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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Editora da Universidade Estadual de Maringá

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Equipe Técnica

Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka


Fluxo Editorial Edneire Franciscon Jacob
Mônica Tanamati Hundzinski
Vania Cristina Scomparin
Edilson Damasio
Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva
Marcos Roberto Andreussi
Marketing Marcos Cipriano da Silva
Comercialização Norberto Pereira da Silva
Paulo Bento da Silva
Solange Marly Oshima
Formação de Professores - EAD

Analete Regina Schelbauer


Maria Angélica Olivo Francisco Lucas
Rosangela Célia Faustino
(ORGANIZADORAS)

Práticas pedagógicas,
alfabetização e
letramento

43
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Annie Rose dos Santos
Idealização da Capa: Marcia Lang
Edição e Produção: Carlos Alexandre Venancio
Júnior Bianchi
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Práticas pedagógicas, alfabetização e letramento / Analete Regina Schelbauer,


P912 Maria Angélica Olivo Francisco Lucas, Rosangela Célia Faustino, organizadoras.
-- Maringá : Eduem, 2010.
152p.: il. 21cm. (Coleção formação de professores - EAD; n. 43)

ISBN 978-85-7628-287-7

1. Alfabetização. 2. Letranento. 3. Práticas pedagógicas. 4. Leitura e escrita. I.


Faustino, Rosangela Célia, org. II. Schelbauer, Analete Regina, org. III. Lucas, Maria
Angélica Olivo Francisco, org.

CDD 21. ed. 469.07

Copyright © 2010 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2010 para Eduem.

Endereço para correspondência:

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá - Paraná
Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392
http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br
S umário

Sobre as autoras > 5

Apresentação da coleção > 9


Apresentação do livro > 11
CAPÍTULO 1
Apontamentos sobre a história da alfabetização > 15
Analete Regina Schelbauer

CAPÍTULO 2
Formação e atuação do professor alfabetizador
Marieta Lúcia Machado Nicolau
> 31

CAPÍTULO 3
Alfabetização, letramento e educação infantil > 47
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Heloisa Toshie Irie Saito

CAPÍTULO 4
Em lugar da mecanização e da improdutividade:
contribuições de Freinet para a alfabetização > 65
Elieuza Aparecida de Lima /Ana Laura Ribeiro da Silva

CAPÍTULO 5
Imagens e narrativas no percurso de
alfabetização de jovens, adultos e idosos
> 87
Regina Lúcia Mesti

3
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, CAPÍTULO 6
ALFABETIZAÇÃO E
A apropriação da linguagem matemática
LETRAMENTO
nos primeiros anos de escolarização
> 97
Silvia Pereira Gonzaga de Moraes

CAPÍTULO 7
Diversidade cultural, alfabetização e letramento > 115
Rosângela Célia Faustino

CAPÍTULO 8
Práticas pedagógicas de
alfabetização e letramento na escola > 133
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Analete Regina Schelbauer
Ângela Rita Bellincanta Hercos / Maria Araci Guazelli / Suely Harumi Fugimoto

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S obre as autoras

ANA LAURA RIBEIRO DA SILVA


Pedagoga e mestre em educação pela Universidade Estadual Julio de Mesquita

Filho (Unesp-Marília). Membro do Grupo de Pesquisa e Estudos Implicações

Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural (Unesp-Marília).

ANALETE REGINA SCHELBAUER


Pedagoga e mestre em educação pela Universidade Estadual de Maringá

(UEM). Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora

da Universidade Estadual de Maringá e do Programa de Pós-Graduação

em Educação (PPE/UEM). Membro do Grupo de Pesquisa em Formação de

Professores e do Grupo de Pesquisa em História da Educação, Intelectuais e

Instituições Escolares (UEM).

ANGELA RITA BELLINCANTA HERCOS


Pedagoga pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), com especialização em

Formação de Recursos Humanos para Alfabetização pela Faculdade de Filosofia,

Ciências de Letras de Mandaguari (FAFIMAN). Professora de educação infantil e

séries iniciais do ensino fundamental da rede pública de ensino do município de

Maringá e de escola particular.

ELIEUZA APARECIDA DE LIMA


Pedagoga, mestre e doutora em educação pela Universidade Estadual Julio

de Mesquita Filho (Unesp-Marília). Membro do Grupo de Pesquisa Implicações

Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural e do Grupo de Pesquisa Processos de

Leitura e de Escrita: apropriação e objetivação (Unesp-Marília).

HELOISA TOSHIE IRIE SAITO


Pedagoga e mestre em educação pela Universidade Estadual de Maringá

(UEM). Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora

da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Membro do Grupo de Estudos e

Pesquisas em Educação e Infância (UEL).

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, MARIA ANGELICA OLIVO FRANCISCO LUCAS
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Pedagoga e mestre em educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutora

em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Estadual

de Maringá (UEM). Coordenadora do Projeto Implementação de Práticas de Alfabetização

e Letramento (PIBID/CAPES).

MARIA ARACI GUAZELLI


Pedagoga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jandaia do Sul (FAFIJAN).

Psicopedagoga pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora da rede pública

de ensino do Estado do Paraná, do Centro de Aplicação Pedagógica da Universidade

Estadual de Maringá (CAP/UEM) e de escola particular.

MARIETA LÚCIA MACHADO NICOLAU


Pedagoga, mestre e doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP).

Professora associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação

em Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Coordenadora do Programa de

Educação Continuada de Formação Universitária (PEC) para professores da rede pública

de ensino do município de São Paulo e da rede pública de ensino do Estado de São Paulo.

REGINA LÚCIA MESTI


Pedagoga pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em educação pela

Universidade Estadual Julio de Mesquita Filho (Unesp-Marília). Doutora em comunicação

e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora da

Universidade Estadual de Maringá (UEM). Coordenadora do Programa de Educação para

Jovens e Adultos (UEM).

ROSANGELA CELIA FAUSTINO


Historiadora e mestre em educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Doutora em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da

Universidade Estadual de Maringá e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em

Educação (PPE/UEM). Pesquisadora do Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-

História (CCH-UEM). Coordenadora da Comissão Universidade para os Índios (CUIA) e do

Observatório da Educação Escolar Indígena (CAPES/DEB/SECAD/INEP).

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SILVIA PEREIRA GONZAGA DE MORAES Sobre as autoras

Pedagoga pela Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jandaia do Sul

(FAFIJAN). Mestre em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Educação da

Universidade Estadual de Maringá (UEM). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre

a Atividade Pedagógica (GEPAPe/USP).

SUELY HARUMI FUGIMOTO


Pedagoga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jandaia do Sul (FAFIJAN), com

especialização em Educação Especial, Infantil e Fundamental pela Universidade Estadual

de Maringá (UEM). Professora de educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental

da rede pública de ensino do município de Maringá e da rede pública de ensino do

Estado do Paraná.

7
A presentação da Coleção
A coleção Formação de Professores - EAD teve sua primeira edição publicada em
2005, com 33 títulos financiados pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) do
Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material
didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa de Formação de
Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de 2500 exemplares.
A partir de 2008, demos início ao processo de organização e publicação da segunda
edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos
deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o financiamento para
esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido
pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que é responsável pelo programa denominado
Universidade Aberta do Brasil (UAB).
A princípio, serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros
da nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados
no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universi-
dade Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB.
Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reflexão que foi pensado
para uma disciplina específica do curso, mas em nenhum deles seus organizadores
e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e
práticas construídas historicamente no que se referem aos conteúdos apresentados. O
que buscamos, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura,
da reflexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a
formação do Pedagogo na atualidade.
Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço
coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM) e das instituições que têm se colocado como parceiras nesse
processo.
Neste sentido, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais insti-
tuições que organizaram livros e ou escreveram capítulos para os diversos livros desta
coleção.
Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação
direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias não mediu esforços para que os traba-
lhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante

9
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, específico, destacamos o esforço da Reitoria para que os recursos para o financiamento
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO desta coleção pudessem ser liberados em conformidade com os trâmites burocráticos
e com os prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE).
Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do De-
partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos últimos anos empreenderam
esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu-
desse ser criado oficialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadêmico e uma
modificação significativa da sistemática das atividades docentes.
No tocante ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido pela
Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a
Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES)
conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para a li-
beração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para
aprovação, tendo em vista a ação direta e eficiente de um número muito pequeno de
pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação
Geral de Articulação.
Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD possa
contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como
de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de ensino
superior que integram e ou possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB.

Maria Luisa Furlan Costa


Organizadora da Coleção

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A presentação do livro

O livro Práticas Pedagógicas, alfabetização e letramento apresenta textos ela-


borados por professoras com larga experiência em salas de alfabetização, forma-
ção de professores e desenvolvimento de pesquisas na área. Ao expor, discutir e
analisar métodos, teorias e experiências desenvolvidas em diferentes situações de
ensino e aprendizagem da leitura e escrita, objetivamos que este possa contribuir
como material de apoio à formação de professores pedagogos, educadores infantis
e alfabetizadores.
Destacamos nesta obra a importância da formação, dos estudos e do compromis-
so dos professores com os fundamentos teórico-metodológicos que darão susten-
tação a uma prática pedagógica dialogada e coletiva, visando à ampliação da apren-
dizagem escolar de crianças, jovens, adultos e idosos para que estes se apropriem e
utilizem da leitura e escrita em diferentes contextos sociais.
As indicações de leitura e as atividades sugeridas em todos os textos visam a
oportunizar um maior aprofundamento dos estudos, à apropriação de amplos sabe-
res e ao repensar da prática pedagógica na alfabetização.
Assim, com a finalidade de conduzir a formação do professor, por meio de um
percurso histórico, ao conhecimento de aspectos relevantes sobre a história da al-
fabetização, o primeiro capítulo, Apontamentos sobre a história da alfabetização,
de Analete Regina Schelbauer, convida o leitor a refletir sobre algumas questões
relacionadas às origens e ao desenvolvimento da escrita na história, ao processo de
institucionalização do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita na escola pri-
mária e à história da alfabetização no Brasil, tomando como referência os trabalhos
de pesquisadores da área.
O segundo capítulo, Formação e atuação do professor alfabetizador, escrito
pela professora Marieta Lúcia Machado Nicolau, chama a atenção para a importância
da formação em serviço, demonstrando que esta requer estudos, planejamentos
coletivos, discussão para a superação dos problemas, atenção ao tipo de gestão e,
principalmente, compromisso e participação efetiva de todos os profissionais da es-
cola para a consecução de objetivos comuns. Esses objetivos se referem à elaboração
coletiva e à implementação do projeto pedagógico da escola bem como à responsa-
bilidade de se promover um ensino desafiador, criando, em sala de aula, condições
para que todas as crianças se sintam estimuladas a aprender a ler, escrever e a fazer
usos dessas habilidades.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, No capítulo Alfabetização, letramento e educação infantil, Maria Angélica Olivo
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Francisco Lucas e Heloisa Toshie Irie Saito elencam elementos que esclarecem a
relação entre os processos de alfabetização e letramento e a educação das crianças
pequenas. A relação entre a função conferida à educação das crianças pequenas e
as formas de conceituar os processos de alfabetização e letramento foi confirmada
pela análise da produção bibliográfica relativa à questão, a qual apresenta diversas
orientações metodológicas sob a forma de sugestão de trabalho ou relato de experi-
ência. Explorar as funções sociais da linguagem escrita, realizar tentativas de escrita
e de leitura, oportunizar situações de produção e interpretação de textos e articular
a escrita com outras linguagens são as orientações metodológicas mais frequentes. A
partir delas e considerando que os processos de alfabetização e letramento, apesar
de distintos, são indissociáveis e interdependentes, as autoras defendem o enrique-
cimento do processo de letramento das crianças e a estimulação da alfabetização
como uma das finalidades da educação das crianças pequenas.
Elieuza Aparecida de Lima e Ana Laura Ribeiro da Silva trazem, no quarto capítu-
lo, Em lugar da mecanização e da improdutividade: contribuições de Freinet para
a alfabetização, uma discussão relativa à alfabetização de crianças, jovens e adultos,
com base em revisitações das técnicas de Celestin Freinet buscando a superação de
entendimentos aligeirados sobre elas. Partem de apropriações teóricas surgidas em
estudos e pesquisas sobre práticas educativas na/de escolas infantis. Essas práticas,
equivocadamente, dirigem-se, de modo geral, à aquisição precoce da técnica de es-
crita, com sacrifício do direito à infância. Discutem, assim, a necessidade de cons-
tituição de elementos mediadores entre a teoria estudada e a prática concretizada,
entendendo que as Técnicas Freinet ocupam lugar de destaque.
A professora Regina Lúcia Mesti, em Imagens e Narrativas no percurso de alfa-
betização de Jovens Adultos e Idosos, apresenta a análise de um projeto pedagó-
gico de alfabetização de jovens, adultos e idosos desenvolvidos pela Universidade
Estadual de Maringá como parceira do Programa Alfabetização Solidária no período
de 1996 a 2004. O direito à escolarização dessa população foi assegurado no texto
da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 e assumido como Edu-
cação Básica pelo Ministério da Educação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 1996. Antes e depois desses fatos institucionais a alfabetização tem sido
desenvolvida pelos movimentos sociais e pesquisadores que analisam o processo de
significação desses alunos que enfrentaram obstáculos diversos em seu percurso de
aprendizagem da leitura e escrita. Os princípios educacionais desse projeto estão
referenciados nos estudos de Paulo Freire que valorizam o conhecimento do univer-
so vocabular no desenvolvimento de práticas de alfabetização em um contexto da

12
comunicação que intensifique as interações com o universo escrito. Apresentação do livro

Partindo da constatação de que vivemos em uma sociedade grafocêntrica e nume-


ralizada, Silvia Pereira Gonzaga de Moraes, no capítulo A apropriação da linguagem
matemática nos primeiros anos de escolarização, evidencia que precisamos, além
de zelar para que a aquisição das habilidades de leitura e escrita e seus usos sociais
aconteçam de forma significativa e com sentido, pensar como se dá a apropriação
da linguagem matemática pelos alunos, visando a sua utilização como ferramenta
simbólica na compreensão da realidade. São relatadas algumas reflexões acerca da
organização do ensino de matemática para as crianças no processo inicial de esco-
larização. Com base em pressupostos da teoria histórico-cultural, a autora conduz
o leitor a reflexões sobre a concepção de matemática, da alfabetização matemática,
da organização do ensino e da aprendizagem de conceitos matemáticos pela criança
pequena. Defende que ao ensinar matemática, o professor deve primar por ativi-
dades de ensino que propiciam às crianças a apropriação das bases dos conceitos
matemáticos, sendo necessário focalizar a forma como tal conceito foi produzido
historicamente pela humanidade.
Rosangela Célia Faustino expõe, no capítulo Diversidade cultural, alfabetização
e letramento, uma discussão referente à diversidade cultural na escola, apresentan-
do uma breve trajetória histórica sobre essa temática bem como a política educacio-
nal que a implementa e as teorias dominantes em relação às quais se fundamenta.
Apresenta e discute a importância da alfabetização de todos, independentemente
de sua condição sociocultural e ou econômica e assevera ser a escola a instituição
privilegiada para que essa aprendizagem ocorra. Descreve e analisa uma experiência
de alfabetização e letramento junto a grupos indígenas Kaingang no Paraná.
Para encerrar este livro, trazemos um capítulo intitulado Alfabetização e letra-
mento: algumas práticas pedagógicas, redigido a dez mãos. Quatro delas perten-
cem a professoras do Departamento de Teoria e Prática da Educação da Universidade
de Maringá envolvidas em atividades de ensino, pesquisa e extensão que primam
pela formação de professores alfabetizadores. As outras seis mãos são de queridas
professoras que, de longa data, atuam profissionalmente em centros de educação in-
fantil e escolas de Ensino Fundamental públicos e privados. Todas relatam algumas
práticas pedagógicas e propõem outras relacionadas à exploração da escrita de no-
mes próprios e à leitura de textos poéticos, permeadas pela realização de desenhos
infantis, visando aos processos de alfabetização e letramento das crianças. Salientam
que a implementação de tais práticas requer competência teórica para distinguir
o conceito de alfabetização do de letramento e para dotar a prática pedagógica de
intencionalidade e sistematicidade.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Com essa profusão de ideias e experiências, esperamos contribuir com a forma-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO ção e atuação de professores pedagogos, educadores infantis e alfabetizadores, rea-
firmando o compromisso com os estudos e a ampliação de suas práticas pedagógicas
de alfabetização e letramento.

Analete Regina Schelbauer


Maria Angélica Olivo Francisco Lucas
Rosangela Célia Faustino
Organizadoras

14
1 Apontamentos
sobre a história da
alfabetização

Analete Regina Schelbauer

Considerações iniciais
Este capítulo é dirigido a professores em processo de formação inicial, que em
meio aos aprendizados que constroem a sua identidade docente tornam-se educado-
res e... alfabetizadores!
Com a finalidade de levar ao futuro professor o conhecimento de questões rela-
cionadas à história da alfabetização, os próximos parágrafos conduzirão às páginas do
desenvolvimento da escrita na humanidade e da história do ensino da leitura e da es-
crita no Brasil, tomando como referência trabalhos de diversos pesquisadores da área.
Iniciamos com o relato de uma história muito comum em nosso cotidiano escolar
sobre as descobertas que as crianças fazem acerca do sistema de escrita. Era uma vez,
uma criança que queria aprender a ler o mundo da escrita que a rodeava e a escrever
todas as palavras que pudessem existir. Ela buscava compreender o que eram aqueles
sinais, como eles se misturavam e se tornavam compreensíveis para as pessoas. Queria
aprender a ler e a escrever! Certo dia, rodeada de outras crianças e sob o olhar atento
de uma professora, no espaço da sala de aula e cercada pelo mundo da escrita, essa
criança parou diante de um quadro contendo as letras do alfabeto e disse:
– Professora, quer dizer que apenas com essas letras eu posso escrever tudo o que
existe no mundo?! – interrogou e exclamou ao mesmo tempo a criança que havia dado
mais um passo rumo à compreensão do nosso complexo sistema de escrita alfabético.
Nas histórias que compõem o caminho que cada um percorre para compreender
e se apropriar do sistema de escrita a ponto de se tornar leitor e escritor, alfabetizado
e letrado, se encontra a chave para que o futuro professor se encante com a arte de
aprender a ensinar a ler e a escrever as crianças, os jovens, os adultos e os idosos.
Ao relembrarmos nossas histórias e o percurso que fizemos para nos tornarmos
alfabetizados e letrados, reconhecemos a importância da leitura e da escrita em uma
sociedade grafocêntrica como condição para a emancipação humana.

15
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Nas páginas iniciais do livro “Alfabetizar e letrar: um diálogo entre teoria e prática”,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Carvalho (2005) escreve as reminiscências de alguns escritores sobre a forma como
aprenderam a ler e a escrever. Nos relatos de Ana Maria Machado, Graciliano Ramos,
Bartolomeu Campos de Queirós e Françoise Dolto, além das memórias agradáveis,
doces e amargas do momento e do caminho que cada um percorreu diante das letras,
são evidenciados aspectos importantes para pensarmos a história do ensino da leitura
e da escrita no Brasil: os processos de ensino e de aprendizagem, as concepções de
linguagem escrita, os métodos, as cartilhas, enfim, os elementos da organização do
trabalho pedagógico na área da alfabetização. Mas quando, de fato, a humanidade
começou a se preocupar com o ensino da leitura e da escrita?
Foi a necessidade de continuidade de uso dos sistemas de escrita que motivou os
homens a se preocuparem com o seu ensino as novas gerações ao longo da história. A
invenção da escrita ocorreu simultaneamente à invenção da alfabetização, ou seja, das
regras de aquisição, compreensão e uso desse sistema, observa Cagliari (1999, p. 12).
Parte de uma história que se iniciou há milênios, as origens da escrita para Leroi-
Gourhan tem início por volta do ano 50 000 antes de nossa era, nas incisões em pedra
ou osso, passando por figuras gravadas ou pintadas, pela figuração gráfica, até atingir,
por volta do ano 15 000, “uma destreza técnica quase igual a da época moderna” (apud
DUBOIS et al., 2002, p. 222).
Neste sentido, a primeira grande invenção do homem relacionada ao domínio da
escrita é atribuída aos grafismos, também conhecidos como pictogramas, “escrita do
tipo arcaico, figurativa, que representa o conteúdo da língua (e não a língua com as
palavras e os sons)”, categorizados por M. Cohen como a primeira fase da história do
desenvolvimento da linguagem escrita. A segunda é representada pelos ideogramas,
constituídos por signos que representam “de modo mais ou menos simbólico o signi-
ficado das palavras”. A terceira é identificada pelos fonogramas, que indicam “signos
abstratos que representam elementos de palavras ou de sons, como nas escritas alfabé-
ticas”, distinguindo-se das demais pelo uso de letras que representam os sons da fala
(apud DUBOIS et al., 2002, p. 223).
Do aparecimento dos primeiros pictogramas, forma inicial que os homens inven-
taram para comunicar-se por escrito, até o desenvolvimento do sistema de escrita alfa-
bético passou-se milênios. A partir dessa invenção, séculos foram necessários para que
a difusão desse sistema se tornasse uma preocupação educacional e seu ensino fosse
institucionalizado nas escolas primárias.
Nossas escolas, tal como conhecemos hoje, tiveram suas proposições constituídas
durante os séculos XVI e XVII. Imbuídos das críticas à organização do ensino medieval
e com a preocupação de revisar o que se fazia no ensino do latim, além de propiciar

16
novas formas de articulação entre o saber e a memória, os pensadores dos séculos XVI Apontamentos sobre a
história da alfabetização
e XVII mudaram profundamente os fins, os meios e os estatutos da escola, atribuindo-
lhe um papel social central e propondo novas formas de escolarização, oferecendo
valiosos registros sobre a constituição das teorias pedagógicas da modernidade.
A nova educação que despontava com a modernidade, que se organizava de forma
coletiva, advoga a necessidade de um método de ensino capaz de reter o conhecimen-
to ensinado sem sobrecarregar o intelecto. Educar pelos sentidos, tornar a imaginação
e a memória repleta de coisas sensíveis com a finalidade de auxiliar os processos de
ensino foi uma das preocupações centrais do pensamento renovador.
A partir desse princípio Comenius (1592-1670) introduz, no livro Orbis Sensua-
lium Pictus1, o Alfabeto Simbólico, o qual é representado por imagens de animais, cujo
som natural por eles produzido relaciona-se às letras do alfabeto e a sua pronúncia,
seu valor fonético.

Figura 1: Alfabeto Onomatopéico2 - Alphabeto Symbolico


Fonte: http://www.uned.es/manesvirtual/Historia/Comenius/OPictus/OPictusAA.htm

1 Orbis Sensualium Pictus (O Mundo das Coisas Sensíveis Ilustrado), importante obra de
Comenius publicada no ano de 1658, ainda não apresenta tradução para a língua portuguesa.
O livro é considerado como a matriz através da qual se produziram os livros de textos didáticos
que formaram as crianças da sociedade ocidental moderna, durante trezentos e cinquenta anos
(NARODOWISKI, 2006).
2 Referente à onomatopeia (palavra cuja pronúncia imita o som natural da coisa significada).
Que imita a coisa significada (Dicionário Eletrônico Aurélio). Formação de uma palavra a partir
da reprodução aproximada, com os recursos de que a língua dispõe, de um som natural a ela
associado; onomatopoese (Dicionário Eletrônico Houaiss de língua portuguesa).

17
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Com esse método, Comenius acreditava que as crianças desenvolveriam completa-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO mente o hábito de ler. A imagem era utilizada como um recurso auxiliar para fixar as
letras na memória O Alfabeto Simbólico forneceria uma estratégia à lição das letras e
tornaria mais fácil o ensino da língua materna em relação à forma como era feito até
então, tendo como recurso a silabação prolixa dos silabários em uso. A prática desses
alfabetos havia sido precedida por outras manifestações similares desde o século XVI, e
foi amplamente difundida entre os homens de letras que passaram a utilizar o alfabeto
visual como um meio para fortalecer a memória (LORA, 2001).
Das ideias educacionais preconizadas por Comenius e seus interlocutores até a ins-
titucionalização da escola primária para todos, com a tarefa de ensinar a ler, escreve e
contar, foram necessários mais de três séculos para que o ensino da linguagem escrita
se difundisse entre as classes populares. A criação e universalização da escola primária
pública, gratuita, obrigatória, laica, ofertada e mantida pelos Estados Nações é uma re-
alidade atribuída ao final do século XIX, que acompanha o movimento de organização
dos sistemas nacionais de ensino em vários países.
Foi somente nesse contexto que o ensino da leitura e da escrita se tornou popular
e foi institucionalizado em larga escala na e pela escola primária.

Aspectos históricos da alfabetização no Brasil nas


contribuições da historiografia educacional
No Brasil, o debate sobre a necessidade de difundir a educação primária, ensinando
o conjunto da população a ler, escrever e contar é desencadeado nas últimas décadas
do Império, marcado pelas transformações econômicas, políticas e sociais que culmi-
nam com a abolição da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, em 1889.
No âmbito dos ideais republicanos, enuncia Mortatti (2006, p. 2-3):

[...] saber ler e escrever se tornou instrumento privilegiado de aquisição de


saber/esclarecimento e imperativo da modernização e desenvolvimento social.
A leitura e a escrita – que até então eram práticas culturais cuja aprendizagem
se encontrava restrita a poucos e ocorria por meio de transmissão assistemática
de seus rudimentos no âmbito privado do lar, ou de maneira menos informal,
mas ainda precária, nas poucas “escolas” do Império [...] – tornaram-se funda-
mentos da escola obrigatória, leiga e gratuita e objeto de ensino e de aprendi-
zagem escolarizados. [...] demandando, para isso, a preparação de profissionais
especializados.

Para acompanharmos alguns aspectos da história da alfabetização no Brasil,

18
tomaremos como referência as contribuições da historiografia, dentre as quais desta- Apontamentos sobre a
história da alfabetização
camos os estudos de Maria do Rosário Longo Mortatti (20003; 2004), nos quais buscou
compreender os sentidos atribuídos à alfabetização ao longo da história da educação
brasileira.
Ao discorrer sobre a “História dos Métodos de Alfabetização no Brasil”, Mortatti
(2004) a divide em quatro momentos assim identificados: 1º. A metodização do ensino
da leitura; 2º. A institucionalização do método analítico; 3º. A alfabetização sob medida
e 4º. Alfabetização, construtivismo e desmetodização. Cada um desses momentos é
caracterizado pela disputa em torno das tematizações, normatizações e concretizações
relacionadas ao ensino da leitura e da escrita e a respectiva fundação de uma nova
tradição sobre o tema.
O primeiro momento, delimitado entre 1876 e 1890, caracteriza-se pelo processo
de metodização do ensino da leitura e é marcado pela precariedade do ensino existen-
te nas últimas décadas do Império:
Até o final do Império brasileiro, o ensino carecia de organização, e as poucas
escolas existentes eram, na verdade, salas adaptadas, que abrigavam alunos
de todas as “séries” e funcionavam em prédios pouco apropriados para esse
fim; [...] Habitualmente, porém, iniciava-se o ensino da leitura com as chama-
das “cartas de ABC” e depois se liam e se copiavam documentos manuscritos
(MORTATTI, 2006, p. 5).

A prática do ensino da leitura era realizada pelos métodos de marcha sintética,


cujo processo se inicia pelas partes da palavra: as letras; os sons das letras ou suas
sílabas para chegar ao todo – a palavra, método que orientou a produção das primei-
ras cartilhas brasileiras, produzidas no final do século XIX. Quanto à escrita, “esta se
restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, a cópia, ditados e formação de frases,
enfatizando-se o desenho correto das letras” (MORTATTI, 2006, p. 5).
Naquele período, Mortatti (2006) retrata a missão civilizadora de Antonio da Silva
Jardim em torno da divulgação da “Cartilha Maternal” do poeta português João de
Deus, publicada em 1876. Figura de destaque nessas discussões, o positivista e pro-
fessor de língua portuguesa da Escola Normal de São Paulo teve atuação importante
tanto em termos de tematizações como de concretizações, e embora suas propostas
não tenham alcançado o patamar das normatizações, ele foi um dos responsáveis pela
fundação de uma nova tradição ao defender que o ensino da leitura consistia em uma

3 O livro se constitui em referência fundamental para estudantes e pesquisadores que se dedi-


cam ao estudo da alfabetização, tanto pelo conhecimento sobre o tema quanto pelas inúmeras
possibilidades de investigação com que o leitor se depara através do riquíssimo levantamento de
fontes primárias e secundárias que o compõem.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, questão de método. O momento, marcado pelo processo de metodização do ensino
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO da leitura, centra o debate em torno dos defensores do “método João de Deus” e dos
adeptos dos métodos de marcha sintética: da soletração, fônico e da silabação.
O segundo momento refere-se ao processo de institucionalização do método
analítico, que alcança o nível das normatizações, centrado na urgência nacional de
alfabetizar a população brasileira na recente República. Tal fato vai influenciar as ini-
ciativas postas em prática no momento delimitado entre a década de 1890 e meados
da década de 1920, propiciando tanto discussões em torno da formação dos mestres
como uma ampla divulgação relativa ao método analítico através da produção de
artigos, revistas e cartilhas escritas por uma geração de normalistas, dentre os quais
se destacam Joaquim Brito, Ramon Roca Dordal, Lima Barreto, João Kopke, Oscar
Thompson (MORTATTI, 2006).
Esse período é marcado pela crença propagada mundialmente de que uma nação,
para ser civilizada, precisa difundir as primeiras letras aos seus cidadãos, alcançando
ressonância na nova república brasileira, que passa a advogar em prol do ensino da
leitura e da escrita aos seus novos cidadãos da república como fator de modernização
social.
O advento da República é acompanhado por um período de reformas da instrução
pública paulista que se inicia pela Escola Normal, com a criação da Escola-Modelo,
destinada à prática de ensino dos normalistas. No âmbito do ensino primário e das
instituições escolares são criados os Grupos Escolares, considerados como “o marco
da modernização educacional paulista”. Criados em 1893 no Estado de São Paulo,
“a partir da reunião de escolas isoladas agrupadas pela proximidade”, essas institui-
ções escolares eram obrigadas “a adotar o tipo de organização e método de ensino
das escolas modelo do estado”. Esse modelo de escola graduada fundamentava-se na
classificação dos alunos pelo nível de conhecimento em classes, baseava-se no ensino
simultâneo, na racionalização curricular, na ordenação dos conteúdos escolares, do
tempo e do espaço escolar4 (SOUZA, 2004, p. 113-114).
Na monumentalidade de seus edifícios, os grupos escolares deveriam fazer sobres-
sair a República recém-inaugurada. No entanto, o ritmo e a extensão do processo de
escolarização instaurado “foram marcados por uma concepção restrita de cidadania e
pela exigüidade dos recursos materiais e humanos disponíveis para instituir a escola

4 Os grupos escolares reuniram todas as características da escola graduada – um novo modelo de


organização escolar configurado no final do século XIX que vinha sendo implantado em vários
países europeus e nos Estados Unidos para a difusão da educação popular (VIÑAO FRAGO,
1990; HAMILTON, 1989 apud SOUZA, 2004, p. 114).

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nos moldes então julgados necessários à formação do cidadão republicano” (CARVA- Apontamentos sobre a
história da alfabetização
LHO, 2000, p. 16).
Entretanto, a despeito da exiguidade dos recursos materiais e humanos disponíveis
para instituir a escola primária nos moldes desejados no campo do ensino da leitura
e da escrita, o período foi marcado pela institucionalização do método analítico para
o ensino da leitura.
Assim como as reformas republicanas da instrução pública serviram de modelo
para os demais estados da federação, o método analítico também foi disseminado em
outros estados brasileiros por meio de “missões de professores” paulistas “especial-
mente mediante a ocupação de cargos na administração da instrução pública paulista
e a produção de instruções normativas, de cartilhas e de artigos em jornais e em re-
vistas pedagógicas”. A obrigatoriedade da utilização do método nas escolas paulistas
perdurou até a Reforma Sampaio Dória de 1920, que garantiu a “autonomia didática”
aos professores primários (MORTATTI, 2006, p. 6).
As apropriações diferenciadas acerca do método analítico suscitaram acirrados em-
bates quanto à melhor forma de empregá-lo no ensino da leitura, assim como disputas
entre seus partidários e os defensores dos tradicionais métodos de marcha sintética. As
discussões continuaram enfocando o ensino inicial da leitura e o ensino da escrita con-
tinuou a ser compreendido como uma questão de caligrafia, que requeria treino. Foi
naquele momento, “já no final da década de 1910, que o termo “alfabetização” começa
a ser utilizado para se referir ao ensino da leitura e da escrita” (MORTATTI, 2006, p. 8).
Tais embates contribuíram para a fundação de uma nova tradição na qual o método
analítico passa a ser considerado como “a nova bússola” para o ensino da leitura e es-
crita envolvendo questões didáticas “como ensinar, a partir da definição de habilidades
visuais, auditivas e motoras da criança a quem ensinar” (MORTATTI, 2006, p. 8).
O terceiro momento, denominado por Mortatti (2006, p. 9) “A alfabetização sob
medida”, evidencia uma mudança em relação aos dois primeiros momentos, postulan-
do como ato fundador a relevante contribuição de Lourenço Filho com a criação dos
Testes ABC para verificação da maturidade necessária ao aprendizado da leitura e
escrita que, a partir de “novas e revolucionarias bases psicológicas da alfabetização”,
focaliza a atenção no nível de maturidade da criança para aprender a ler e a escrever,
relativizando a preocupação com os métodos de ensino, passando a utilizar os méto-
dos mistos ou ecléticos, evidenciando uma mudança em relação aos dois primeiros
momentos.
Naquele período, os problemas da alfabetização eram associados à ênfase demasia-
da nos métodos de ensino, o que possibilitou a repercussão e a longevidade dos Testes
ABC, cuja primeira edição ocorreu no ano de 1934 e a última em 1974, confirmando

21
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sua validade e relevância para o período em destaque e inaugurando o terceiro mo-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO mento de constituição da alfabetização como objeto de estudo. Mortatti (2006) sa-
lienta a continuidade da produção de cartilhas durante o período, marcadas por um
ecletismo metodológico em resposta aos impasses gerados pela adoção de um só mé-
todo – sintético ou analítico – generalizando o uso de cartilhas com os denominados
métodos “misto” ou “eclético”, que passam a ser acompanhadas pelo manual do pro-
fessor e precedidas pelos exercícios do chamado período preparatório.
A nova tradição fundada refere-se ao “como ensinar subordinado à maturidade
da criança a quem se ensina; as questões de ordem didática, portanto, encontram-se
subordinadas às de ordem psicológica” (MORTATTI, 2006, p. 10).
O quarto momento estudado por Mortatti (2000), intitulado “Alfabetização: cons-
trutivismo e desmetodização”, caracteriza-se pelo questionamento da tradição fundada
no período anterior, deslocando a ênfase das discussões em torno dos métodos de
ensino e do nível de maturidade para aprender a ler e a escrever para o processo de
aprendizagem da criança.
Esse deslocamento decorre “de novas urgências políticas e sociais que se fizeram
acompanhar de propostas de mudança na educação, a fim de se enfrentar, particular-
mente, o fracasso da escola na alfabetização de crianças” (MORTATTI, 2006, p. 10).
Diante desse quadro, o início da década de 1980 torna-se palco de uma “revolução
conceitual” no campo da alfabetização com a introdução do então chamado construti-
vismo, a partir das pesquisas sobre a psicogênese da linguagem escrita desenvolvidas
por Emília Ferreiro e seus colaboradores, provocando, na acepção de Mortatti (2000;
2006), um processo de desmetodização da alfabetização e o questionamento acerca da
necessidade de utilização das cartilhas.
Essa proposta vem responder aos anseios por uma escola democrática, que possibi-
litaria a erradicação do analfabetismo no Brasil, servindo de fundamento ao chamado
ciclo básico de alfabetização, que vem deslocar a ênfase para o processo de aprendi-
zagem, o papel do professor e da escola, secundarizando os “tradicionais” métodos e
procedimentos de ensino que, no entanto, continuam a coexistir com essa “revolução
conceitual” no âmbito da alfabetização. É preciso evidenciar que foi sobre o ciclo bási-
co que incidiu o foco de atenção das normatizações e concretizações do período. Em
relação às tematizações, congregou-se um discurso não mais técnico e sim acadêmico-
científico, propalam Vieira, Mendonça e Schelbauer (2005) ao resenharem o livro de
Mortatti (2000).
Sobre esse período, a autora ainda aponta a emergência do pensamento interacio-
nista em alfabetização, ressaltando as tematizações de Smolka:

22
Fundamentando-se na relação entre pensamento e linguagem de acordo com Apontamentos sobre a
as teorias de L. S. Vygostky, M. Bakhtin e M Pêcheux, e propondo um “confron- história da alfabetização
to” pedagógico-epistemológico com os resultados das pesquisas de Ferreiro,
Smolka aborda a alfabetização como um processo discursivo, enfocando as rela-
ções de ensino como fundamentais nesse processo e deslocando a discussão de
como para por quê e para quê ensinar e aprender a língua escrita na fase inicial
de escolarização das crianças (MORTATTI, 2000, p. 275).

