juízo divino. Na oração, Nabonido conta
evocara uma condição psicótica (agora como Deus lhe enviou um exilado judeu
conhecida como licantropia). Tal foi o sur- para explicar sua experiência, e que es-
preendente impacto da palavra de Deus em creveu também um decreto relacionado
DANIEL5 1134

à adoração do Deus altíssimo. Ainda que de ouro e de prata que Nabucodonosor,


haja diferenças significativas entre Daniel seu pai, tirara do templo (2). A blasfêmia
4 e esse documento, é possível (como E. J. logo fluiu com igual liberdade (4), mas
Young sustentou) que seu autor tenha con- os sinais do juízo divino logo puseram
fundido a tradição sobre Nabucodonosor fim à presunção de que tudo corria bem
com Nabonido. É estranho que muitos (cf Is 47.10,11). Todos os olhos estavam
críticos tenham a tendência de automati- voltados para Belsazar (bebeu vinho na
camente pressupor que outros documentos presença [diante?] dos mil, no v. 1, pode
tenham maior credibilidade histórica do transmitir a ideia de aparição em público),
que os do AT. preparando o leitor para uma ilustração do
provérbio: "Antes da ruína, gaba-se o co-
5.1-30 A soberania de Deus ração do homem" (Pv 18.12).
na remoção de Belsazar Para Belsazar, a intervenção divina foi
tanto dramática quanto apavorante. Já pre-
5.1-9 A inscrição na parede sumivelmente próximo do estado de em-
O livro de Daniel, mesmo as suas partes briaguez, a assombrosa aparição de uma
que podem ser consideradas históricas, não mão escrevendo na parede teve o efeito
deve ser interpretado como um mero relato de trazê-lo à sobriedade, transformado-o
harmonioso e ordenado dos acontecimen- de um fanfarrão orgulhoso em uma figu-
tos que tiveram lugar na Babilônia. Em ra petrificada e patética (6). Repetindo um
vez disso, retrata momentos escolhidos de padrão ao qual já nos acostumamos a essa
elevada tensão no avanço do conflito en- altura, ele buscou a sabedoria deste mun-
tre o reino da luz e o reino das trevas. A do, mas descobriu que ela é impotente (cf
partir do registro da intervenção divina em 2.2; 4.6). Nenhuma explicação é dada para
tais eventos dramáticos pretende-se que o a inabilidade do sábio em ler o que esta-
leitor receba encorajamento para as lutas va escrito na parede. Diversas explicações
espirituais contemporâneas. para esse fato são possíveis: o formato in-
Estritamente falando, o último rei da distinto das letras, o uso de um código ou
dinastia neobabilônica foi Nabonido (556- a incerteza sobre o verdadeiro significado.
539 a.C.), mas por uma década ele esta- Em sua sabedoria, o mundo não conhece
beleceu sua residência real em Teiman, a Deus nem compreende sua revelação
deixando seu filho Bel-sar-usur (Belsazar, (1Co 1.21; 2.14).
"Bel protege o rei") como regente. Obser-
ve que a oferta feita por Belsazar do ter- 5. 10-17 Daniel é lembrado
ceiro posto mais elevado no reino, nos v. De uma maneira que nos faz lembrar
7,16 e 29, presume isso. (Cf Gn 41.40, Gênesis 41.1-16, o nome de Daniel apare-
em que o segundo posto foi dado a José). ce uma vez mais na família real. A rainha
Belsazar era possivelmente o neto de (que aqui provavelmente deve ser entendi-
Nabucodonosor (os termos "pai" nos v. da como a rainha-mãe), em um tom que,
2,11,18 e "filho" no v. 22 teriam sido facil- dado o contraste que ela faz entre Belsazar
mente entendidos de modo mais elástico e Nabucodonosor (já falecido, agora, há uns
pelos leitores originários). vinte anos) beira a repreensão aberta, fala a
Novamente o autor nos prepara para es- Belsazar sobre a sabedoria já comprovada
perar uma ação de juízo divino nos v. 1-4. de Daniel. O respeito evidente que ela tem
No banquete o vinho fluiu livremente dos por ele é destacado pelo fato de usar tanto
copos dos convivas, amortecendo a cons- seu nome hebraico como seu nome babilô-
ciência do rei, bem como qualquer temor nico e na referência que faz a seus talentos
inato a Deus: mandou trazer os utensílios especiais (12; cf Is 11.2,3). Evidentemente
11II
1135 DANIEL6'-
11II
11II

Daniel já não desempenhava um papel de Belsazar podia manter sua promessa.


destaque na sociedade babilônica. Belsazar Se as palavras de Daniel viessem a se cum-
parece ter sido culpado pelo mesmo peca- prir, seu papel como terceiro homem mais
do de Roboão (1Rs 12.7,8). poderoso no reino (29) teria vida curta. Se
A melhor interpretação das palavras de não viessem, provavelmente sua própria
Belsazar (13-16) é entendê-las como pala- vida é que seria curta. De qualquer modo,
vras de um homem ainda sob a influência naquela mesma noite ocorreria o fim de
do álcool. As alusões à origem e idade de Be1sazar (30; cf Pv 29.1).
Daniel (que agora devia estar perto dos 80 Daniel não ofereceu nenhuma expli-
anos) como um dos cativos de Judá que o cação adicional (o próprio juízo divino,
rei [Nabucodonosor], meu pai, trouxe de não os detalhes, era o que lhe interessava
Judá (13), compõem o discurso presunço- aqui). Tanto Heródoto como Xenofonte
so e aviltante de um bêbado. registram que a Babilônia foi tomada du-
rante um festival noturno, por intermédio
5.18-31 O rei é pesado de um desvio temporário do rio Eufrates;
na balança de Deus os invasores entraram na cidade através
A resposta mordaz de Daniel (17-24) con- do leito do rio, que ficou seco. Xenofonte
trasta com o estilo de sua reação a Nabu- (que descreve a expedição de Ciro) tam-
codonosor (2.16; 4.19; v. também comentá- bém registra que os persas mataram o jo-
rios em 8.1-4 para explicações adicionais) vem e incrédulo rei da Babilônia.
e lembra as palavras de Pedro em Atos Uma grande dificuldade aparece aqui.
8.18-20. Seu discurso se assemelha a outros Os registros de Daniel contam que Dario,
exemplos de juízo do AT (cf Os 12.2-6; Mq o medo [...] se apoderou do reino (31).
6.1-8). Primeiramente, o contexto histórico Entretanto, em outros textos bíblicos,
do pecado de Belsazar é resumido (18-21). Ciro, o rei da Pérsia, é o responsável pela
Esses detalhes serviram como uma indica- libertação do povo de Deus da Babilônia
ção da revelação do caráter e modo de agir (2Cr 36.22,23; Ed 1.1-8). Os criticos es-
de Deus, que Belsazar deveria ter conheci- pecializados, portanto, consideram que o
do e segundo os quais procurado agir. Foi nome de Dario, o medo, pode ser ou uma
sobre essa base que seguiu a acusação (os ficção deliberada ou um erro histórico, no
pronomes "tu", "teu, teus", "tua, tuas", "te" qual Dario I (rei da Pérsia de 522-486 a.Ci)
e "ti" aparecem dez vezes nos v. 22,23). foi confundido com o Ciro que de fato ti-
Ele conhecia a Deus, mas não o glorificava nha na época cerca de sessenta e dois anos
nem lhe dava graças (Rm 1.21). (31). As propostas dos comentaristas con-
As três palavras na mensagem (25) se servadores incluem a sugestão atraente de
referem a peso e, consequentemente, a cus- que Dario, o medo, era o nome babilônico
to ou valor (Mene = mina; Tekel = siclo; para Ciro, o rei da Pérsia (para uma dis-
Parsin = partes). A interpretação de Daniel cussão mais aprofundada, v. 1. Baldwin,
combinou a ideia básica de ser pesado e Daniel, TOTC [IVP, 1978], p. 23-28).
avaliado com um sugestivo trocadilho lin-
guístico. Mene é derivado do verbo "nu- 6.1-28 A soberania de Deus
merar" ou "apontar"; a forma verbal de sobre os animais selvagens
tekel significa "pesar" ou "avaliar" e par-
sin (peres, no singular) significa "partes" 6.1-9 Dario é derrotado
ou "porções". O reino de Belsazar tinha O reino de Dario trouxe grandes mudanças
sido pesado e avaliado; ele seria dividido à forma de governo da Babilônia, introdu-
entre os medos e os persas (um trocadilho zindo um sistema de 120 governadores lo-
com a palavra parsin). cais (sátrapas; 1). Estes estavam sujeitos a
DANIEL6 1136