Assinala para a fundação de outra tradição em torno do processo de desmetodiza-


ção da alfabetização, a qual gerou, dentre as muitas apropriações, “certo silenciamento
a respeito das questões de ordem didática e, no limite, tendo-se criado um certo ilu-
sório consenso de que a aprendizagem independe do ensino”. E, menciona, dentre a
multiplicidade de aspectos que caracterizam esse período, a emergência em torno do
letramento “entendido ora como complementar à alfabetização, ora como diferente
desta e mais desejável, ora como excludentes entre si” (MORTATTI, 2006, p. 11-12).
Quanto à emergência do letramento, recorreremos a Soares (2004, p. 5) para iden-
tificar a necessidade de “invenção” do termo:

É curioso que tenha ocorrido num mesmo momento histórico, em sociedades


distanciadas tanto geograficamente quanto socioeconomicamente e cultural-
mente, a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de
escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resul-
tantes da aprendizagem do sistema de escrita.

Foi diante dessa necessidade que a década de 1980 presenciou, simultaneamente,


“a invenção do letramento no Brasil, do illetrisme, na França, da literacia, em Portu-
gal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetização, alphabéti-
sation” (SOARES, 2004, p. 6).
A autora informa que, apesar da palavra literacy já fazer parte dos dicionários de
língua inglesa desde o final do século XIX e, portanto, presente nos Estados Unidos e
na Inglaterra desde aquele período, foi também na década de 1980 que ela se tornou
foco dos debates na área educacional e no campo da linguagem.
Destarte, se há coincidência em relação ao momento histórico do surgimento do
termo letramento, “o contexto e as causas dessa emersão são essencialmente diferen-
tes em países em desenvolvimento, como o Brasil, e em países desenvolvidos como a
França, Estados Unidos, a Inglaterra”. Para explicar a diferença fundamental, destaca
que a mesma “está no grau de ênfase posta nas relações entre as práticas sociais de
leitura e escrita e a aprendizagem do sistema de escrita” (SOARES, 2004, p. 6).
Em países desenvolvidos, com a totalidade da população alfabetizada, a cons-
tatação da falta de domínio das práticas de leitura e escrita necessárias para a vida
em sociedade adquire a proporção de problema relevante, daí a preocupação com
o letramento e não com a alfabetização. No Brasil, a importância atribuída ao “uso

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, competente da leitura e da escrita tem sua origem vinculada à aprendizagem inicial da
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO escrita, desenvolvendo-se basicamente a partir de um questionamento do conceito de
alfabetização” (SOARES, 2004, p. 7).
Com isso, a discussão do letramento no Brasil surge enraizada ao conceito de
alfabetização:

[...] o que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta na produção


acadêmica, a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com
prevalência do conceito de letramento, [...] o que tem conduzido a um certo
apagamento da alfabetização que, talvez com algum exagero denomino de de-
sinvencao da alfabetização (SOARES, 2004, p. 8).

Dentre as causas apontadas pela autora para a desinvenção da alfabetização, está


a perda da especificidade do termo mediante o fenômeno de mudanças de paradigmas
teóricos no campo da alfabetização a partir da década de 1980 que podem ser resu-
midas da seguinte forma: “um paradigma behaviorista, dominante nos anos de 1960 e
1970, é substituído, nos anos de 1980, por um paradigma cognitivista, que avança, nos
anos de 1990, para um paradigma sociocultural” (GAFFNEY; ANDERSON, 2000, p. 57
apud SOARES, 2004, p. 9-10).
Se por um lado essas mudanças paradigmáticas trouxeram incontestáveis contri-
buições para a área da alfabetização no que se refere ao caminho da criança para se
apropriar da linguagem escrita, a autora adverte sobre a necessidade de reconhecer-
mos os equívocos e as falsas inferências geradas no processo de apropriação dessas
concepções teóricas, o que pode explicar a perda da especificidade do processo de
alfabetização (SOARES, 2004).
Diante do quadro de contribuições, de apropriações equivocadas e das necessida-
des impostas no campo da alfabetização, Soares (2004, p. 14) argumenta que dissociar
alfabetização e letramento constitui-se em um equívoco, pois:
No quadro das atuais concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas
de leitura e da escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no
mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aqui-
sição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvol-
vimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita,
nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento.

Como processos interdependentes e indissociáveis, à medida que a alfabetiza-


ção se desenvolve em um contexto de letramento e este se realiza em dependência
da alfabetização, Soares (2004, p. 15) aponta a necessidade de promover a recon-
ciliação entre essas duas dimensões da aprendizagem da leitura e da escrita, “inte-
grando alfabetização e letramento, sem perder, porém, a especificidade de cada um
desses processos, o que implica reconhecer as muitas facetas de um e de outro”.

24
Por fim, a autora advoga a necessidade de reconhecermos: Apontamentos sobre a
história da alfabetização

[...] a especificidade da alfabetização, entendida como processo de aquisição e


apropriação do sistema de escrita, alfabético e ortográfico; em segundo lugar,
e como decorrência, a importância de que a alfabetização se desenvolva num
contexto de letramento [...]; em terceiro lugar, o reconhecimento de que tanto
a alfabetização quanto o letramento tem diferentes dimensões [...]; em quarto
lugar, a necessidade de rever e reformular a formação dos professores das séries
iniciais do ensino fundamental (SOARES, 2004, p. 16).

Considerações acerca das contribuições da história da


alfabetização
Ao finalizarmos este capítulo e olharmos para o caminho que a humanidade per-
correu para desenvolver seus sistemas de escrita, é importante lembrarmos a seme-
lhança com a história do desenvolvimento da linguagem escrita na criança. De acordo
com Vygotsky (1989, p. 121), a origem desse processo se inicia na pré-história do
“desenvolvimento das formas superiores do comportamento infantil [...]”. Para o au-
tor, inicia-se “com o aparecimento dos gestos como um signo visual para a criança”,
passa pelo desenvolvimento do simbolismo do brinquedo, pelo desenvolvimento do
simbolismo do desenho para alcançar o simbolismo da escrita.
Vygotsky (1989, p. 129-131) observou que as crianças em idade escolar tendem
a “mudar de uma escrita puramente pictográfica para uma escrita ideográfica, onde
as relações e significados individuais são representados através de sinais simbólicos
abstratos”. Afirmou ser esse processo decisivo para o desenvolvimento do simbolismo
na escrita da criança, para o qual ela terá ainda “de evoluir no sentido do simbolismo
de segunda ordem, que compreende a criação de sinais escritos representativos dos
símbolos falados das palavras”. Constatou também que, para que a criança aprenda a
escrever, ela necessita fazer uma descoberta básica, mas essencial, “a de que se pode
desenhar, além das coisas, também a fala”.
Hoje, ao reconhecermos que o desenvolvimento da linguagem escrita na criança
“começa muito antes da primeira vez em que o professor coloca um lápis em sua mão
e lhe mostra com formar letras” (LURIA, 1988, p. 143), temos um importante conhe-
cimento para subsidiar o encaminhamento do processo de ensino e de aprendizagem
da linguagem escrita para alfabetizarmos!
Essas e tantas outras contribuições acerca dos processos de alfabetização e letramen-
to, envolvendo desde sua história, seus referenciais teóricos, encaminhamentos me-
todológicos tendo como foco o ensino, a aprendizagem e a própria linguagem escrita
evidenciam que nossa época possui uma soma infinitamente maior de conhecimentos.
Foi com esse intuito que a escrita deste capítulo indagou sobre a história da alfa-
betização, dos diversos sentidos a ela atribuídos e das contribuições significativas que

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, a nossa época trouxe à área. Foram inegáveis as contribuições do passado e são ine-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO gáveis as contribuições do presente, como um processo histórico, já que cada época
produziu o conhecimento acerca da alfabetização em resposta ao desafio de ensinar as
novas gerações a ler e a escrever.
O desafio para nós, professores em exercício ou em processo de formação inicial
e continuada, consiste em reconhecermos a necessidade do aprofundamento teórico-
prático no campo da alfabetização e do letramento a fim de enfrentarmos, parafrasean-
do Soares (2004), “o reiterado fracasso escolar na aprendizagem inicial a língua escrita
nas escolas brasileiras”.
Nas palavras de António Nóvoa (1992, p. 219) encontramos a explicação e a mo-
tivação de retornarmos ao passado acerca de um tema que parece sempre nos exigir
os olhos voltados ao presente. O educador português esclarece, com a perspicácia de
historiador da educação, que são as questões do presente que devem orientar nossa
interrogação ao passado, “de forma a que ao esforço de compreensão histórica corres-
ponda uma intervenção mais consciente na realidade educativa”.
Com uma intervenção mais consciente da realidade da alfabetização no Brasil e dos
conhecimentos necessários para encaminhar o desenvolvimento do ensino e da apren-
dizagem da leitura e da escrita, contribuiremos com uma das condições fundamentais
para o processo de emancipação humana.  

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ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO 119-135.

Proposta de Atividade

A partir da leitura do capítulo, realize as seguintes atividades:


1) Organize um quadro contendo os principais aspectos da história da alfabetização no Brasil
até os dias atuais.
2) Disserte sobre a relevância do estudo da história da alfabetização para a formação inicial do
futuro professor mediante os desafios de alfabetizar e letrar na atualidade.

Indicações de Leitura:

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização: São Paulo


1876/1994. São Paulo: Editora da Unesp; Conped, 2000.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. História dos métodos de alfabetização no Brasil.


In: SEMINÁRIO ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO EM DEBATE, 2006, Brasília, DF.
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28
Apontamentos sobre a
história da alfabetização

Anotações

29
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

30
2 Formação e atuação do
professor alfabetizador
Marieta Lúcia Machado Nicolau

As políticas públicas na área educacional devem ter como uma de suas metas a for-
mação do professor, particularmente do professor alfabetizador. Essa formação precisa
cuidar da aquisição de conhecimentos fundadores para o desenvolvimento profissio-
nal os quais propiciam ao indivíduo uma atuação fundada em conhecimento científico
e impregnada de dedicação, envolvimento no âmbito da sala de aula, junto a seus
pares, famílias e comunidade.
Nessa formação, que tem o caráter de ser continuidade da formação primeira e que
se dá em serviço, é preciso considerar a natureza do espaço escolar. A escola, devido
à diversidade e heterogeneidade que apresenta, é um fórum privilegiado de atuação;
nessa instituição há pessoas de diferentes faixas etárias; de níveis socioeconômicos di-
versos; experiências várias de escolaridade e mesmo de vivências diferentes fora desse
alcance; umas estão na escola há muito tempo; algumas há menos tempo; outras são
ingressantes; há professores bem sucedidos, outros nem tanto. Esses fatores interferem
na motivação para o trabalho docente e indicam também a variabilidade e a singularida-
de das experiências de cada pessoa, das equipes que compõem a instituição educativa.
Os conhecimentos, as percepções da realidade, as visões de mundo, as conceituações
sobre o papel da educação e da escola podem diferir muito entre os professores.
Por outro lado, o tipo de gestão da escola corrobora para criar um determinado ’cli-
ma’: diretivo demais, tolhendo a criatividade, a iniciativa e a vontade de se conseguir
mudanças que aprimorem a ação educativa; ou, por outro lado, desarticulado, em que
cada um faz o que bem entende, trazendo insegurança aos envolvidos e dificultando
a consecução de objetivos comuns. Neste sentido, Vieira (2001, p. 8-9) pontua que:

Os diretores de escolas, coordenadores pedagógicos, professores e todos aque-


les que, de uma forma ou de outra, participam da gestão escolar, não raro,
perdem o norte e sentem falta de elementos que lhes propiciem pistas para
lidar com as complexas dimensões da realidade que o cercam.

São muitos os desafios que a gestão da escola tem que encarar: resgatar a função
social da escola, elaborar o projeto pedagógico, encaminhar a avaliação institucional,
entre outros. Para serem enfrentados esses desafios necessitam que a ação educativa

31
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, se dê com a adesão dos “atores” da escola. Daí a importância da formação continuada
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO dos professores ( VIEIRA, 2001).
A formação continuada pode ocorrer em serviço, enquanto os professores estão
desenvolvendo a sua ação educativa. Ela permite que os problemas sejam discutidos e
superados e que novas metas sejam propostas para enfrentar as dificuldades que sur-
gem no cotidiano da escola. O próprio professor pode detectar quais são os aspectos
em que necessita ser ajudado ou que podem ser objeto de trabalho por um grupo
de educadores, por todos eles ou, ainda, por toda a equipe da escola. Esse tipo de
formação pressupõe uma proposta de capacitação que não cessa e que pode se dar
sob a forma de seminários, cursos, oficinas, observações direcionadas a determinados
objetivos, projetos, discussões de textos sobre temáticas educacionais, audiência a pa-
lestras e mesas-redondas, e ainda treinamento mediante meios digitais.
O importante é que a formação continuada em serviço contribua para que o grupo
de educadores da escola se torne uma equipe coesa em torno de ideias comuns de
educação relativos: à função social da escola; ao compromisso com o Projeto Pedagó-
gico; aos métodos de alfabetização em questão; às experiência em alfabetização; às
reflexões acerca do momento ideal para alfabetizar as crianças; crianças escritoras e
leitoras.

A função social da escola


Refletir sobre a função social da escola é um tema, segundo Penin e Vieira (2002),
muito frequente na formação de professores. As transformações ocorrem sem prece-
dentes em nosso tempo e o conhecimento é muito importante na organização social e
econômica atuais. Novas exigências trazem à escola novas atribuições.
De acordo com as citadas autoras, a humanidade criou a instituição escola para
socializar o saber sistematizado. No entanto, sua função social varia de acordo com
os “[...] diferentes momentos da história, às culturas de países, regiões e povos” (PE-
NIN; VIEIRA, 2002, p. 13). Mas, há elementos comuns ao processo de transmissão de
conhecimentos, valores e formas de convivência social que constituem a essência da
tarefa escolar.
Por que a função social da escola é conhecimento importante ao professor alfabe-
tizador? Justamente porque as instituições de ensino precisam se abrir ao mundo, ao
seu redor. Hoje, a escola, como um empreendimento social coletivo, não pode des-
considerar o que ocorre fora de seu âmbito. Assim, quando a criança “lê”, mesmo antes
de estar alfabetizada, os cartazes de seu entorno, está penetrando no que compõe o
seu cotidiano social; quando vê jornais e revistas nas bancas, cartazes nas padarias,
açougues, parques, ônibus, está absorvendo aspectos dos grupos sociais com os quais

32
interage direta e indiretamente. Tudo isso influencia suas experiências enquanto es- Formação e atuação do
professor alfabetizador
critora e leitora.
Portanto, se as atividades da escola se limitarem à transmissão de conteúdos res-
tritos, desvinculados da realidade, as possibilidades das crianças de criar, imaginar e
compreender o mundo serão muito mais limitadas.

Compromisso com o Projeto Pedagógico


Em relação ao projeto pedagógico, Sousa e Corrêa (2002) definem bem seu signifi-
cado ao colocar o aposto no título de seu texto: A autonomia construída no cotidiano
da escola. Para eles, o projeto pedagógico deve refletir o que a sociedade espera da
escola. Assim, para ser contemporânea ao que a sociedade demanda como formação
dos indivíduos, a escola precisa assumir a sua função na formação de cidadãos au-
tônomos, reflexivos e solidários socialmente e não meramente a de transmissão de
conteúdo. Para que os alunos desenvolvam o senso crítico, os próprios professores
devem avaliar as suas práticas pedagógicas para verificar se estão se deparando com
uma escola democrática, inclusive se seus objetivos estão sendo alcançados. É compre-
ensível, neste sentido, que nos deparemos também com a expressão Projeto Político
Pedagógico. Entendemos, no entanto, ser impossível dissociar os aspectos políticos do
projeto pedagógico.
Também é necessário que o projeto pedagógico seja um instrumento real de tra-
balho que o professor utiliza diariamente. De nada adiantará existir na escola sem ser
reflexo da crença dos educadores e sem ser de fato utilizado.
Sousa e Corrêa (2002) mostram a complexidade dessa problemática e chamam a
atenção para os reducionismos e jargões presentes nos projetos pedagógicos, convidan-
do o leitor para um questionamento acerca da organização do trabalho pedagógico. Os
autores propalam que a prática escolar precisa ser percebida tanto no contexto interno
da escola como em uma dimensão maior, articulando-se com a sociedade mais ampla.
Para tanto, a escola precisa identificar quais são seus principais desafios, partindo de sua
realidade e das expectativas dos sujeitos envolvidos. Por se tratar de um trabalho cole-
tivo, é necessário se ter muito respeito aos atores envolvidos nas práticas educativas.
Os autores indicam três eixos de análise para a reflexão da prática pedagógica:
(a) gestão da escola; (b) a concepção de que a democratização escolar implica
um novo olhar sobre a organização do trabalho pedagógico; (c) a gestão de-
mocrática do espaço da sala de aula, percebendo o pedagógico em seus vários
aspectos (SOUSA; CORRÊA, 2002, p. 48).

O projeto pedagógico é um instrumento que possibilita todo o planejamento da


escola. Há aspectos bastante diversos que o envolvem. Um deles é tomar a legislação

33
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, como o principal indicador de delegação de autonomia às escolas. Outro aspecto é a
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO constituição do projeto por meio de uma construção paulatina, contínua, dialogada,
em que diferentes pontos de vista dos envolvidos são analisados, ponderados até que
se chegue a um posicionamento que expresse as opiniões da maioria dos participantes
de um grupo, com aberturas constantes para as mudanças que se fizerem necessárias.
Para Vasconcellos (1995, apud SOUSA; CORRÊA, 2002, p. 51), o projeto pedagó-
gico, nunca definitivo, resulta de um processo de planejamento participativo, que se
concretiza à medida que vai se desenvolvendo e que deixa claro o que se pretende
realizar para a transformação da realidade. Há uma dialética de continuidade-ruptura,
que necessita de elementos novos para obter avanços significativos.
O projeto pedagógico da escola precisa considerar as demandas sociais “apresen-
tadas a uma instituição competente, democrática e de qualidade” (SOUSA; CORRÊA,
2002, p. 52). Para articular as demandas sociais, é necessário respeitar a prática dos
sujeitos que constroem o projeto pedagógico e o que eles têm a dizer. O projeto
pedagógico pode levar a instituição escolar a definir, mudar e/ou reforçar a sua identi-
dade. Vasconcelos (1995 apud SOUSA; CORRÊA, 2002, p. 52) expõe que ao se propor
uma mudança, a maior dificuldade é sustentá-la. Por isso destaca a importância da
participação dos professores em sua elaboração e implantação. Por isso, também, os
movimentos de elaboração do projeto pedagógico devem considerar o cotidiano da
escola.

Os métodos de alfabetização em questão


Outro tema indispensável na formação e atuação do professor alfabetizador diz
respeito à “velha” discussão sobre os métodos e uso da cartilha enquanto material de
apoio aos professores, alfabetizandos e famílias. Essa discussão relativa aos métodos
de alfabetização ocorre a partir do que propõe a pedagogia tradicional da alfabetização
que concebe a linguagem como código. Nessa visão, os atos de ler e escrever se res-
tringem a decodificar ou codificar, sendo os métodos mais recorrentes os de marcha
sintética e analítica.
Almeida (2002, p. 14) lembra que, na perspectiva dos métodos sintéticos,
[...] parte-se dos menores elementos da língua, quais sejam sons, letras e sí-
labas, para atender a uma possível atividade somatória, os analíticos supõem
a percepção humana da realidade como a de um todo: indiferenciado, que
posteriormente é discriminado em partes.

Em síntese, pelo método sintético, por meio de junções de letras em sílabas, de


sílabas em palavras, o alfabetizando chega à frase e ao texto. Pelo método analítico
apresenta-se uma palavra-chave e dela se destacam a sílabas-chave, que ao serem

34
relacionada com outras sílabas formam novas palavras. Formação e atuação do
professor alfabetizador
Apesar de encontrarmos grandes diferenças entre os métodos e de estes se apoia-
rem em diferentes concepções de aprendizagem e desenvolvimento, eles utilizam dife-
rentes estratégias: auditiva para uns, visual para outros. É importante frisar que ao en-
fatizar as habilidades perceptivas, tais métodos descuidam de aspectos fundamentais,
como a competência linguística das crianças e suas capacidades cognoscitivas.
As “cartilhas” são recursos que facilitam colocar os métodos analíticos e sintéticos
em prática. Seus textos visam essencialmente à decifração de letras e sílabas, descon-
siderando as experiências dos leitores; trazem repetições enfadonhas devido à preo-
cupação com a formação de automatismos. Essas são algumas das críticas ao uso de
cartilhas para alfabetizar as crianças elaboradas por Emília Ferreiro, piagetiana, pes-
quisadora argentina e radicada no México, que trouxe, junto com colaboradores, uma
inestimável contribuição teórica a respeito da aquisição da leitura e escrita.
Em suas pesquisas sobre a psicogênese da linguagem escrita, Ferreiro (1988) pro-
curou compreender o desenvolvimento da leitura e da escrita do ponto de vista dos
processos de apropriação de um objeto socialmente constituído (e não do ponto de
vista da aquisição de uma técnica de transcrição) e buscou ver se havia modos de orga-
nização relativamente estáveis que se sucediam em certa ordem. Pôde constatar que,

[...] há uma série de modos de representação que precedem a representação


alfabética da linguagem; que esses modos de representação pré-alfabética se
sucedem em certa ordem; primeiro, vários modos de representação, alheios a
qualquer correspondência entre a pauta sonora de uma emissão e a escrita; de-
pois, modos de representação silábico-alfabéticos que precedem regularmente,
a aparição da escrita regida pelos princípios alfabéticos (FERREIRO, 1988, p.
9-10).

Para Ferreiro (1988), a alfabetização precisa ser considerada como um processo


ativo de reconstrução da língua e do conhecimento. Assim, quando erra, a criança está
testando hipóteses, experimentando. É o que acontece nos textos espontâneos, nos
quais a escrita e a leitura têm grande significado para a criança. É a construção desses
significados que deve orientar todas as práticas alfabetizadoras na interação das crian-
ças com seu entorno; na interação com elas e entre elas.
Para isso, segundo Nicolau (2003, p. 214),

[...] a aprendizagem da leitura e da escrita deve se dar numa atmosfera de ale-


grias, auto-realizações, construções, descobertas e trocas constantes de experi-
ências. E o processo de conhecimento vai se socializando naturalmente entre
as crianças e entre elas e o professor.

Da mesma forma que as atividades podem variar no âmbito da sala de aula, é impor-
tante que sejam introduzidas fora da sala, que os espaços do pátio sejam aproveitados

35
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, diariamente pelas crianças e que as experiências auferidas possam se reverter em di-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO versos tipos de relatos e representações. Assim, escrever, sobre o que foi desenvolvido
no recreio, ou em uma excursão, desenhar, pintar, recortar e colar, dramatizar, falar do
que mais gostou de fazer ou sobre o que não foi agradável, propor novas brincadeiras,
levantar problemas e pensar em solução para resolvê-los são atividades que levam os
alunos a sentir prazer em conversar e, ao mesmo tempo, a valorizar suas próprias ex-
periências e as vivenciadas pelos colegas.
Assim, Nicolau (2003, p. 215) afirma que as crianças se tornam prazerosamente
leitoras e produtoras de textos, na acepção de Jolibert (1994). A prática da leitura e da
escrita, em situações sempre contextualizadas, com função social clara, permitirá que
as crianças busquem a compreensão do texto e compartilhem-na com seus parceiros,
indo além de sua simples decifração.
Ao ensino cabe desafiar o aluno para que tenha acesso a novas aprendizagens e a
instauração de um clima de letramento na escola e na sala de aula, através de “eixos
diferentes e complementares: linguagem oral, produção de textos, leitura e domínio da
base alfabética e das convenções gráficas” (SCHMIDT; MARQUES; COSTA, 2003, p. 195).

Uma experiência em alfabetização


A partir de 1986, desenvolvemos um projeto de pesquisa intitulado “Alfabetização
sem Cartilha”, propiciando situações para as crianças aprenderem a ler e a escrever,
com base em seus interesses e vivências, descartando a criação de meros automatis-
mos. Conhecer alguns aspectos referentes à implementação desse projeto pode propi-
ciar à formação e à atuação do professor alfabetizador a análise de um estudo de caso
(NICOLAU, 2003).
Essa pesquisa deu-se em duas escolas – uma municipal e outra particular. Na es-
cola municipal, as crianças não haviam frequentado a educação infantil e as idades
variavam de 8 a 12 anos. A escola apresentava precárias condições físicas, o número de
alunos em sala era 35, os quais apresentavam ricas experiências de vida (brincadeiras
na rua, invenção de brinquedos, trabalhos domésticos, carreto de feiras, assistência
aos irmãos menores), mas a natureza dessas atividades era completamente diferente
da propiciada pela escola.
A oralidade foi intensamente trabalhada com essa turma de 1ª série. Os depoimen-
tos, publicados em Nicolau (2003), escolhidos aleatoriamente, mostram as imagens
sobre a situação de sua escola e a importância ao aprender a ler e escrever que essas
crianças e suas famílias construíram:
Tem que limpar, estudar muito, matar ratos, tirar sujeira da parede, dos vi-
dros, comprar carteira e banco. Se não aprender a ler vai ter que marcar com
o dedo.

36
Formação e atuação do
É boa para escrever e ler e passar de ano e ser bom trabalhador. Só que as professor alfabetizador
classes estão estragadas [...]. Não estou gostando porque passo frio [sala de
madeira com frestas].

Quero passar de ano para trabalhar no Duque Viana [supermercado]. Mesmo


que ganhar mixaria, melhor do que nada, né tia?

A escola particular atendia a uma clientela de nível socioeconômico médio e alto,


em sua maioria. Quase todas as crianças matriculadas na 1ª série tinham entre 6 e 7
anos de idade e haviam frequentado dois ou três anos de Educação Infantil. A maioria
desenvolvia alguma atividade extraescolar (judô, natação, tênis, artes, dança...).
Foi muito adequado começar a alfabetização sem cartilha, trabalhando a identida-
de de cada criança. No início, cada criança foi convidada a dizer o seu nome e o das
professoras. Logo surgiram várias histórias de vida, tanto das crianças como de seus
familiares. Nelas apareciam semelhanças e diferenças no que diz respeito ao lazer, sen-
timentos, medos, programas de TV preferidos, trabalhos que realizavam, etc.
A primeira frase que surgiu foi: “Eu sou o...; Eu sou a...” Além de escreverem na
lousa as frases, as professoras as escreviam nos cadernos das crianças. Algumas crian-
ças conseguiam copiar as frases; as que não conseguiam eram estimuladas a escrever
do jeito que soubessem; outras pediam à professora que escrevesse para elas passarem
o lápis por cima. Um bom número de crianças representava os respectivos nomes
valendo-se de bolinhas, traçados ou outros tipos de representações.
Toda resposta das crianças era aceita como um ponto de partida para os progressos
que precisavam ocorrer e que, de fato, aconteceram. O trabalho com a oralidade era
intenso. Alguns alunos começaram a perceber que o que diziam podia ser escrito.
Outros alunos observavam seus colegas e verbalizavam que se eles escrevessem com
bolinhas, ninguém conseguiria ler.
Cartazes com palavras escritas eram fixados na sala. Notícias de jornais e revistas
eram lidas diariamente, sempre sugerindo que as crianças fizessem representações e
se familiarizassem com o escrito. Diariamente, os alunos relatavam situações em que
de alguma forma tinham entrado em contato com o mundo da escrita.
Nas frases, eram destacadas palavras significativas com as quais eram realizados
jogos para explorar as vogais, consoantes e sílabas. Chamávamos a atenção dos alunos
para a análise dessas palavras do ponto de vista visual e auditivo, para noções como
“antes de”, “depois de” e para os movimentos necessários à grafia das letras. Esses
aspectos eram exaustivamente trabalhados.
Houve um trabalho conjunto entre as classes que participavam do projeto Alfabeti-
zação sem Cartilha. Cada frase nova surgida era compartilhada com as demais classes

37
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, que participavam da pesquisa por meio de troca de mensagens. Diariamente, um alu-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO no era o mensageiro. Cada descoberta, cada pergunta considerada interessante pela
classe era compartilhada com a outra classe. E dessa forma, a função social da escrita
era intensamente vivenciada.
Questões teóricas que envolvem a aquisição da escrita, conforme indica Teberosky
(1989), eram exploradas para que as crianças compreendessem as regras do sistema
alfabético, as convenções que o regem (segmentação de palavras, ortografia, pontua-
ção) e outros pontos que viessem a estimular a interpretação e o uso da variedade da
linguagem escrita.
Com as professoras discutíamos os saberes básicos da alfabetização, como os in-
dicados por Lemle (1987): a formação do conceito de símbolo; a discriminação das
formas das letras; a discriminação dos sons da fala; a consciência da unidade palavra e
a organização da página escrita.
O fato é que, no decorrer de um ano letivo, mediante muito empenho e criativi-
dade das professoras e das próprias crianças, os resultados obtidos nas duas escolas
foram altamente compensadores. Os alunos escreveram belos textos e foi editado um
livro que foi oferecido a cada criança, intitulado Nossas Primeiras Histórias. Na co-
memoração de entrega dos livros, um aluno, expressando a importância do trabalho
realizado, disse: ”Agora, posso ensinar a minha mãe a ler”.

Reflexões acerca do “momento ideal” para alfabetizar as


crianças
Outra questão a abordar na formação do professor alfabetizador refere-se ao
momento ideal para alfabetizar as crianças. A alfabetização precoce tem despertado
polêmica entre educadores, familiares, psicólogos e médicos. Uma interessante ma-
téria1 foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo sobre esse tema. Nela, um dos
articulistas – Andrei Netto, correspondente desse jornal em Paris – mostra que esse
é um tema em aberto entre professores, pedagogos e psicólogos. Tem havido muita
discussão indicando que o uso de novas mídias para crianças (jogos educativos,
desenhos animados, games, programações de TV, DVD e internet) as deixaria aptas
a ler e escrever mais cedo. Ele informa que nos países nórdicos os desenhos são
legendados.
Na mesma matéria, é citado o educador e pesquisador do Laboratório de Didática

1 A matéria apresenta dois artigos: IWASSO, Simone. Escolas particulares começam a alfabetizar
alunos a partir dos 3 anos; NETTO, Andrei. Educadores europeus divergem sobre idade para
começar o ensino formal. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 dez. 2009. Vida &, p. A14.w

38
e Epistemologia das Ciências da Universidade de Genebra, André Giordan, o qual Formação e atuação do
professor alfabetizador
entende que, desde muito jovem, a criança sente o desejo de decifrar a escrita para
ter acesso às informações.
Essa posição não é unânime. Uma corrente da pedagogia e da psicologia ainda
acredita que, antes dos 6 ou 7 anos, as crianças não estão maduras o suficiente para
tal carga de esforço cognitivo. Argumenta-se que há algumas bases importantes a se
adquirir antes da aprendizagem da leitura e da escrita.
Neste sentido, uma primeira questão para reflexão é a de que é preciso considerar,
para o processo de alfabetização, “uma criança real e de verdade e não uma crian-
ça utópica e abstrata” (BRANDÃO; PASCHOAL, 2009, p. 13), bem como valorizar a
“construção do conhecimento e não a acumulação de informações” para favorecer o
desenvolvimento e a aprendizagem da criança. Para Batista (2009, p. 70-71), também é
necessário observar que “a construção do conhecimento implica a ação sobre os obje-
tos, mas essa ação nunca é puramente cognitiva, pois nela intervêm em graus diversos
a afetividade, o interesse e os valores”.
Brandão e Paschoal (2009, p. 20) referem-se a Kramer (2006) quando esta autora
reconhece o direito da criança à educação, conceituando as crianças como “sujeitos de
cultura e história, sujeitos sociais”; reconhecendo, ao mesmo tempo “a singularidade
das ações infantis e o direito à brincadeira, à produção cultural, próprias da Educação
Infantil, mas que devem estar presentes no Ensino Fundamental”.
Convém destacarmos que na Educação Infantil cada momento se constitui em uma
vivência, cada objeto em uma oportunidade de busca, de experimentação e de desco-
berta. Isso, em nosso entender, só se torna possível mediante uma ação pedagógica
comprometida com a criança, suas características, necessidades e possibilidades de
produzir e interagir com a cultura (NICOLAU, 2003). Acrescentamos que esse posicio-
namento vale para os anos subsequentes ao Ensino Fundamental.
Lima (2001, p. 26), por sua vez, focaliza o meio como contexto de desenvolvimen-
to, compreendendo que não se trata somente do meio físico, mas fazem parte dele
práticas culturais, instrumentos e objetos pelas ideias que ventilam, pelas informações
que circulam.
Embora haja um ideal de que a criança receba da sociedade o que nela há de me-
lhor, é impossível desconsiderar que

Vivemos em um mundo difícil e complexo, que apresenta grandes problemas:


fome, crianças desnutridas e subdesenvolvidas, mortalidade infantil, crianças
abandonadas, marginalizadas, sem atendimento educacional e de saúde, crian-
ças sem habitação, sem lazer, sem roupas e tratadas sem dignidade (REDIN,
1994, p. 48 apud NICOLAU, 2000, p. 119).

39
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Filho e Garcia (2001 apud MORENO; PASCHOAL, 2009, p. 40) expõem que no
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Brasil está aceita a concepção de criança cidadã, mas que na realidade há muitos pro-
blemas que afetam a infância brasileira nos seus primeiros anos de vida, tais como:
“[...] o trabalho infantil, os maus-tratos, o abuso, a violência e a privação de direito ao
convívio familiar, como as crianças órfãs em abrigos”. Contudo, Nicolau (2000, p. 119)
assevera que:

[...] as experiências auferidas pelas crianças, as interações que elas mantêm


com as pessoas que lhe são próximas (familiares, professores, funcionários da
escola, colegas, amigos, vizinhos) ou até com aqueles que apenas são visualiza-
das em seu cotidiano, bem como as observações de coisas e de fenômenos que
compõem seu mundo, são fatores importantes aos processos de socialização
e, sem dúvida, influenciam suas representações, a tomada de consciência da
realidade e seus valores.

Tendo em vista que a escola é para a criança um local privilegiado para a aprendiza-
gem e o desenvolvimento, parece-nos imprescindível que os educadores considerem
sua participação ativa na escola, suas possibilidades, benefícios e problemas que essa
participação pode acarretar.
Segundo Brailovsky (2008, p. 17), há um consenso absoluto a respeito das “bon-
dades éticas” da participação educativa – família, docentes e alunos. O autor relaciona
várias formas de participação na escola: atuação nas reuniões de pais, estar a par das
comunicações entre escola e família, organização de materiais, oferecimento de ideias,
presença nas capacitações e planejamento de eventos. De acordo com o autor, a parti-
cipação dos alunos é desejável, além de ser indicador de avaliação, não no sentido de
“saber a lição”, mas do aluno que, em classe, pergunta, mostra interesse e é motivado.
Enfim, a ideia de participação democratiza a experiência escolar.
Entendemos ser necessário que o professor crie condições para que haja uma par-
ticipação geral, ficando sensível e observando as reações dos alunos de modo a captar
as suas necessidades, facilidades e dificuldades. Assim, independentemente do nível
de produção dos alunos, todos devem ser estimulados a atingir níveis mais altos de de-
senvolvimento. Para isso, é preciso que diferentes pontos de vista de alunos e profes-
sores sejam respeitados e que tanto o pensamento convergente quanto o divergente
devem encontrar eco na escola.
Temos procurado enfatizar, para a formação e atuação do professor alfabetizador, a
importância do entendimento da concepção de criança, fundamentada em pesquisas
e estudos, a importância de aproveitar cada oportunidade para estimular o desenvol-
vimento das potencialidades infantis e as interações interpessoais. Salientamos o valor
da participação na escola, e sobretudo a necessidade de uma observação atenta por
parte do professor em relação à forma como esta se dá.

40
Crianças escritoras e leitoras Formação e atuação do
professor alfabetizador
O desenvolvimento da criança e sua inserção no mundo que a cerca demandam a
aquisição da escrita e da leitura como condição para a compreensão da realidade e sua
transformação. Essa aquisição deve se dar de forma a considerar as múltiplas lingua-
gens da criança e o professor alfabetizador como um mediador, que apoia e desafia os
educandos para se interessarem e se sentirem felizes em construir o conhecimento,
valorizando a cultura como o bem maior a ser buscado pela escola.
A aquisição da escrita e da leitura se enriquece quando há ampliação do universo
cultural por meio das várias áreas do conhecimento. Neste sentido, Andrade e Marques
(2003, p. 39) afirmam que:

[...] diversificando as linguagens, podemos, efetivamente, acolher todas as


crianças no centro do nosso trabalho educativo; cantar, contar histórias, ma-
nipular objetos, construir, falar, ouvir, movimentar o corpo, passear, brincar
com as palavras, teatrar, imaginar, tirar sons... A eficiência do nosso trabalho
educativo está diretamente relacionada com a multiplicidade de linguagens que
utilizamos no nosso dia-a-dia.

Nessa mesma direção, destacamos a ludicidade, o prazer, a alegria, o culti-


vo da inteligência, o respeito à natureza como valores que devem estar presentes na
escola. As atividades mencionadas aguçam a curiosidade da criança e a levam a um
estado de alerta para tudo que a cerca no mundo físico e social. Mediante tal atitude, o
alfabetizando fica atento aos símbolos que compõem seu ambiente. Além disso, Abreu
(2001, p.18) propõe que

[...] é fundamental que o professor, ao propor situações da aprendizagem de


leitura e escrita, de matemática ou de qualquer outro conteúdo, não se esqueça
de que, enquanto os alunos aprendem conteúdos da matemática, aprendem
outras coisas, igualmente importantes, sobre sua condição de aprendiz, suas
potencialidades, sua capacidade para enfrentá-las ou não e o modo como o
fará.

Almeida (2002, p. 11) reporta-se à alfabetização como “a capacidade de uma crian-


ça ou adulto ler e escrever, ainda que com certa dificuldade”. A pesquisadora enuncia
que se trata de um momento específico de um processo que faz parte da aquisição do
conhecimento, implicando também no domínio de habilidades da leitura e escrita; e,
nesse âmbito, “ler é traduzir para a linguagem verbal, os caracteres gráficos, enquanto
escrever é codificar a língua escrita. Em ambos os casos, trata-se de dominar a relação
entre sons e grafemas”.
A autora pontua que para a pessoa alfabetizada, novos horizontes se abrem, os
quais extrapolam, em muito, o ato mecânico de codificar e decodificar. Acrescenta
que há a ideia corrente de que “o ato de ler estabelece a passagem da cegueira para

41
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, a visão, na medida em que a vida social está repleta de símbolos a serem decifrados”
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO (ALMEIDA, 2002, p. 11). Isto acontece porque a orientação do homem na sociedade
urbana moderna utiliza-se muito de símbolos. Almeida chama a atenção para o caso
do analfabeto que, pela via oral, pode dominar a cultura de um grupo social, além de
poder desempenhar uma atuação política e fazer-se entender.
Almeida (2002, p. 12), apoiada pelas contribuições de Soares (1985), pondera que
“os atos de ler e escrever são muito mais que transpor sons em letras; significa também
aprender, compreender significados em língua escrita (ler) ou expressar significados
por meio da língua escrita (escrever)”.

Considerações Finais
Todas essas reflexões, que são conteúdos da formação do professor alfabetizador
e devem permear a atuação desse profissional, vão além do restrito domínio do ob-
jeto de conhecimento que é a alfabetização e sua transposição didática. Embora esse
domínio seja essencial, ele deve estar configurado em um âmbito maior, que é o da
compreensão das finalidades da educação, da função da escola, da concepção de
infância e de criança. E ainda: o professor deve conhecer as teorias da aprendizagem
e todos os instrumentos de organização didática e pedagógica para o exercício da
função docente.
O modo como se dá essa formação deve considerar uma perspectiva crítico-reflexi-
va, construída com os professores para o desenvolvimento de um pensamento autô-
nomo, observada a construção coletiva de um projeto político-pedagógico, articulado,
integrado à realidade da escola, de seu entorno e de sua comunidade. Essa perspectiva
na formação do professor é a que deve também orientar a educação das crianças em
processo de alfabetização.

Referências

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Pedagógica, Porto Alegre, v. 4, n. 15, p. 17-21, nov. 2000/ jan. 2001.

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43
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, NICOLAU, Marieta Lúcia Machado. Escolarização e socialização na Educação infantil.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Acta Scientiarum, Maringá, v. 22, n. 1, p. 119-125, 2000.

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enfrentar. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 7-12.

Proposta de Atividade

1) Após lerem atentamente o texto, em grupo, reflitam sobre o projeto pedagógico de uma
escola pública de Ensino Fundamental, destacando a concepção de educação e de alfa-
betização. A partir dessas reflexões, elabore um texto dissertativo contendo as análises
do grupo.

44
Formação e atuação do
professor alfabetizador

Indicações de Leitura:

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez; Autores


Associados, 1988.

LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1987.

NICOLAU, Marieta Lúcia Machado. Escolarização e socialização na educação infantil.


Acta Scientiarum, Maringá, v. 22, n. 1, p. 119-125, 2000.

TEBEROSKY, Ana. Psicopedagogia da linguagem escrita. Tradução de Beatriz


Cardoso. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

Anotações

45
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

46
3 Alfabetização,
letramento e
educação infantil
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Heloisa Toshie Irie Saito

Neste capítulo, apresentaremos algumas reflexões a respeito de uma questão po-


lêmica que, de longa data, provoca incertezas entre os professores e demais profissio-
nais compromissados com a educação de crianças pequenas. Estamos nos referindo à
relação entre os processos de alfabetização e letramento e a educação infantil. É nosso
intuito, com este capítulo, trazer elementos que ajudam a esclarecer essa contenda e
orientar metodologicamente o trabalho pedagógico que envolve os processos de alfa-
betização e letramento a ser realizado nesse nível de ensino. Para tanto, pautando-nos
em Soares (1998), concebemos alfabetização como um processo de aprendizagem de
habilidades necessárias para os atos de ler e escrever e letramento como o estado ou a
condição do sujeito que incorpora as práticas sociais de leitura e escrita.
As reflexões a que nos propomos a apresentar sobre os processos de alfabetização
e letramento devem ser tratadas em relação às discussões realizadas nas três últimas
décadas acerca das finalidades da educação infantil, pois acreditamos haver corres-
pondência entre a função conferida à educação das crianças pequenas e a forma de
conceituar tais processos. A nosso ver, a compreensão dessa relação é esclarecedora
da polêmica supracitada.
Afirmamos isso porque, no Brasil, as discussões que envolvem as finalidades da
educação infantil e as que dizem respeito à redefinição do conceito de alfabetização
bem como de conceituação do fenômeno chamado letramento ocorreram simulta-
neamente e fazem parte do processo de democratização da educação brasileira. Elas
são respostas às necessidades sociais decorrentes do movimento de abertura política
de nosso país e de reorganização das instituições, principalmente públicas, ocorridas
a partir do final da década de 1970. Portanto, os estudos referentes às finalidades da
educação infantil e sobre alfabetização e letramento acompanham um discurso mais
amplo que busca soluções para os problemas educacionais brasileiros.

47
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, A confirmação da relação a qual nos referimos pode ser encontrada na produção
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO bibliográfica relativa à alfabetização e letramento voltada para a educação infantil1, que
teve, nas últimas três décadas, um significativo crescimento (LUCAS, 2008). Na análise
de 30 textos (1 livro, 18 capítulos de livros e 11 artigos), publicados entre 1980 e 2005,
que versam sobre a interseção entre as temáticas em questão, observamos que, depen-
dendo do modo como tais processos são conceituados ou criticados por seus autores,
considera-se função ou não da educação infantil alfabetizar e/ou letrar.
Quando o processo de alfabetização era conceituado como aprendizagem de um
código, semelhante ao momento em que no Brasil predominava o uso de métodos sin-
téticos e analíticos para alfabetizar, cabia à educação infantil, conforme críticas apon-
tadas por Góes (1984) e Souza (1989), realizar exercícios de coordenação motora, de
acuidade auditiva e visual, de orientação espacial e temporal, de copiar e juntar letras
e sílabas, ou seja, garantir a prontidão das crianças para a aprendizagem da leitura e
da escrita, que ocorreria somente no nível posterior de escolaridade. Trata-se, nesse
caso, segundo Kramer e Abramovay (1985), de uma educação infantil com função pre-
paratória, compromissada com o conceito de prontidão, com o objetivo de minimizar
dificuldades de aprendizagem e problemas de repetência e evasão escolar.
Na década de 1980, por intermédio das investigações realizadas por Ferreiro e
Teberosky (1985) a respeito da psicogênese da escrita, a alfabetização passou a ser
compreendida como um amplo e contínuo processo de construção, que tem início
antes de a criança ingressar na escola e envolve o reconhecimento das finalidades
da linguagem escrita, seus usos e funções. A partir dessa forma de conceituar o pro-
cesso de alfabetização, aliada ao movimento em prol de uma educação infantil com
função pedagógica, considerou-se que esse nível de escolaridade poderia favorecer o
processo de aprendizagem da leitura e da escrita à medida que promovesse contato
com o material escrito, priorizando seu sentido social (KRAMER; ABRAMOVAY, 1985).
Nessas condições, privilegiou-se a imersão no mundo da escrita e delegou-se o início
da sistematização necessária à apreensão do sistema de escrita para o nível posterior
de escolaridade.
A discussão a respeito da pertinência ou não de um trabalho que envolva a lin-
guagem escrita na educação infantil ganhou fôlego na atualidade em virtude do mo-
vimento de diferenciação do processo de alfabetização do fenômeno correspondente

1 Estamos nos referindo ao material bibliográfico correspondente à interseção entre educação


infantil e alfabetização, ou seja, que concomitantemente faz referência a essas duas áreas de
conhecimento.

48
à necessidade de, além de ler e escrever, saber usar socialmente essas habilidades – o Alfabetização, letramento
e educação infantil
letramento. Tal movimento defende a necessidade de, concomitantemente, ensinar as
crianças a ler e escrever e a utilizar a leitura e a escrita em diferentes situações sociais,
reconhecendo os processos de alfabetização e letramento como indissociáveis e inter-
dependentes, porém distintos.
Apesar de reconhecerem a distinção entre os processos de alfabetização e letramen-
to, concebendo o primeiro como aprendizagem da leitura e escrita enquanto técnicas
e o segundo como estado ou condição do sujeito imerso no mundo da escrita, alguns
autores que fazem referência ao processo de letramento posicionam-se de forma dife-
rente em relação à função da educação infantil. Para Junqueira Filho (2001) e Ostetto
(2004), há lugar na educação infantil para a linguagem escrita, pois a concebem como
um instrumento cultural, no entanto apregoam que se deve primar pelo letramento
e só se preocupar com a alfabetização se as crianças derem indícios de interesse por
ela. Nicolau (2003) defende que cabe à educação infantil estimular a aprendizagem da
leitura e da escrita, incluindo-as em um processo mais amplo – o letramento. Mello
(2005), Britto (2005) e Faria (2005) consideram que a educação infantil deve assumir
o letramento como uma de suas funções, deixando a tarefa de alfabetizar as crianças
para o Ensino Fundamental.
Em razão dessas divergências, apresentaremos a seguir algumas orientações meto-
dológicas sob a forma de sugestão de trabalho ou de relato de experiência, com dois
objetivos: localizar o leitor na discussão realizada no Brasil, nas últimas três décadas,
a respeito da pertinência de um trabalho pedagógico que envolva a linguagem escrita
na educação infantil e auxiliar o professor que atua com crianças pequenas a encami-
nhar sua prática, de forma intencional e sistemática, tendo em vista os processos de
alfabetização e letramento.

Algumas orientações metodológicas


Em textos publicados na década de 1980 encontramos poucas e breves orienta-
ções metodológicas, geralmente sob a forma de exemplos, situadas nas conclusões
ou nos meandros de questões teóricas que envolvem a redefinição do conceito de
alfabetização e da função da educação infantil. As poucas orientações metodológicas
encontradas nesses textos anunciavam a necessidade de buscar novos caminhos para
o trabalho pedagógico na educação das crianças pequenas em relação à alfabetização,
que, naquele momento, começava a ser compreendida em sentido amplo.
Aliás, essa foi a marca da maioria dos textos publicados na década de 1990, pois
usufruíram dos amplamente divulgados estudos de Ferreiro e colaboradores. Muitas
vezes, como justificativa para propor ou relatar uma prática planejada e sistematizada

49
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, que envolvia a linguagem escrita, tais textos retomavam reflexões a respeito da função
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO da educação infantil e reafirmavam a importância da redefinição do conceito de alfabe-
tização enquanto um processo amplo e contínuo, isto é, que envolve muito mais do que
a aprendizagem de um código e que tem início antes do ingresso da criança na escola.
Como parte do movimento de definição do termo letramento, somente em alguns tex-
tos publicados a partir de 2001 foram incluídas orientações que abordam tal processo.
Vale destacar que são muitas e variadas as possibilidades de trabalho com lingua-
gem escrita na educação infantil visando aos processos de alfabetização e letramento.
A seguir, apresentaremos pontualmente apenas as orientações metodológicas com
maior frequência presentes nas fontes analisadas, tais como a necessidade de explorar
as funções sociais da linguagem escrita, a importância de realizar tentativas de escri-
ta e de leitura, de oportunizar situações de produção e interpretação de textos e de
articular a escrita com outras linguagens.

Explorar as funções sociais da linguagem escrita


Seja concebendo a alfabetização como um amplo processo de construção que se
inicia antes do ingresso da criança na 1ª série do Ensino Fundamental2, seja conceben-
do-a como aprendizagem de técnicas necessárias para ler e escrever em consonância
com um processo maior denominado letramento, vários autores, a seguir elencados,
são unânimes em considerar a exploração das funções sociais da escrita como fator
indispensável para alfabetizar e, principalmente, para letrar.
Perez (1993) contribui para essa discussão com reflexões sobre a importância da
imersão das crianças no mundo da palavra. A autora esclarece a diferença entre crian-
ças que vivem imersas no mundo da palavra e crianças cuja escrita não faz, de forma
efetiva, parte de suas vidas. Ela explicita que as crianças provenientes de meios urba-
nos e de classe média apresentam desde cedo interesse pela linguagem escrita, porque
estão cotidianamente expostas a situações nas quais essa linguagem está revestida de
sentido e significado.

A criança que está exposta a experiências interessantes sobre a linguagem escri-


ta – com materiais para escrever, oportunidade de falar e perguntar, disponibili-
dades do outro para ouvi-la e responder às suas perguntas, contato permanente
com livros, palavras escritas, números e experiências positivas com a leitura,
desenvolve seu interesse e curiosidade, construindo conhecimentos sobre a es-
crita, pois esta está incorporada à sua atividade cotidiana (PEREZ, 1993, p. 78).

2 Utilizamos a expressão 1ª série do Ensino Fundamental (e não 1º ano do Ensino Fundamental)


em respeito aos termos utilizados pelos autores dos textos analisados – todos publicados antes
das mudanças decorrentes da implantação do Ensino Fundamental de 9 anos.

50
A situação é bem diferente para as crianças da zona rural ou de setores urbanos Alfabetização, letramento
e educação infantil
socialmente marginalizados, como salienta Perez (1993, p. 79):

De um modo geral, a criança das classes populares não dispõe de materiais


para ler e escrever, não possui lápis, papel, livros e revistas para manipular.
Muitas vezes não tem qualquer relação com a escrita em sua atividade cotidiana,
quando muito possui uma relação precária – cartazes, placas, anúncios – que
faz parte do universo social urbano, o que não lhe permite conhecer o valor
da escrita e suas múltiplas funções. Por outro lado, na família não aparece a
necessidade do uso da escrita – embora sejam grandes as expectativas de seus
pais em relação ao aprendizado da leitura e da escrita.

A autora considera esse aspecto de suma importância porque, como a aprendiza-


gem de todo e qualquer conhecimento, a aprendizagem da leitura e da escrita depen-
de, dentre outros fatores, das experiências do sujeito. Desse modo, para aprender a ler
e escrever é essencial que as experiências da criança com a linguagem escrita estejam
relacionadas com a necessidade de ler e escrever.
É por isso que Abramovicz e Wajskop (1999) chamam a atenção para as diferentes
vivências e as diversidades culturais e linguísticas que podemos encontrar entre as
crianças que frequentam uma mesma instituição de educação infantil. Essas diferen-
ças devem ser levadas em consideração ao se pensar os processos de alfabetização e
letramento das crianças pequenas. Elas afirmam isso porque, em função de suas ex-
periências pessoais, “[...] as crianças se aproximam, aprendem e vivem relações muito
diversas com a leitura e a escrita” (ABRAMOWICZ; WAJSKOP, 1999, p. 65).
As instituições de ensino, seja de educação infantil ou ensino fundamental, devem
tratar a linguagem escrita como prática social e não apenas como saber escolar, postula
Frangella (1999, p. 67). Para tanto, é necessário

[...] trazer à tona as funções e os usos sociais da escrita e, tendo isso como
premissa, possibilitar às crianças encontros efetivos com a linguagem escrita,
visando não instrumentalizar, mas incorporar a escrita como prática cultural de
registro e comunicação.

Cabe então ao professor inspirar-se em situações que ocorrem fora da escola para
criar atividades de aprendizagem escolar. Segundo a professora Fernanda Flores, em um
dos relatórios destinado aos pais de seus alunos apresentados por Cavalcanti (1997),
por meio de atividades que envolvam a escrita e a leitura em situações reais de uso, e
não em situações artificiais e sem significado, os alunos podem refletir sobre a necessi-
dade e o modo como é utilizada a língua escrita na nossa vida. Isso ocorre, por exemplo,
quando elas escrevem textos portadores de mensagens que podem ser lidas por outras
pessoas, como a professora, familiares, colegas. Desse modo, as crianças adquirem co-
nhecimento sobre como se escreve e aprendem por que e para quê escrevemos.

51
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Em outro relatório apresentado por Cavalcanti (1997), a professora Paula Stella
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO afirma ser importante conversar com as crianças sobre a utilidade do registro como
apoio à memória e sobre a possibilidade de se estabelecer comunicação por meio da
escrita. Para isso, é necessário planejar e promover situações nas quais as crianças se
sintam incentivadas a fazer uso da escrita como instrumento de comunicação. Em uma
dessas situações, seus alunos escreveram uma carta para um amigo da classe que havia
mudado de turno. Conforme relata a professora, eles aprenderam que, por meio da
escrita, é possível estabelecer correspondência com indivíduos não presentes e que é
necessário adequar a mensagem às circunstâncias.
Nicolau (2003) expõe que as experiências de vida das crianças, bem como suas
manifestações e representações, revelam seu grau de letramento, ou seja, indicam o
que elas sabem acerca das finalidades da linguagem escrita. Cabe então à instituição de
educação infantil criar situações para aproximar, cada vez mais, as crianças das funções
e dos significados da linguagem escrita, como as sugeridas a seguir:

[...] ouvir histórias contadas e lidas, folhear e ler imagens de livros de histó-
rias com e sem textos, inventar histórias, dramatizando-as, recontando-as, res-
pondendo a questões e/ou se expressando nas linguagens que preferirem; a
descobrir o significado de cartazes afixados nos estabelecimentos comerciais
e nas ruas; a comentar acerca dos programas de televisão assistidos; a relatar
ocorrências observadas na pré-escola e fora de seu âmbito, representando-as
por meio de suas múltiplas formas expressivas, inclusive valorizando as muitas
oportunidades que o jogo teatral oferece; a avaliar situações decorrentes de
seus jogos e brincadeiras, enfim, a conversar e a representar sobre tudo, inclu-
sive sobre seus familiares, suas vidas e expectativas (NICOLAU, 2003, p. 213).

É importante organizar, na rotina escolar, situações em que as crianças desde pe-


quenas leiam e escrevam, explorando as relações entre a utilização da linguagem es-
crita e a organização do mundo em que vivem. Junqueira Filho (2001) sugere aos
professores que, juntamente com seu grupo de crianças, confeccionem livros de his-
tória ou relativos a assuntos que tenham estudado; estabeleçam correspondência com
colegas da própria turma, com outras turmas e com turmas de outras escolas; confec-
cionem convites; realizem atividades de culinária (que exigem a leitura e o registro de
receitas); organizem um livro de coletânea de poemas; criem agendas com endereço,
telefone e data de aniversário dos amigos; confeccionem jornais e revistas.
O importante é que nessas situações sugeridas por Nicolau (2003) e por Junqueira
Filho (2001) sejam evidenciadas as funções sociais da escrita.

Realizar tentativas de escrita e de leitura


Vários autores, a seguir arrolados, fazem referência à necessidade de as crianças
pequenas terem oportunidades de realizar tentativas de escrita e de leitura.

52
O exercício de tentativa de escrita é também denominado escrita espontânea. Trata- Alfabetização, letramento
e educação infantil
se de um exercício inicial no qual a criança é estimulada a escrever ‘como sabe’ e que
faz com que ela “[...] se sinta encorajada a utilizar a escrita como um veículo para sua
expressão criadora, mesmo que ainda não domine o código convencional” (PEREZ,
1993, p. 101).
Abramowicz e Wajskop (1999) assinalam que, por meio da escrita espontânea, as
crianças exercitam a escrita, criam hipóteses, inventam, repetem e copiam. Fundamen-
tadas nos estudos de Ferreiro e Teberosky (1985) a respeito da psicogênese da escrita,
as autoras supracitadas salientam que, nesse momento do processo de aprendizagem
da linguagem escrita, cabe ao educador respeitar as tentativas de escrita das crianças,
mesmo que estejam distantes da escrita convencional. Tais tentativas permitem reco-
nhecer as hipóteses levantadas pelas crianças a respeito da escrita, podendo, a nosso
ver, constituir-se em uma das formas de avaliar o processo de aquisição dessa lingua-
gem pelas crianças, bem como a qualidade das intervenções pedagógicas realizadas.
Apesar de a prática de realizar tentativas de escrita ter sido amplamente difundida,
Rego (1992) adverte ser necessário tomar alguns cuidados em relação a sua produção,
pois na pesquisa realizada por Ferreiro e Teberosky (1985), essas tentativas foram utili-
zadas como instrumento para diagnosticar a maneira como a criança representa o seu
pensamento por meio da escrita, não tendo fins didáticos. Rego alerta sobre a realiza-
ção indiscriminada de tentativas de escrita, considerando que houve uma distorção na
utilização desse tipo de recurso: por ser espontânea, acreditou-se que não seria neces-
sário (nem salutar) que o professor interviesse na produção da criança, dificultando o
avanço em direção à escrita convencional.
Uma forma de promover tal avanço é propor situações nas quais as crianças tenham
oportunidade de experimentar a escrita e discutir, problematizar e responder às per-
guntas por elas feitas sobre esse exercício, propõem Abramowicz e Wajskop (1999).
Neste sentido, solicitar que a criança leia o que escreveu, desde o início do trabalho,
tem um sentido pedagógico: sem desqualificar o trabalho da criança, a professora está
ensinando que, enquanto ela não se apropriar do código formal, sua escrita será de
difícil compreensão, o que a impedirá, por exemplo, de usar a escrita como forma de
comunicação (SAMPAIO, 1993).
O exercício de tentar escrever deve vir acompanhado do exercício de tentar ler, não
apenas a sua produção, mas também os demais textos registrados convencionalmente.
Tal exercício, chamado pseudoleitura, é, na visão de Cavalcanti (1997, p. 26), o “[...]
ato de imitar a leitura a partir de um texto que [as crianças] conhecem de memória”.
Tal exercício possibilita analisar, entre outros aspectos, as relações entre a linguagem
oral e a escrita. Enfim, pseudoleitura é uma simulação do ato de ler.

53
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Essa simulação muitas vezes se transforma em situação de pesquisa por parte
ALFABETIZAÇÃO E do aluno, que tenta relacionar as partes gráficas que vê no texto com as par-
LETRAMENTO
tes orais que segmenta em sua fala. Essa simulação pode contribuir para que
características da escrita se tornem observáveis para os alunos: semelhanças e
diferenças, desenho, traçado da letra. Mas o mais importante, em atividades
deste tipo, é o esforço das crianças em relacionar logicamente a escrita à fala e
vice-versa (CAVALCANTI, 1997, p. 26).

Poemas, canções, parlendas e trava-línguas são textos muito utilizados no en-


sino da linguagem escrita, pois têm sentido e significado para os alunos devido
a sua forma divertida e ritmada, além de serem facilmente memorizados pelas
crianças, possibilitando a recitação e a realização de pseudoleituras (CAVALCANTI,
1997). Até as crianças que ainda não sabem ler declamam textos que dominam de
memória como se estivessem lendo. Em consonância com a autora, a leitura de
textos memorizados pelas crianças é uma atividade que favorece a compreensão
do funcionamento alfabético de nosso sistema de escrita. Manrique (1997, p. 69),
complementando o pensamento de Cavalcanti, julga que o mais importante é que
“quando uma criança ‘faz de conta que lê’, [...] percebe-se a si mesma como um
leitor e o próprio sentimento de confiança e segurança promove seu interesse e o
prazer por aquilo que faz”.

Oportunizar situações de produção e interpretação de textos


Em complemento às orientações metodológicas que preconizam a necessidade de
a educação infantil oportunizar a realização de tentativas de escrita e pseudoleituras,
apresentamos na sequência algumas reflexões referentes à importância de as crian-
ças, desde pequenas, terem oportunidade de produzir e interpretar textos.
Produzir textos é uma atividade que as crianças podem realizar sem necessariamen-
te dominar o código alfabético, propalam Schmidt, Marques e Costa (2003, p. 198), já
que elas

[...] podem registrar seus textos seguindo as próprias formulações que já ela-
boraram sobre a escrita, ainda que distante da escrita formal, assim como o
professor pode exercer o papel de ‘escrivão’ dos textos elaborados oralmente
por elas.

Isto é possível porque, à medida que as crianças têm contato com textos escritos,
por meio de uma prática pedagógica sistemática e intencional, adquirem informações
sobre a estrutura dessa forma de linguagem, verificando suas diferenças em relação à
linguagem oral, percebendo que diferentes textos possuem sintaxe e estrutura tam-
bém diferentes, que existem tipos e tamanhos variados de letras, que o texto pode vir
acompanhado de ilustrações etc.

54
Foi o que Steyer (2001) comprovou em uma minuciosa pesquisa acerca da maneira Alfabetização, letramento
e educação infantil
como as crianças em idade pré-escolar escreviam textos ao verificar que nessas situa-
ções elas estavam adquirindo conhecimentos a respeito, por exemplo, da: utilização
da folha para escrever; orientação da escrita na folha; diagramação textual (como as
crianças organizavam o texto no espaço da folha); necessidade de haver separação
entre as palavras; existência de pontuação.
Na mesma pesquisa, Steyer (2001) constatou que as crianças conseguem interpre-
tar um texto, mesmo que essa interpretação ainda não seja convencional, ao diferen-
ciar um livro de história de outros tipos de livro, ao identificar as capas dianteiras e
traseiras dos livros, ao estabelecer relação entre uma história e um portador de texto
(pelo folhear, ilustrações, nome do livro, nome do autor, logotipo da editora, nomes
de outros livros que pertencem à mesma coleção, margens, paginação).
Com base nos resultados obtidos, Steyer (2001, p. 153) concluiu que a criança
pequena é um “[...] sujeito ativo, ao mesmo tempo leitor e escritor, produtor e inter-
pretador de textos, protagonista de uma relação interativa e criativa com o texto”. Em
vista disso, a autora pontua ser perfeitamente possível propor e realizar situações de
produção e interpretação de texto para as crianças da educação infantil.
Seguem a mesma direção as observações de Britto (2005), para quem não é neces-
sariamente obrigatório usar o sentido da visão para ler um texto; podemos utilizar a
audição para estudar um texto escrito enunciado em voz alta por outra pessoa. É o
que ocorre quando uma criança ouve uma história contada/lida por alguém. Por isso,

Pode-se dizer que, na educação infantil, ler com os ouvidos é mais fundamental
do que ler com os olhos. Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas se ex-
perimenta na interação, na interlocução, no discurso escrito organizado, com
suas modulações prosódicas próprias, como também aprende a sintaxe escrita
e aprende as palavras escritas (BRITTO, 2005, p. 19).

Portanto, para que as crianças pequenas se sintam leitoras e usufruam dos prazeres
da leitura, não é necessário que estejam alfabetizadas, registra Deheinzelin (1990).
Cabe ao professor mediar esse ato, lendo-lhes textos diversificados e de boa qualida-
de – condição indispensável, em nosso entendimento, para estimular o processo de
alfabetização e enriquecer o de letramento.
Schmidt, Marques e Costa (2003, p. 199) ressaltam que a leitura de textos diversos,
além de incentivar as crianças a conhecer as diferentes formas de estruturá-los e suas
características específicas, também as ajuda a aprender que eles possuem finalidades
diferentes, como as exemplificadas a seguir: prazer – texto literário; orientação pres-
critiva de procedimentos – receita; informação sobre novidades – notícia; expressão
de sentimento ou solicitação – carta.

55
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Em suma, o trabalho sistemático, intencional e contínuo de produção e leitura de
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO textos estimula a criança a aprender, de modo significativo, o código alfabético e apro-
funda o seu nível de letramento.

Articular a escrita e outras linguagens


Alguns autores dos textos analisados que concebem o processo de alfabetização de
forma ampla e contínua defendem a ideia de que as crianças devem conhecer diversas
formas de linguagem para ampliar seu universo cultural.
As crianças precisam ter acesso à linguagem gráfica, gestual, plástica, cinestésica,
musical, corporal, televisiva, informática. Sampaio (1993, p. 61) enuncia que “[...] a
pré-escola é o espaço, por excelência, de iniciação nessas linguagens”, pois, ao dese-
nhar, a criança terá acesso à linguagem pictórica; ao cantar, à linguagem musical; ao
modelar, pintar, recortar, colar, à linguagem plástica; ao liberar seus movimentos, à
linguagem corporal; entre outras. Assim, “quanto mais a pré-escola abrir para a criança
a possibilidade do acesso às diferentes linguagens que estão postas no mundo, mais o
seu universo cultural se ampliará” (SAMPAIO, 1993, p. 59).
Ademais, o trabalho com diferentes linguagens favorece a aprendizagem da lingua-
gem escrita com sentido e significado. Segundo Perez (1993, p. 101),

[...] através do uso de várias linguagens a criança expande sua atividade, libera
suas fantasias, exercita a imaginação, ao mesmo tempo em que constrói conhe-
cimentos sobre a leitura e a escrita, num universo particular repleto de sentido
e significado.

Essa preocupação com as diferentes formas de o homem representar e se expressar,


bem como a relação da escrita com outras linguagens também se configurou em uma das
questões discutidas por autores que diferenciam os processos de alfabetização e letra-
mento. Ostetto (2004) Faria (2005) e Mello (2005) veem a linguagem escrita como uma
forma a mais de representação entre tantas outras.
Mello (2005) critica o trabalho que a educação infantil, de uma forma geral, de-
senvolve junto às crianças, asseverando que, na tentativa de simplificar o processo de
aprendizagem da linguagem escrita, retira-lhe sua finalidade e sentido, tornando os
seus exercícios enfadonhos, repetitivos e sem vida. Como decorrência, continua Mello
(2005), pouco tempo sobra para o desenho, a pintura, a dança, o faz-de-conta, enfim,
para as diferentes formas de expressão que constituem as bases necessárias para a aqui-
sição da escrita. Isso não significa, ressalta a autora, que essa linguagem deva ser ex-
cluída da educação infantil; deve, antes, ser concebida como mais uma linguagem pela
qual as crianças podem se expressar. A autora aponta uma possibilidade de equacionar
o problema:

56
Se as crianças puderem conviver com a escrita e com a leitura – realizadas inicial- Alfabetização, letramento
mente pela professora – enquanto vivem muitas experiências significativas – por e educação infantil
exemplo, conhecendo o espaço por meio de passeios pelos arredores da escola,
pelo bairro, pela cidade; conhecendo pessoas que trabalham na escola, de visita dos
pais, mães e avós da turma à escola, de leitura de histórias, de poesias, de audição
de música, de filmes; se puderem conhecer mais sobre os assuntos que chamam
sua atenção por meio de observação e experimentação na natureza, leitura, vídeo,
conversa com especialistas... e se puderem comentar essas experiências e registrá-las
por meio de desenho, pintura, colagem, modelagem, brincadeiras e teatro de fanto-
ches –, a leitura e a escrita constituirão o próximo passo que a criança vai querer dar
em seu processo de apropriar-se do mundo (MELLO, 2005, p. 35-36).

Em outras palavras:

[...] se queremos que nossas crianças leiam e escrevam bem e se tornem verda-
deiras leitoras e produtoras de textos [...], é necessário que trabalhemos profun-
damente o desejo e o exercício da expressão por meio de diferentes linguagens:
a expressão oral por meio de relatos, poemas e música, o desenho, a pintura,
a colagem, o faz-de-conta, o teatro de fantoches, a construção com retalhos de
madeiras, com caixas de papelão, a modelagem com papel, massa de modelar,
argila (MELLO, 2005, p. 36).

Na mesma linha de raciocínio estão as considerações de Faria (2005), que chama a


atenção para a necessidade de os profissionais que atuam na educação infantil possuírem
conhecimentos sobre outras formas de representação utilizadas pelos homens. Com tal
conhecimento, o professor poderá compreender, por exemplo, que ao modelar com
massa, a criança está se expressando, por meio de uma linguagem que não prima pela es-
crita. Infelizmente, é por conhecermos muito pouco sobre essas formas de representação
que não utilizam as letras que as deixamos do lado de fora da escola, argumenta a autora.
Ostetto (2004) enfatiza a necessidade de mesclar a linguagem priorizada pela escola
– a escrita – com as diferentes linguagens do mundo, de modo que outras linguagens
componham o cenário da educação infantil. Em suas palavras:

Antes da escrita, outras linguagens devem ser privilegiadas e desenvolvidas na


educação infantil. Se um programa educativo contemplar o ensino sistemático da
leitura e da escrita, certamente estará deixando de lado outras linguagens mais
essenciais nesse período de vida das crianças (OSTETTO, 2004, p. 85).

É importante que, no cotidiano das instituições de educação infantil, sejam propor-


cionadas às crianças múltiplas formas de representação, expressão e leitura do mundo:
oral, plástica, corporal, musical e, inclusive, escrita. O que não pode ocorrer, apregoa
Ostetto (2004), é considerar a escrita a única forma de representação, tornando-a o cen-
tro do trabalho pedagógico realizado na educação infantil. Isso implica propalar que o
movimento, a dança, o canto, as brincadeiras, o desenho, a pintura, a modelagem não
podem ficar em segundo plano e que as crianças não podem deixar de vivenciar as expe-
riências próprias de crianças.

57
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Algumas considerações finais
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO As orientações metodológicas que envolvem os processos de alfabetização e letra-
mento presentes na produção bibliográfica destinada aos profissionais e pesquisadores
da educação infantil, aqui apresentadas, confirmam a existência de uma estreita relação
entre as formas de conceituar tais processos e a função conferida a esse nível de ensino,
auxiliando a compreensão da polêmica relembrada no início deste capítulo.
Verificamos que se conceituada como aprendizagem de um código, semelhante ao
momento em que métodos sintéticos e/ou analíticos eram amplamente utilizados, nem
a alfabetização, nem o letramento tem espaço na educação infantil. Nesse caso, sua
função é propor exercícios que visam à preparação das crianças para a aprendizagem da
leitura e da escrita, a qual deveria ocorrer no nível posterior de escolarização.
Os estudos de Ferreiro e Teberosky a respeito da psicogênese da escrita permitiram
conceituar a alfabetização como um amplo processo de construção que aborda, além da
aprendizagem do sistema de escrita, a inserção no mundo da escrita e que se inicia mui-
to antes do ingresso da criança na escola. Essa ampliação do conceito de alfabetização,
aliada ao movimento em prol de uma educação infantil com função pedagógica redefi-
niu a relação entre esse nível de ensino e a linguagem escrita: cabe à educação infantil
propiciar a aprendizagem da linguagem escrita, com sentido e significado, por meio de
um ambiente alfabetizador. Como resultado desses encaminhamentos, presentes nos
textos analisados publicados a partir de meados da década de 1980 até meados da dé-
cada de 1990, as crianças conviviam com materiais escritos utilizados nas mais diversas
práticas sociais, ouviam histórias (e outros textos) lidas pelas professoras e tentavam
ler e escrever. Como resultado dessas práticas, algumas dessas crianças, a depender da
qualidade das intervenções pedagógicas, aprendiam a ler e escrever, muitas não.
Entre os textos analisados publicados a partir do final da década de 1990, não há
unanimidade a respeito do papel da educação infantil frente a essa discussão. Há os que
defendem o trabalho com diversas formas de linguagens, inclusive a escrita, mas não a
priorizam; há os que consideram que se deve primar pelo letramento e sistematizar o
ensino do sistema de escrita somente se as crianças demonstrarem interesse por ele; e
há os que concebem a aprendizagem do sistema de escrita no âmbito do letramento.
Frente a tantas divergências, vale esclarecer que concebemos, conforme Soares
(1998), alfabetização e letramento como processos indissociáveis e interdependentes,
porém distintos. Isto significa que não é possível separar um do outro e que um de-
pende do outro, apesar de haver diferenças entre eles. Ao contarmos uma história,
admitindo o diálogo entre o contador e as crianças, referenciando o autor da história e
a importância de ele a ter registrado por escrito, possibilitando que muitas crianças, nas
mais distantes localidades, a pudessem escutar (ou ler), estamos promovendo práticas

58
de letramento escolar. Nessa mesma situação, ao apontarmos com o dedo a direção da Alfabetização, letramento
e educação infantil
escrita (da esquerda para a direita; de cima para baixo), ao demonstramos que o que
estamos lendo está registrado por meio de sinais (letras, sinais de acentuação e de pon-
tuação), ao destacarmos a letra inicial do nome do personagem principal da história,
estamos promovendo práticas alfabetizadoras.
Pelo exemplo acima, podemos desenvolver práticas pedagógicas que favorecem,
concomitantemente, os processos de alfabetização e de letramento. Contudo, salienta-
mos que conceber alfabetização como aprendizagem de técnicas necessárias para ler e
escrever e letramento como condição do sujeito imerso no mundo da escrita, ou seja,
distinguir um processo do outro, é condição para revestir tais práticas de intencionali-
dade e sistematicidade.
É por isso que consideramos como uma das finalidades da educação infantil en-
riquecer o processo de letramento das crianças e estimular seu processo de al-
fabetização. Acreditamos que, ao nos posicionarmos dessa forma, não estamos nem
propondo e nem defendendo uma antecipação da escolarização, muito menos desres-
peitando o tempo de infância; apenas defendemos a indissociabilidade e interdepen-
dência dos dois processos. Trata-se de admitir a possibilidade de alfabetizar letrando e
letrar alfabetizando também para as crianças pequenas, de acordo com as possibilidades
e os limites desse nível de escolaridade (LUCAS, 2008).
Por fim, encerramos este capítulo confirmando a importância da temática a respeito
da relação entre os processos de alfabetização e letramento e a educação das crianças
pequenas tanto para a formação do professor alfabetizador, quanto para a promoção
de uma educação infantil que respeite a criança, propiciando-lhe situações efetivas de
aprendizagem que potencializem o desenvolvimento humano.