uma pequena administração central que se Daniel de maneira sutil: tudo que preci-
reportava diretamente ao rei (a existência savam era de um breve período em que
de outros níveis administrativos é sugerida fossem proibidas as orações (7). Além dis-
no v. 8). so, Daniel estava quase com oitenta anos,
A motivação para este novo arranjo muito longe da idade em que atos heroicos
(para que o rei não sofresse danos, 2) diz de sua parte pudessem ser esperados.
muito a respeito das tentações da vida po- Caracteristicamente, entretanto, Daniel
lítica e do fato de que um alto posto não reconhecia que qualquer ganho obtido
é garantia de moral elevada. Daniel (ago- ao preço da fidelidade à palavra de Deus
ra com quase oitenta anos) demonstrava, mais tarde se tomaria em grande perda
mais uma vez, a natureza extraordinária da (cf Fp 3.7,8).
sabedoria que recebera de Deus, embora Enquanto a questão crítica da narrativa
sua promoção tenha despertado inveja en- estava no simples fato de que Daniel ora-
tre seus colegas e subordinados (4). va, com o espírito marcado pela reverên-
O conluio que seguiu não foi o primei- cia, a narrativa também fornece diversos
ro nem o último em que o sacrifício de tra- detalhes sobre as suas orações, tomando-o
dicionais hostilidades, neste caso entre os assim como exemplo de uma vida de ora-
níveis mais elevados e os menos elevados ção (cf 2.17,18; 9.3-19; 10.2,3,12). Era seu
do governo, tem sido considerado o preço costume orar em um sótão (em cima, no
a se pagar por um acordo de oposição ao seu quarto; 10) onde havia janelas abertas
ungido do Senhor (cf SI 2.1,2; Mt 16.1; do lado de Jerusalém. Mesmo sabendo que
Lc 23.12; Em 4.25-27). Deus estava em toda parte e portanto po-
Os colegas de Daniel eram incapazes dia ouvir orações na Babilônia, ele orava
de encontrar um motivo para se queixar ao Senhor que tomara sua presença parti-
dele e, portanto, não tinham forças para re- cularmente conhecida em Jerusalém, para
movê-lo da administração (4; cf Jo 14.30). onde a arca da aliança fora levada (observe
Ao mesmo tempo em que seus colegas a caracterização da sua oração pela alian-
passaram a odiá-lo, não tinham como não ça no cp. 9). A regularidade das orações
reconhecer sua integridade. Eles sabiam de Daniel provocava comentários (lOb),
que sua única esperança era transformar a como também a nota de ação de graças
notória força espiritual de Daniel em uma que as permeavam, mesmo em um contex-
fraqueza política, sabendo que ele obede- to em que um grave perigo ameaçava sua
ceria a Deus e não aos homens (5; observe vida pessoal, e a postura que adotara (se
o contato posterior com At 4.19). E assim punha de joelhos, e orava, 10), indicando
eles fizeram, transformando a fraqueza es- a sinceridade de sua súplica (11).
piritual do rei em sua própria força política Em sua sutileza, os conspiradores pe-
(6,7). A irrevogabilidade das leis dos me- garam não só a Daniel como a Dario em
dos e dos persas (8; cf Et 1.19) não era sua trama (11,12). A característica que fez
exclusividade do Oriente Próximo, assim de Daniel o único membro completamen-
como a tentação ao totalitarismo não podia te confiável na administração real, a saber,
ser limitada a Dario (7). O significado na sua confiança no Deus da aliança, sofreu
lei persa de o decreto ter sido colocado por uma reinterpretação radical nas mãos de
escrito é explicado em Ester 8.8. seus inimigos. Sua confiabilidade era ago-
ra caracterizada como rebeldia (13). A
6.10-17 Obedecendo a Deus insensatez de Dario se tomava agora to-
em vez de aos homens talmente clara para ele, mas o próprio rei
A trama foi formulada de forma clara e estava totalmente impotente para revertê-
direta, mas continha a intenção de testar la (14), assim como também estava Daniel,
aparentemente (17). Observe, entretanto,
1137 DANIEL?

expressão "dos poderes da era vindoura",


<
o contraste brilhantemente traçado que quando todo o mal será vencido.
marca toda a narrativa: os conspiradores Um epílogo sombrio é registrado no
e o rei estavam ativamente envolvidos em v. 24. Provavelmente não é necessário su-
planejar e tramar (3-9,14). Em contraste, a por (tanto aqui como no v. 4) que todos os
vida de Daniel transparecia regularidade e administradores estavam envolvidos. De
integridade espiritual. Até o v. 21 ele é re- acordo com Heródoto, a punição da famí-
tratado como alguém que se dirige apenas lia inteira estava de acordo com a lei per-
a Deus. sa. A narrativa por si mesma não oferece
nenhum juízo moral (cf Et 8.1-10), mas a
6.18-28 Protegido pelo poder mensagem subjacente é bem clara: quem
de Deus por meio da fé obstrui o progresso do Reino de Deus põe-
Daniel não foi protegido do perigo, mas se a si mesmo no mais completo risco.
no perigo, pelo poder de Deus por meio Aqueles que se opõem a Deus serão, no fi-
da fé (Hb 11.33b; lPe 1.5). Para espanto nal, despedaçados. Aqui outra vez a narra-
e alívio do rei, a intervenção divina pre- tiva contrasta com os princípios do salmo
servou a vida de Daniel, a testemunha de 2 (cf SI 2.9-12).
Deus (cf v. 22; SI 91.9-16). Pela fé (23) O livramento de Daniel foi celebrado no
ele experimentara os poderes da era por vir decreto do rei (talvez sob a própria orienta-
(Hb 6.5), na qual leões são domesticados ção de Daniel), num contexto de doxologia
(Is 11.7). Como todos os milagres do AT, ao Deus vivo (26, isto é, envolvido ativa-
este é uma antecipação do grande milagre mente nas coisas do mundo), soberano e
da ressurreição de Cristo (cf v. 17 com salvador. O próprio Daniel é uma vívida
Mt 27.60-66), que aponta tanto para a ilustração dos princípios mais básicos de
ressurreição como para restauração final uma vida piedosa (cf SI 1, especialmente
(1Co 15.20-28; cf SI 2.4-8). Em um am- v. 2,3). Se Dario deve ser de fato identifi-
biente "aparentemente lacrado" (17), Deus cado com Ciro, então a conjunção e (28)
tinha demonstrado que não pode ser ex- deve ser traduzida (como é bem provável)
cluído; se os crentes fizerem sua cama no por "isto é" (cf NVI rnrg.).
mais profundo abismo, ele também estará
lá (Sl139.8)! Em consequência, a proteção 7.1-28 A soberania de Deus
e o livramento de Daniel, assim como a de sobre reinos cruéis
seus três amigos, foram completos (23b;
cf 3.27 e, mais tarde, Jo 19.31-36). 7.1-14 Quatro bestas, um homem
Contrariando a suposição comum, há O cp. 7 tanto introduz a segunda metade
muito poucos milagres dramáticos no AT. do livro como faz a ligação das suas duas
Aqui, como nos poucos outros períodos seções. Ao mesmo tempo em que introduz
onde podemos encontrar uma concentra- uma nova seção que contém as visões apo-
ção de milagres no AT (o da época do êxo- calípticas de Daniel, também nos conduz ao
do e da entrada em Canaã, e o da época passado, ao reino de Belsazar (cf cp. 5) e
de Elias e Eliseu e do estabelecimento de conclui a seção aramaica do livro. Ao leitor
seus ministérios proféticos), os milagres é recomendado, assim, observar as impor-
ocorrem em momentos de crise no Reino tantes conexões entre a história e o apoca-
de Deus. Os milagres em Daniel, como em lipse. Em conteúdo, a visão neste capítulo
qualquer outra parte, não são meramente lembra a do sonho de Nabucodonosor, no
"contrários à natureza" ou "sobrenaturais". cp. 2. Lá, entretanto, o foco estava nos su-
São primeiramente "contrários ao mal" e cessivos reinos poderosos que se posicio-
aos poderes das trevas. Os milagres são naram contra o Reino de Deus, mas que
DANIEL 7 1138

finalmente foram subjugados por este; aqui turas e o sonho de Nabucodonosor sugere
o foco está na degradação moral, ainda que que elas representam os mesmos impérios
de curta duração, do caráter daqueles rei- (o Império Babilônico, o Império Medo-
nos (representados por figuras bestiais), em Persa e o Império Grego, de acordo com
comparação com o eterno reino de Deus. a interpretação acima). Curiosamente,
Como em qualquer outra parte da li- Nabucodonosor é comparado em outras
teratura apocalíptica, o visual predomina partes tanto a um leão (Jr 4.7; cf 49.19;
(observar a ênfase no verbo "olhar", re- 50.44) quanto a uma águia (Ez 17.3,11,12).
gistrado nos versículos 2,4,6,7,9,11,13). Cf v. 4 com 4.33,34. Não se conseguiu en-
Embora seja importante tentar interpretar contrar descrição melhor para as conquis-
o significado histórico da visão, o fato de a tas de Alexandre, o Grande, do que a de
revelação ser dada em forma visual subli- um leopardo alado com quatro cabeças.
nha a importância de seu apelo tanto aos (E de fato, depois da sua morte, o Império
sentidos como também à razão; pretende- Grego foi dividido em quatro partes.)
se criar impressões, não apenas transmitir O temível caráter dessas criaturas se
proposições. toma insignificante diante da descrição da
A visão ocorreu durante o primeiro ano quarta criatura e de sua ferocidade. Ao pas-
do reinado de Belsazar (cf comentário em so que as criaturas descritas anteriormente
5.1). O conhecimento profundo que Daniel se assemelhem a um leão, a uma águia, a
tinha da família real certamente provo- um urso e a um leopardo, a quarta não se
cou nele pressentimentos sobre o futuro parece em nada com nenhuma outra criatu-
imediato (que ele tem pouco tempo para ra do reino animal. Enquanto Daniel ainda
Belsazar fica bastante claro em 5.17). está confuso com os dez chifres (7,8), um
Agora Deus enchera sua mente com novo chifre passa a chamar a sua atenção;
uma visão mais cósmica do mar Grande esse chifre aparentemente representa um
(possivelmente o Mediterrâneo, mas mais indivíduo, mas alguém cuja humanidade
provavelmente um retrato geral do mundo está voltada somente para si mesmo (8).
em sua assustadora falta de Deus e insta- Enquanto Daniel olha, três cenas apare-
bilidade). Entretanto, o mar não é agitado cem subitamente diante de seus olhos. Pode
pelas bestas que emergem dele, mas pelos ser mais sábio procurar entendê-las como
quatro ventos do céu (2), uma indicação partes de um quadro mais amplo que juntas
de que mesmo por trás dos mais temíveis podem passar uma grande impressão.
acontecimentos se encontra a mão de Deus. A primeira cena (9,10) é uma visão do
Isto é enfatizado pelo uso da voz passiva trono de Deus. Em contraste com as cenas
nas descrições das bestas, que evidente- anteriores, é marcada por ordem, tranqui-
mente representam impérios: a criatura lidade e soberania absoluta. Ainda que ne-
parecida com um leão cujas asas foram nhuma conexão entre esta e a segunda cena
arrancadas foi levantada da terra e lhe foi (l1,12) seja explicitamente indicada, há
dada mente de homem (4; possivelmente uma clara implicação de que o julgamento
um retrato de Nabucodonosor); à criatura de Deus está por trás da destruição da besta
semelhante a um urso diziam: Levanta-te, e da destruição do poder das outras bestas
devora muita carne (5); e a criatura pareci- (10; assentou-se o tribunal, e se abriram
da com um leopardo recebeu domínio (6). os livros sugere que um veredicto judicial
Pode até haver totalitarismo, mas nunca há estava prestes a ser pronunciado). Ante o
autonomia absoluta no governo humano. Ancião de Dias, os reinos deste mundo
Os crentes sempre conseguirão entrever, têm vida curta. Sua presença como um juiz
para além dos atos dos reis, o domínio de santo e justo é transmitida por uma im-
Deus. A íntima conexão entre essas cria- pressão de fogo ardente e candura perfeita
1139 DANIEL8{