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OSTETTO, Luciana Esmeralda. Do cinzento ao multicolorido: linguagem oral,


linguagem escrita e prática pedagógica na Educação infantil. In: OSTETTO, Luciana
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SCHMIDT, Maria Helena Costa Braga; MARQUES, Maria Lucia; COSTA, Vera Lúcia
Vôos Gomes da. O processo de aquisição da leitura e da escrita na infância. In:
NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de
sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus,
2003. p. 193-229.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Ceale/


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SOUZA, Solange Jobim. Alfabetização: refletindo sobre a prática. Criança, Rio de


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a 6 anos e a Educação infantil: um retrato multifacetado. Canoas, RS: Ulbra, 2001.
p. 149-168.

Proposta de Atividade

1) Com o objetivo de auxiliar o profesor a encaminhar a sua prática pedagógica visando os


processos de alfabetização e letramento, neste capítulo apresentamos algumas orientações
metodológicas a seguir enumeradas:
a) explorar as funções sociais da linguagem escrita;
b) realizar tentativas de escrita e de leitura;
c) oportunizar situações de produção e interpretação de textos;
d) articular a escrita com outras linguagens.

2) De cada uma dessas orientações, destaque uma sugestão de trabalho ou uma experiência
relatada neste texto.

Indicações de Leitura:

FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres. Com a palavra, a escrita! In: KRAMER, Sonia et
al (Org.). Infância e Educação infantil. Campinas, SP: Papirus, 1999. p. 49-76.

GOULART, Cecília Maria. A apropriação da linguagem escrita e o trabalho


alfabetizador na escola. Cadernos de Pesquisa. [online], São Paulo, n. 110, p. 157-
175, 2000.

GUEDES, Adrianne O.; BARREIROS, Tereza Cristina. Cartas sobre leitura e escrita na pré-
escola ou a formação de narradores: uma paixão nas entrelinhas. In: KRAMER, Sonia et
al. (Org.). Infância e Educação infantil. Campinas, SP: Papirus, 1999. p. 15-48.

KRAMER, Sonia; ABRAMOVAY, Miriam. Alfabetização na pré-escola: exigência ou


necessidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 52, p. 103-107, fev. 1985.

62
MANRIQUE, Ana Maria Borzone de. No caminho rumo à escrita e à leitura. In: Alfabetização, letramento
e educação infantil
CUBERES, Maria Teresa González (Org.). Educação infantil e séries iniciais:
articulação para a alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 59-71.

MELLO, Suely Amaral. O processo de aquisição da escrita na Educação infantil:


contribuições de Vygotsky. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart; MELLO, Suely Amaral (Org.).
Linguagens infantis: outras formas de leitura. Campinas, SP: Autores Associados,
2005. p. 23-40.

SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2004. 

Anotações

63
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

64
4 Em lugar da
mecanização e da
improdutividade:
contribuições de Freinet
para a alfabetização
Elieuza Aparecida de Lima / Ana Laura Ribeiro da Silva

As reflexões apresentadas neste capítulo partem da preocupação diante de duas


constatações: a antecipação da escolaridade observada nas práticas educativas da es-
cola infantil, marcada pela aquisição precoce da técnica de escrita e pelo sacrifício
do direito à infância, e a percepção da necessidade de elementos mediadores entre a
teoria e a prática que concretizassem experiências sociais de alfabetização formadoras
de leitores e produtores de textos efetivos e com possibilidades de realizações huma-
nizadoras em suas atuações e intervenções na sociedade (RIBEIRO, 2004; LIMA, 2005).
Inquieta-nos a situação das salas de educação infantil repletas de tarefas criadas
especificamente para ensinar as crianças a ler e a escrever. Ensina-se à criança o meca-
nismo de traçar e juntar letras e sílabas em detrimento de atividades de conhecimento,
interpretação e de expressão do mundo que se abre cada vez mais para ela na idade
pré-escolar (LEONTIEV, 1988). Sob o discurso da qualidade, as práticas de educação
infantil camuflam o tecnicismo e a mecanização das práticas tradicionais de silabação.
Essas práticas não se apoiam mais em um texto cartilhado – abominado no nível do
discurso –; no entanto, baseiam-se nos mesmos princípios de estudo das letras e das
famílias silábicas apresentados pelas cartilhas.
Essas inquietações, somadas às apropriações teóricas advindas dos grupos de pes-
quisa e estudos dos quais participamos1, nos propiciaram olhar a alfabetização sob no-
vas perspectivas. Entre as técnicas de ensino que conhecíamos, nos chamaram a aten-
ção as técnicas de ensino elaboradas por Célestin Freinet, educador francês nascido no

1 Grupo de Pesquisa Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural e do Grupo de Estudos


de Educação Infantil da FFC/Unesp/Marília/SP.

65
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, final do século XIX, que elaborou um conjunto de técnicas e princípios pedagógicos
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO direcionadores do ensino a partir do respeito e da escuta às expressões infantis.
Este capítulo tem o objetivo de apresentar as contribuições de Freinet para a alfabe-
tização, contribuindo para a superação das apropriações aligeiradas de sua pedagogia,
especialmente daquelas reducionistas à organização do espaço escolar em “cantos”
que não mudam a essência da vida escolar autoritária e improdutiva. Para isso, busca-
mos entender as técnicas Freinet não como práticas isoladas, mas no conjunto das di-
retrizes que as norteiam. Inicialmente, torna-se relevante a compreensão de conceitos
de homem e de atividade basilares na Pedagogia Freinet.

Concepções sobre a aprendizagem


O conceito de homem que permeia as proposições de Freinet está ligado à com-
preensão do homem condicionada não apenas por aquilo que ele é, mas por “um de-
vir” que enfatiza as possibilidades do vir-a-ser humano, sua universalidade (FREINET,
1998, p. 19, grifos do autor), expressando uma visão de homem como ser em constru-
ção por sua própria atividade no seio da cultura. Essa compreensão fundamenta qual
conceito de criança? Esse entendimento propicia o entendimento da criança como ca-
paz, desde pequenininha, de estabelecimento de relações com o mundo circundante,
percebido por ela de modo cada vez mais humanizado, em um processo em que vai se
tornando aquilo que ainda não é, mas pode vir-a-ser: o ser humano em suas máximas
possibilidades.
Para Freinet, esse processo de humanização é caracterizado pela ênfase no papel do
tateio experimental – por meio do qual a criança forma sua inteligência e sua perso-
nalidade – e no papel do educador como parceiro mais experiente – que medeia para
a criança o contato com o mundo cada vez mais amplo da cultura acumulada. Para o
autor, esse processo não existe a priori na criança, nem é biologicamente dado, mas é
condicionado por sua atividade social no mundo que a rodeia.
Na Pedagogia Freinet, o tateio experimental é a principal fonte da aprendizagem, à
medida que corresponde à necessidade da criança

[...] para manipular, observar, relacionar, emitir hipóteses, verificá-las, aplicar


leis e códigos, compreender informações cada vez mais complexas. É uma atitu-
de particular que deve ser desenvolvida pouco a pouco, assim, os conhecimen-
tos vão sendo adquiridos pela criança [...] (Sampaio, 1994, p. 217).

Quais as implicações dessas idéias para as reflexões sobre a alfabetização? Uma das
implicações é que, na educação, o tateio experimental possibilita à criança ser ativa
diante do conhecimento e envolve a percepção de um aspecto do processo de conhe-
cimento que a escola, de modo geral, parece desconsiderar: o caminho que a criança

66
percorre a partir do conhecido em direção ao desconhecido (PODDIÁKOV, 1987), isto Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
é, processo de aquisição autônomo de novos conhecimentos e novos dados sobre contribuições de Freinet
para a alfabetização
objetos e fenômenos circundantes propulsores do aperfeiçoamento autônomo dos
procedimentos da atividade prática e cognoscitiva.
Neste sentido, o processo de conhecimento caracteriza-se como essencialmente
ativo especialmente atrelado ao conceito de trabalho. Trata-se de um trabalho diferen-
te daquele que conhecemos na sociedade alienada, um fazer com sentido e objetivo,
que satisfaça a necessidade de expressão e comunicação da criança; não o trabalho
maçante que obriga a criança a sua execução, mas, nas palavras de Mello (1992, p. 77):

Um trabalho à medida das possibilidades e necessidades da criança, que dê


sentido e objetivo às aquisições e motive as criações, que proporcione auto-
nomia na realização, promovendo auto-realização e a aprovação do grupo. Um
trabalho que envolva física, afetiva e cognitivamente o aluno, favorecendo enri-
quecimento moral, intelectual e material do indivíduo.

Trata-se de um fazer motivado pelo objetivo para a satisfação das necessidades do


desejo de conhecimento da criança. Conforme Mello (1992, p. 85) apregoa, “para
Freinet, a aprendizagem significativa tem relação íntima com o sentimento, a afetivi-
dade, a vivência do aluno”. Assim, a aprendizagem acontece quando responde a uma
necessidade da criança que aprende. Nessa situação, o aprendizado tem para a criança
um sentido e um significado que a motivam e, por isso, a envolve emocionalmente no
processo.
Ligado a esse conceito atividade/trabalho destacamos o papel do educador. Nas
diretrizes da Pedagogia Freinet há três procedimentos que podem orientar as ações
pedagógicas intencionais do educador e a criação de mediações entre a criança e a
cultura. Primeiro, a atitude de escuta em relação às crianças, deixando que expressem
suas necessidades e seus desejos de conhecimento, que acontece na roda inicial e final
diárias. Em segundo lugar, a oportunidade de participação no planejamento das ativi-
dades, aberta às crianças também nas rodas e nos processos de avaliação das atividades
realizadas que acontecem nas discussões na roda final e nos momentos de registro no
livro da vida e no jornal mural. Por fim, o envolvimento da escola com as necessidades
e os interesses das crianças é contemplado por meio da aula-passeio, instrumento de
conhecimento da comunidade e de suas necessidades sociais.
O espaço escolar deve ser legível, diversificado e acessível para propiciar à criança
situações diferentes de acesso à cultura. De que maneira a ação intencional do educa-
dor se manifesta nessa organização do espaço? Para Freinet, a organização do espaço
é um pressuposto para a liberdade da criança em relação à dependência do adulto
e uma maneira de garantir que a criança trabalhe com autonomia individual ou em

67
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, grupo. Essa organização do espaço é condição necessária para a concretização das
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO técnicas Freinet. A sala de aula e a escola são organizadas em cantos ou ateliês para
que as próprias crianças realizem escolhas, planejem suas atividades e atuem motiva-
das pelo uso dos materiais, pelas técnicas e pela auto-organização em grupos, o que
promove o planejamento individual e coletivo, o respeito às regras da vida em grupo,
a autonomia do fazer sozinho ou em grupo e a solicitação de ajuda quando necessário
(FREINET, 1979).
Freinet postula que a comunicação constitui uma necessidade vital da criança. É
essa compreensão que justifica e valoriza a livre expressão como princípio vertebrador
na estruturação de suas técnicas de ensino (FREINET, 1979). A comunicação é uma
forma privilegiada da objetivação humana.
A Pedagogia Freinet baseia-se, pois, na essencialidade da vida humana. Freinet
procura resgatar o sentido de potencialidade da vida, que é, para ele, a consciência
do devir humano. Com base nessas ideias, passamos, na sequência, à discussão das
contribuições das Técnicas Freinet como fundamentos para as reflexões relativas à
questão da alfabetização.
As práticas pedagógicas tradicionais parecem fundamentadas por ideias segundo
as quais a escrita e a leitura seriam aprendidas por meio da exercitação do corpo, ma-
nifestadas principalmente por hábitos motores e pela fixação dos códigos lingüísticos
de forma mecânica.
Para Freinet, no entanto, as aprendizagens decorrentes dessas ações (traçar as pala-
vras, sem saber produzir textos e atribuir sentido à escrita) não têm força motora sobre
o pleno desenvolvimento da inteligência e personalidade infantis, sobretudo referen-
tes à formação da criança como leitora e produtora de textos. Entretanto, em lugar
dessas práticas, como tornar a criança sujeito ativo, capaz de atribuição de sentidos às
experiências propostas na escola?
Já no início do século passado, o professor Freinet (1973), inquieto e preocupado
com o processo de aprendizagem da escrita pelas crianças, a partir de sua própria prá-
tica pedagógica percebeu que a criança não é um receptáculo vazio e passivo e que ela
não deve ir à escola para copiar e ler textos de livros didáticos. Esse modo de tratar a
criança e a escrita está, como o autor concebeu, fadado ao fracasso.
Surgia da inquietação de Freinet (1973) a idéia de propor às crianças a produção do
texto livre embasada na concepção de uma criança capaz de se expressar e de comuni-
car conhecimentos e sentimentos. Nas palavras de Freinet (1973, p. 26-28):

A minha feliz descoberta – mas muito natural e eivada de bom senso – foi,
nesta fase [quando ele introduzia em suas aulas o trabalho com o texto livre],
convencer-me de que, diga-se o que se disser, a criança era capaz de produzir
assim textos válidos [...].

68
[...] O Texto Livre, quase unanimemente recomendado actualmente – embora Em lugar da mecanização
não seja sempre judiosamente praticado – não deixa de consagrar oficialmente e da improdutividade:
contribuições de Freinet
esta aptidão da criança para pensar e para exprimir e para passar de um estado para a alfabetização
de menoridade mental e afectiva à dignidade de um ser capaz de construir
experimentalmente a sua personalidade [...].

Com base nessas proposições, a escola se torna espaço de constituição de sujeitos


capazes de atuarem no mundo de maneira ativa, independente e transformadora. Na
Pedagogia Freinet, estruturada por um conjunto de técnicas indissociáveis que se con-
cretizam pela organização cooperativa, a sala de aula é um espaço de diálogo, escolhas
e compartilhamento de conhecimentos. Segundo o Instituto Cooperativo da Escola
Moderna – ICEM (1979, p. 10):

O texto livre, a correspondência, o jornal escolar, os planos de trabalhos, as


conferências, o trabalho individualizado são todos marcados com o signo da
cooperação. Nenhuma dessas atividades encontra sua significação profunda se
não se exercer no quadro de uma organização realmente cooperativa.

A cooperação não acontece apenas nas atividades propostas, mas no conjunto com-
plexo da vida escolar, em todas as suas organizações. Freinet (apud ICEM, 1979, p.
10) enuncia que “pela cooperação escolar, são as crianças que efetivamente assumem
a organização da atividade, do trabalho, da vida de sua escola”. Nessa perspectiva, em
uma organização cooperativa do trabalho escolar, as crianças participam de todos os
processos: do planejamento, das formas de organização para a realização das ativida-
des e da avaliação.
As técnicas de ensino elaboradas por Freinet têm sua fundamentação no grupo de
invariantes pedagógicas por ele estruturadas – as técnicas educativas – e apresenta
uma discussão sobre as concepções freinetianas motivadoras da organização de técni-
cas educativas que suprimissem as regras autoritárias da escola tradicional e conduzis-
sem a um trabalho funcional para a vida das crianças.
Nesse trabalho educativo funcional, a experiência da criança – sua atividade – deve
ser considerada como forma privilegiada de aquisição de conhecimentos. “Não são a
observação, a explicação e a demonstração – processos essenciais da escola – as únicas
vias normais de aquisição de conhecimento, mas a experiência tateante, que é uma
conduta natural e universal” (SAMPAIO, 1994, p. 88). Com isso, Freinet contribui para
repensarmos a escola tradicional e traz um dos principais conceitos de sua pedagogia.
Na escola tradicional, a explicação é o meio exclusivo para a aquisição de conhe-
cimentos. Nela, a experimentação participa apenas da demonstração da explicação
realizada. Para a Pedagogia Freinet, a maior necessidade na escola é a experimentação
da criança e a sua vivência orienta a aquisição de conhecimentos por uma necessidade
viva. Freinet explicita, assim, a própria experimentação da criança e a sua vivência

69
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, como propiciadoras da apropriação de conhecimentos. Para o autor, “A memória, tão
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO preconizada pela escola, não é válida, nem preciosa, a não ser quando está integrada
no tateamento experimental, onde se encontra verdadeiramente a serviço da vida”
(SAMPAIO, 1994, p. 89), uma vez que são as vivências que vão garantindo a formação
dos hábitos e das habilidades.
A memória não tem, para a Pedagogia Freinet, uma utilidade em si mesma. Esta
só pode ser explorada se ligada à experimentação, uma vez que essa ligação possibi-
lita a vida em si mesma. É a vida que necessita da memória, por isso possibilita seu
desenvolvimento e não a repetição e a técnica que a garantirão, como se concebia na
escola tradicional. Dito de outra maneira, as funções psicofisiólogicas, como a memó-
ria, serão formadas e desenvolvidas no seio de atividades nas quais sejam exercitadas
e necessárias (LEONTIEV, 1988).
Assim como a memória é uma habilidade formada pela experimentação e pela vi-
vência da criança, a inteligência não existe, para Freinet, por si mesma: “não é uma fa-
culdade específica, que funciona como um circuito fechado, independentemente dos
demais elementos vitais do indivíduo, como ensina a escolástica” (SAMPAIO, 1994, p.
90). A inteligência é derivada da experiência vivida pela criança. Quanto mais diversifi-
cada for essa experiência, mais desenvolvida se faz sua inteligência. Para Freinet, não se
trata de uma, mas de diferentes formas de inteligência que são oriundas do tateamento
experimental, isto é, da atividade da criança:

– a inteligência que vem das aptidões manuais, com as quais opera sobre o
meio para o dominar e o transformar;
– a inteligência artística;
– a inteligência sensível, que desenvolve o bom-senso;
– a inteligência especulativa, que constitui o gênio dos investigadores científi-
cos e dos grandes comerciantes e indústrias;
– a inteligência política e social, que forma os homens de ação e os condutores
de massas (FREINET apud SAMPAIO, 1994, p. 90-91).

Devido a isso Freinet destaca a necessidade de considerar as diferentes formas nas


quais a inteligência pode se manifestar e critica a escola que cultiva apenas uma forma
abstrata de inteligência e atua fora de realidade viva, fixada na memória por meio de
palavras e ideias (SAMPAIO, 1994, p. 90). O autor ratifica, dessa forma, o papel da es-
cola – em sua função precípua no processo de aprendizagem sistematizada da leitura
e da escrita (MORTATTI, 2000). Em sua visão, a escola não pode se basear em apenas
um modo de aprendizagem, muito menos em apenas uma habilidade. Ao contrário,
seu papel se cumpre na garantia a todas as pessoas de se apropriar de diferentes ha-
bilidades e formas de expressão, dentre as quais maneiras sofisticadas de linguagem,
como a escrita e a leitura.

70
Freinet pontua que a criança aprende quando atua e experiencia ela própria os Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
processos de aquisição de conhecimentos, em lugar de apenas ouvir o educador. No contribuições de Freinet
para a alfabetização
processo de conhecimento, o sujeito que aprende é ativo. Por esse motivo as técnicas
de ensino devem envolver a participação das crianças, não devendo ser impostas pelo
professor, porém articuladas de modo a contemplar/despertar interesses infantis. Es-
sas técnicas consideram que o trabalho educativo se concretiza por atividades conjun-
tas que se complementam e não por atividades individuais realizadas igualmente por
todos ao mesmo tempo.
No processo de alfabetização, o trabalho docente teria uma função primordial.
Trata-se de um trabalho integrado à funcionalidade e à vida e que, por isso, faça sen-
tido para a criança. “A criança não se cansa de um trabalho funcional, ou seja, que
atende os rumos de sua vida” (SAMPAIO, 1994, p. 92). O trabalho voltado a responder
necessidades de vida não se torna exaustivo e cansativo, mas dá motivação para sua
realização pelas crianças. Quando a proposta de trabalho responde a uma necessidade
da criança, esse trabalho tem para ela uma razão e, desta maneira, mesmo que ela não
realize a tarefa que mais a agrade, ela o fará com vontade por antecipar o resultado
final do trabalho.
O controle e a sanção caracterizam uma ofensa à dignidade humana, assinala Frei-
net, sobretudo se exercida publicamente. O autor ressalta a importância de que o tra-
balho do professor seja caracterizado no ato mesmo de sua realização por uma atitude
colaborativa do educador em relação ao trabalho da criança. O papel do professor
envolve, assim, atitudes dialógicas e de parceria com a criança, sem usar sua autori-
dade para conseguir da criança aquilo que lhe parece conveniente. A autoridade do
professor deve ser compreendida como a do organizador e orientador das atividades
e não como a da pessoa que aplicará a punição.
Nessa perspectiva, a alfabetização é tida como um processo constituído nas relações
interpessoais, caracterizando sua natureza social e condicionada política, cultural, pe-
dagógica e ideologicamente. Como sujeitos, as crianças e os professores protagonizam
o processo de alfabetização, assumindo diferentes papéis e funções nessa forma ativa,
interativa e plurissignificativa de atividade, em dependência do contexto social e das
exigências e necessidades dele decorrentes (MORTATTI, 2000; SMOLKA, 1999).
O entendimento do processo de alfabetização como um fenômeno cultural e histó-
rico, portanto multifacetado, vincula-se à compreensão de que “o jogo de interações”
vivenciado no espaço escolar é essencial.
A postura do professor defendida pela Pedagogia Freinet compreende que não há a
necessidade da fala exaustiva. O professor precisa aprender a suprimir suas lições ex-
positivas, precisa organizar seu trabalho de maneira que não haja necessidade de falar

71
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, o tempo todo e, com isso, possa oferecer às crianças uma atenção mais individualizada
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO de auxílio e colaboração nas atividades.
As técnicas elaboradas por Freinet expressam uma “condenação definitiva das práti-
cas escolásticas, em que todas as crianças fazem, ao mesmo tempo, as mesmas coisas”
(FREINET apud SAMPAIO, 1994, p. 94). Essa condenação é expressa pela compreensão
de que “A criança não gosta de sujeitar-se a um trabalho em rebanho. Ela prefere o
trabalho individual ou de equipe numa comunidade cooperativa” (SAMPAIO, 1994,
p. 94). Daí o destaque à importância do trabalho de cada um no resultado final. Cada
criança precisa compreender no trabalho concluído a importância de seu fazer para
aquela conclusão. Sem perceber a importância do seu trabalho no resultado final da
atividade, a criança pode compreender que não há razão para sua realização, o que o
tornará desmotivado e exaustivo.
Dada a estruturação da rotina diária por meio de técnicas complexas de ensino
– que envolvem a participação das crianças desde o planejamento, a execução de
forma cooperativa e mesmo a avaliação em atividades que se desenvolvem ao longo
de períodos muitas vezes extensos e para as quais as crianças têm relativa autonomia
para a estruturação de planos individuais de trabalho –, a ordem e a disciplina são
elementos centrais da organização da aula na Pedagogia Freinet. Segundo a experi-
ência do autor, serão aceitas e praticadas por sua necessidade, por fazerem sentido
para aqueles que a praticam desde que seja uma necessidade do processo e não por
imposição do professor. Essa necessidade acontece pela motivação da criança ao tra-
balho que realiza, na própria organização desse trabalho, sem que seja imposta de
forma autoritária.
Na acepção de Freinet, “os castigos são sempre um erro. São humilhantes, não
conduzem ao fim desejado e não passam de um paliativo” (SAMPAIO, 1994, p. 95).
Assim, destaca a inutilidade dos castigos quando o trabalho educativo é organizado
de forma cooperativa e significativa para a criança. Castigar é uma forma de camuflar a
falta de significado do trabalho que não foi realizado. Para a Pedagogia Freinet, um tra-
balho educativo organizado em prol da vida e da funcionalidade do aprendizado não
comporta castigos, porque não oferece oportunidades para que ocorram a indisciplina
e a falta de ordem. Nessa perspectiva, o trabalho cooperativo vai dando às crianças o
sentido da relevância do seu fazer para a realização do conjunto e a noção de que sua
falta com o grupo prejudicará a todos, descartando qualquer necessidade de castigos
desvinculados do trabalho realizado.
O trabalho cooperativo traduz as relações que se estabelecem na Pedagogia Frei-
net. Com ele, o professor deixa de ser o transmissor do conhecimento para assumir
o papel de colaborador qualificado junto às crianças na busca desse conhecimento. A

72
cumplicidade que se estabelece no trabalho cooperativo garante o êxito de todos e não Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
de uma determinada criança ou de um grupo delas. Nesse âmbito, ao mesmo tempo contribuições de Freinet
para a alfabetização
em que se sente parte do grupo, a criança sente-se autora e participante em todas as
atividades que realiza.
A Pedagogia Freinet defende ser essencial a participação da criança em todo o pro-
cesso educativo – seja por meio de decisões coletivas no processo de planejamento,
seja na apresentação final do trabalho realizado. Essa participação da criança – desde
pequena – nas decisões e nas escolhas da vida escolar a preparam para viver a demo-
cracia no sentido mais real da palavra: o de escolher e aceitar as escolhas alheias. Nas
palavras de Freinet, “A democracia de amanhã prepara-se pela democracia na escola.
Um regime autoritário na escola não seria capaz de formar cidadãos democratas”, a
verdadeira democracia se prepara “pelo exemplo e ação”, ou seja, na prática escolar,
quando se tem a oportunidade de expressar, argumentar e defender as próprias ideias
(apud SAMPAIO, 1994, p. 97).
Para uma pedagogia calcada no princípio da democracia, o respeito é uma caracte-
rística indiscutível, pois sem ele não há relação democrática nem digna entre as pesso-
as. As técnicas da Pedagogia Freinet direcionam o respeito mútuo a todas as suas ins-
tâncias: à livre-expressão da criança, as suas escolhas pessoais e às decisões coletivas.
O autor permite pensar a alfabetização como um processo intencional, que implica
a relação de sujeitos histórica e socialmente condicionados, mas ativos do ponto de
vista de sua função na produção de textos (escrita), na atribuição de significações e
sentidos para o texto (leitura), na sua própria formação, na relação que estabelecem
com os outros, na intervenção criativa sobre o mundo. Surge, assim, uma concepção
de leitor e de escritor – e de criança – como portador de palavras suas, apropriadas e
transformadas nas relações que estabelece dentro e fora da instituição escolar e que
constituem (e reconstituem permanentemente) a sua consciência de si e do mundo, a
sua inteligência, a sua personalidade.
Freinet alerta para as dificuldades que deverão ser enfrentadas no processo de
mudança em direção a uma escola democrática, reconhecendo que a implantação de
técnicas democráticas de ensino não se faz de uma hora para outra, nem com aprova-
ção total das pessoas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem. Essa é uma
posição política que tem consequências sociais. Em suas palavras, “A reação social e
política, que manifesta uma reação pedagógica, é uma oposição com a qual temos
que contar, sem que se possa evitá-la ou modificá-la” (SAMPAIO, 1994, p. 98). O autor
acrescenta que o antídoto às resistências está na “esperança otimista na vida, e na
perseverança como arma para toda superação”, para que na luta contra a pedagogia
tradicional o professor não se deixe abater pelas dificuldades de derrotá-la, contudo

73
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, seja capaz de encontrar formas de superá-la, aumentando as forças de sua crença na
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO escola democrática (SAMPAIO, 1994, p. 99).
Essas diretrizes pedagógicas, somadas às outras concepções anteriormente discu-
tidas, vão caracterizando as possibilidades de aplicação das técnicas elaboradas por
Freinet e, dessa forma, viabilizando um trabalho educativo pautado nas necessida-
des infantis e na formação do ser humano em suas máximas possibilidades.

As Técnicas de Ensino
Pelo exposto a seguir, apresentaremos uma a uma as técnicas elaboradas por
Freinet, sem que percamos de vista que elas constituem um todo indissociável que
respeita a livre expressão, o tateamento experimental e a cooperação como princí-
pios norteadores do trabalho educativo.
Surgida da intenção de ligar “o pensamento da criança ao texto definitivo”
(FREINET, 1978, p. 39), a imprensa possibilitou efetivamente, na acepção de
Freinet, a criação de um projeto diferenciado para a prática educativa. Marques
(1984, p. 24) aventa que a necessidade da imprensa surgiu das aulas-passeio que
Freinet realizava com a turma e que geravam textos que precisavam ser distribu-
ídos para todos em substituição aos manuais educativos que não despertavam
nenhum interesse das crianças. Freinet (apud MELLO, 1992, p. 44), relatando sua
experiência com a imprensa, revela que:

Através da imprensa na escola, as crianças começaram a falar na aula, a ex-


primir-se, pela palavra, pela caneta, pelo lápis, pela mímica. E esta expressão
espontânea tornou-se o eixo essencial de toda a nossa pedagogia.
É forjando que nos tornamos ferreiros.
É falando que aprendemos a falar.
É escrevendo que aprendemos a escrever.
É exprimindo-nos que aprendemos a exprimir-nos, a tomar consciência de
nós mesmos, a afirmar a nossa personalidade.

Sampaio (1994, p. 219) expõe que o texto livre2 “deve ser realmente livre, na
forma e no tema, elaborado em qualquer momento que chega a inspiração”, pois
somente dessa forma expressará elementos essenciais: “espontaneidade, criação,
vida, ligação íntima e permanente com o meio, a expressão profunda da criança”
(FREINET, 1976, p. 21). Para o ICEM (1979, p. 11), o texto livre:

2 Essa técnica, por suas características, não se aplica à educação infantil, mas ao Ensino Fun-
damental.

74
A IMPRENSA É UM INSTRUMENTO PEDAGÓGICO PARTICULAR: Em lugar da mecanização
- Ela favorece os tateios das crianças em suas diversas aprendizagens [...] e da improdutividade:
contribuições de Freinet
- Ela favorece as aprendizagens do espaço, dos sinais gráficos, da escrita, da para a alfabetização
leitura, das obrigações socializantes (ortografia e luta contra a disortografia,
legibilidade).
A imprensa é o INSTRUMENTO DE VALORIZAÇÃO DO PENSAMENTO ESCRITO
DA CRIANÇA:
- A página impressa recebe do leitor um status particular que coloca ao nível
do texto oficial.
- A imprensa tipográfica dá ao texto da criança a mesma importância do texto
do adulto.

De acordo com Élise Freinet (1979, p. 30-31, grifos da autora), as vantagens do uso
da imprensa na escola são:

Agilidade Manual e coordenação harmoniosa dos gestos.


Concluído o trabalho: educação da atenção; cada letra tem seu valor, pois é
preciso que o texto impresso seja o mais perfeito possível.
Exercício progressivo da memória visual.
Aprendizagem natural, sem esforço, da leitura e da escrita das palavras.
Sentido permanente da construção de frases corretas.
Aprendizagem da ortografia pela globalização e analise de palavras e frases ao
mesmo tempo.
Sentido de responsabilidade pessoal e coletiva.
Novo clima de uma comunidade fraternal e dinâmica.

A imprensa é a técnica mais utilizada na Pedagogia Freinet para a prática da livre


expressão, já que possibilita a articulação com o texto livre, com o jornal escolar e com
a correspondência inter-escolar. É, portanto, o que vai dar origem e concretude às
técnicas elaboradas por Freinet.
Na perspectiva de Sampaio (1994, p. 202), “a imprensa valoriza, principalmente,
o registro de pensamento da criança, desmistificando a tipografia, desenvolvendo-lhe
o espírito crítico frente aos textos impressos nos livros, revistas e jornais”. Segundo o
ICEM (1979, p. 13):

É uma técnica de vida.


É um texto escrito quando a criança deseja, em qualquer lugar e sobre qualquer
base.
É a oportunidade para uma discussão, para um debate, para um dialogo: ativi-
dade que visa ajudar a criança a precisar e a dominar seu pensamento levando
em conta as exigências do código escrito.
É a expressão escolhida pela criança para comunicar seu pensamento que pre-
valece mesmo que não corresponda aos critérios estéticos e morais do adulto.

Os textos assim elaborados pelas crianças são destinados principalmente ao jor-


nal escolar – nesse caso, os textos a serem impressos são escolhidos por votação em
que o voto das crianças e o do professor tem o mesmo peso. No entanto, podem
destinar-se a “coletâneas pessoal da criança, coletâneas da classe, afixação em mural,

75
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, correspondência, etc. [...] pode também gerar outras atividades: debate, teatro, dese-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO nho, música, expressão corporal” (ICEM, 1979, p. 11). Dessa maneira, integram-se à
“globalidade da expressão da criança” (ICEM, 1979, p. 11).
Élise Freinet (1979, p. 31) registra que “o texto livre libera o pensamento da crian-
ça, facilita sua expressão”. Através dele, a criança pode exprimir seus pensamentos,
sentimentos e idéias, aprendendo a expor e argumentar suas opiniões.
Já Freinet (1976, p. 21) considera que “um texto livre deve ser realmente livre.
Quer isto dizer que escrevemos quando temos alguma coisa a dizer, quando sentimos
a necessidade de exprimir, escrevendo ou desenhando, aquilo que em nós se agita”.
Por isso, o texto livre envolve o respeito à criança e a sua forma de expressar-se. Para o
autor, essa técnica utiliza a linguagem escrita “em prol da vida”, ou seja, utiliza a escrita
em seu papel social de comunicar idéias a outras pessoas.
O jornal escolar é instrumento de socialização e divulgação da livre expressão. “Ele
é o resultado do trabalho de um grupo de crianças [...] que querem comunicar aos
leitores as informações, as opiniões, as pesquisas feitas na classe” (ICEM, 1979, p. 12,
grifos no original).
São condições para o trabalho com o jornal escolar:

- que a classe esteja organizada numa cooperativa de trabalho,


- que a expressão livre esteja em vigor na classe,
- que ela seja realmente livre e que seja criação da criança,
- que essas crianças tenham à sua disposição os instrumentos necessários para
a realização (ICEM, 1979, p. 12).

Na perspectiva do ICEM (1979, p. 12), o conteúdo do jornal escolar centra-se em


“textos livres, desenhos livres, relatórios de enquetes ou de pesquisas, textos coopera-
tivos sobre a vida da classe, jogos...”. Dessa forma, ao ser um instrumento privilegiado
de divulgação das ideias e dos pensamentos infantis, o jornal incentiva a produção da
cultura infantil e novamente utiliza a escrita e as diferentes formas de registro em sua
função social.
Da mesma forma acontece com o jornal mural. As paredes de uma classe da Pe-
dagogia Freinet são repletas de materiais considerados importantes pelas crianças e
pelo professor – e por isso o jornal mural é também chamado de jornal de parede. É
um instrumento importante de avaliação: em uma folha grande colocada em um local
especial da sala registram-se as queixas, os anseios e aquilo que as crianças aprecia-
ram. Esses registros são feitos sob os títulos: “Eu proponho, Eu critico, Eu felicito”
(SAMPAIO, 1994, p. 207) e discutidos coletivamente com toda a turma antes de serem
trocados semanalmente. Com a expressão no mural, Freinet cria para as crianças a
possibilidade de avaliação constante e partilhada da vida na escola e a possibilidades

76
de busca igualmente partilhada de alternativas para a melhoria do trabalho educativo. Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
Com a correspondência inter-escolar, as crianças têm a oportunidade de conhecer ou- contribuições de Freinet
para a alfabetização
tras crianças de escolas diferentes, possibilitando a aprendizagem de outras realidades,
outros costumes, outras experiências etc. De acordo com o ICEM (1979, p. 14):

Na prática, tudo pode ser objeto de intercâmbio. Mas na maioria das vezes
as trocas têm a forma de: cartas individuais, cartas coletivas, textos impressos,
jornais escolares, álbuns, pacotes (presentes de todos os tipos, inclusive golu-
seimas), pesquisa, gravações em fita.

Na ótica de Élise Freinet (1979, p. 31, grifos da autora), “a correspondência escolar


alarga o universo infantil, motiva novas atividades humanas, responde à afetividade
expansiva das crianças, traz unidade de trabalho e de comportamento em classe”.
Outra forma, ainda, de introduzir a criança de forma natural no universo da lingua-
gem escrita criada por Freinet foi o livro da vida que consiste em um registro coletivo
e diário dos fatos considerados importantes pela turma para serem documentados.
É “montado com folhas grandes pelas crianças da classe, de forma que elas possam
juntar mais folhas sempre que quiserem” (SAMPAIO, 1994, p. 211).
É um documento vivo sobre a vida da turma. O registro das atividades realizadas,
dos imprevistos, das inquietações, das conquistas, das avaliações e da reflexão de cada
um dá a ele um caráter singular que possibilita a expressão de sentimentos num regis-
tro diário e coletivo da organização do trabalho educativo.
Por meio do livro da vida, a criança vai compreendendo o crescimento e o de-
senvolvimento da classe como um todo, a importância da documentação como fonte
de memória da vida, ao mesmo tempo em que vai criando para si a necessidade da
escrita, aprendendo a respeitar a interpretação do outro, realizando e aprendendo a
realizar a produção coletiva da história da turma, na qual ela é também autora e assim
se percebe no grupo.
A aula-passeio consiste em passeios, excursões ou saídas do espaço da escola que
permitem o contato dos alunos com o próprio meio no qual vivem. Tudo o que é
visto no passeio é depois comentado e registrado pelas crianças, seja coletiva, seja
individualmente, seja por meio da escrita – quando o professor é o escriba do texto
coletivo das crianças – seja por meio do desenho ou outra linguagem que expresse os
aprendizados: é “a vida entrando na sala de aula” (SAMPAIO, 1994, p. 16).
O planejamento e a organização da aula passeio são sempre coletivos, são parte im-
portante da atividade, uma vez que propiciam a participação ativa das crianças e pos-
sibilitam a ampliação do relacionamento destas com os colegas, com os professores
e com profissionais envolvidos. Por isso, a organização e o registro da atividade estão
sempre presentes, independentemente do caráter do passeio – passeio-informação,

77
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, caracterizado pela busca de informações sobre temas de interesse da turma; passeio-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO repouso, marcado pela descontração de assistir a uma peça de teatro ou a um filme no
cinema, participar de um jogo na comunidade, fazer um piquenique; ou mesmo uma
atividade mais especial, como o passeio-estadia, que envolve a experiência de viajar e
hospedar-se em diferentes lugares.
Freinet julga ser igualmente importante permitir que o grupo de crianças opte por
“sair simplesmente por prazer, pela curiosidade e interesse e não pela obrigação esta-
belecida pelos objetivos educacionais da escola” (SAMPAIO, 1994, p. 181).
Baseado na necessidade de participação da criança em todas as atividades pro-
postas, Freinet propõe que, ao iniciar cada dia na escola, haja um tempo de relato de
experiências, reflexão e planejamento para as crianças.
A roda inicial é o primeiro momento de reunião da turma, é um momento de livre-
expressão e cada aluno tem a oportunidade de manifestar suas ideias, opiniões e senti-
mentos. É também um momento em que se planeja o dia, se discutam os conteúdos a
serem trabalhados: a escolha e seleção dos conteúdos pode partir de um relato, de um
interesse demonstrado, de uma hipótese levantada durante as conversas. A roda ofere-
ce à criança um momento privilegiado para sua expressão, para contar as novidades,
mostrar aos colegas algo que trouxe de casa ou achou no caminho da escola. Desse
ponto de vista, é a atividade na qual se exercita a expressão oral, a convivência no
grupo, o controle da própria conduta. É momento também de troca de informações,
de contextualização das experiências vividas individualmente; é o tempo de discussão,
com todos, dos problemas, das regras, daquilo que é importante para a criança.
É dessa troca inicial de experiências que surgem as ideias para as investigações que
produzirão os álbuns, a notícia que será impressa no jornal da classe e é ainda nesse
momento que o professor pode fazer a ligação entre os interesses apontados pelas
crianças e os conteúdos programáticos escolares – quando se trata, por exemplo, do
Ensino Fundamental.
As intervenções das crianças permitem ao professor estabelecer uma relação entre
problemas, situações cotidianas e conteúdos programáticos. Desta forma, é possível
um tema conduzir a uma nova atividade, tornando o trabalho significativo para as
crianças. Fazendo discussões, formulando hipóteses, questionamentos e reflexões,
cada criança pode colocar a sua visão do problema. O professor confirma ou não as
hipóteses, estimulando a reflexão e o pensamento crítico. Assim, a criança vai partici-
pando do planejamento das atividades e conhecendo os caminhos da busca do conhe-
cimento de forma autônoma e cooperativa.
A roda – ou reunião – final propicia a avaliação das atividades realizadas. É um
momento privilegiado de registro e sistematização do aprendizado. Nesse momento

78
as crianças relatam, ouvem opiniões e sugestões dos colegas para o encaminhamento Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
de suas atividades individuais e coletivas – e, novamente, exercitam a expressão, a vida contribuições de Freinet
para a alfabetização
em grupo e suas disciplinas, a convivência com a escrita em sua função social.
O fichário escolar cooperativo – ou fichário documental – consiste em uma forma
alternativa de material didático caracterizada pela organização de fichas de assuntos es-
pecíficos. Nesse fichário há o registro dos conteúdos estudados pela turma ou por um
grupo de alunos. As crianças registram os assuntos através da escrita ou por meio de
gravuras recortadas ou desenhadas que serão agrupadas em um fichário cooperativo
disponível à consulta autônoma de todos. Quando as fichas elaboradas se avolumam
e passam a exigir alguma forma de organização para otimizar sua utilização, o fichário
é organizado por ordem alfabética. É em momentos como esse – em que faz sentido
e é necessária – que a ordem alfabética é apresentada às crianças. De outra forma, a
escrita acontece sempre tendo como unidade mínima a palavra e o próprio texto que
manifesta o desejo de expressão das crianças.
Mais que um simples arquivo, o fichário escolar cooperativo caracteriza a docu-
mentação e a socialização do conhecimento não só para o grupo classe, como para os
correspondentes interescolares. É uma forma de troca de experiências e descobertas.
Segundo Mello (1992 p. 96, grifos da autora), buscando a autonomia da criança diante
do trabalho a ser realizado,

Freinet passa a elaborar os fichários auto-corretivos, contendo diversos assun-


tos pesquisados e a serem apreendidos e exercícios para solidificar as relações
estabelecidas, acompanhados de fichas com vários tipos de desenvolvimento e
resultado – podendo ser efetuadas individualmente ou em grupo.

Esses fichários autocorretivos vão propiciar à turma uma autonomia em relação às


explicações do professor e permitir ao professor a possibilidade de oferecer atenção
especial a determinados estudos ou grupos que o solicitem.
A confecção dos álbuns configura-se em uma coletânea de materiais elaborados
pelas crianças sobre um determinado assunto que lhes desperte o interesse. Por meio
de investigações individuais ou coletivas as crianças vão conhecendo o meio em que
vivem, sua história, sua geografia, as pessoas, sua organização em comunidade, seus
costumes, as características do ambiente. Em consonância com Marques (1984, p. 30),
“em cartolina ou papel as crianças colam, pintam e escrevem sobre um determinado
tema” registrando com as linguagens possíveis o conhecimento que estruturam, as
interpretações que realizam sobre o que passam a conhecer. Elaboram textos que o
professor registra constituindo, com esses materiais, álbuns que expressam o conheci-
mento produzido pelo grupo sobre temas de seu interesse.
Com a abolição do uso dos manuais educativos – os livros didáticos – Freinet

79
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, propõe a organização em cada sala de aula de uma biblioteca de trabalho onde, além
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO de exemplares de enciclopédias, livros paradidáticos e revistas, encontram-se livros
confeccionados pelas próprias crianças. Esses livros impressos pelas crianças remetem
a temas de interesse geral da classe “cujo professor se dispõe a coordenar cooperati-
vamente os trabalhos de investigação, organização, redação e documentação fotográ-
fica” (MARQUES, 1984, p. 29). A correspondência interescolar é veículo de divulga-
ção dos álbuns e de troca de informações com outras crianças sobre os estudos em
desenvolvimento.
Para organizar as atividades das crianças dentro de uma dinâmica de participação
e autonomia, Freinet propõe planos de trabalhos elaborados pelas próprias crianças
acerca do conteúdo que devem estudar em sala de aula, considerando o programa
curricular e os interesses das crianças3. Na concepção de Marques (1984, p. 26),

o professor os elabora junto com elas [as crianças] e segundo seus interesses
pessoais, mas não deixando de lado as exigências que o meio impõe, como por
exemplo o horário para a realização das atividades específicas, o programa, se
houver, a elaboração dos textos da correspondência. Estes planos permitem
ainda que a criança possa avançar segundo seu próprio ritmo, já que, após o
cumprimento de suas tarefas, poderá partir para outras atividades que sejam
de seu agrado, bem como procederá através dos mesmos à sua auto-avaliação.

Dessa forma, o programa escolar é distribuído ao longo dos meses do ano e em


subgrupos semanais. Isso é feito juntamente com as crianças. Depois dessa divisão, as
crianças escolhem as “estratégias de desenvolvimento das atividades, que podem ser
executadas em grupos, aos pares ou individualmente”.
Os planos de trabalhos são organizados em quatro tipos. O plano de trabalho geral
é organizado inicialmente pelo professor com os “assuntos que comumente chamam a
atenção das crianças”, sendo ampliado com os assuntos não previstos que despertarem
o interesse das crianças (MELLO, 1992, p. 97). O plano anual é organizado a partir do
programa curricular a ser desenvolvido em cada série e “afixado ao alcance das crianças
para dele tomarem ciência” e visualizarem os assuntos já discutidos e aqueles que po-
dem ser desenvolvidos segundo o interesse delas. Mello (1992, p. 97) informa que “o
seu cumprimento é de responsabilidade de todos os membros do grupo”, no entanto,
não é estabelecido rigorosamente uma seqüência. Os planos semanais são baseados nos
planos anteriores e auxiliam na delimitação do que é realizado durante a semana. Os
planos diários oferecem à criança a previsão das atividades para o dia de trabalho. São
estabelecidos com as crianças na reunião inicial. Semanalmente é realizada uma reunião

3 Esta técnica de trabalho, por suas características, se aplica ao ensino fundamental e não à
educação infantil.

80
com o propósito de avaliar os acontecimentos e os trabalhos realizados durante a sema- Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
na. Tais planos oferecem às crianças o acompanhamento de seus estudos e as possibili- contribuições de Freinet
para a alfabetização
dades de escolhas que podem se estabelecer em cada instância do trabalho educativo.
Para a articulação dessa dinâmica que constitui a atividade na Pedagogia Freinet, o
espaço da sala de aula deve ter uma configuração distinta da sala de aula tradicional,
porque deve promover e favorecer a autonomia e a participação das crianças. Para
tanto, Freinet estruturou “cantos de trabalho, que comportam um número limitado
de alunos” (SAMPAIO, 1994, p. 187), alguns fixos e outros variáveis. De acordo com
Sampaio (1994, p. 187), “o material a ser utilizado em cada canto – ateliê ou oficina –
deve ficar organizado e ao alcance das crianças” de maneira que

Sem a interferência direta dos adultos, a socialização das crianças ganha um


ritmo próprio. Essa prática na sala permite uma vida cooperativa. As crianças
têm mais opções, o que não significa que tenham sua vontade atendida ime-
diatamente, pois os cantos comportam um número limitado de elementos e é
preciso esperar, caso o canto escolhido estiver lotado (SAMPAIO 1994, p. 187).

Desse modo, é um espaço de desenvolvimento único para a criança, no qual ela


trabalhará suas vontades e as possibilidades de cooperação e realização dentro do
grupo escolar.
Observador das crianças e suas atitudes, Freinet alia o estudo de autores clássicos
à reflexão sobre o trabalho que experimenta e, aos poucos, vai desenvolvendo um
profundo respeito pelas crianças e elabora um rol daquilo que ele chamou de neces-
sidades vitais da criança e que nortearão a proposição de suas técnicas. Para o autor,
essas necessidades relacionam-se ao expressar-se, ao desejo de comunicar-se, de agir,
de participar, de organizar-se e de ter disciplina na atividade, de conhecer, e de ter
sucesso.
Com esse ponto de vista, devemos realçar o fato de que as técnicas elaboradas
por Freinet não existem separadas de uma nova atitude do educador em relação às
crianças. Pelas técnicas não existirem em si mesmas, mas dentro de um conjunto de
concepções que envolvem uma nova forma de relação entre educador e criança que
favorece a organização da turma, da integração das crianças em um processo de gestão
coletiva, a proposta pedagógica desenvolvida por Freinet passou a ser conhecida como
Pedagogia Freinet.
Essa relação entre educador-crianças – democrática e profundamente respeitosa
com as crianças – garante, também por parte das crianças, atitude respeitosa em re-
lação aos adultos que as tratam com respeito. A necessidade de participação e de
ação das crianças percebida por Freinet e traduzida por uma ação compartilhada não
apenas nas novas situações que a turma enfrenta, mas também nas situações diárias da

81
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, turma, garante que as crianças conheçam o plano de atividades do dia e discutam esse
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO plano, façam sugestões, ajudem a decidir o que vão fazer, como vão fazer e, ao final, o
avaliem. Essa prática cria inúmeras oportunidades para que as crianças possam fazer,
das tarefas diárias da escola, atividades significativas que acarretem avanços igualmen-
te significativos no desenvolvimento de sua inteligência e de sua personalidade.
Nessa perspectiva de intensa participação das crianças, importa destacar que o edu-
cador não perde seu papel como coordenador do processo, mas deixa de ser mero
controlador, fiscal ou dono do processo. Freinet descobriu que a escola autoritária já
estava fora do lugar no início do século XX e promove, em seu tempo, aquilo que hoje
conhecemos como pedagogia da escuta, tratando da atitude do educador que está ao
lado e não contra suas crianças em seu processo de encontro com a cultura social e
historicamente acumulada, percebendo-as como alguém capaz de fazer teoria desde
ainda muito pequena e, por isso, dá voz a ela no processo educativo. Desse ponto de
vista, faz o processo de conhecimento nos moldes do processo de apropriação e de
objetivação que constitui a dinâmica responsável pelo processo de humanização pelo
qual devem passar as novas gerações.

Considerações Finais
Ao longo do texto, apresentamos diretrizes apontadas por Célestin Freinet e que
fundamentam suas técnicas de ensino buscando nortear a aquisição da linguagem es-
crita por procedimentos usados em função da necessidade dessa forma de linguagem.
Contrariando a metodologia tradicional, Freinet inicia o trabalho com essa linguagem
pela expressão escrita dos relatos feitos pelas crianças a partir das experiências sig-
nificativas que viveram. Neste sentido, Freinet ensina as suas crianças que escrever é
desenhar ideias, sentimentos, informações. Freinet (1977) defende seu método, de-
nominado Natural de aprendizagem da escrita, como a passagem de uma forma de
linguagem a outra – do desenho para a linguagem oral e escrita. Ao mesmo tempo,
defende a convivência, a utilização e o respeito às diferentes linguagens usadas pela
criança ao longo do Ensino Fundamental, preservando e cultivando sempre e essen-
cialmente o desejo de expressão e de comunicação, que são vislumbradas pelo autor
como necessidades vitais da criança.
Do que anunciamos, no processo de alfabetização, as interações e as atividades
entre pessoas – adultos e crianças – formam os relacionamentos fundamentais à apro-
priação da atividade de escrita e da leitura e de outras qualidades humanas que en-
volvem a colaboração, a solidariedade, a autonomia e o trabalho conjunto. Nesses
movimentos de interação, professor e criança são essencialmente protagonistas das
atividades partilhadas e vivenciadas no espaço escolar.

82
Nesse processo de interação e atividade, a comunicação entre professor e alunos Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
ganha força e possibilita avanços significativos no desenvolvimento da conduta infan- contribuições de Freinet
para a alfabetização
til, uma vez que, adulto e crianças, ao se perceberem sujeitos ativos, comunicam de-
sejos e necessidades, expressam seus conhecimentos e hipóteses. Neste sentido, o
papel do professor é ser mediador entre as crianças e o conhecimento pela motivação
e criação das necessidades deste conhecimento — dentre elas, a necessidade de se ex-
pressar pela linguagem escrita. É mediador ao oportunizar situações de aprendizagem
e momentos de interação, a partir da sua intencionalidade e da sua “escuta” daquilo
que as crianças falam, pensam e desejam.
Por esse prisma, os exercícios previamente produzidos pelos adultos para execu-
ção pelas crianças não fazem delas atoras e membros efetivos nas atividades sociais de
leitura e de escrita que podem vir a acontecer no interior das instituições educativas.
Esses exercícios limitam-se a um fazer mecânico, descaracterizado de sentido para a
criança. Para que o processo de alfabetização possa consolidar-se como uma atividade
e, desse ponto de vista, para que seja significativo e qualitativo para o desenvolvimento
humano, tem que fazer sentido para quem o vivencia. A criança tem que ser agente,
autora e sujeito das situações educativas, tornando-se ora leitora, ora escritora, mas
sempre ativa do ponto de vista dos jogos interativos e interdiscursivos que se estabe-
lecem na instituição escolar.
Tanto no que concerne à objetivação como no que concerne à apropriação do
conhecimento elaborado que se abre com a apropriação da leitura e escrita, Freinet
elabora técnicas condizentes à ideia da pessoa como capaz, desde que nasce, de agir
sobre o mundo e transformá-lo: ao abandonar os manuais escolares em favor da ex-
pressão das crianças, abre, para elas, as portas das bibliotecas, dos museus, dos labo-
ratórios, dos teatros. Com isso, amplia o conceito de alfabetização e traz para a escola
um pouco do espaço do camarim dos teatros, dos ateliês dos artistas, das gráficas,
das oficinas de artesãos, buscando ampliar o acesso das crianças ao mundo da cultura
humana, fonte de experiência e humanização.

Referências

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Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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83
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ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO

FREINET, Élise. Nascimento de uma Pedagogia popular: os métodos Freinet.


Tradução de Rosália Cruz. Lisboa: Estampa, 1978.

______. O itinerário de Célestin Freinet: a livre expressão na Pedagogia de


Freinet. Tradução de Priscila de Siqueira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
Editora, 1979.

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Paulo: Ícone; Edusp, 1988. p. 59-84.

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prática. 2005. Tese (Doutorado)–Faculdade de Ciências e Filosofia, Unesp, Marília,
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MARQUES, C. S. R. Freinet e a Pré-escola: o que muda?. 1984. Dissertação


(Mestrado) Universidade Federal de São Carlos, São Carlos,1984.

MELLO, R. R. Pedagogia Freinet: um caminho para uma Educação ativa. 1992.


Dissertação (Mestrado)–Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1992.

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RIBEIRO, A. L. Teoria Histórico-Cultural e Pedagogia Freinet: considerações Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
sobre a mediação entre teoria e prática no processo de aquisição da escrita. 2004. contribuições de Freinet
para a alfabetização
Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Brasileira) Faculdade de Filosofia e
Ciências, Unesp, Marília, 2004.

SAMPAIO, R. M. W. F. Freinet: evolução histórica e atualidades. 2. ed. São Paulo:


Scipione, 1994.

SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo


discursivo. 8. ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual
de Campinas, 1999.

Proposta de Atividade

1) Discuta com sua turma ou grupo quais as implicações pedagógicas do trabalho docente
com as Técnicas Freinet para a formação de leitores e escritores competentes desde a edu-
cação infantil?

Indicações de Leitura:

FARIA, A. L. G. de; MELLO, S. A. (Org.). Linguagens infantis: outras formas de


leitura. Campinas, SP: Autores Associados, 2005a.

FARIA, A. L. G. de; MELLO, S. A. (Org.). O mundo da escrita no universo da


pequena Infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2005b.

FERREIRA, G. de M. (Org.). Palavra de professor (a): tateios e reflexões na prática


da Pedagogia Freinet. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.

85
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

86
5 Imagens e narrativas
no percurso de
alfabetização de jovens,
adultos e idosos
Regina Lúcia Mesti

Aprender a ler e escrever é uma motivação especial para os alunos jovens, adultos
e idosos que frequentam a sala de aula das séries iniciais do Ensino Fundamental,
período no qual a perspectiva de organização do trabalho pedagógico tem como ên-
fase o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita dentre os estudos de conceitos
científicos, culturais e artísticos. Saber ler e escrever se constitui em uma necessidade
indiscutível de cada pessoa para participar dos bens culturais e direitos sociais e
políticos.
O direito à Educação de Jovens e Adultos foi assegurado no texto da Constitui-
ção da República Federativa do Brasil de 1988. Essa responsabilidade, assumida pelo
Ministério da Educação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de1996,
tem sido analisada em congressos, seminários e pesquisas educacionais. Segundo es-
ses documentos (BRASIL, 2000), a alfabetização de jovens, adultos e idosos, antes de
tornar-se modalidade da Educação Básica, fora desenvolvida, principalmente, por mo-
vimentos sociais. Atualmente, é atribuída à escola da Rede Pública Estadual a função
de sistematização da alfabetização e escolarização.
Os princípios teóricos e metodológicos que fundamentam a organização do tra-
balho pedagógico – que articula o processo de alfabetização e o estudo da cultura
– estão referenciados na apresentação das intervenções dos alfabetizadores em um
contexto especial de comunicação e significação, a saber, em um projeto de alfabetiza-
ção da Universidade Estadual de Maringá, parceira no Programa Alfabetização Solidária
(1998). Neste capítulo, analisamos as práticas de alfabetização e a atuação dos jovens,
adultos e idosos nas trocas simbólicas e interações com o universo da cultura e o pro-
cesso de aprendizagem da leitura e escrita.
A pesquisa do universo vocabular e a seleção de temas e palavras carregadas de
sentido para as práticas de alfabetização configuram-se em uma proposta do educador

87
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Paulo Freire (2006). Este educador realizou os círculos de cultura com trabalhadores
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO jovens, adultos e idosos, nas décadas de 70 e 80 do século XX no estado de Pernambu-
co, no Brasil. Conhecer o universo cultural e linguistico foi assumido como condição
primeira na organização do trabalho pedagógico de alfabetização.
A investigação sobre a história da comunidade colaborou com a identificação de
traçados de movimentos de vida dos alunos jovens, adultos e idosos. Esses sujeitos da
alfabetização e da significação problematizaram algumas situações que indicam con-
fronto entre as condições de vida e as histórias ouvidas nos palanques e lidas nas anti-
gas cartilhas. Associado às leituras e aos estudos das práticas culturais, o conhecimento
que conquistaram contribuiu para discutir as narrativas e os valores das lições escola-
res. Organizar o trabalho pedagógico tendo como objetivo promover o conhecimento
da linguagem escrita e seu uso social foi o trabalho diário do alfabetizador.

Do círculo de cultura às práticas de alfabetização


Em nossas salas de alfabetização, um dos livros de leitura apresentava narrativas
com explicações de cenas e cenários da vida em torno de uma lagoa margeada pela
lavoura de cana-de-açúcar em Roteiro, estado de Alagoas, nos anos que finalizam o
século XX e iniciam o século XXI, o lugar e o tempo de nossa parceria no projeto
de alfabetização. O que dizem essas histórias? Quem são os autores? Quais as fontes
desses dados inteligíveis e sensíveis que reapresentam histórias de vida? A produção
das imagens e das narrativas esteve vinculada ao levantamento de dados do universo
vocabular e estudos das práticas culturais da comunidade que exigiram muitos atos
de linguagem dos alfabetizadores e seus alunos. Antes e depois dos atos de ensinar e
aprender a fotografar e analisar as imagens, entrevistar e compor as narrativas, inter-
pretar e refletir sobre a realidade vivida, todos desempenharam o papel de aprendiz
da leitura e da escrita. Para esclarecer conceitos, recorreram aos dicionários e livros da
pequena biblioteca da cidade; as primeiras leituras foram realizadas em sala de aula
com a voz do alfabetizador.
Um dos projetos de estudos das práticas culturais daquela comunidade foi intitula-
do ‘Imagens de Minha Vida’ e em sua realização cada aluno e cada alfabetizador enfren-
tou o desafio de elaborar um roteiro fotográfico e “clicar”, fazendo a seleção do que
precisava retratar para completar o livro de leitura ‘Caminhos da Sobrevivência’. Em
suas narrativas, podemos ler as explicações referentes à pesca, ao plantio da mandioca
e à torra da farinha, ao corte e à moagem da cana e ao processo da usina de açúcar.
Com as fotografias em mãos houve uma explosão de falas e sentidos. Alfabetizado-
res e alunos romperam o distanciamento das histórias de vida e a co-presença de suas
vozes, seus sentimentos, suas narrativas, seus valores superaram um dos obstáculos ao

88
conhecimento. Na artimanha da comunicação, na investigação com o apoio de ima- Imagens e narrativas no
percurso de alfabetização
gens fotográficas, identificamos uma nova atitude no ato de contar, novos elementos de jovens, adultos e
idosos
nas narrativas que incluem os atores sociais trabalhadores em um espaço de tempo e
vida a caminho da sobrevivência. Nessas interações comunicacionais de produção de
texto alunos e alfabetizadores tornaram-se interlocutores no diálogo sobre a cultura.
Nesse contexto de comunicação foram desenvolvidas as intervenções pedagógicas,
próprias da alfabetização. Foi preciso ensinar e aprender as palavras em sua grafia e
reconhecer o sentido no texto, identificar os significantes e seus significados, compre-
ender o sistema de representação da linguagem escrita. Os atos de ensinar e aprender
a língua escrita em situações de comunicação fez esses autores formular e responder
às perguntas organizadoras de um texto: quem diz? O que diz? Como diz? Para quem
diz? Que tipo de texto está sendo escrito, descritivo ou narrativo? Com esse ato, assu-
mimos o enunciado como aquilo que é dito, e como produtores do texto, assumimos
a enunciação?

Qualquer análise da ação desemboca obrigatoriamente na interação; qualquer


discurso pressupõe a interface dos sujeitos decorrentes. A concepção das ati-
vidades humanas como sequências mais ou menos bem agenciadas de ações e
de acontecimentos ou, no plano cognitivo, de realizações e avaliações, dá lu-
gar, consequentemente, a uma abordagem discursiva nas ciências da linguagem
(...). Mas vê-se logo que a assunção do discurso como enunciado, como aquilo
que é dito, não deixa de por o problema da enunciação como ato produtor do
discurso, e do dizer como uma atividade tanto individual como social entre as
mais importantes (GREIMAS, 1995, p. 121).

Algumas problematizações sobre as condições de vida e trabalho apontaram para


a necessidade de ampliar os estudos relativos às práticas culturais de outros lugares e
tempos diversos, fazendo-se necessárias pesquisas com livros, jornais e documentos
oficiais de instituições brasileiras. Nossos estudos prosseguiram e o entendimento dos
fatos sociais se modificava e indicava a existência de uma contextura ideológica com
sentido histórico, político e econômico.
O segundo projeto de levantamento do universo vocabular teve como título ‘His-
tórias de Vida em Roteiro’. Com o objetivo de conhecer as origens da ocupação de
Roteiro e as condições de vida daqueles moradores das casas de taipa, elaboramos em
sala de aula um roteiro para entrevistar os mais antigos da comunidade. Os depoimen-
tos surpreenderam os entrevistadores e atiçaram a imaginação de todos os envolvidos.
Na narrativa resultante dessa coleta de informações figura uma santa que fora encon-
trada no rio e erguida em um altar pelos devotos, no início do século passado. Uma
senhora fazendeira, em situação de perigo em tempestade no mar, promete à santa
que se sobrevivesse ao acidente entregaria suas terras à protetora. Nos dias seguintes
ao salvamento a doação se concretizou em um registro cartorial na cidade próxima.

89
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Essa história oral de Roteiro, considerada uma versão da significação presente
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO na memória dos moradores, tem sua origem marcada pela doação de um lote de
terra para uma santa, e foi incluída em nossos estudos das práticas culturais daquela
comunidade, ganhando registro nos quadros das salas de alfabetização. A atuação de
alfabetizadores e alunos na reapresentação da história na forma escrita se constituiu
em uma oportunidade para ensinar e aprender a escrever e a organizar um texto.
Na produção de narrativas é preciso presentificar os sujeitos das ações e das
conquistas, localizar o espaço e o tempo dos acontecimentos e, ainda, identificar as
transformações nos cenários e nas situações vividas ao longo do século. Em sala de
aula, a transformação dos relatos orais em texto escrito exigia requisitos que ainda
não haviam sido conquistados na alfabetização: as normas da língua portuguesa que
foram apresentadas de forma sistemática não eram suficientes, as dúvidas geradas
no momento da escrita fizeram buscar constantemente os livros de gramática.
A escrita de diálogos sugestivos dos acontecimentos passados produziu um efeito
de sentido com certo ar teatral e instigaram significações dessas histórias de vida.
Essa origem de Roteiro não coube no livro de leitura, sua reapresentação se fez na
forma de interpretações. Todos se envolveram na produção de figurinos e compo-
sição do cenário com barcos, cascas de árvores e de mariscos. Nos ensaios sob a
direção do Professor Pedro Carlos de Aquino Ochôa, Diretor de Teatro da Univer-
sidade Estadual de Maringá, os personagens assumiam seu modo de ser e dizer na
apresentação da peça “Roteiro”, realizada em dois atos e duas sessões para a plateia
de moradores; podem-se ouvir os aplausos de confirmação de nossos colaboradores
entrevistados. Presenciamos mais do que a apreciação da peça teatral no pátio, ob-
servamos a ocorrência de reflexões sobre as condições de vida dos alunos trabalha-
dores que apontam para a relação entre as dimensões social, econômica e política,
como ensinou Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido (1980).
Atingida pela gestualidade de tantos envolvidos nesses atos de linguagem, a alfabe-
tização foi sistematizada a cada dia e assumida no contexto da comunicação com estu-
dos e sentidos construídos nas trocas sociais, cognitivas e afetivas. Os alfabetizadores
e os alunos são os trabalhadores da lagoa e das lavouras e usinas de álcool, esses ato-
res sociais que investigaram as Histórias de Vida em Roteiro e as reapresentaram no
texto teatral, assumiram a função de roteiristas na seleção das Imagens de Minha Vida
e completaram as informações do livro de leituras. Solicitados pelas intervenções
pedagógicas a atuarem como sujeitos da significação na leitura e escrita produziram a
história de Roteiro que não mais se conforma às lições de antigas cartilhas escolares.
O livro de leitura produzido em sala de aula não permaneceu intocável para o ano
seguinte, escrito e reescrito muitas vezes, incluiu os novos conhecimentos.

90
As narrativas e a organização do conhecimento Imagens e narrativas no
percurso de alfabetização
A análise do projeto de estudo da cultura em Roteiro instigou a busca de signi- de jovens, adultos e
idosos
ficação das imagens na história dos homens: o desenho e a fotografia. Ainda arte-
sanais, os desenhos traziam marcas das habilidades motoras e dos materiais que as
instauraram. Os processos manuais para construção de imagens nas pinturas diver-
sas empreendidas ao longo do desenvolvimento universal assumiram outra forma
no século XIX com a tecnologia da fotografia. O uso das fotografias em jornais pode
conduzir o dizer de duas maneiras: não interferindo nas relações com o texto es-
crito ou mantendo relação – de colaboração ou de contraposição – com o verbal.
Construções poéticas e imagens noticiosas correspondem a naturezas diferentes em
seus modos de existir, mas as duas provocam a dimensão sensível e inteligível do
observador.

Tanto as imagens pictográficas quanto às fotográficas exigem, para que sejam


lidas, que se ignorem certas diferenças entre o mundo natural e as imagens
que dele decorrem no que se refere, pelo menos, a três aspectos: 1) escala,
ou seja, a redução do tamanho da imagem em relação à sua origem (con-
densação); 2) a conversão dos valores tridimensionais do meio para os bidi-
mensionais do suporte (a planificação); 3) a restrição cinética (a fixação dos
movimentos); isso faz com que seja possível reconhecer, nas imagens, modos
de existência próprios. Elas subvertem o estatuto de existência e reconheci-
mento do mundo natural na medida em que o reconfiguram segundo seus
próprios estatutos, não mais os do mundo, mas os das imagens. As coerções
técnicas a que submetem os valores e qualidades do mundo natural são orga-
nizadas para a construção de um simulacro imagético capaz de significar qua-
se tanto quanto o mundo significa, sem possuírem, no entanto, as proprieda-
des que o mundo possui, mas por terem meios de simular essas propriedades
em sua constituição enunciativa (CAMARGO, 2003, p. 38).

Nessas atividades investigativas e representativas do projeto de alfabetização fo-


ram produzidos mais do que imagens e narrativas, retratos e histórias referentes
às situações de vida. No contexto da comunicação, esses investigadores realizaram
trocas simbólicas durante a análise das imagens, o que permitiu a cumplicidade
de sentido para o grupo de alfabetizadores e de alunos que identificaram algumas
relações entre os fatos sociais, políticos e econômicos, ainda que não tenham sido
assim denominados por eles ou por nós naquelas situações de estudos e registros
diversos.
Nesses estudos, foi valorizada a experiência de cada sujeito em seu meio social e
cultural como um ponto de partida para a compreensão da sociedade em suas for-
mas históricas de organização. Para superar a visão primeira da experiência empírica,
enunciada por Paulo Freire (2006) como “ingênua”, é necessário ampliar o conhe-
cimento, analisar conceitos, compreender as produções das condições sociais em
suas dimensões política e econômica. E, para investigar, para além da sobrevivência e

91
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, dessas raízes da vida, foi preciso intensificar as interações com o patrimônio científico
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO da humanidade. Os estudos não permaneceram restritos aos temas locais, foram, sim,
ampliados em redes de sentido com leituras de obras da história e da arte. Algumas
das intervenções pedagógicas se constituíram em atos de leitura em busca de infor-
mações, o que evidenciou a existência de um universo de conhecimento sistematiza-
do pela sociedade que tratam de movimentos de vida próximos e distantes.
O diálogo no sentido da pedagogia freireana exige mais, requer que o conhe-
cimento e a linguagem também sejam ampliados. Ao identificarmos e utilizarmos
em sala de aula o modo de dizer peculiar daquela comunidade se deu o primeiro
“zoom”, ou seja, eles se expressaram e se aproximaram de suas significações. To-
davia, não limitamos os estudos e o uso apenas da linguagem conhecida por eles,
fizemos o movimento inverso, no segundo “zoom”, agora de ampliação para outros
universos culturais, conhecendo outras palavras e sentidos.
Podemos afirmar que são muitos os fatores que interferem positiva ou negativa-
mente na aprendizagem da leitura e escrita e na organização do trabalho pedagó-
gico. O que postulamos é a necessidade de práticas pedagógicas que desenvolvam
a sistematização da linguagem escrita em situações de uso e significação. Organizar
em narrativas escritas as histórias orais, apresentadas nas entrevistas, exigiu dos al-
fabetizadores e seus alunos a aprendizagem de fazer anotações e compor a histó-
ria das práticas culturais daquela população, desde o suposto encontro do Bispo
Sardinha com os índios Caetés. Para tanto, foi necessário organizar o tempo em
séculos, localizar o espaço geográfico da costa brasileira, identificar as etnias indíge-
nas presentes naquela região, analisar o processo de colonização antes e durante a
ocupação dos portugueses e, ainda, reconhecer nas pesquisas de Câmara Cascudo
(1976) algumas representações de festas folclóricas cujos desfiles viram e ouviram
em tempos remotos.
As manifestações por escrito foram insuficientes para perceber o sentido; nossos
participantes quiseram fazer o caminho inverso da representação para a interpreta-
ção. Os alfabetizadores, preparados pelas pesquisas e ensaios da professora Sueli
Souza, coordenadora do Grupo Fogança da Universidade Estadual de Maringá, re-
criaram os passos do folguedo Guerreiro e saíram do papel, esse espaço de repre-
sentação escrita e imagética, para a interpretação ao vivo e a cores que se fez em
outro espaço. No pátio da escola, com peças de vestuários encontrados nos baús,
dançaram ritmados pelos remanescentes tocadores de pífano que ensaiavam desde
a apresentação da peça teatral.

92
Considerações finais Imagens e narrativas no
percurso de alfabetização
As intervenções pedagógicas desenvolvidas nesse projeto de alfabetização de jo- de jovens, adultos e
idosos
vens, adultos e idosos foram fundamentadas no reconhecimento do universo cultural
e vocabular e na valorização dos sentidos atribuídos pelos alunos e alfabetizadores.
Essa responsabilidade de trabalho cooperativo, com a finalidade de selecionar os te-
mas de estudos e organizar os textos das salas de alfabetização, exige que o alfabeti-
zador pesquise para compreender o cenário de vida da comunidade e a organização
social, política e econômica nacional e internacional. A perspectiva teórica do estudo
da significação aponta para o contexto histórico, no qual o percurso de interações
sociais se faz no cenário do mundo do trabalho tracejado pela lavoura de cana e do
engenho de açúcar no nordeste brasileiro.
Ler e escrever, tarefa árdua, não foi dissimulada, mas sim sentida como empreitada
exigente e valiosa para conhecer e utilizar a língua portuguesa, registrar significações
no contexto da comunicação. Sistema complexo esse da representação da linguagem,
que exige dedicação contínua no ato ensinar e aprender. Os alfabetizadores aprende-
ram a sistematizar a alfabetização e muitos alunos persistiram na interação e aprendi-
zagem do universo escrito, assim como quem interfere na narrativa e recompõe sua
própria história de vida.
Nesse projeto de alfabetização, destacamos os estudos do processo de comuni-
cação humana como um dos fundamentos da educação de jovens, adultos e idosos
assinalados por Paulo Freire em sua prática pedagógica. Confirmamos que o desafio do
diálogo mobiliza, reciprocamente, os interlocutores no processo de conhecer e buscar
significações. O estudo sobre a cultura desencadeou a atuação nas experiências de
leitura e escrita que foram cuidadosamente organizadas e corrigidas pelos alfabetiza-
dores. O processo de escolarização colaborou para o registro do conhecimento organi-
zado em sala de aula e foi condição para o acesso ao patrimônio cultural da sociedade.
Vale salientar que alguns conceitos aqui valorizados e que se referem às práticas de
alfabetização e ao processo de aprendizagem da leitura e escrita estão desenvolvidos
nos demais capítulos deste livro.
O sentido e o contexto da comunicação também estão presentes na Educação a
Distância, uma vez que a prática pedagógica se realiza por meio das formas tecnológicas
que permitem as interações comunicacionais. Por exemplo, as interações com a cultura
manifestam-se em uma teleconferência e no diálogo entre os que atuam na análise e
discussão de um tema durante uma teleaula. Da mesma forma, as interações com o co-
nhecimento são possíveis com as trocas entre o escritor e o leitor deste capítulo de livro
que escrevemos, tendo como interlocutor você, aluno do curso de Graduação em Peda-
gogia a Distância na Universidade Estadual de Maringá e Universidade Aberta do Brasil.