(9; cf SI 50.3,4). A terceira cena retoma observação especial deve ser feita em rela-
à sala do trono de Deus onde um como o ção ao tríplice caráter do pequeno chifre no
Filho do Homem é apresentado ao Ancião v. 25. Ele é culpado de blasfêmia, de perse-
de Dias (13) e dele recebe a autoridade guição ao povo de Deus e de alguma forma
universal. Esta figura é a de um verdadei- de autodivinização (uma vez que a mudan-
ro homem em contraste com as bestas. Ele ça dos tempos estabelecidos, v. 25, é uma
é capaz de carregar a santidade de Deus e prerrogativa exclusiva de Deus, 2.21).
permanecer em sua presença. Nesta ima- Aqueles que localizam a plateia de
gem a pedra do sonho de Nabucodonosor Daniel no segundo século a.C. normal-
(2.35,44,45) se transforma em um homem, mente identificam o quarto reino como
em quem a verdadeira imagem de Deus a Grécia, e veem o pequeno chifre como
brilha (Gn 1.26-28), o Homem Messiânico Antíoco Epifânio. Não é possível, entre-
que será o verdadeiro regente de Deus (cf tanto, ler esta passagem da perspectiva do
SI 2.8; 8.4-8; 72.1-11 ,17; Hb 2.5-9; 12.28). NT sem reconhecer que a figura do "Filho
do Homem" (13) se cumpre em Cristo (cf
7.15-28 O chifre que guerreava Mc 13.26; At 7.56; Ap 1.13; 14.14).
Daniel recebeu uma série de indícios para Essa interpretação (retrospectiva) su-
explicar essas cenas. A interpretação das gere que a figura da quarta besta se cum-
bestas como impérios está de acordo com pre em Roma. É provavelmente melhor
isso. A visão pretendia assegurá-lo de que considerar os "chifres" (7,8,24) como uma
os santos do Altíssimo receberão o reino continuação do "espírito" da dominação
(18). Isso não deveria ser entendido como romana, em cujo contexto aparece o pe-
uma sugestão de que o "Filho do Homem" queno chifre, o homem sem lei, o anticristo
(13) e os santos do Altíssimo fossem idên- final (20,21,25; cf 2Ts 2.4-12; 1104.3b),
ticos, mas que de algum modo havia um que, por determinado tempo, oprimirá fe-
relacionamento entre eles, o qual se tor- rozmente os santos (25). Seu poder então
naria claro com a vinda de Cristo (e.g., será consolidado e intensificado (por um
Ap 1.7). Sua coroação é a garantia de que tempo, dois tempos), mas será subitamen-
seus santos compartilharão de seu triunfo te interrompido (metade de um tempo). O
(Ap 20.6). reino, o domínio universal e a majestade
Embora lhe tenha sido dada uma garan- serão entregues ao Filho do Homem e ao
tia do triunfo do reino de Deus, Daniel ficou seu povo, e o seu reino será para sempre
muito incomodado, especialmente com a (14,26,27).
identidade da apavorante quarta besta, com Daniel fora afetado tanto fisica como
todos os seus chifres e particularmente o mentalmente pela visão. Há uma lição im-
menor deles (19; cf v. 8). A interpretação portante para todos aqueles que têm expe-
que recebera elucidava a visão, mas defini- riências espirituais incomuns no fato de
tivamente não a tomava mais simples. Não Daniel ter guardado essas coisas somente
é de admirar que os comentaristas não con- para si mesmo (28).
cordem em suas interpretações sobre esse
trecho. Suas dificuldades de interpretação 8.1-27 A soberania de Deus
devem nos alertar para que não sejamos dura para sempre
dogmáticos ao tentar explicá-la. Em suas experiências visionárias, Daniel
O pequeno chifre aparece no contexto recebeu total compreensão do conflito em
do último império. A forma como o iden- que ele mesmo estava pessoalmente envol-
tificamos vai depender de nosso esquema vido. A visão não se limitava à sua própria
geral para interpretar toda a visão (e o experiência; ao contrário, sua experiência
sonho de Nabucodonosor no cp. 2). Uma nada mais era do que um determinado
11
: - DANIELa 1140
11

aspecto do conflito cósmico entre os rei- o caracterizavam: sua extraordinária ve-


nos deste mundo e o reino que Deus está locidade; sua ferocidade aparentemente
estabelecendo. onipotente em oprimir o carneiro (6,7); a
A segunda visão de Daniel fez com dramática quebra de seu grande chifre e a
que ele se lembrasse da que tivera a prin- emergência de quatro chifres em seu lugar
cípio (1), mas dessa vez ele se via junto (8), de um dos quais saiu um chifre adi-
ao rio Ulai, em Susã, a capital da Pérsia. cional (9).
Sua visão consistia em duas imagens vi- O bode representa o Império Grego
suais centrais (1-4; 5-12), seguidas por (21). A imagem do grande chifre se
duas revelações faladas (a primeira, nos cumpriu perfeitamente em Alexandre, o
v. 13,14, é dada por um santo; a segun- Grande, que se tomou um conquistador
da, nos v. 15-26, por Gabriel; cf 9.21 e mundial com a idade entre vinte e um e
Lc 1.19,26). Já que as partes visuais e au- vinte e seis anos, derrotando as forças per-
díveis estão relacionadas, é melhor exa- sas em uma série de batalhas decisivas en-
minar o capítulo considerando-se cada tre 334 e 331 a.C. Entretanto, ele morreria
segmento respectivo. de forma trágica, aos trinta e três anos de
idade (cf v. 8), sendo seu império dividi-
8.1-4, 15-20 O carneiro do em quatro regiões representadas pelos
com dois chifres quatro chifres (22). De um destes, nasce
O carneiro de dois chifres da sua primeira um chifre pequeno (9) que dará forma ao
visão (3) são os reis da Média e da Pérsia clímax de toda a visão.
(20), sendo que o chifre mais alto, sem dú-
vida, representa a Pérsia. Daniel viu que o 8.9-14,23-27 O pequeno
carneiro dava marradas para frente, expan- chifre que cresceu
dindo seu território em todas as direções. O descendente de um dos chifres é agora
De fato, o Império Persa se expandiu em retratado como alguém que se dedica a
direção ao oeste, para a Babilônia, Síria uma vigorosa política expansionista que
e Ásia Menor; em direção ao norte, para alcança a Palestina (a terra gloriosa, 9;
a Armênia e o mar Cáspio; e em direção cf Dt 8.7-9; Jr 3.19). Em sua autoexalta-
ao sul, para a África. O conhecimento que ção (cf Is 8.12-15), essa figura fará de si
Daniel tinha disso (no terceiro ano do rei- mesma um deus e proibirá com blasfêmia
no de Belsazar) é coerente com a ousadia a adoração bíblica (11,12). Daniel viu isso
de seu discurso posterior ao rei, no mes- continuar por duas mil e trezentas tardes
mo ano de sua queda (cf 5.18-31). Ele já e manhãs (14), que provavelmente devem
havia presenciado "a mensagem escrita na ser entendidas como dias (cf Gn 1.5,8,13
parede", dirigida ao Império Babilônico. etc.). O fato de essa informação ter sido
Como homem de fé, ele aprendeu pouco passada a Daniel pelos santos (13) é uma
a pouco que isso simplesmente apontava indicação de que, apesar do horror dos
para uma realidade muito maior - que já acontecimentos, todos são conhecidos
havia na parede uma mensagem escrita di- por Deus e misteriosamente se encontram
rigida a todos os impérios, exceto ao reino dentro de seus propósitos (cf 1.2). Assim
do Altíssimo (cf 2.44). também é o pequeno chifre, cuja ascen-
são não se dá por sua própria força (24)
8.5-8,21,22 O bode de um chifre e cuja queda se dará sem esforço de mãos
Enquanto Daniel ponderava sobre o sig- humanas (25).
nificado da primeira visão, antes de rece- A Síria, uma das quatro partes resultan-
ber sua interpretação, ele viu um bode que tes da divisão do império de Alexandre, o
tinha um chifre notável (5). Três coisas Grande, foi governada por Seleuco Nicator,
1141 DANIEL9(