93
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Referências

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alfabetização solidária. Brasília, DF: SOL, 1998.

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CAMARGO, Isaac. Modos de presença da imagem. 2003. Tese (Doutorado)–


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.

CASCUDO, Câmara Luís. Geografia dos mitos brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora; MEC, 1976.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e
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94
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______. Sabedoria e ilusões da Filosofia. São Paulo: Abril. 1997. (Os pensadores).

Proposta de Atividade

1) Leia com atenção e procure compreender esse projeto pedagógico do capítulo Imagens e
Narrativas no percurso de alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos.
a) Descreva as ações práticas de alfabetização desenvolvidas pelos alfabetizadores e
alunos.
b) Identifique quais são os novos conhecimentos conquistados pelos alfabetizadores e
alunos.
c) Analise esse projeto de alfabetização de jovens, adultos e idosos desenvolvido em um
contexto da comunicação.

Indicações de Leitura

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos.


Parecer CEB 11/2000 do Conselho Nacional de Educação. Brasília, DF, 2000.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2006.

Anotações

95
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

96
6 A apropriação da
linguagem matemática
nos primeiros anos de
escolarização
Silvia Pereira Gonzaga de Moraes

Neste capítulo, refletiremos sobre a organização do ensino de matemática para


as crianças no processo inicial de escolarização. Com esse propósito, primeiramente
apresentaremos a concepção de matemática articulada ao processo de ensino e de
aprendizagem das crianças nessa etapa de desenvolvimento, o significado de alfabe-
tização, a função da escola e o papel do professor. A seguir, desenvolveremos uma
atividade de ensino como forma de relacionar os pressupostos teórico-metodológicos
e práticos no trabalho com as crianças.
Entendemos a matemática como um conjunto de signos que permite ao homem
codificar e transmitir informações sobre o controle de quantidade. Assim, a matemáti-
ca constitui-se uma forma de linguagem produzida historicamente para a satisfação das
necessidades humanas. Concebemos a linguagem no sentido defendido por Leontiev
([197-], p. 184):

A linguagem é aquilo através do qual se generaliza e se transmite a experiência


da prática sócio-histórica da humanidade, por conseqüência é igualmente um
meio de comunicação, a condição da apropriação dos indivíduos desta experi-
ência e a forma da sua existência na consciência.

Segundo Caraça (1989, p. xiii), a matemática “[...] aparece-nos como um organis-


mo vivo, impregnado de condição humana, com as grandes necessidades do homem
na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como um grande
capítulo da vida humana social”. Nessa mesma perspectiva, Moura (2007, p. 44) define
a matemática como um conjunto de ferramentas simbólicas criadas pelos homens para
a satisfação de suas necessidades.

A matemática, como produto das necessidades humanas, insere-se no conjunto


dos elementos culturais que precisam ser socializados, de modo a permitir a
integração dos sujeitos e possibilitar-lhes o desenvolvimento pleno dos indi-
víduos, que na posse de instrumentos simbólicos, estarão potencializados e
capacitados para permitir o desenvolvimento do coletivo.

97
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Ao defender a necessidade da socialização dos conhecimentos matemáticos, Moura
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO (2007) nos provoca a pensar o ensino de matemática para os aprendizes em diferentes
etapas da vida, no caso específico deste texto, às crianças no início do processo de
escolarização.
Desse modo, compactuamos com os pressupostos da teoria histórico-cultural, a
qual defende que é por meio da apropriação da cultura, das ferramentas simbólicas
produzidas pelos homens que os sujeitos desenvolvem-se e humanizam-se. Apropriar
dos conhecimentos matemáticos constitui-se em uma das formas dos sujeitos torna-
rem-se sujeitos da cultura.
Esse pressuposto nos remete a pensar a seguinte questão: Como podemos ensi-
nar os conhecimentos matemáticos produzidos historicamente para crianças no
processo inicial de escolarização? Para nós, a apropriação da linguagem matemática
nos primeiros anos de escolarização constitui-se no processo inicial e sistematizado
do ensino da linguagem matemática às crianças que ingressam na escola, instituição
considerada espaço por excelência de desenvolvimento dos conceitos científicos, ca-
paz de fazer a mediação entre os conceitos cotidianos e o científico. Nas palavras de
Saviani (1991, p. 29): “Em suma, pela mediação da escola, dá-se a passagem do saber
espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à cultura erudita”.
A esse processo inicial e sistematizado de trabalho com os conhecimentos matemá-
ticos denominamos alfabetização matemática. Alfabetização compreendida articulada
com o processo de letramento, em que a escola possibilita à criança atividades para o
domínio dos códigos linguísticos (alfabetização) no contexto do letramento, ou seja,
em conjunto com a aprendizagem sobre a utilização social desse conhecimento. O
processo de domínio dos conteúdos matemáticos e da sua utilização nas diferentes
situações-problema do cotidiano dos sujeitos é chamado de literacia matemática, tra-
duzido para o Brasil de letramento em matemática. Esse conceito é empregado nas
avaliações realizadas pelo Programme for International Student Assesment (PISA), o
qual o define como sendo:

[...] a capacidade individual de identificar e compreender o papel da Matemáti-


ca no mundo, de fazer julgamentos bem fundamentados e de se envolver com
a Matemática de maneira a atender às suas necessidades atuais e futuras como
um cidadão construtivo, consciente e reflexivo (INSTITUTO, 2000, p. 21, grifos
no original).

Esse entendimento acerca do processo de apropriação da linguagem matemática


nos impõe uma postura metodológica que vai além do processo mecânico de codifi-
cação e decodificação do sistema de códigos matemáticos e desafia-nos a refletir sobre
a organização do ensino dessa disciplina de modo que as crianças, desde o início do

98
processo de escolarização, tenham condições de se apropriar das bases teóricas dos A apropriação da
linguagem matemática
conceitos matemáticos. nos primeiros anos de
escolarização
Vigotski (2000) e seus colaboradores, dentre eles citamos Luria, afirmam que antes
de entrar para a escola a criança já “[...] adquiriu um patrimônio de habilidades e
destrezas que a habilitará a aprender a escrever em um tempo relativamente curto”
(LURIA, 2001, p. 143). Essa afirmação foi feita por Luria por volta de 1930 do século
XX, no contexto da sociedade russa em que as crianças, em sua maioria, eram enviadas
para a escola a partir dos sete anos de idade. Atualmente, considerando os aspectos
históricos e sociais, um número maior de crianças, cada vez com menos idade, fre-
quenta as instituições de Educação Infantil. Diante dessa situação, a Educação Infan-
til constitui-se em uma etapa de suma importância no processo de escolarização da
criança e, consequentemente, na apropriação do patrimônio cultural da humanidade.
Essa instituição está organizada, a princípio, para prestar atendimento educacional à
criança em seus primeiros meses de vida até seu ingresso no Ensino Fundamental.
A Educação Infantil, como parte do processo de escolarização após a promulgação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/96), constitui-se na pri-
meira etapa da educação das crianças. Neste sentido, o processo de escolarização que
defendemos neste capítulo inicia-se desde o ingresso da criança em uma instituição
escolar, seja ela Educação Infantil, seja nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Retomando a questão levantada anteriormente, faz-se necessário refletirmos sobre
os encaminhamentos teórico-metodológicos utilizados no ensino das crianças na eta-
pa inicial de escolarização. Assim sendo, é preciso pensar quais conhecimentos mate-
máticos devemos ensinar, como ensinar e como a criança aprende. Ou seja, nos instiga
a pensar o ensino de matemática na dimensão matemática, pedagógica e psicológica.
Dar conta de responder a essa questão não é tarefa fácil, porém essencial para a con-
dução do processo de ensino e aprendizagem dos conceitos matemáticos às crianças.

Da sensação numérica ao processo de apropriação do


conceito de número
Partimos do pressuposto de que pelo fato de a criança viver em uma sociedade
letrada e numeralizada, a apropriação dos conhecimentos científicos não ocorre de
forma natural e externa. Faz-se necessária uma adequada organização do ensino para
que os sujeitos possam apropriar-se dos conhecimentos produzidos historicamente. A
organização do ensino se constitui em uma das principais funções do professor. Nesse
âmbito, consideramos que a atividade principal do professor é a organização das inter-
venções pedagógicas com vistas à aprendizagem dos escolares e, consequentemente,
seu desenvolvimento psicológico (MORAES, 2008).

99
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Dessa forma, concordamos com Leontiev (1983) quando afirma que o desenvol-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO vimento infantil depende das condições objetivas, isto quer dizer que a maneira de
a criança relacionar-se com o mundo, as atividades que ela realiza determinam o seu
desenvolvimento psicológico.
Desde muito pequena a criança tem a percepção numérica. Ela possui, de acordo
com Ifrah (2005, p. 19, grifos no original), uma “sensação numérica”. Este autor tam-
bém pontua que o “[...] número é simplesmente sentido e percebido não é ainda
concebido por ele [o bebê] de modo abstrato, e ele nem sequer terá idéia de se servir
de seus dez dedos para designar um dos primeiros números”.
A sensação numérica está relacionada com a capacidade de as crianças distinguirem
de maneira direta e utilizando os órgãos dos sentidos, principalmente a visão, para
determinar certa quantidade. Essa sensação numérica que a criança possui pode ser to-
mada como ponto de partida como uma etapa natural e primitiva no processo de con-
trole de quantidades. Em conformidade com Vigotski (2000, p. 165, tradução nossa),

Na fase natural ou primitiva, a criança resolve a tarefa planejada por via direta.
Uma vez resolvidas as tarefas mais simples, a criança passa para a etapa do em-
prego dos signos, mesmo sem ter consciência de como eles atuam. Ela segue
a etapa de utilização dos signos externos e, finalmente, a dos signos internos.

Para esclarecer essa prerrogativa, Vigotski (2000) utiliza-se do seguinte exemplo:


a criança diferencia facilmente um conjunto de 3 maçãs do de 7 maçãs; no entanto
quando essas quantidades aumentam, 16 maçãs e 29 maçãs, a criança terá dificuldade
em estabelecer a quantidade existente nesses conjuntos.
A criança, vivendo em uma sociedade numeralizada, supera quase de forma im-
perceptível a etapa da sensação numérica e utiliza-se de uma forma mais elaborada de
controle de quantidade, antes mesmo que compreenda o cálculo.

Sabemos, no entanto, que a criança passa muito rapidamente, e quase imper-


ceptivelmente, desta etapa a outra e quando lhe pede que determine onde há
mais objetos, a maioria das crianças de um meio culto, emprega a contagem. Às
vezes a faz antes mesmo de compreender o que é o cálculo. Contam um, dois,
três e assim toda a série numérica mesmo desconhecendo o verdadeiro cálculo
( VIGOTSKI, 2000, p. 166, tradução nossa).

Dessas afirmações podemos inferir que o trabalho do professor no processo inicial


de escolarização está em proporcionar que a criança compreenda as bases do conceito
de número, dos cálculos no controle de quantidades das diferentes grandezas e for-
mas. Entretanto, as experiências educativas desenvolvidas com as crianças nessa etapa
de escolarização, muitas vezes, reforçam apenas a memorização da sequência numéri-
ca e os símbolos utilizados para representar quantidades, sem ao menos propor-lhes
situações-problema significativas para que resolvam e compreendam as ideias centrais

100
inseridas no sistema de numeração. A apropriação da
linguagem matemática
Ensinar a sequência e como escrevem os signos numéricos é uma tarefa que não nos primeiros anos de
escolarização
prescinde de conhecimentos elaborados. Esse trabalho pode ser realizado por qual-
quer adulto com conhecimentos matemáticos mínimos, como, por exemplo, a mãe,
a avó, a babá. No entanto, para ensinar as bases teóricas dos conceitos matemáticos
para as crianças, há necessidade de um profissional com formação e com conheci-
mento específico. No caso da instituição escolar, esse profissional é o professor.
As relações externas do conceito de número estão postas socialmente; as crianças
se deparam com eles em suas relações com o meio. Todavia, as atividades a serem
desenvolvidas na instituição escolar necessitam proporcionar às crianças a compre-
ensão das relações internas do conceito. Entendemos que, ao possibilitarmos ativi-
dades que revelem as conexões internas dos conceitos, permitiremos que as crianças
realizem a transição da sensação numérica ao processo de apropriação do controle
de quantidade utilizando-se das formas mais elaboradas produzidas pelo homem.
A organização do ensino para possibilitar a transição do senso numérico às for-
mas mais elaboradas produzidas pelo homem para o controle de quantidade deve
tomar como ponto de partida o conhecimento que a criança possui (Nível de Desen-
volvimento real – NDR) e desenvolver ações de ensino e aprendizagem para além
desse conhecimento. Isto significa que é necessário que a prática pedagógica incida
sobre os conhecimentos ainda não apropriados pelas crianças. A esse espaço entre
o conhecimento que a criança domina e aquele em que ainda precisa da ajuda do
outro Vigotski (2000) denominou Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Assim,
aquilo que a criança resolve com a ajuda do outro, no futuro terá condições de re-
solver sozinha, revelando um novo nível de desenvolvimento real. Esse movimento
entre NDR e a ZDP é contínuo e só cessa se ao sujeito não forem proporcionadas
atividades adequadas ou se não tiver condições vitais para o desenvolvimento das
atividades.
No caso do ensino do conceito de número, núcleo do ensino de matemática no
processo inicial de escolarização, deve-se partir, conforme os pressupostos da pers-
pectiva histórico-cultural, de situações-problema que revelem para a criança o modo
de produção humana desse conceito sobre o controle de quantidades, trabalhando-se
esse conhecimento em relação com as grandezas (peso, volume, superfície e longitu-
de, etc.).
O ensino de matemática para crianças no processo inicial de escolarização deve ser
desenvolvido de modo que elas compreendam os conhecimentos sobre as grandezas/
medidas destacadas nos objetos físicos e se familiarizem com suas propriedades fun-
damentais. Desta forma, as crianças, operando com objetos reais e neles focalizando

101
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, os parâmetros das grandezas, aprendem a comparar as coisas por uma ou outra gran-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO deza, determinando a sua igualdade e desigualdade. Em seguida, as crianças anotam
essas relações utilizando-se de signos.
O encaminhamento teórico-metodológico do ensino de matemática deve respeitar
o aspecto lógico-histórico do conhecimento matemático. A dimensão histórica é con-
siderada dentro da atividade de ensino como uma das formas de perceber o processo
histórico-cultural do conceito; nesse contexto, significa conceber o conceito inserido
em uma história na qual os homens, diante de necessidades objetivas, buscam e elabo-
ram soluções. A dimensão lógica diz respeito ao processo de apropriação do conceito,
considerando seu aspecto histórico pelo pensamento humano.
Portanto, trabalhar com a unidade lógico-histórica no ensino de matemática cons-
titui-se em uma forma de desenvolver os conhecimentos dessa área do saber que
considere o processo de produção dos conceitos como produto da atividade humana
diante das necessidades objetivas enfrentadas pelos homens (MOURA, 2004; ARAÚJO,
2007; DIAS, 2007; LANNER DE MOURA, 2007, MORETTI, 2007). Segundo Moretti
(2007, p. 98):

Desta forma, assumir a importância de que o lógico-histórico seja consi-


derado dialeticamente no processo de conhecimento de um determinado
objeto, traz implicações para o trabalho docente. Em especial para o ensino
de matemática, é fundamental que a história do conceito permeie organiza-
ção das ações do professor de modo que esse possa propor aos seus alunos
problemas desencadeadores que embutam em si a essência do conceito. Isso
implica que a história da matemática que envolve o problema desencadea-
dor não é a história factual, mas sim aquela que está impregnada no conceito
ao se considerar que esse conceito objetiva uma necessidade humana colo-
cada historicamente.

A organização do ensino, de acordo com os aspectos lógico-históricos, tem como


objetivo propor atividades de ensino que possibilitem a integração da criança no mo-
vimento de produção do conceito. No caso do ensino do número, Lanner de Moura
(2007, p. 73 grifos nossos) defende que:
A atividade de ensino que propõe à criança integrar-se no movimento con-
ceitual do número traz para seu interior a história do conceito despida dos
elementos ocasionais e centrada no ato de criação. Desencadeia, na criança
e no educador, a dinâmica do saber-pensar o conceito. É desta forma que
entendemos que o plano da ação pedagógica pode desenvolver a dinâmica

102
histórica de criação do conceito na singularidade criativa do sujeito que A apropriação da
aprende. linguagem matemática
nos primeiros anos de
escolarização
Assim, a formação do pensamento numérico deve se iniciar com situações-proble-
ma, por meio das quais as crianças tenham possibilidade de se apropriar do conceito
de número, iniciando com o numeral-objeto1 até os conceitos fundamentais do siste-
ma de numeração decimal, no qual o numeral é tratado de forma totalmente abstrata.
O processo de apropriação do conceito de número possibilitará à criança “[...] cons-
truir pensamento e linguagem numérica dimensionados pelo seu entendimento de
variação de quantidade” (LANNER DE MOURA, 2007, p. 74). Nessa lógica, o número é
trabalhado em relação com as diferentes grandezas, reforçando, assim, um dos princí-
pios do ensino de matemática em que os conceitos necessitam ser trabalhados em re-
lação, ou seja, como parte de um sistema, de modo a desvelar a essência dos mesmos.
Se em um primeiro momento a criança não tem ideia clara sobre a adição, ou se
somente realiza comparações de forma direta e externa, precisamos proporcionar-lhe
atividades para que possa abstrair as bases do conceito e conhecer suas relações inter-
nas, isto é, operar mentalmente.
O trabalho pedagógico proporcionará às crianças resolverem, em um primeiro mo-
mento, as atividades apoiadas nos signos externos – atributos como cor, tamanho,
entre outros – para posteriormente utilizarem-se dos signos internos. Ou seja, realizar
operações mentais apoiadas na memória, no pensamento e na abstração.
Por exemplo, para que a criança possa dominar as ideias contidas no processo de
controle de quantidade é preciso proporcionar-lhe atividades para que ela possa mo-
bilizar seu pensamento. Para que a linguagem matemática produzida historicamente
pela humanidade possa ser apropriada pelas crianças é preciso desenvolver atividades
que envolvam a complexidade das funções psicológicas das crianças2. Assim, a apro-
priação da linguagem se torna uma atividade que envolve compreensão, não se confi-
gurando apenas como uma atividade meramente motora.
A simples soletração cantada de músicas diversas não significa que a criança se apro-
priou da relação grafema-fonema contida na língua materna. No caso da matemática, a

1 Numeral-objeto consiste no controle de quantidades, utilizando-se de objetos ou marcas. “A


contagem por correspondência um a um e o uso dos objetos para contar caracterizam a etapa
histórica da contagem pelo ‘numeral-objeto’” (MOURA, 2003, p. 6).
2 Vygotsky (2000) distinguiu formas qualitativamente diferentes de desenvolvimento: os pro-
cessos elementares, que são de origem biológica, ligados às sensações dos cinco sentidos; e as
funções psicológicas superiores, de origem sócio-cultural, tipicamente humana, que são de-
senvolvidas por meio da mediação do outro. São consideradas funções psicológicas superiores:
memória, atenção voluntária, pensamento, abstração etc.

103
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, repetição da sequência numérica ou mesmo a solução de algoritmos não leva a criança
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO a se apropriar do conceito de número.
O processo de apropriação da linguagem matemática deve se iniciar pelas relações
entre o controle de quantidades, no qual as crianças possam utilizar os signos externos
para a resolução das situações problemas; em seguida, passa a utilizar outras formas de
expressão de suas ideias, como, por exemplo, a linguagem pictórica, em que se utiliza
de desenhos até chegar às formas mais elaboradas e aos registros abstratos produzidos
pelo homem, como os números.
Dessa forma, proporcionar atividades que trabalhem com os aspectos lógico-histó-
ricos constitui um importante encaminhamento metodológico para o ensino de ma-
temática. Tratam-se de atividades de ensino que revelem o processo de produção do
conceito. No caso do ensino de matemática, o trabalho nessa perspectiva possibilitará
ao professor e ao aluno compreenderem essa ciência como uma produção humana.
No caso do ensino do número para as crianças pequenas, precisa evidenciar o seu
movimento conceitual, conforme estabelece Araujo (2007, p. 37):

As atividades orientadoras da construção do número estão organizadas levando


em consideração o movimento conceptual do sistema de numeração decimal,
o que implica partimos da idéia básica de correspondência, até chegarmos à
abstração do numeral indo-arábico, com todas as regras que o compõem.

Araujo está propondo que o ensino do número não deve começar com o sistema
de numeração decimal de forma pronta e acabada, mas revelar as ideias e os conceitos
contidos nesse sistema. A seguir, trabalharemos com uma atividade de ensino que
focaliza um dos conceitos básicos do sistema de numeração.

Atividade de Ensino: focalizando o conceito de


correspondência biunívoca
Conforme defendemos neste capítulo, as atividades de ensino a serem propostas
às crianças devem contemplar a essência do conceito em seu movimento de produção
histórica e uma situação-problema que desencadeie a necessidade de apropriação do
conceito pela criança.
Dessa forma, podemos organizar uma atividade focada no conceito de correspon-
dência biunívoca a partir de uma história infantil ou uma lenda na qual elaboraríamos
uma situação-problema relativa ao controle de quantidade e ao conceito de correspon-
dência um a um para que a criança busque a solução. Uma das lendas que podem ser

104
trabalhadas é a do Curupira (MOURA, 1996)3·. Vejamos a lenda e os encaminhamentos A apropriação da
linguagem matemática
metodológicos a partir desse recurso didático. nos primeiros anos de
escolarização

A lenda do Curupira

Certo dia, enquanto fazia inspeção pela mata, Curupira ouviu um barulho que
mais parecia um trovão. Era um ribombo que vinha do meio da clareira. Saiu cor-
rendo e começou bater nas árvores para que elas acordassem. Afinal, o Curupira
sempre faz isso quando pressente chuva. Ele avisa as árvores para que elas resistam
melhor ao mau tempo. Nessa manhã, o Curupira estava mais enamorado do que
nunca pela beleza das flores, das frutas e não percebeu que aquele estrondo não
vinha do céu. Foi uma árvore que o alertou sobre o perigo que corriam:
-- Acorda Curupira! Hoje você está no mundo da lua! Isso não é aviso de chuva,
isso é malvadeza do homem contra os animais.
Ao ouvir estas palavras, o Curupira não se conteve e saiu em disparada. Afinal,
se tem alguém que ele não perdoa é quem maltrata os inofensivos habitantes da
floresta. Tratou logo de juntar todos os bichos que estavam por perto para levá-los
longe do caçador que queria pegar os animais para tirar o couro. Deu forte assovio
e no mesmo instante estava reunida ali uma grande quantidade de animais.

Após contar a lenda utilizando-se de maquete, dramatizá-la de forma a garantir


a compreensão das crianças, pode-se propor a seguinte situação-problema: como o
Curupira iria saber se todos os animais que sairiam chegariam à outra clareira
onde estariam a salvo? O professor deve acrescentar que o Curupira tinha um sério
problema. Ele não sabia contar.
Essa situação-problema é uma forma de desencadear a necessidade da criança so-
bre controle de quantidades. O conceito central nessa atividade de ensino é o de
correspondência um a um ou biunívoca. Segundo Ifrah (2005, p. 25, grifos no
original), o processo de elaboração do sistema de numeração decimal iniciou-se pelo
conceito de correspondência um a um.
Tudo começou com este artifício conhecido como correspondência um a um,
que confere, mesmo aos espíritos mais desprovidos, a possibilidade de compa-
rar com facilidade duas coleções de seres ou de objetos, da mesma natureza ou
não, sem ter de recorrer à contagem abstrata.

3 Essa atividade foi produzida para a Oficina Pedagógica de Matemática vinculada ao GEPAPe-
FE/USP (Grupo de Estudos Pesquisa da Atividade Pedagógica – Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo) sob a coordenação do Prof. Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura.

105
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Em certo momento da vida social, os homens controlavam as quantidades de ove-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO lhas, por exemplo, utilizando-se de pedras, por meio da correspondência biunívoca
(uma pedra correspondia a uma ovelha), criando, assim, o que denominamos nume-
ral-objeto. Com a complexificação das relações sociais, aliado ao aumento da produ-
ção de bens de consumo o homem necessitou de meios mais eficazes para controlar
as quantidades produzidas. Portanto, é a partir das necessidades humanas que são
produzidos os conceitos para atender às demandas sociais. Do numeral-objeto até o
nosso Sistema de Numeração Decimal foi um grande caminho percorrido pelos ho-
mens. A invenção do sistema de contagem de base 10 constitui-se em uma das maiores
invenções humanas, revelando as potencialidades dos homens diante dos problemas
colocados pela vida em sociedade. A esse respeito, Moura (2007, p. 46-47) pondera:

Vemos que, ao longo do percurso da humanidade, a necessidade de controlar


quantidades promove o movimento de controle das quantidades que vai do
concreto ao abstrato. Isto só foi possível graças à construção de um sistema de
signos que, ao serem compartilhados nos processos comunicativos, partilham
um modo de fazer entender objetivamente o movimento das quantidades.

O ensino de matemática que objetiva formar nos escolares o pensamento teórico4


tem que dar conta desse movimento de produção dos conceitos. Acreditamos que esse
pressuposto é fundamental na organização do ensino dessa disciplina, e o ensino des-
ses conceitos deve iniciar desde o princípio do processo de escolarização das crianças.
No desenvolvimento da atividade, o professor precisa verificar se a situação-pro-
blema foi compreendida pelas crianças e deve coordenar as respostas dos alunos de
modo que cheguem a uma solução matematicamente correta que seja reconhecida
pelos alunos como uma solução para a situação-problema. As crianças realizarão a ex-
posição de suas ideias, depois as registrarão em forma de desenho e, sempre por meio
de decisões em grupos e com o direcionamento do professor será escolhida a resposta
mais eficiente e matematicamente correta.
Ao trabalhar com a lenda e elaborar uma situação-problema que se aproxima de
um problema vivido pelo homem no processo de produção do sistema para o controle
de quantidade, recorre-se a um recurso metodológico chamado por Lanner de Moura

4 Davýdov (1982, 1988) desenvolveu estudos para explicar a importância do desenvolvimento


do pensamento teórico nos escolares. Ele diferencia dois tipos de pensamento: o empírico e o
teórico. O pensamento empírico que tem caráter externo, imediato. Nesta forma de pensar, as
representações gerais estão ligadas, diretamente, à atividade prática e os dados são obtidos da
atividade sensorial das pessoas. “O conteúdo do pensamento teórico é a existência mediatizada,
refletida, essencial. O pensamento teórico é o processo de idealização de um dos aspectos da
atividade objetivo-prática, a reprodução, nela, das formas universais das coisas” (DAVÝDOV,
1988, p. 125).

106
e Moura (1997, p. 14, grifos no original) de História Virtual do Conceito. Assim o A apropriação da
linguagem matemática
denominaram porque tal recurso [...] coloca a criança diante de uma situação pro- nos primeiros anos de
escolarização
blema semelhante àquela vivida pelo homem ao ter que controlar quantidades
contínuas e discretas.
Lanner de Moura e Moura (1997) defendem que a situação-problema deve conter
grau de desafio e ludicidade para que as crianças se envolvam na busca de solução e se
apropriem de uma aprendizagem significativa.
A necessidade de que as atividades dirigidas às crianças no processo inicial de es-
colarização sejam desafiadoras e lúdicas está relacionada com o que Leontiev (2001)
enuncia sobre a atividade principal da criança na idade pré-escolar, o jogo. Este autor
também afirma que é por meio do jogo que a criança se relaciona e se apropria do
mundo a sua volta, no sentido de que tal atividade possibilita a apropriação das pro-
duções culturais elaboradas historicamente.
Na situação de jogo, a criança imita as ações dos adultos. Ela não pode, por exem-
plo, sair dirigindo um carro, mas pode simular essa situação por meio dos objetos que
oferecem condições para isso. Assim, um aro pode ser o volante, o meio pelo qual a
criança sai dirigindo seu carro imaginário. Essa é a forma de a criança apropriar-se do
mundo que a circunda, isto é, por meio da atividade lúdica ela reconstitui a realidade
(ARAÚJO; MIGUÉIS; NASCIMENTO, 2007).
Temos dois pontos importantes a destacar na atividade apresentada sobre a Lenda
do Curupira. O primeiro deles refere-se à qualidade da situação-problema, a qual nos
remete a pensar sobre o processo de organização do ensino pelo professor, isto é, a
organização das suas intervenções, em que se revela a intencionalidade pedagógica
diante do processo de ensino e aprendizagem. O professor precisa ter claro o concei-
to que pretende trabalhar para propor situações-problema que mobilizem o pen-
samento das crianças para que essas possam apropriar-se desse conceito. Conforme
Moraes (2008) é por meio da situação desencadeadora de aprendizagem que o pro-
fessor desenvolve sua intervenção junto ao escolar, estabelecendo uma relação entre
professor-conhecimento-aluno, pois para que a aprendizagem torne-se significativa a
atividade de ensino deve desencadear uma atividade de aprendizagem. A situação-
problema posta às crianças, conforme já tratamos, trabalha com um dos conceitos
constitutivos do sistema de numeração, possibilitando à criança pensar sobre o con-
trole de quantidade.
O segundo ponto que gostaríamos de mencionar, relacionado ao primeiro, diz res-
peito à amplitude dessa atividade, visto que, além de trabalhar com um dos conceitos
do sistema de numeração – correspondência um a um –, esse encaminhamento me-
todológico propicia um trabalho articulado entre o processo de apropriação da língua

107
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, materna e o da linguagem matemática. Isto significa que podemos explorar, com os
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO conteúdos presentes na lenda, os aspectos essenciais da língua materna, além de ter-
mos, também, um genuíno problema de aprendizagem matemática. Desta forma, os
trabalhos com essas duas linguagens podem ser articulados, não havendo primazia de
uma em detrimento da outra. A articulação entre o processo de apropriação da língua
materna e o da linguagem matemática torna-se importante visto que, na maioria das
vezes, no trabalho com as crianças em processo inicial de escolarização há predomínio
do ensino da língua materna, apropriação dos códigos linguísticos, ficando a lingua-
gem matemática para segundo plano, prevalecendo o emprego de atividades estéreis,
repetitivas e mecânicas.
Cabe registrar, também, que as crianças são mobilizadas a buscar a solução para a
situação-problema. Elas se envolvem na busca da resposta para ajudar o Curupira. Os
registros tornam-se significativos para elas e as operações que utilizam envolvem as
funções psicológicas superiores, o pensamento, a memória, a síntese. No entanto, para
que isso ocorra o professor deve reconhecer e orientar as ações das crianças e, apoiado
na situação-problema inicial, formular outras situações. A seguir, apresentamos uma
ampliação da situação-problema relativa à lenda do Curupira.

Simular o retorno dos animais à clareira de origem. O professor pode colocar


animais a menos. Portanto, sobrando pedras. 

- Vamos imaginar que os caçadores já foram embora e que agora os animais


poderiam retornar à clareira de origem junto com o Curupira. Vamos conferir se
voltaram todos os animais?

São inúmeras as possibilidades de exploração da Lenda do Curupira. O professor


pode acrescentar algum animal e seguir o mesmo procedimento supracitado, deixan-
do claro que o Curupira não pode ter perdido nenhuma pedra, já que utilizava uma
forma segura de controlar quantidades. Criar situações em que o Curupira seja levado
a contar e a comparar outras coisas da mesma forma que controlava a quantidade
de animais, tais como borboletas, folhinhas, árvores, entre outros. O importante é
que a situação-problema mobilize o pensamento das crianças e com isso elas realizem
operações para chegar a uma solução que, sob a orientação do professor, seja a mais
eficiente e matematicamente correta.
Mostramos a possibilidade de trabalho com um dos conceitos constitutivos do
sistema de numeração – correspondência biunívoca – por meio de uma histórica
virtual do conceito “Lenda do Curupira”. No entanto, outras atividades precisam ser

108
desenvolvidas para garantir que esse conceito seja apropriado pelas crianças. A apro- A apropriação da
linguagem matemática
priação pela criança do conceito de número e sistema de numeração envolve outros nos primeiros anos de
escolarização
conceitos, como agrupamento, ordem, base, valor posicional. Esses conceitos devem
ser trabalhados de forma que a criança compreenda o movimento conceitual e desen-
volva seu pensamento numérico.
O número é uma abstração da realidade quantitativa. Por isso, seu conhecimento
não se revela de modo direto, por meio da observação imediata dos objetos; ao con-
trário, para a sua apropriação são necessárias ações mentais sobre o controle de quan-
tidade, sobre as relações entre as coisas na vida. O conteúdo da abstração teórica não
existe na realidade, mas no pensamento humano. Desse modo, o conceito científico
ou teórico não se encontra no conteúdo objetivo, mas no método de assimilação, no
processo de estudo, na relação sujeito, objeto e mediação cultural.
No ensino de matemática, a escola deve possibilitar aos escolares a apropriação de
um “[...] sistema de representação do número e do espaço, considerando a natureza
social do processo de elaboração desses signos numéricos e da linguagem geométrica”
(ARAUJO, 2007, p. 36). Tal tarefa consiste na apropriação dos conceitos necessários
para que os sujeitos possam controlar o movimento das quantidades, das formas, do
espaço e das relações entre eles.

Considerações finais
A proposta para o ensino de matemática defendida por Davýdov (1982), Moura
(2003, 2007), Lanner de Moura (2007), Araujo (2007), Moretti (2007), Dias (2007) e
Moraes (2008) é contrária àquelas em que a criança, ao chegar à escola, é envolvida
com exercícios repetitivos, tanto de contagem oral quanto de transcrição escrita dos
numerais. Um exemplo desses exercícios rotineiros propostos às crianças é a escrita
repetitiva dos numerais, ou mesmo o cantarolar de músicas que envolvem a contagem
oral, por exemplo, a música intitulada “A galinha do vizinho”.
Não queremos descaracterizar, totalmente, a importância de tais exercícios, apenas
marcar os sérios limites dessa prática pedagógica para o desenvolvimento do pensa-
mento numérico. É claro que, para pensar numericamente a criança precisa saber con-
tar sequencialmente, e que para quantificar não pode contar um mesmo objeto duas
vezes, bem como precisa dominar a escrita dos dez signos numéricos, mas o conceito
de número envolve outros conceitos que somente esse tipo de exercício ou outros
parecidos não dão conta. Tal forma de trabalhar com os números parte de situações
artificiais, e se considera que a repetição leva à compreensão.
Desta forma, o ensino de matemática precisa ancorar-se em atividades de ensino
que propiciem aos alunos a apropriação do conceito. Para isso, é importante que as

109
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, atividades propostas às crianças partam de situações-problema semelhantes às vividas
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO pelo homem no processo de criação do conceito.
Neste sentido, para chegar, por exemplo, ao sistema de numeração decimal, temos
um percurso a ser percorrido com as crianças, visto que o nosso sistema é uma síntese
complexa das produções humanas, abstração que precisa ser mediada pelo professor
e os instrumentos para que as crianças possam apropriar desses conhecimentos de
modo a desenvolver as suas máximas capacidades humanas.
Assim, neste capítulo, reforçamos a importância do professor proporcionar ativida-
des de ensino às crianças no processo inicial de escolarização que focalizem o modo
de produção do conceito, considerando seus aspectos lógico-históricos. Para isso, ele
deve utilizar-se de diferentes recursos metodológicos, como os jogos e a história virtu-
al do conceito. Diante disso, ressaltamos que o professor deve elaborar situações-pro-
blema que desencadeiam a necessidade do conceito na criança. Assim, orientada pelo
professor, ela se envolverá na busca da solução para problema e chegará à resolução
mais eficiente e matematicamente correta.
Acreditamos que essa forma de trabalhar com os conhecimentos matemáticos pos-
sibilita que as crianças, no processo inicial de escolarização, se apropriem das bases
teóricas dos conceitos matemáticos e, consequentemente, possam utilizá-los como fer-
ramentas simbólicas para a compreensão mais elaborada da realidade.

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Proposta de Atividade

1) No texto desenvolvemos alguns conceitos centrais para a organização do ensino de mate-


mática para as crianças no processo inicial de escolarização, tais como:
a) Concepção de matemática;

112
b) Significado de alfabetização matemática; A apropriação da
linguagem matemática
c) Organização do ensino: papel do professor, atividade de ensino, a importância da situa- nos primeiros anos de
escolarização
ção-problema, significado de história virtual do conceito;
d) A criança pequena e os conhecimentos matemáticos;
e) Faça uma síntese sobre cada um desses conceitos.

2) Agora utilize a sua criatividade e a partir dos conceitos trabalhados elabore uma atividade
de ensino em que a situação-problema contemple conceito de agrupamento do sistema
de numeração.

Indicações de Leitura

ARAUJO, E. S.; MIGUEIS, M. R.; NASCIMENTO, C. P. O jogo como atividade:


contribuições da teoria histórico-cultural. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO
NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 32., 2007a, Caxambu. Anais... Caxambu:
Anped, 2007. Disponível em: <www.anped.org.br.> Acesso em: 15 nov. 2009.

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Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-09102008-
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VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e
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113
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

114
7 Diversidade cultural,
alfabetização e
letramento
Rosângela Célia Faustino

Introdução
Nos últimos anos, tem sido enfatizada a importância da diversidade cultural e seus
termos correlatos como o multiculturalismo, a interculturalidade, a pluradidade cultu-
ral e outros. Defende-se que as crianças, na escola, apresentam diferenças culturais e
que estas devem ser consideradas no processo de ensino e aprendizagem. No entanto,
tendo em vista serem temas recentes, ainda não está claro para a equipe pedagógica e
para professores, em que consistem essas diferenças, quais as implicações no processo
de ensino e aprendizagem, quais posturas a escola pode assumir e quais os encaminha-
mentos necessários em sala de aula.
Neste capítulo fazemos uma breve trajetória histórica sobre as questões econô-
micas e culturais a partir dos anos de 1970, contexto em que o projeto multicultural
ganha relevância e a escolarização passa a ter o objetivo de estimular a reflexão acerca
da importância da aprendizagem de todas as crianças, independentemente de sua con-
dição econômica e sociocultural. Discutimos aqui conceitos e políticas educacionais
levantando questões que convidam aos estudos e à ampliação das práticas pedagógicas
de alfabetização.
Investigando o tema, percebemos que a palavra cultura tem muitas definições, sen-
do que a maior parte delas provém das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, ao
realizarem pesquisas com diferentes grupos étnicos ou sociais e desenvolverem teorias
sobre o conceito. Na área da Educação, a palavra cultura é utilizada de forma genérica,
podendo tanto definir a organização específica de um grupo social – índios, quilom-
bolas e outros – como referir-se ao domínio de conhecimentos, informações e crenças
que uma pessoa detém, suas diferenças e particularidades.
No período atual, tem sido atribuída grande relevância à questão da cultura, com o
intuito de se combaterem discriminações e preconceitos raciais que em um momento
de crise econômica contribuem para uma maior exclusão social de grupos ou pessoas
diferentes do padrão imposto pelos defensores da supremacia branca traduzida em
“homem, branco, rico e bem sucedido profissionalmente” (SEMPRINI, 1999).

115
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, No sistema capitalista, esse padrão se estabelece e é disseminado principalmente
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO pela classe dominante, devido aos interesses de exploração da mão-de-obra dos traba-
lhadores visando à acumulação (CALLINICOS, 1995). Presente na sociedade, o precon-
ceito se expressa na escola forçando a política educacional a pensar alternativas. Uma
delas tem sido a ênfase dada às questões culturais, elemento que podemos perceber
pelos parâmetros e diretrizes educacionais, ou seja, pela análise dos principais docu-
mentos de educação da atualidade: “A educação [...] terá de dar mais atenção aos va-
lores culturais universais que, além da tolerância, promovem o gosto pela diversidade
cultural.” (DELORS, 1998, p. 237).
Acreditando que os professores ainda não realizaram estudos e debates suficientes
que lhes possibilitem maior clareza, posicionamento e encaminhamentos metodológi-
cos relativos ao tema da cultura na escola, apresentamos a questão da diversidade cul-
tural articulada à questão econômica mundial julgando ser esta de suma importância
para uma melhor compreensão sobre as relações sociais atuais e o papel da escola na
aprendizagem de todos, uma vez que as transformações econômicas ocorridas a partir
da crise estrutural do capitalismo em meados da década de 1970 (FAUSTINO, 2006)
processaram, de igual maneira, mudanças nas políticas públicas e educacionais.

A mobilização em torno da cultura e da diversidade


Inúmeros eventos internacionais foram organizados visando a mobilizar a popula-
ção mundial em torno da importância da educação (NOGUEIRA, 2001). Estes, condu-
zidos pelas principais agências multilaterais, exerceram forte influência em um grande
número de países e implementaram, dentre outros, os temas da diversidade e inclusão.
A diversidade cultural como uma política de inclusão social, criada e implementa-
da a partir dos anos de 1990, concomitante às mudanças econômicas ocorridas com
a adoção do neoliberalismo como sistema de governo e da globalização como nova
forma de expansão do capitalismo, requer que compreendamos suas proposições e
objetivos.
A globalização elaborou um discurso referente à importância da alfabetização em
uma sociedade letrada, de grandes inovações tecnológicas – a sociedade do conheci-
mento e da informação –, no qual enfatizou a importância da palavra escrita. A Orga-
nização das Nações Unidas (ONU) e uma de suas principais instituições, a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), declararam 1990
(Resolução 42/104-ONU) como o ano Internacional da Alfabetização, ampliando de-
pois para a década da alfabetização.
Desde meados da década de 1980 esse projeto vinha sendo preparado sob argu-
mentos da existência de milhões de crianças de idade entre 7 e 14 anos fora da escola,

116
altos índices de reprovação, evasão/expulsão, abandono, inadequadas condições de Diversidade cultural,
alfabetização e
funcionamento das escolas, baixos salários e inadequada formação de professores. letramento

Estatísticas mostrando o crescimento do analfabetismo no mundo forçaram países a se


mobilizar em torno de projetos de alfabetização, reestruturações curriculares, revisão
de concepções e de práticas pedagógicas nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Evitando tocar em questões econômicas como a divisão do mundo entre países de
economias centrais e países periféricos, de classes sociais detentoras da posse dos bens
de produção e do conhecimento produzido pela humanidade, enquanto as demais
estão deles totalmente excluídas, as atenções e discursos emanados dos centros de
poder do capital voltaram-se para as diferenças culturais.

É muito surpreendente que, exatamente no momento histórico em que o ca-


pitalismo havia penetrado, pela primeira vez, os âmbitos mais longínquos não
só das produções econômicas, mas também das produções culturais, houvesse
surgido uma ideologia que procurava deslocar o locus de determinações da
economia política para a cultura (AHMAD, 2002, p. 9).

Naquele contexto o Brasil ocupava situação peculiar: acabara de sair de um regime


totalitário (1964-1984), atravessara um período de transição política (1985-1989) que
conduzira à elaboração de uma nova Constituição e encontrava-se sob uma adminis-
tração neoliberal conturbada, iniciada em 1990 com o governo de Fernando Affonso
Collor de Melo. Buscou-se atender às reformas propostas pelo neoliberalismo e ade-
quá-las às reivindicações do movimento dos trabalhadores que se mobilizavam em sin-
dicatos e centrais sindicais, reivindicando, dentre suas bandeiras de luta, a melhoria da
qualidade da educação e o acesso de trabalhadores a níveis mais elevados de formação.
Na disputa pela garantia de direitos constitucionais, sobressaíram-se na transição
(1985-1989) os movimentos de grupos étnicos e de gênero, cujas discussões se base-
avam em aspectos da especificidade, do combate à discriminação e preconceito e do
papel relevante que a escola pode desempenhar no alcance da igualdade de oportu-
nidades e cidadania plena por meio da ampliação de temas do currículo e das práticas
pedagógicas nas classes de alfabetização.

A explicação biológica e cultural para a baixa


aprendizagem dos “diferentes”
Desde a formação da escola pública, no século XIX (FAUSTINO, 1999), a escola para
os pobres representa apenas uma possibilidade de melhor formação para o trabalho.
Devido às “dificuldades” de acesso e permanência, as poucas crianças e jovens, prove-
nientes das classes trabalhadoras que conseguiam frequentar a escola, não ultrapassa-
vam as classes de alfabetização. Assim que aprendiam a ler, escrever e a aritmética tra-
dicional (adição, subtração, multiplicação e divisão) deixavam a escola para assumirem

117
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, responsabilidades domésticas ou ingressar no mercado de trabalho formal e informal.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Passados quase duzentos anos desde a criação e disseminação dos ideais da escola
pública, as crianças provenientes da classe trabalhadora ou de grupos culturais especí-
ficos continuam tendo menores condições de aprendizagem na escola, mesmo que a
frequentem em maior número e por maior tempo.
O gráfico abaixo, elaborado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística – mostra que a pobreza atinge principalmente as crianças indígenas e negras,
explicitando a vulnerabilidade desses grupos sociais.

Estudos emanados de diferentes organismos internacionais (ONU, Unesco, Banco


Mundial, OIT, PNUD) têm conferido especial atenção à educação escolar de grupos
culturalmente diferenciados, considerando-a elemento predominante para se conse-
guir formar uma geração de jovens escolarizados, que melhorariam os níveis de em-
prego e renda, assumiriam as organizações sociais visando à sustentabilidade.
Em relação aos indígenas, por exemplo, estudos evidenciam que esses grupos se
situam entre as camadas mais pobres da população latino americana, ou seja, “são os
mais pobres entre os pobres”. Um dos fatores apontados como sendo o responsável
por essa situação é a falta de acesso a bens e serviço como educação e informação. A
falta ou baixa escolaridade contribui com a maior exclusão desses grupos de partici-
pação cidadã plena. Uma das formas de enfrentamento dessa questão seria a equidade
nos números de matrícula, melhoria na qualidade de todas as escolas bem como o
amplo acesso à informação, saúde e saneamento básico (FAUSTINO, 2006).

118
Somado ao fator pobreza/exclusão, em relação aos grupos culturalmente diferen- Diversidade cultural,
alfabetização e
ciados – indígenas, quilombolas, e outros – existe a questão da discriminação por letramento

serem diferentes. Os organismos internacionais afirmam que, por não dominarem cor-
retamente a língua da sociedade envolvente, possuírem baixa escolaridade e dificulda-
de de lidar com os códigos modernos da sociedade (a escrita é o principal deles), têm
acesso desigual e limitado aos recursos produtivos e escassa participação nas institui-
ções sociais e políticas das sociedades em que vivem.

De um modo geral, jovens que experienciaram a pobreza durante a infância


tem uma probabilidade 300% maior de não concluir a escola secundária do
que crianças que nunca foram pobres (APPLE, 2001, p. 122).

Os resultados da educação são substancialmente piores para a população in-


dígena, o que põe em evidência os problemas da qualidade da educação [...]
os estudantes indígenas obtém qualificações significativamente menores nas
provas de leitura e matemáticas. As escolas indígenas também apresentam ta-
xas mais altas de desistência, repetência e reprovação (HALL; PATRINOS, 2004,
p. 8).

Diferentes estudos têm demonstrado que a escola não está promovendo a apren-
dizagem de todos.

Apesar das enormes esperanças que têm as crianças e seus pais nos professo-
res e nas escolas, muitos aprendem muito pouco pois os pobres têm escassas
oportunidades de concluir o ensino fundamental e, em conseqüência, de as-
cender a níveis mais elevados de educação média e universitária (REIMERS,
2003).

Algumas teorias conservadoras, ao abordarem a aprendizagem das crianças prove-


nientes de diferentes culturas, preconizam que as dificuldades por eles encontradas
em permanecer e prosperar na escola têm relação com os aspectos culturais.
McCarthy (1993), ao estudar essa questão, estabeleceu duas das principais corren-
tes teóricas que tentam explicar o chamado “fracasso escolar” isolando-o das questões
estruturais (econômicas e políticas) da sociedade. A primeira dessas teorias parte de
uma explicação biológica, apregoando que por meio de resultados obtidos em testes
de Q.I – Quociente de Inteligência – que as crianças provenientes de diferentes cul-
turas têm capacidades e características psicológicas e biológicas inatas (McCARTHY,
1993, p. 32).

[...] defensores dos testes mentais da eficiência social e da gestão científica,


avançaram ainda mais, afirmando que as minorias e as mulheres e homens
imigrantes constituíam uma ameaça para a ordem social [...] estes educadores
conservadores sustentavam que o controle da natalidade (eugenia) deveria
complementar o sistema de testes mentais como meio para regular cientifica-
mente a quantidade e os efeitos sociais da descendência de baixa capacidade
dos inferiores (McCARTHY, 1993, p. 35).

119
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Para essas correntes teóricas conservadoras, os jovens pertencentes às minorias
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO culturais – afro-americanos, mexicanos, mulheres e índios – deveriam receber um
modelo de currículo específico, com um projeto especial de educação adequado as
suas “inferiores capacidades mentais e seu provável destino em um mercado de tra-
balho secundário” (McCARTHY, 1993, p. 35).
Esse determinismo biológico, a-histórico e irreflexível, divulga que certos gru-
pos étnicos carecem das estruturas mentais adequadas, da necessária disposição
genética para a solução de problemas cognitivos e intelectuais de alto nível, sendo
assim incapazes de conseguir o mesmo aproveitamento nos estudos que conseguem
as crianças brancas. Desta forma, devem se submeter ao controle social e ingressa-
rem em cursos profissionalizantes, pois não teriam capacidade para seguir estudos
universitários.
McCarthy (1993) informa que essa teoria deixa de perceber que as culturas hu-
manas são históricas, sociais e políticas, se formam por meio de lutas e movimentos
humanos e não por criações biológicas ou genéticas.
Embora o determinismo biológico tenha sido combatido veementemente1 a partir
dos anos de 1950, permaneceu desenvolvendo estudos e ressurgiu com certo entu-
siasmo intelectual a partir dos anos de 1980: “[...] a idéia de que as diferenças gené-
ticas ou biológicas explicam as diferenças raciais de rendimento social e educativo
ainda tem vigência e está presente na consciência popular” (McCARTHY, 1993, p. 39).
Nos anos de 1980, no contexto da grande crise econômica do capitalismo que en-
gendrou um alto índice de desemprego e exclusão, atingindo principalmente os mais
pobres, houve a renovação das teorias conservadoras que receberam maior influxo ao
desenvolverem um discurso sobre o controle social, baseado não mais em questões
biológicas, mas com explicações mais relacionadas à cultura.
Segundo essas teorias (McCARTHY, 1993), o baixo rendimento das minorias cul-
turalmente diferenciadas e suas baixas taxas de titulação nas principais universidades
têm mais relação com o profundo sentimento de inferioridade intelectual e cultural
dos indivíduos negros em presença dos brancos devido ao ressurgimento do racismo
que os força a participar de protestos sociais ao invés de enfrentar o desafio acadêmi-
co de progredir nos estudos.
Em relação às dificuldades de aprendizagem das crianças na escola, as teorias da
“privação cultural” afirmam que as crianças provenientes dos diferentes grupos cul-
turais e de famílias pobres estão culturalmente privadas porque

1 Cf. Levi-Strauss. Raça e história (1976), Raça e cultura [19--?].

120
[...] são oriundos de lugares que não lhes proporciona o tipo de estimulação Diversidade cultural,
organizada que favorece o desenvolvimento normal em conseqüência, estão alfabetização e
letramento
atrasados em seu desenvolvimento lingüístico, cognitivo e social, razão pela
qual, fracassam na escola (McCARTHY, 1993, p. 43).

Os autores que defendem esta idéia afirmam que as divisões feitas em algumas
escolas logo nos primeiros dias de aula do ano letivo nas salas de alfabetização, nas
quais se classificavam as crianças conforme suas “capacidades intelectuais”, organizan-
do salas de aulas com crianças muito capazes, capazes e menos capazes, ocasionavam
discriminações que interfeririam em toda a vida escolar do estudante.
Responsabilizando os professores pelo baixo rendimento das crianças filhas de
trabalhadores e de grupos culturalmente diferenciados devido à discriminação que
sofrem ao chegarem à escola, sugeriu-se que a solução para o enfrentamento dessa
situação seria a adoção de atitudes mais acolhedoras por parte dos professores para
que essas crianças consideradas menos capazes pudessem se inteirar melhor ao meio
escolar, porque a percepção que elas têm da conduta do professor é muito importante
em seu “rendimento” escolar.
Essas propostas de inclusão têm como objetivo “redimir” as crianças da herança de
suas origens com programas compensatórios, melhorando as habilidades necessárias
para seu êxito nas escolas públicas. Incluídas, as crianças desenvolveriam melhores ha-
bilidades linguísticas, de comunicação, de raciocínio, percepção, atenção e confiança
em si mesmas.
Em consonância com McCarthy (1993), as teorias que separam a educação da vida
política e econômica da sociedade têm alto poder de disseminação de seus ideários,
uma vez que estão afinadas aos discursos institucionais que fundamentam as políticas
educacionais liberais e neoliberais nas últimas décadas.

Ao deixar de lado as fundamentais questões relativas à desigualdade estrutural


e as diferenciadas relações de poder, os defensores do multiculturalismo aca-
bam depositando uma enorme responsabilidade sobre os ombros dos professo-
res na luta para a transformação das relações raciais nas escolas e na sociedade
(McCARTHY, 1993, p. 68).

Foi amplamente disseminada e apropriada pelo professor, a ideia de que basta


não ter uma atitude discriminatória em sala de aula para que esteja garantido o bom
“rendimento” da criança. Em razão disto, este profissional tem se desdobrado para
conseguir entender todas as diferenças e evitar discriminá-las.

A importância da escola na aprendizagem para todos


Desde institucionalização da escola universal, pública e laica, nos princípios do ca-
pitalismo, no século XIX, as políticas educacionais não disponibilizaram a escola para

121
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, todos, uma vez que as crianças filhas de trabalhadores e aquelas provenientes dos gru-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO pos culturais diferenciados tiveram e têm pouco acesso e baixo rendimento escolar.
Se entendermos que o domínio dos códigos modernos da sociedade criados pela
humanidade nas relações sociais devem estar disponíveis a todos, podemos perceber
que a escola, como uma das principais instituições da sociedade capitalista, exclui
grande parte das crianças das oportunidades de conhecimento sistematizado, não por
uma questão cultural, mas econômica: “[...] em 1980, antes ainda que a recessão apre-
sentasse um efeito muito visível, somente um em cada três jovens negros que estavam
fora da escola tinha algum tipo de emprego” (APPLE, 2001, p. 129).
Considerando essa realidade, é de suma relevância que a escola possa garantir a
todos, independentemente das diferenças, o direito de aprender, pois “[...] a criança
assimila uma nova ação, se a mesma for atraente, interessante e se corresponder as
suas necessidades” (MUKHINA, 1995, p. 41). Em um ambiente de colaboração, coleti-
vidade, diálogos e trocas, os interesses pela aprendizagem serão estimulados.
As dificuldades que as crianças pobres encontram na escola têm relação com a ex-
clusão econômica que sofrem, sendo então de extrema importância que professores e
equipes pedagógicas tenham claro o fato de que o acesso ao mundo da escrita é respon-
sabilidade da escola, sendo este lugar privilegiado para a aprendizagem e a ampliação
da compreensão sobre as relações políticas e econômicas da realidade em que vivemos.
Consideremos o que asseverou Vigotski,

Até agora a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar, em rela-
ção ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da
criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas,
mas não se ensina a linguagem escrita ( VIGOTSKI, 1998, p.139).

Quando olhamos os dados sobre alfabetização e letramento no Brasil (INSTITU-


TO, 2000; 2004) e em diversas outras sociedades, verificamos que a preocupação de
Vigotski é ainda muito atual, pois as crianças, provenientes das classes trabalhadoras
e principalmente dos grupos culturais diferenciados não têm tido adequado acesso e
desempenho escolar.

[...] as crianças assimilam esse mundo, a cultura humana, as assimilam pouco


a pouco as experiências sociais que essa cultura contém, os conhecimentos,
as aptidões e as qualidade psíquicas do homem. É essa a herança social. Sem
duvida, a criança não pode se integrar na cultura humana de forma espontânea.
Consegue-o com ajuda e a orientação do adulto no processo de educação e de
ensino” (MUKHINA, 1995, p. 40).

Conscientes do papel da escola, conhecedores das teorias de aprendizagem e de-


senvolvimento que favorecem a aprendizagem de todos, os professores empreenderão
uma prática pedagógica que privilegie não apenas o ensinar a ler e escrever, o domínio

122
de uma tecnologia, mas também o estímulo de relações coletivas na escola que façam Diversidade cultural,
alfabetização e
frente às teorias e práticas oriundas da sociedade dominante, de individualismo e mé- letramento

rito pessoal.
Neste sentido, destacamos o papel da formação e comprometimento dos profes-
sores com uma melhor e mais ampla aprendizagem das crianças. Essa formação com-
preende momentos de estudo em grupo, discussões, formulações, planejamentos, e
práticas transformadoras. Essas ações só se concretizam de forma adequada quando
assumidas por todos ou pela grande maioria dos profissionais que atuam em determi-
nada escola.
A escola, por sua vez, deverá oferecer condições adequadas de aprendizagem e
conscientização de todos. É papel do governo não apenas fazer o discurso em defesa
da boa educação, mas viabilizar as condições de trabalho, formação em serviço, mate-
riais didáticos diversificados e salários compatíveis.
Somado a isto, a opção por uma teoria demonstra o comprometimento da escola
e dos professores com a aprendizagem. Se a opção é por uma teoria revolucionária
como a teoria Histórico-Cultural, os procedimentos didáticos e os conteúdos selecio-
nados terão como objetivo que a criança, jovem ou adulto tenha acesso ao que há
de melhor em relação ao conhecimento produzido pela humanidade, possibilitando
tornarem-se seres humanos conhecedores, solidários, participativos e críticos, sendo
capazes de compreender, lutar e contribuir com a transformação deste mundo que
exclui para um mundo verdadeiramente humanizado.
Essa não é uma questão de fácil compreensão para nós professores, porque exige
um profundo esforço intelectual, estudos e mobilização em torno de questões relacio-
nadas ao conhecimento e sua democratização em uma sociedade de classes.

Uma reflexão sobre especificidades culturais e


alfabetização
Nunca houve um momento na história da escolarização em que a se trabalhasse em
uma sala de alfabetização homogênea. A diversidade faz parte da condição humana e
de maneira nenhuma afeta as possibilidades de aprendizagem das crianças. Nenhum
ser humano é inferior ou menos capaz que o outro. A tese do sentimento de inferio-
ridade imanente, pelos que provêm de culturas diferencias não encontra sustentação
científica.
As teorias biologizantes sobrevivem porque atendem aos interesses da sociedade
capitalista de realizar o controle sobre os pobres e diferentes, aqueles que não se
enquadram “adequadamente” ao sistema e são destinados a um mercado de trabalho
secundário ou sobrevivem de assistência governamental.

123
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Se optarmos pelas teorias culturais que predominam nas atuais políticas educacio-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO nais, nos PCNs e em grande parte do material pedagógico disseminado para as escolas
nas últimas décadas, acreditaremos que são os sentimentos de inferioridade das crian-
ças e o preconceito da escola que atrapalham sua aprendizagem.
Entretanto, se optarmos por uma teoria revolucionária que demonstra serem todos
os seres humanos capazes de aprender desde que a escola disponha de adequadas
condições de ensino e aprendizagem, compreenderemos que o ensino deve ser o
mesmo para todos, independentemente de sua condição econômico ou sociocultural.
Conforme Vigotski (2007),

[...] o ensino deve ser sistematizado de maneira que a leitura e escrita tornem-
se necessárias às crianças. Que tenha significado para as crianças e que repre-
sente uma necessidade a ser despertada, bem como incorporada a uma tarefa
imprescindível e relevante para a vida ( VIGOTSKI, 2007, p. 143).

Vigotski argumenta que uma criança de 4 anos pode aprender a ler, porém “[...]
a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida” ( VI-
GOTSKI, 2007, p. 144). Se assim não for, será uma atividade mecanicista e não repre-
sentará nenhum estímulo ao uso da leitura e escrita pela criança.
A diversidade (de ideias, opiniões, saberes, crenças, orientação sexual, etnias) será
considerada na medida em que todas as crianças forem ouvidas, estimuladas à parti-
cipação por meio de diferentes materiais de apoio como a literatura (universal, indí-
gena, afro etc.), obras de arte (telas significativas e plurais como são as de Tarsila do
Amaral, Candido Portinari, Vicent Van Gogh), poesias, músicas eruditas, ilustrações
trabalhadas por meio de atividades planejadas pelo conjunto de professores e suas
equipes pedagógicas.
Em sala de aula, as crianças organizadas, desafiadas e estimuladas por seus pro-
fessores, desenvolvem maneiras diferenciadas de participar das atividades: pensam,
argumentam, propõem, complementam ou modificam ideias, ampliam, copiam, rein-
ventam, criam..., desde que o ambiente de estudos e os materiais de apoio lhes pro-
piciem essas condições. Nesse processo, todas as crianças elaboram e reelaboram os
conhecimentos escolares, acrescentando-os aqueles que provêm de sua cultura.
A utilização de diferentes gêneros textuais e materiais de apoio já mencionados
favorecem um maior gosto pela escola e uma maior aprendizagem.

[...] no universo das salas de aula, há muitos fatores que dificultam o acesso das
crianças à leitura e à escrita mas os dados da avaliação indicam que é necessário
dar mais atenção a atividades de letramento, isto é, trabalhar desde muito cedo
com os diversos textos (e suas funções) que circulam socialmente, mesmo antes
de o aluno saber codificar e decodificar (CAFIERO; ROCHA, 2008, p. 75).

124
Esses procedimentos encantam e envolvem as crianças com a aprendizagem, e na Diversidade cultural,
alfabetização e
medida em que percebem que estão avançando nos estudos, aprendendo, se sentem letramento

encorajadas a darem continuidade aos estudos. Como demonstração disso, abaixo


apresentamos a síntese de uma experiência de alfabetização e letramento em um con-
texto de diversidade cultural.

Cultura e letramento entre crianças Kaingang no Paraná


A experiência relatada foi desenvolvida por meio de um projeto de formação de
professores índios e não-índios que atuam em escolas de duas Terras Indígenas Kain-
gang2, no Paraná, nos anos de 2007 e 2008. O Projeto contou com o apoio do Progra-
ma Interdisciplinar de Estudos de Populações/Laboratório de Arqueologia, Etnologia
e Etno-História CCH/UEM3, o qual congrega diferentes grupos de estudo e pesquisa
atuantes entre povos indígenas no Paraná.
A experiência foi precedida por reuniões com a equipe pedagógica e os profes-
sores, a comunidade indígena, caciques e as lideranças, nas quais se estabeleceram
os temas que fariam parte das intervenções pedagógicas nas séries iniciais do Ensino
Fundamental de duas escolas indígenas.
Envolveram-se mais diretamente nas atividades do Projeto vinte e cinco professo-
res índios e não-índios, que escolheram as turmas nas quais seriam desenvolvidas as
práticas pedagógicas. Um dos temas aqui destacado foi conduzido pelos professores
Adalto Graçã Cordeiro (indígena) e Marlene V. de Almeida (não-indígena), que juntos
escolheram trabalhar o Artesanato, uma vez que tem muito significado na vida das
crianças, pois representa a principal fonte de renda da comunidade, e da qual toda a
família participa.
As atividades tiveram início com os docentes formadores proferindo palestras so-
bre história, meio ambiente, recursos naturais, poluição, doenças parasitárias e cultu-
ra. Na sequência foram realizadas reuniões de estudos, pesquisas, seleção, aquisição e

2 As Terras Indígenas Ivaí e Faxinal, situadas no Paraná Central, respectivamente têm 1400 e
600 habitantes, falantes do kaingang como língua materna. A maior parte dos membros dessas
comunidades não tem renda fixa: vivem de roças comunitárias (cuja dimensão e qualidade da
terra não é suficiente para a subsistência de todos), algumas aposentadorias e da renda da ven-
da do artesanato. Os grupos indígenas que inicialmente recusavam a escola por ser esta uma
imposição do processo de colonização hoje a reivindicam por entender ser uma instituição por
meio da qual podem acessar novos conhecimentos de que necessitam na realidade à qual foram
submetidos para continuar sobrevivendo enquanto grupo diferenciado. Uma discussão porme-
norizada sobre essas questões encontra-se em Faustino (2006).
3 Nesse projeto participaram os professores doutores Lucio Tadeu Mota (Antropologia), Marta
Chaves (Pedagogia), Max Jean de Ornelas Toledo (Análises Clínicas), Mara Glacenir Lemes de
Medeiros (Meio Ambiente), Marcos Rafael Nanni (Agronomia).

125
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sistematização de materiais de apoio a serem utilizados.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Todas as crianças da comunidade falam a língua kaingang como língua materna, e
quando pequenas (entre 4 e 10 anos) apresentam bastante dificuldade na língua por-
tuguesa oral e principalmente escrita. Para essas crianças indígenas, a aprendizagem
da leitura e escrita e o uso destas em diferentes contextos se apresentam com muita
dificuldade devido ao não domínio da língua oficial, o português na oralidade e ao
bilinguísmo utilizado nas escolas (método direto), que requer muito esforço de leitura
sem a assimilação dos conteúdos. Por praticarem muito pouco o português fora da
escola, nesta progridem lentamente.
No método bilingue, utilizado no ensino da língua materna nos primeiros anos da
escolarização, até que cheguem ao conhecimento da segunda língua as crianças apren-
dem a ler em sua língua materna, aprendendo o português na oralidade. As desvanta-
gens desse método consistem no fato de as crianças serem obrigadas a se alfabetizar nas
duas línguas, exigindo maior tempo e esforço, fator que explica a concentração maior
de crianças, com idades já avançadas, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, con-
forme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa – INEP (BRASIL, 2007, p. 20).
Como os povos indígenas representam grupos cuja organização sociocultural se dá
por meio da oralidade, a criança indígena chega à escola conhecendo pouco sobre a
função da escrita. As instituições educativas necessitam organizar seu ensino de forma
que a criança reflita sobre essa função para compreendê-la e da escrita poder se apro-
priar plenamente, desenvolvendo novas potencialidades intelectuais.
Considerados esses elementos, os professores Marlene e Adalton conversaram com
as crianças sobre o que fariam, explicaram como as atividades seriam desenvolvidas
e quais eram os objetivos do trabalho, dizendo, ao final que, “nossa turma poderá
contar, em um livro, como é feito o artesanato Kaingang e para que fazemos”. A
professora pediu que observassem o que precisa ter em um livro para que ele fique
bonito, possa ser lido e usado por outras crianças para estudar.
Organizados em grupos, receberam livros ilustrados, textos informativos, imagens
e materiais diversificados, previamente preparados. Passaram a conversar sobre o ar-
tesanato em sua comunidade. Das conversas, a professora solicitou que registrassem,
desenhassem escrevessem como é feito o artesanato, do começo ao fim.
Assim que as ideias iam surgindo, a professora ia estimulando a junção, ordenação
e organizando para dar-lhes uma característica de texto informativo. Mesmo aqueles
cujas famílias não praticavam o artesanato puderam, pelo que observavam no dia a dia
e pelos materiais de apoio que receberam, propor ordenações, seções que entrariam
ou não no livro, quais palavras seriam mais bem entendidas por aqueles que não co-
nhecem o artesanato e a cultura Kaingang.

126
Nos vários dias em que se envolveram com as atividades, os alunos puderam con- Diversidade cultural,
alfabetização e
versar com seus familiares e perguntar o que não sabiam. Saíram pela mata, na aldeia, letramento

com uma máquina fotográfica com o intuito de mostrar para a professora não-índia
onde se pode encontrar a matéria-prima (banbusa vulgaris), como ela é retirada, des-
crevendo em seguida todo o processo de preparo até que se torne um cesto ou balaio
que pode ser vendido nas cidades do entorno.
De volta à sala-de-aula, a professora solicitava que escrevessem coletivamente, da
forma como conseguissem, as informações necessárias para o livro. O professor indí-
gena auxiliava naquilo que as crianças não compreendiam e explicava em Kaingang a
organização do trabalho a ser desenvolvido.
Com o estímulo dos professores, contaram histórias, escreveram, desenharam, pin-
taram, organizavam as informações, os textos e as fotografias. Escolheram a capa (feita
em E.V.A. pintado e recortado em formato da principal peça do artesanato Kaingang,
o balaio grande).

Capa do Livreto coletivo Preparação e utilização da taquara e do grafismo na arte Kaingang.

Páginas internas do Livreto elaborado pelas crianças Kaingang da T.I. Ivai.

127
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, No mesmo projeto, outras turmas, acompanhadas pela equipe pedagógica, desen-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO volveram atividades com o tema meio ambiente, saúde, remédios do mato, comidas
tradicionais e outros. Partiram de conversas iniciais relativas ao tema e aos materiais
de apoio que receberam de seus professores, coletaram informações na aldeia, em
jornais, livros e revistas, discutiram com os colegas, elaboraram textos, prepararam vi-
veiros com plantas medicinais, classificando, nominando e, ao final de cada atividade,
escrevendo um livreto, de dez a quinze páginas, em português ou Kaingang.
Os trabalhos realizados na Terra Indígena Faxinal foram organizados pelas pro-
fessoras, e em uma festa no dia do índio4 expostos e apresentados pelas crianças aos
familiares e comunidade em geral em uma sala de aula da escola.

Considerações finais
Discutiram-se as diferenças culturais no contexto econômico e social da atualidade,
afirmando-se que as diferenças culturais não podem ser consideradas com um entrave
para a aprendizagem e desenvolvimento de todas as crianças.
Os grupos culturalmente diferenciados e as crianças filhas de trabalhadores tiveram
historicamente e ainda têm menores oportunidades de acesso ao conhecimento e,
consequentemente, ao domínio das tecnologias criadas pela humanidade, de forma
que estão excluídas de participação cidadã.
Predominam nos meios acadêmicos as teorias conservadoras que afirmam que a
exclusão de um grande número de crianças está relacionada aos determinantes bioló-
gicos – são intelectualmente inferiores em relação às crianças brancas, provenientes
das classes dominantes – ou culturais, são originários de meios desorganizados que
não estimularam seu desenvolvimento espontâneo, afetando a aquisição de habilida-
des necessárias ao conhecimento escolar e, sendo discriminadas pelos professores
e colegas, desenvolvem um sentimento de inferioridade que interfere em toda sua
trajetória escolar.
Essas teorias são cientificamente falaciosas, porém extremamente convenientes,
fomentadas e utilizadas pelo Poder Público, responsável pelas políticas educacionais,
pois, considerando ser a solução para o problema da exclusão, um maior acolhimento
e respeito por parte dos professores basta na elaboração de currículos mais específicos
para que essas crianças aprendam.
As teorias derivadas do materialismo histórico, como é o caso da Teoria Histórico
Cultural de Vigotski, Luria, Leontiev e outros, evidenciam que as diferenças culturais

4 Todas as comunidades indígenas no Paraná comemoram o dia do índio com festa.

128
são históricas e não biológicas e que as crianças diferentes culturalmente têm maior di- Diversidade cultural,
alfabetização e
ficuldade de aprendizagem porque a escola a elas disponível na maior parte das vezes letramento

não lhes proporciona as condições adequadas de aprendizagem.


As funções psicológicas superiores, necessárias à aprendizagem escolar, não são
inatas, e sim desenvolvidas por meio de elementos mediadores externos. A alfabetiza-
ção e o uso da leitura e escrita em diferentes contextos sociais são de extrema relevân-
cia para todas as crianças, independentemente da situação sociocultural e econômica
de que provêm.
Procurou-se mostrar que mesmo em uma sala de aula onde a professora não-índia
não conhece a língua falada pelas crianças e essas conhecem pouco a língua usada pela
professora é possível, por meio de elementos mediadores diversificados, o desenvolvi-
mento de atividades significativas que tenham sentido e que estimulem à criança a com-
preender e a querer aprender a ler e escrever usando essas habilidades para ampliar as
formas de aquisição e disseminação dos conhecimentos culturais que já possui.

Referências

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Dissertação. (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
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virtual/pedagogia/vigotsky/indice.html>. Acesso em: 13 dez. 2009.

130
Diversidade cultural,
alfabetização e
letramento
Proposta de Atividade

1) A partir da leitura do capítulo, faça um levantamento em uma biblioteca escolar ou univer-


sitária identificando e relacionando obras de literatura que abordem as questões indígenas
e afro-brasileiras. Organize uma ficha com o título, editora, autor e resumo da obra, assi-
nalando de que forma e em quais situações esse material poderia ser utilizado nas salas de
alfabetização.

Indicações de Leitura

CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática.


Petrópolis: Vozes, 2007.

CASTANHEIRA, Maria Lucia; MACIEL, Francisca Izabel Pereira; MARTINS, Raquel Marcia
Fontes. Alfabetização e letramento na sala de aula. Belo Horizonte: Autentica; Ceale,
2008.

GONTIJO, Claudia Maria Mendes. Alfabetização: a criança e a linguagem escrita.


Campinas, SP: Autores Associados, 2003.

HALL, Gillette; PATRINOS, Harry Anthony. Pueblos indígenas, pobreza y desarrollo


humano en América Latina: 1994-2004. Washington: Banco Mundial, 2004.

LACERDA, Mitsi Pinheiro de. Quando falam as professoras alfabetizadoras. Rio de


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arttext&pid=S0101-73302000000400007&lang=pt>. Acesso em: 13 dez. 2009.