chefe da dinastia selêucida da qual surgiu mui distantes (26). O "fim" em vista aqui
Antíoco IV, em 175 a.C. Ele se intitulou pode ser mais bem entendido como a últi-
Theos Antíoco Epifânio (Antíoco, o deus ma parte do período histórico em questão
ilustre). Outros se referem a ele como (isto é, não o final dos tempos).
Antíoco Epimanes ("o louco"). Em sua Como em 7.28, a reação de Daniel é
política expansionista invadiu a Palestina muito instrutiva. A seriedade do conflito
(a terra gloriosa; 9) e saqueou Jerusalém em que o povo de Deus está para se en-
em meio a um terrível banho de sangue. volver não somente o oprimiu como o ate-
Ele aboliu as ofertas sacrificais diárias da morizou, mas não o paralisou. Mesmo em
manhã e da tarde (11; cf Êx 29.38-43), co- meio a um ambiente incrédulo e pecami-
meteu a blasfêmia de sacrificar um porco noso, ele cumpriu com suas responsabili-
no altar das ofertas queimadas, mais tar- dades diárias (27; cf 2Pe 3.11).
de colocou uma estátua de Zeus no tem-
plo e fez sacrifícios humanos no altar. Ele
9.1-27 A soberania de Deus
proibiu a circuncisão e profanou o sábado como base da fé e profecia
(cfv.ll,12).
A ênfase dada à compreensão de Daniel 9.1-3 Daniel procura nas Escrituras
desta visão é digna de nota (5a,15,16). Gabriel trouxe então uma revelação adi-
Essa iluminação não é somente uma ques- cional (21; cf 8.16), a qual é situada por
tão da previsão de futuros acontecimentos uma cuidadosa e significativa cronologia
da história, mas também a clara compreen- no primeiro ano de Dario (1). Daniel es-
são da natureza e da obra do mal em sua tava envolvido em disciplinas espirituais.
destruição da vida, sua oposição à santida- Ele tinha meditado na profecia de Jeremias
de (24; com o foco na destruição da adora- de que o tempo de duração das assolações
ção do povo de Deus, 11; cf At 20.29-31), de Jerusalém (2) se estenderia por setenta
sua falsidade e seu orgulho (25). À luz anos (cf Jr 25.11,12; 29.10). A oração que
desse fato, Daniel aprende lições vitais: segue foi influenciada profundamente pelo
que ninguém deve se deixar enganar por espírito de Jeremias 25. Como em outras
uma falsa sensação de segurança (25, vi- partes das Escrituras, a motivação para a
vem despreocupadamente; cf 1Co 10.12; intercessão fervorosa de Daniel é dupla:
GI6.1) e que no final Deus destruirá toda a a necessidade do momento e a promes-
oposição a ele (25; cf SI 2.8-12; 46.8-10; sa de Deus na aliança. Enquanto a lógica
Ap 11.15-18). abstrata pode nos levar a perguntar por
O foco no pequeno chifre, diante do que Daniel precisava orar, se Deus já ti-
qual os papéis dos grandes impérios repre- nha feito sua promessa, o próprio Daniel
sentados pelo carneiro e pelo bode passam compreendeu que Deus emprega a oração
a ser secundários, é um lembrete da distin- como um meio pelo qual ele se agrada em
ta perspectiva bíblica, que não vê os gran- cumprir a sua palavra. O arrependimento
des impérios, mas sim o povo da aliança genuíno e a intercessão afetavam Daniel
como o elemento-chave para a história. O tanto exteriormente quanto interiormente
derradeiro significado dos impérios e de (3). Presumivelmente, essa era uma parte
seus regentes é determinado pelo tipo de das devoções privadas de Daniel, mas suas
tratamento que concedem ao povo de Deus ações não entravam em contradição com o
(9-12; cf Mt 25.31-46). espírito de Mateus 6.16-18, que diz respei-
Duas frases apontam para o cumpri- to à nossa aparência em público e de todo
mento da visão de Daniel: os eventos acon- modo tem em vista aqueles que procuram
tecerão no último tempo da ira [...] tempo aprovação no elogio de outros, em vez da
determinado do fim (19) e em dias ainda aprovação de Deus.
DANIEL 9 1142