131
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

132
8 Práticas pedagógicas
de alfabetização e
letramento na escola
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Analete Regina Schelbauer /
Suely Harumi Fugimoto / Ângela Rita Bellincanta Hercos / Maria Araci Guazelli

Introdução
No encerramento deste livro voltado ao estudo e à reflexão de questões teórico-
práticas relacionadas aos processos de alfabetização e letramento, apresentamos um
capítulo redigido a dez mãos. Quatro delas pertencem a professoras do Departamento
de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de Maringá envolvidas em
atividades de ensino, pesquisa e extensão que primam pela formação de professores
alfabetizadores. As outras seis mãos são de professoras alfabetizadoras que, de longa
data, atuam profissionalmente em centros de educação infantil e escolas de Ensino
Fundamental, públicas e privadas, com o compromisso de melhorar a qualidade do
ensino, em especial da alfabetização e do letramento.
A partir dos resultados de estudos e pesquisas na área de alfabetização e letramento
e da experiência com a formação inicial e continuada de professores, somados ao tra-
balho desenvolvido por professoras alfabetizadoras, objetivamos refletir sobre, relatar
e propor práticas pedagógicas que envolvam situações de ensino e aprendizagem da
leitura e da escrita e seus usos sociais, tendo como pressuposto a grande frequência de
práticas pedagógicas que envolvem o nome próprio; as raras situações que envolvem o
trabalho com o texto poético – gênero textual exilado da escola –; e a importância do
desenho infantil para o processo de apropriação da leitura e da escrita.

“Quero escrever o meu nome!” – práticas pedagógicas a


partir do nome próprio
Explorar a escrita dos nomes das crianças em processo de alfabetização tornou-se
uma prática pedagógica comum, tanto em centros de educação infantil como em esco-
las de Ensino Fundamental. Essa prática voltada para a exploração da forma escrita do
nome próprio difundiu-se entre os professores a partir de meados da década de 1980 à
medida que os estudos de Emília Ferreiro e colaboradores foram difundidos no Brasil

133
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, e ganharam espaço em propostas pedagógicas oficiais. Para Ferreiro (1985), as letras
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO que compõem o nome constituem-se em um dos primeiros conteúdos presentes nas
tentativas de escritas realizadas por crianças em processo de alfabetização.
Todavia, podemos olhar essa prática amplamente consolidada seguindo princípios
da teoria histórico-cultural, porque nos permitem compreender que o trabalho com a
escrita do nome próprio é uma forma de antecipar situações que a criança só poderia
lidar a partir da apropriação do sistema de escrita. Explorar pedagogicamente a escrita
do nome próprio:

Para as crianças que estão imersas no mundo da escrita, significa atuar na zona
de desenvolvimento potencial, pois lhes é possível, mesmo antes de saberem
ler e escrever, e se mediadas pela professora, identificar a grafia de seu nome,
palavra dotada de significação social, e de outras pessoas importantes para elas
(colegas de turma, professora, mãe, pai), compará-los entre si e procurar as
semelhanças e as diferenças com outras palavras (LUCAS, 2008, p. 276).

Além disso, trata-se de uma recomendação didática presente na produção biblio-


gráfica sobre alfabetização e letramento produzida nas últimas três décadas (LUCAS,
2008). Perez (1993), por exemplo, considera fundamental explorar a escrita do nome
próprio das crianças, principalmente no início do processo de alfabetização. Para a
autora, trabalhar a escrita o nome da criança é

[...] incorporar sua história ao contexto pedagógico, trazendo-a para o cotidia-


no da sala de aula. O nome está ligado a uma história de vida e a uma identida-
de pessoal e particular. O trabalho com o nome permite que se estabeleça no
espaço da sala de aula a articulação individual/coletivo (PEREZ, 1993, p. 96).

Isto quer dizer que o nome próprio não pode ser considerado como uma palavra
a mais, no mesmo nível de tantas outras. Ele deve ser concebido como uma palavra
singular, diferente de outras em vários aspectos. Por um lado, a carga emocional vincu-
lada com a escrita do nome próprio não pode ser comparada com a de outras palavras.
O nome próprio escrito, ou até mesmo a sua assinatura, é parte da pessoa, de sua iden-
tidade. Por outro lado, “o nome constitui uma palavra-texto, com grau de significação
ímpar: nele está contida toda a história da criança” (PARANÁ, 1990, p. 41). É por isso
que as crianças, ao entrarem em contato de forma sistematizada com a escrita, mani-
festam a vontade de aprender a escrever o seu nome e, a partir de então, colocar a sua
marca em todo espaço possível – papel, caderno, parede, brinquedos, etc.
Dentre as práticas pedagógicas indicadas para o trabalho a partir do nome próprio
relatamos a desenvolvida por uma professora de pré-escola. Ela dispôs as crianças sen-
tadas em círculo e solicitou-lhes que dissessem o seu nome de várias maneiras: alto,
baixo, com voz grossa ou fina, cantando, sussurrando... Cada criança escolheu uma
forma para se apresentar. Para que todos se conheçam e possam se dirigir aos colegas

134
chamando-lhes pelo nome, sugerimos que essa prática seja repetida várias vezes, prin- Práticas pedagógicas
de alfabetização e
cipalmente no início do ano letivo. Essa prática é carregada de significado pelo fato de letramento na escola

que as crianças, de acordo com Sampaio (1993), quando chegam à escola já sabem que
têm um nome que pode ser oralmente exposto ao grupo.
Da oralidade, a professora partiu para a leitura de um cartaz contendo uma adi-
vinha – “modalidade de literatura popular que solicita ao ouvinte uma resposta cer-
teira para uma pergunta enigmática” (DEBUS, 2006). Convém que essa leitura esteja
acompanhada de explicações necessárias para que as crianças cheguem à resposta
esperada.

O QUE É, O QUE É?
QUANDO NASCI EU NÃO TINHA
ESCOLHERAM E ME DERAM
AGORA QUE ELE É MEU
USAM MAIS DO QUE EU.

Resposta: __________________________

Após concluírem que a resposta da adivinha é O NOME PRÓPRIO, a professora


teceu alguns comentários a respeito da importância e finalidade de nossos nomes:
trata-se de uma forma de identificação. Por isso, o nome próprio está registrado em
documentos importantes, tais como: registro de nascimento, carteira de identidade,
carteira profissional, certidão de casamento, escritura de imóvel, diplomas. Sugerimos
que, nesse momento, a professora mostre a sua carteira de identidade às crianças e
leia as informações que nela constam, destacando a escrita de seu nome que pode,
inclusive, ser registrado na lousa para melhor visualização e para possibilitar a identifi-
cação das letras utilizadas. A partir de então, que tal ir com as crianças até a secretaria
da escola para procurar o nome de cada uma nas certidões de nascimento? E que tal
propor às crianças a confecção de carteiras de identidade?
Para tanto, é necessário esclarecer às crianças que a carteira de identidade tem um
número muito utilizado em nosso dia-a-dia que, semelhante ao nome próprio, tam-
bém tem a finalidade de nos identificar. É o RG, que significa Registro Geral. Além do
nome e do RG, há outras informações contidas nesse documento que ajudam a identi-
ficar uma pessoa, as quais devem ser evidenciadas às crianças. A seguir, indicamos um
roteiro para ajudar o professor a organizar esse trabalho:
1) mostrar uma carteira de identidade para as crianças e ler as informações nela
contidas, tais como: nome, filiação, naturalidade, data de nascimento;

135
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, 2) mostrar a assinatura do portador da carteira de identidade e explicar que ela é
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO uma maneira pessoal de escrever o nome próprio para identificação;
3) mostrar a impressão digital – outro recurso utilizado para identificar ou re-
conhecer uma pessoa – e explicar como ela é feita;
4) criar uma cédula de identidade para ser preenchida pelas crianças ou pelo
professor que pode, nessa situação, atuar como um escriba;
5) organizar um formulário para colher junto aos pais as informações necessá-
rias para preencher a carteira de identidade ou pesquisar nas certidões de
nascimento das crianças;
6) orientar as crianças a desenhar seu auto-retrato em um papel corresponden-
te ao tamanho de uma foto 3x4, recortar e colar na carteira de identidade;
7) propor às crianças que inventem uma assinatura e a reproduzam na carteira
de identidade;
8) carimbar a impressão digital de cada criança em sua carteira de identidade;
9) plastificar as carteiras de identidade confeccionadas com papel adesivo trans-
parente ou guardar em saquinhos de plástico individuais para aumentar o
tempo de uso do documento;
10) brincar criando várias situações nas quais as crianças precisem identificar-
se por meio do documento reproduzido, tais como: exigir que mostrem a
carteira de identidade para entrar em um ônibus ou trem feito com as cadei-
ras da sala de aula; procurar o seu nome em uma listagem de passageiros;
esconder uma das carteiras de identidade para que as crianças descubram,
por meio da leitura do nome próprio, de quem é aquele documento.

Devido à relevância do nome próprio para identificar uma pessoa e a distinguir


das demais, é aconselhável, no início do processo de aquisição da linguagem es-
crita, que essa palavra-texto desencadeie várias situações de registro por parte do
professor. Para tanto, o professor deve permitir que a criança veja e acompanhe o
registro por escrito de seu nome durante a confecção de seu crachá ou ficha, por
exemplo. Nessa situação, convém: chamar a atenção da criança para o traçado das
letras e para a segmentação das palavras; ler o que foi registrado, apontando com o
dedo ou outro instrumento para a criança observar a direção da escrita (da esquer-
da para a direita); dizer em voz alta o que está escrevendo, evidenciando a relação
que há, no início do processo de alfabetização, entre a fala e a escrita.
Tal relação não é tão evidente quanto parece. Para Vygotski (2000), durante
a aprendizagem da escrita essa linguagem se constitui em uma representação de
segunda ordem, ou seja, ela consiste em um sistema de signos que representa a

136
linguagem oral, a qual, por sua vez, simboliza objetos, ações, fenômenos reais. Há, Práticas pedagógicas
de alfabetização e
nesse momento inicial de aprendizagem, uma relação entre a linguagem oral e a letramento na escola

escrita. No entanto, ao longo do processo de alfabetização, a medida que a criança


se apropria da linguagem escrita, a fala, como elo intermediário entre o objeto
real e a sua representação escrita, desaparece gradualmente, transformando essa
linguagem em um sistema de signos que representa diretamente os objetos ou
situações designadas.
Para evidenciar essa relação, consideramos imprescindível mostrar às crianças
em processo de alfabetização que para escrever não precisamos “pensar no” ob-
jeto/ação/fenômeno que pretendemos registrar, mas nos sons que emitimos ao
pronunciar a palavra que denomina aquele objeto/ação/fenômeno. Há, portanto,
diferença entre desenhar os objetos/ações/fenômenos e desenhar a fala. De acordo
com essa ótica, o desenho feito pela criança, além de ser um recurso motivador, é
um dos pontos, além dos gestos e do jogo, pelo qual a criança passa em direção à
linguagem escrita ( VYGOTSKI, 2000). Em razão disto, convém que recorramos a
essa forma de representação tendo em vista o processo de alfabetização. O dese-
nho pode, então, acompanhar práticas alfabetizadoras que envolvem os nomes das
crianças, como nas experiências a seguir relatadas.
Trabalhos que envolvem os nomes das crianças e que lhes evidenciam a relação
entre a linguagem oral e escrita foram relatados por Cavalcanti (1997). Em um des-
ses relatos, ela afirma que para auxiliar a escrita do próprio nome e dos colegas é
necessário que esses crachás ou fichas estejam afixados em lugar visível (painel de
madeira, quadro de pregas, cartaz). Assim, eles servirão de material de pesquisa e
facilitarão, diariamente, a realização de atividades que envolvam a leitura e escrita
dos nomes da turma e de outras palavras ou textos. Para isso, é necessário que se
proponham situações por meio das quais as crianças: presenciem a leitura e a es-
crita dos nomes dos integrantes da turma; escrevam o seu nome e dos colegas nos
papéis em que desenham, nos avisos que vão para casa; leiam cartões para saber
em que lugar cada criança deve se sentar; leiam a lista de nomes dos alunos da
classe para anotar aqueles que estão presentes e os que estão ausentes.
Assim, ao realizar a chamada, a professora mostrou os crachás ou os leu, um a
um, para que cada criança viesse à frente pegar o seu para afixá-lo no Painel de Cha-
mada. Em outra oportunidade, ela pediu para as crianças que, ao reconhecerem
seus crachás, dissessem a letra inicial de seu nome ou mencionassem todas as letras
necessárias para escrevê-lo. Em outra situação, a professora as desafiou a encon-
trar a letra inicial de seu nome no cartaz da adivinhação, anteriormente exposto.
Porém, se elas não encontrassem a primeira letra, deveriam procurar a segunda ou

137
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, terceira. No dia seguinte, solicitou às crianças, uma de cada vez, que circulassem no
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO cartaz, utilizando caneta hidrográfica, a primeira (ou segunda, ou terceira) letra do
seu nome. A partir de então, a professora conversou com as crianças a respeito: da
quantidade de letras marcadas; de quais letras foram circuladas; de quantas letras
foram necessárias para registrar cada nome da turma. Para encerrar a discussão do
dia, ela solicitou às crianças que escrevessem seus nomes ao redor do cartaz como
forma de ilustrar a resposta da adivinha.
Para que não se esquecessem da adivinha e, especialmente, de sua resposta,
propôs às crianças que a copiassem no caderno. Salientamos que a cópia nessas
circunstâncias é um ato significativo, porque costumamos recorrer a essa forma
de registro quando não podemos ou queremos esquecer algo, isto é, utilizamos a
escrita como recurso mnemônico (LURIA, 2006), sendo esta uma das finalidades
da escrita. O mesmo trabalho proposto para que fosse realizado coletivamente (no
cartaz) pode, agora, ser efetivado individualmente (no caderno): circular no texto
a letra inicial do nome próprio; passar lápis de cor sobre todas as letras que o
compõem.
O trabalho com os nomes próprios, além de possibilitar às crianças pensar sobre
algumas funções da linguagem escrita, permite estabilizar a sua grafia, tornando-os
palavras estáveis. Assim, os nomes próprios tornam-se “[...] palavras que as crianças
são capazes de escrever e ler antes mesmo de dominarem a base alfabética, dando
a impressão aos mais desavisados de que já são capazes de ler e escrever conven-
cionalmente qualquer coisa” (CAVALCANTI, 1997, p. 57).
O mais importante é que o conjunto dos nomes de uma turma se constitui
em um repertório comum de palavras conhecidas que, ao se tornarem estáveis,
podem servir de fonte de informação para o registro de outras palavras e de con-
fronto entre a sua escrita e a convencional, permitindo, por meio da intervenção
do professor, compreender o funcionamento de nosso sistema de escrita. Vejamos
abaixo uma atividade realizada por uma aluna de pré III1 de um centro de educação
infantil público, por meio da qual a professora pretendia que a escrita do nome se
tornasse estável.

1 Os alunos que frequentavam o Pré III, no momento em que este trabalho foi desenvolvido,
anterior à implantação do Ensino Fundamental de 9 anos, completavam seis anos de idade ao
longo do ano letivo.

138
Práticas pedagógicas
de alfabetização e
letramento na escola

Para realizar a tarefa proposta, a criança precisou:


• pensar sobre quais as letras necessárias para escrever o seu nome;
• verificar a necessidade de as letras necessárias para escrever seu nome serem
registradas em uma mesma ordem;
• perceber as letras de seu nome que já estavam registradas e que, portanto, ela
não precisaria escrevê-las novamente;
• desenhar a si própria e a um amigo;
• escrever, copiando ou não, o seu nome e o do amigo desenhado.

139
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Tomando novamente um texto como ponto de partida para promover a alfabeti-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO zação e o letramento, relatamos a seguir o trabalho realizado por uma professora a
partir da exploração da letra de uma cantiga, para dar continuidade ao trabalho com
os nomes das crianças e objetivando estabilizar a grafia dessas palavras.

SE EU FOSSE UM PEIXINHO
E SOUBESSE NADAR,
TIRAVA O _____________________________
DO FUNDO DO MAR.

A partir dessa cantiga, a professora organizou as crianças em roda e colocou uma


caixa com os crachás no centro. Cada criança, ao ouvir o seu nome na cantiga, deveria
ir até ao meio da roda procurar na caixa o crachá com o seu nome e mostrá-lo para
os demais. Depois, a professora mostrou-lhes um cartaz como o acima. Observemos
que foi deixado um espaço no final do terceiro verso para pendurar/afixar um crachá.
A professora leu o texto, apontando as palavras, e completou com o nome de uma
criança. Propomos que seja confeccionado ao redor do texto da cantiga um painel
com ondas e peixes desenhados, coloridos e recortados pelas crianças, nos quais elas
registrarão seus nomes próprios. O importante é que as crianças participem efetiva-
mente da elaboração do painel e que o ato de escrever e/ou reconhecer seus nomes
nos peixinhos por elas desenhados, ou em outras situações, tenha-lhes significado.
Estabilizada a escrita dos nomes próprios, as crianças começam a fazer compara-
ções entre um registro e outro: “Olhe a letra de fulano!”. Em um primeiro momento
do aprendizado, são as letras iniciais dos nomes que mais chamam a atenção das crian-
ças, que passam a reconhecê-las, fazendo referência ao nome de algum colega. Caval-
canti (1997, p. 59) transcreve a fala de um aluno para exemplificar como as crianças
interagem entre si e utilizam a escrita de palavras estáveis como fonte de informação
para registrar outras palavras: “Para escrever palavras que a gente não sabe é só pensar
nos nomes das crianças da classe e ver se dá para usar uma parte deles. Por exemplo,
se tiver que escrever GATO, lembra do começo do nome do GABRIEL”.
Situações semelhantes foram expostas por Ávila (1995). A autora conta como uma
criança de 5 anos, chamada Diego, relacionou as letras iniciais de seu nome com as
iniciais de outra palavra muito significativa, pois era o título do projeto que estavam
desenvolvendo: “O “Di” de dinossauro é o mesmo que o meu “di” (ÁVILA, 1995, p. 47).
Enfim, essa pequena amostra de um trabalho que objetiva explorar pedagogica-
mente a escrita do nome próprio que aqui propomos e descrevemos evidencia que
essa palavra-texto é um recurso valioso no envolvimento da criança com a linguagem

140
escrita, estimulando o processo de alfabetização e enriquecendo o de letramento. Práticas pedagógicas
de alfabetização e
Além disso, o trabalho com nomes próprios: oportuniza uma aprendizagem próxima letramento na escola

aos alunos, particular a cada turma, ligando o ensino a vivências realmente significati-
vas; possibilita que as crianças, ao comparar o registro de seus nomes com o de outras
palavras, busquem semelhanças e diferenças, transformando o processo de apreensão
do sistema de escrita em uma gostosa brincadeira.

“Vamos brincar com as palavras?” – práticas pedagógicas


a partir de poesias
José Paulo Paes (1990), sabiamente, conclama-nos a brincar com as palavras por
meio de um “Convite”, no qual formula uma definição para um gênero literário muito
apreciado pelas crianças, apesar de pouco presente na escola: a poesia2.

Convite
José Paulo Paes

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio e pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio


que é água sempre nova.

Como cada dia


que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

Observemos que o poema aqui transcrito está acompanhado de um desenho. Nes-


sas situações, é importante que o professor saliente a diferença entre o texto escrito e
o desenho que o representa. No texto escrito a relação com a oralidade pode ser ainda
mais evidenciada pela presença de rimas; o desenho é um relato gráfico que tem como

2 A respeito desse assunto, leia o Capítulo 7 do livro: A leitura de poesia na escola. Série For-
mação de Professores EAD nº 19.

141
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, base a linguagem verbal, porém utiliza recursos pictográficos. Essa orientação coaduna
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO com uma das implicações pedagógicas apresentadas por Vigostki (2000) ao explicar a
gênese da linguagem escrita na criança. Para ele, o desenho é uma linguagem gráfica
peculiar, uma etapa prévia da linguagem escrita. Para dar o passo mais importante em
direção à linguagem escrita, a criança

[...] deve compreender que não se pode apenas desenhar as coisas, mas tam-
bém a fala. Foi essa descoberta que levou a humanidade ao genial método da
escrita por letras e palavras, e essa mesma descoberta leva a criança a escrever
as letras. Do ponto de vista psicológico este fato equivale a passar do desenho
de objetos ao das palavras ( VYGOTSKI, 2000, p. 197).

As professoras costumam relatar que ficam impressionadas com a criatividade e


facilidade com que as crianças se expressam por meio do desenho. Muitas vezes, a
forma de encaminhar uma tarefa que exige a realização de desenhos, o formato do
papel, o ambiente escolhido para realizá-la, o clima criado em torno dela contribui
para sua realização e para a qualidade dos resultados obtidos. Foi o que constatou uma
professora que, após ler um poema cujo tema referia-se à natureza, propôs às crianças
que representassem por meio do desenho uma de suas estrofes. Para tanto, levou-as a
uma parte do pátio da escola com muitas árvores, flores, um pequeno lago, galinhas,
coelhos, patos, pavões. Ela constatou que o ambiente escolhido para desenvolver a
atividade contribuiu para qualificar as produções das crianças, porque algumas trans-
puseram para o papel o que observaram do mundo ao seu redor relacionado ao con-
teúdo do poema que ouviram.
Na continuidade do trabalho, a professora permitiu que cada criança apresentasse
sua produção às demais, relatando quais aspectos do texto poético representaram e o
que sentiram ao fazê-lo. Durante as exposições, os colegas faziam perguntas e comentá-
rios ao buscarem semelhanças e diferenças entre os elementos presentes no poema lido
pela professora, os representados por meio do desenho e os reais que estavam ao seu
redor. Com base em Kleiman (1995), podemos assinalar que esse momento de diálogo
contínuo extrapolou a leitura do poema feita pela professora, a qual permitiu que as
crianças estendessem o conteúdo dessa prática de letramento para outros contextos.
Na continuidade do trabalho, um dos desenhos realizados foi reproduzido e distri-
buído para todas as crianças, as quais, em duplas, com a ajuda do alfabeto móvel3 e de
intervenções da professora, realizaram tentativas de escrita a respeito do aspecto do

3 Compreende um conjunto de cartões de cartolina com letras impressas que facilita a realiza-
ção de tentativas de escritas, pois permite que as crianças, de forma prazerosa, manipulem os
cartões, visualizando trocas, retiradas e inserções de letras.

142
poema representado no desenho. O relato dessa experiência, ainda que breve, eviden- Práticas pedagógicas
de alfabetização e
cia a relação de indissociabilidade e interdependência que há entre os processos de letramento na escola

letramento e alfabetização (SOARES, 2004) e aponta para a possibilidade de, na prática


pedagógica, alfabetizar letrando e/ou letrar alfabetizando.
Retomando o poema anteriormente apresentado e seguindo a orientação transcrita
na poesia, podemos estender o convite feito por José Paulo Paes a crianças que estão
aprendendo a ler e escrever para promover o contato como esse gênero textual, enri-
quecendo seu processo de letramento, e porque

Elas têm que saber que esses textos foram escritos por pessoas (autoras e au-
tores) e que nos explicam fatos que ocorrem no mundo, que refletem os sen-
timentos de seres humanos de uma maneira bonita, que quando os ouvimos
soam bem, são musicais (PAUSAS, 2004, p. 255).

Para envolver as crianças nesse universo vejamos, a seguir, a descrição de algumas


práticas pedagógicas desenvolvidas com alunos de primeira série por meio das quais
a professora pretendia levá-los a mergulhar no universo de ludicidade e da fruição,
possibilitado pelo trabalho com a poesia no processo de alfabetização e letramento.
A partir do trabalho já desenvolvido com os nomes próprios, foram confecciona-
dos dados nos quais, em cada face, foi registrado o nome de uma criança da turma.
Às crianças caberia, uma a uma, jogar o dado, ler o nome do colega registrado na face
voltada para cima e brincar com as palavras até encontrar uma que combinasse (rimas-
se) com esse nome para, então, elaborar um verso. Eis alguns dos versos criados pelas
crianças:

RENAN SÓ COME MAÇÃ.


MACI GOSTA DE CAQUI.
MARIANA COME BANANA.

Para dar sequência a essa prática pedagógica, a professora registrou esses pequenos
versos na lousa, evidenciando para as crianças as semelhanças e diferenças entre as
grafias das palavras. A seguir, trouxe um exemplo de duas palavras que rimam porque
terminam com o fonema /ã/:
RENAN
MAÇÃ

A comparação entre as palavras, procurando o que elas têm de semelhante e dife-


rente, permite evidenciar para as crianças que um mesmo fonema pode ser registrado
por diferentes grafemas, pois o sistema gráfico da língua portuguesa não é composto

143
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, apenas de relações biunívocas (para cada fonema um grafema e vice-versa). Há também
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO as relações cruzadas que admitem mais de uma representação gráfica para uma unidade
sonora e uma unidade gráfica para mais de uma unidade sonora (FARACO, 1992).
É necessário ainda acrescentar, na situação anteriormente relatada, a existência
de palavras que têm o mesmo fonema, cujo registro é feito de forma diferente das já
apresentadas. É o caso, por exemplo, das palavras SAMBA e TAMPA. Há ainda situações
nas quais a letra N pertence à sílaba seguinte, mas nasalisa a vogal da sílaba anterior.
É o que ocorre com as palavras MARIANA e BANANA, presentes nos versos elaborados
pelas crianças.


MA RI A NA


BA NA NA

Depois de registrados na lousa e analisados coletivamente, partiu-se para o registro


individual dos pequenos versos. Cada criança registrou em uma folha avulsa o verso
produzido com o seu nome próprio e o ilustrou. Acerca dessa prática, é importante
atentar as crianças para o fato de que ao desenhar precisamos “pensar” nas caracte-
rísticas principais do objeto/ação/fenômeno que pretendemos representar, mas que
ao escrever precisamos “pensar” nos sons que emitimos para designar o objeto/ação/
fenômeno que queremos registrar por meio de símbolos convencionalmente estabe-
lecidos pelos homens.
As folhas, com os registros das crianças, compuseram um painel intitulado MEU
NOME RIMA COM... À medida que as crianças concluíram esse trabalho, puderam re-
gistrar no caderno, por meio de escrita e desenho, os versos que mais gostaram. Vale
destacar que nesse painel as crianças buscaram informações para realizar outra tarefa.
Divididos em grupos de 4 ou 5, elas elaboraram uma cruzadinha com o nome de um
dos componentes do grupo. Assim, com as letras do nome de MARCELO, o grupo
escreveu MAÇÃ porque rima com Renan, BANANA com Mariana, BARCO com marco,
CAQUI com Maci, CARNE com Jaqueline e NAVIO com Otávio.

144
Práticas pedagógicas
M A Ç Â
de alfabetização e
B A N A N A letramento na escola
B A R C O
C A Q U I
C A R N E
J A N E L A
N A V I O

A partir do interesse por rimas demonstrado pelas crianças, a professora propôs a


criação do “Cantinho da Poesia”. Em um canto da sala foi colocada uma caixa recoberta
com ilustrações feitas pelas crianças na qual foram depositados vários livros de poesia,
fichas com trava-línguas e parlendas, papéis com cópias de quadrinhas populares e
pequenos poemas, e principalmente as rimas feitas pelas crianças a partir dos nomes
dos colegas de turma, dos pais e irmãos. Nesse cantinho, quem ainda não sabia ler
pedia ajuda aos colegas e à professora. Eles se agrupavam e, muitas vezes, liam juntos
os textos poéticos, escolhiam o que mais haviam gostado e o registravam em forma de
cartaz para partilhá-lo com os demais.
Toda quarta-feira, cada criança escolhia a tarefa que queria fazer. Era “dia de tarefa
livre”. A partir do interesse manifesto por textos poéticos, as crianças decidiram que
trocariam o dia da tarefa livre pelo “dia de poesia livre”. Assim, cada criança escolhia
um poema para: levar para casa; ler para os pais; copiar; ilustrar e trazer de volta para
a escola. Em pouco tempo, a sala de aula foi transformada na “Sala da Poesia”, pois pa-
redes, portas e janelas foram recobertas com muitos poemas copiados pelas crianças e
devidamente ilustrados. “Então nós resolvemos convidar as crianças das outras turmas
para conhecer nossa sala, para poetizar conosco”, disse a professora.
O que lhe chamou atenção foi o fato de as crianças quererem saber a opinião dos
amigos a respeito da poesia escolhida, se eles já a haviam lido e se era legal. Desta
forma, as crianças mantiveram entre si e com a professora ricas situações de troca,
interagindo de forma significativa com esse gênero textual que, como já enunciamos,
é frequentemente exilado da escola, pois esta privilegia a o texto narrativo. Na escola,
“a poesia ocupa um espaço muito reduzido, sendo-lhe reservada, na maioria das vezes,
uma função ornamental nas datas festivas do calendário escolar ou cívico” (AMARILHA,
1997, p. 26).
Salientamos que o que acontece no ambiente escolar é reflexo do tipo de texto e
dos modos de leitura que o meio valoriza. Em uma sociedade como a nossa, voltada
para a produtividade, espera-se obter, por meio da leitura, muita informação em pou-
co tempo. Por isso, apesar das diretrizes nacionais valorizarem o texto poético, a escola
privilegia a leitura de textos narrativos, pois estes possibilitam: encontrar informações

145
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sobre algum tema ou assunto estudado; memorizar informações importantes; relacio-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO nar informações presentes em diferentes textos; propor outras atividades, tais como
dramatização, desenho, pintura, entre outras (ZAPPONE, 2005).
O “Cantinho da Poesia” era enriquecido, diariamente, com novas poesias, novas
rimas que as crianças traziam de suas casas. Elas se sentiram estimuladas a trazer esses
textos, porque a professora havia combinado que todos os dias, no início da aula, leria
uma poesia. Esse momento foi intitulado “Hora de Poetizar”. Entre as muitas poesias
lidas pela professora uma das que as crianças mais gostaram foi “Meu desenho”, de
autoria de Pedro Bandeira (1994).

Meu desenho
Pedro Bandeira

Com os meus lápis de cor,


desenhei um passarinho.
Ele ficou tão perfeito
que até voou pro ninho.

Nesse poema, o autor trabalha com a ludicidade partindo de uma ação corriqueira,
presente no ambiente doméstico e escolar e muito apreciada pelas crianças: o desenhar.
A partir de algo comum, Pedro Bandeira provoca encantamento, em crianças e adultos,
pelas coisas simples do mundo. É por isso que este autor faz parte de um grupo seleto
de poetas de rara sensibilidade, assim definidos por Abramovich (1997, p. 67):

Há poetas que brincam com as palavras de um modo gostosíssimo de a criança


ouvir ou ler. Lidam com ludicidade verbal, sonora, às vezes musical, às vezes en-
graçada, no jeito como vão juntando as palavras e jogando com os significados
diferentes que uma mesma palavra possui.

Além de promover a fruição que estimula as crianças a gostarem desse gênero tex-
tual, podemos, segundo Pausas (2004), aproveitar esse rico recurso para incentivar as
crianças a pensarem sobre o sistema de escrita: escrevendo os títulos dos poemas lidos
para as crianças, buscando palavras nos textos das canções ou dos poemas, mudando
algumas palavras por outras semelhantes e que também rimem, registrando peque-
nos poemas no caderno. Podemos, inclusive, propor-lhes que os ilustrem, como fez a
criança que, ao representar o poema “Meu desenho”, desenhou um passarinho voan-
do em direção a um ninho, o qual não aparece no desenho, oferecendo-nos indícios
de que, ao interpretar o texto, extrapolou sua literalidade.

146
Sem descuidar da sistematização imprescindível para que as crianças compreendam Práticas pedagógicas
de alfabetização e
o sistema de escrita e aprendam a ler e escrever, a professora solicitou que as crianças letramento na escola

escolhessem as palavras mais significativas presentes na poesia acima reproduzida e as


registrassem no caderno. Depois, pediu que eles trocassem os cadernos entre si para
verificar se as palavras copiadas pelos grupos eram iguais ou diferentes. Para facilitar a
comparação e o registro das constatações, a professora entregou para cada grupo uma
cartolina dividida ao meio, semelhante à tabela a seguir apresentada:

MEU DESENHO
PEDRO BANDEIRA
PALAVRAS IGUAIS PALAVRAS DIFERENTES
LÁPIS COM
COR FICOU
PASSARINHO VOOU
NINHO PERFEITO

Depois de completado o quadro, a professora, revelando-nos que o processo de


alfabetização requer intencionalidade, fez os seguintes questionamentos às crianças:
• Das palavras registradas, quantas e quais são iguais?
• Das palavras registradas, quantas e quais são diferentes?
• Dessas palavras, quais começam com as letras iniciais dos nossos nomes
próprios?
• E quais rimam com os nomes de nossa turma?
• Qual dessas palavras tem a mesma quantidade de letras de seu nome?
• Qual é a palavra que tem menos/mais letras?
• E na nossa sala, qual é o nome que tem menos/mais letras?

As crianças cada vez mais se apaixonavam por textos poéticos. Com o envolvimento
das famílias, em pouco tempo “o nosso cantinho ficou pequeno para abrigar tanta
atividade poética”, disse a professora. Não havia mais espaço para guardar e expor as
produções das crianças, as quais se sentiram diante de um impasse: elas não queriam
trocar os trabalhos que estavam no Cantinho da Poesia por outros que chegavam se-
manalmente. Foi então que uma criança sugeriu a colocação de um varal embaixo da
lousa, no qual as poesias poderiam ser penduras com pregadores de roupa, o que
permitiria trocá-las semanalmente. Foi dessa ideia que surgiu o “Varal da Poesia”.
Não demorou muito e as crianças começaram a musicalizar os poemas que mais
gostavam, a experimentar novas rimas e, com a intervenção da professora, a refletir

147
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sobre o sistema de escrita, criando novas poesias. Naquele momento, foi necessário
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO fazer algumas explicações às crianças a respeito da escrita de poemas.

Devemos explicar às crianças que a maneira de escrevê-los é diferente da es-


crita de um conto ou de uma história, que muitas vezes as palavras têm um
duplo sentido, que objetos que não têm vida própria podem tê-la nos poemas,
que quando escrevemos um poema ou uma canção brincamos com as palavras
(PAUSAS, 2004, p. 255).

O trabalho foi tão intenso que no final do ano a professora e as crianças resolveram
fazer um livro com as poesias escritas pelo grupo. O livro intitulado “Poetizar” conti-
nha poemas escritos pelas crianças selecionados por elas e pelos pais.

E assim, lendo os poemas afixados nas paredes, janelas, quadros e varal, pensando
sobre a escrita das palavras mais significativas de cada poema, comparando-as com
outras palavras e, inclusive, com os seus nomes próprios, a cada dia as crianças avan-
çavam no processo de aprendizagem da leitura e da escrita e de seus usos sociais,
conta-nos a professora. Em seu depoimento, ela mostrou-nos que é possível, conco-
mitantemente, “reavivar e trazer para as crianças pequenas essa atmosfera rítmica e
sonora do poético”, como salienta Debus (2006), e transformar a sala de aula em um
ambiente que favorece a aprendizagem da leitura e a escrita e de seus usos sociais de
forma significativa e prazerosa.

148
Considerações finais Práticas pedagógicas
de alfabetização e
A partir do relato de algumas práticas pedagógicas e de sugestões de outras, rela- letramento na escola

cionadas à exploração da escrita de nomes próprios, a leitura de textos poéticos, per-


meada pela realização de desenhos infantis, visando aos processos de alfabetização e
letramento das crianças, reiteramos a importância e a necessidade da organização do
processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita e seus usos sociais.
É importante que o futuro professor tenha clareza de seu papel mediador na sala
de aula de forma a ultrapassar situações de espontaneismo. Para tanto, faz-se necessá-
rio o estudo e a reflexão sobre a fundamentação teórica e metodológica que ampara
o trabalho docente no interior da sala de aula.
Salientamos que o planejamento e o desenvolvimento do trabalho docente na
escola requerem fundamentação teórica e metodológica consistentes para a com-
preensão dos conceitos de alfabetização e letramento enquanto processos distin-
tos, porém indissociáveis, a fim de dotar a prática pedagógica de intencionalidade e
sistematicidade.

Referências

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1997.

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Proposta de Atividade

1) A partir das experiências relatadas e das sugestões de trabalho apresentadas neste capítu-
lo, organize uma ação pedagógica que vise aos processos de alfabetização e letramento,
envolvendo os nomes de seus alunos ou um texto poético. Elabore no mínimo três inter-
venções, descreva-as minuciosamente e as justifique teoricamente. Lembre-se de que é
necessário que a prática pedagógica que vise aos processos de alfabetização e letramento
seja dotada de sistematicidade e intencionalidade. Então,a cuide para que ela:
• seja significativa para as crianças;
• prime pelo aspecto lúdico;
• permita que as crianças “brinquem” com as palavras, buscando semelhanças e diferen-
ças entre elas;
• promova contato efetivo com a linguagem escrita.

Indicações de Leitura:

CARVALHO, Marlene. Guia prático do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2000.

FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1983.

PEREZ, Carmen Lúcia Vidal. Com lápis de cor e varinha de condão... um processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Revisitando a
pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993. p. 78-107.

SAMPAIO, Carmem Sanches. Alfabetização na pré-escola. In: GARCIA, Regina Leite


(Org.). Revisitando a pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993. p. 52-77.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações

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