9.4-19 Oração, uma obra da aliança desobediência; 5-11) e suas consequências


A oração de Daniel é dominada por um (vergonha e dispersão; v. 7). Tal juízo é a
toque do caráter de Deus, especialmente expressão da justiça de Deus em relação à
aquele revelado em sua justiça. A justiça aliança, em resposta ao pecado de seu povo.
de Deus é sua integridade absoluta, sua Ele manteve sua promessa (7,11-14).
conformidade à sua glória perfeita. No re- Enquanto ele orava sobre a condição
lacionamento com seu povo, ela assume a de seu povo, Daniel não pediu a Deus que
forma de sua fidelidade à aliança com esse abandonasse sua justiça. Paradoxalmente,
povo. Nessa relação da aliança ele pro- nela estava a única esperança do povo.
metera ser o seu Deus e fazer desse o seu Como no primeiro êxodo, para sua própria
povo; prometera que o povo seria abençoa- glória, Deus revelou a justiça de sua alian-
do enquanto respondesse a ele com amor ça na misericórdia para com os oprimidos
e fidelidade, mas haveria juízo, se eles lhe assim como no julgamento dos ímpios (cf
respondessem com descrença, ingratidão e Êx 3.7-10,20; 6.6). Incentivado pelas pro-
desobediência (cf Dt 27; 28). É significa- messas divinas a Jeremias, Daniel apela
tivo que o nome de Deus na aliança, Javé, a Deus em defesa de seu glorioso nome,
usado no livro somente neste capítulo, apa- o qual ele associa ao povo e à cidade de
reça impresso frequentemente em diversas Jerusalém (16). O objetivo de sua inter-
versões (ARA e NVI, e.g.) como SENHOR (v. cessão é a glória do nome de Deus; seu
2,4,10,13,14,20; cf Êx 3.13-15). alicerce é a promessa de Deus na aliança
Esses princípios salientam o modo a respeito da restauração; sua motivação
como Deus trata o seu povo no AT e vêm à é o conhecimento da justa misericórdia
tona na oração de Daniel. Em sua longani- revelada nas obras redentoras de Deus no
midade com seu povo desobediente, Deus passado (15-19).
tinha enviado profetas para trazê-los de
volta à fidelidade para com a aliança (5,6). 9.20-27 Outras "setenta" semanas
O exílio era resultado da indiferença do O tempo da revelação foi à hora do sacri-
povo em relação à advertência de Deus e o ficio da tarde (21; isto é, o meio da tarde)
cumprimento da maldição da aliança (7; cf - uma notável indicação da abordagem
Dt 28.58,63,64; Jr 18.15-17). Em verda- voltada para a cidade de Deus como Daniel
deiro espírito de arrependimento, Daniel, encarava a vida, uma vez que ele tinha es-
o mais fiel dentre todo o povo de Deus, tado ausente de Jerusalém por quase seten-
admitiu a culpa do povo como se fosse ta anos (cf 6.10). Gabriel apareceu com
sua (o uso da primeira pessoa do plural é dramática prontidão em resposta à sua ora-
bem marcante nos v. 5-10). Nesse aspec- ção, trazendo mais um comunicado divino,
to seu coração refletia o coração de Deus o qual expandia o horizonte de Daniel dos
(cf Is 63.8a,9a); esse é o seu povo (cf v. setenta anos da profecia de Jeremias para
20). A solução definitiva estava esperando setenta semanas (24). Agora há um novo
pelo tempo em que o Filho de Deus assu- pico na cordilheira dos propósitos divinos
miria a culpa de seu povo como se fosse no qual ele deve se concentrar.
sua (cf Is 53.4-6,10-12; 2Co 5.21). Mas a A revelação enigmática que segue pri-
esperança de perdão não minimiza a serie- meiramente esboça o plano divino, incluin-
dade de sua condição. Certamente Daniel do seis coisas que devem se alcançadas no
explorava o vocabulário do AT, enquan- período das setenta semanas ordenas por
to descrevia e confessava a falha de Judá Deus (24). As primeiras 69 semanas con-
(pecado, erro, maldade, rebeldia, o afastar- duzem à vinda do Ungido (25) e são dividi-
se dos mandamentos de Deus, recusa em das em dois períodos desiguais (7 semanas
ouvir os profetas, injustiça, transgressão, e 62 semanas = 69 semanas). Essa divisão
1143 DANIEL1 0 (

é uma das mais enigmáticas características Por 70 anos Daniel ansiara pela restau-
de todo o livro. Possivelmente as primeiras ração da cidade e do templo de Deus (16-
sete semanas apontam para a conclusão do 19). Agora que isto está prestes a ocorrer,
templo. Os v. 26 e 27 podem conter uma sua atenção é dirigida a um ponto mais
miniatura de "paralelismo progressivo": distante e elevado na história da redenção.
o v. 26 descrevendo as semanas finais em Mesmo um templo novo em uma cidade
termos panorâmicos, enquanto o v. 27 as reconstruída pelas mãos humanas pode ser
descreve em detalhes específicos. destruído. Os olhos de Daniel consequen-
As interpretações dessa mensagem temente devem se fixar no templo final (cf
variam muito e dependem de uma visão Jo 2.19), aquele que estará além de qual-
mais ampla do intérprete quanto ao cum- quer tipo de profanação (Ap 21.22-27).
primento da profecia. A crítica, situando
os escritos de Daniel no contexto do se- 10.1-12.4 A soberania de Deus
gundo século a.C., vê o período em ques- sobre toda a história
tão como algo que deve se estender do
século VI até a época de Antíoco Epifânio 10.1-3 Em lamentação espiritual
(os 490 anos sendo entendidos ou como A narrativa da visão final de Daniel se
um ciclo ou literalmente e, talvez, equivo- estende d