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ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Editora da Universidade Estadual de Maringá
Conselho Editorial
Equipe Técnica
Práticas pedagógicas,
alfabetização e
letramento
43
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores - EAD
ISBN 978-85-7628-287-7
CAPÍTULO 2
Formação e atuação do professor alfabetizador
Marieta Lúcia Machado Nicolau
> 31
CAPÍTULO 3
Alfabetização, letramento e educação infantil > 47
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Heloisa Toshie Irie Saito
CAPÍTULO 4
Em lugar da mecanização e da improdutividade:
contribuições de Freinet para a alfabetização > 65
Elieuza Aparecida de Lima /Ana Laura Ribeiro da Silva
CAPÍTULO 5
Imagens e narrativas no percurso de
alfabetização de jovens, adultos e idosos
> 87
Regina Lúcia Mesti
3
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, CAPÍTULO 6
ALFABETIZAÇÃO E
A apropriação da linguagem matemática
LETRAMENTO
nos primeiros anos de escolarização
> 97
Silvia Pereira Gonzaga de Moraes
CAPÍTULO 7
Diversidade cultural, alfabetização e letramento > 115
Rosângela Célia Faustino
CAPÍTULO 8
Práticas pedagógicas de
alfabetização e letramento na escola > 133
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Analete Regina Schelbauer
Ângela Rita Bellincanta Hercos / Maria Araci Guazelli / Suely Harumi Fugimoto
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S obre as autoras
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, MARIA ANGELICA OLIVO FRANCISCO LUCAS
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Pedagoga e mestre em educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutora
e Letramento (PIBID/CAPES).
de ensino do município de São Paulo e da rede pública de ensino do Estado de São Paulo.
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SILVIA PEREIRA GONZAGA DE MORAES Sobre as autoras
Estado do Paraná.
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A presentação da Coleção
A coleção Formação de Professores - EAD teve sua primeira edição publicada em
2005, com 33 títulos financiados pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) do
Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material
didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa de Formação de
Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de 2500 exemplares.
A partir de 2008, demos início ao processo de organização e publicação da segunda
edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos
deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o financiamento para
esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido
pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que é responsável pelo programa denominado
Universidade Aberta do Brasil (UAB).
A princípio, serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros
da nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados
no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universi-
dade Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB.
Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reflexão que foi pensado
para uma disciplina específica do curso, mas em nenhum deles seus organizadores
e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e
práticas construídas historicamente no que se referem aos conteúdos apresentados. O
que buscamos, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura,
da reflexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a
formação do Pedagogo na atualidade.
Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço
coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM) e das instituições que têm se colocado como parceiras nesse
processo.
Neste sentido, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais insti-
tuições que organizaram livros e ou escreveram capítulos para os diversos livros desta
coleção.
Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação
direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias não mediu esforços para que os traba-
lhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, específico, destacamos o esforço da Reitoria para que os recursos para o financiamento
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO desta coleção pudessem ser liberados em conformidade com os trâmites burocráticos
e com os prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE).
Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do De-
partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos últimos anos empreenderam
esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu-
desse ser criado oficialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadêmico e uma
modificação significativa da sistemática das atividades docentes.
No tocante ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido pela
Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a
Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES)
conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para a li-
beração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para
aprovação, tendo em vista a ação direta e eficiente de um número muito pequeno de
pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação
Geral de Articulação.
Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD possa
contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como
de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de ensino
superior que integram e ou possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB.
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A presentação do livro
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, No capítulo Alfabetização, letramento e educação infantil, Maria Angélica Olivo
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Francisco Lucas e Heloisa Toshie Irie Saito elencam elementos que esclarecem a
relação entre os processos de alfabetização e letramento e a educação das crianças
pequenas. A relação entre a função conferida à educação das crianças pequenas e
as formas de conceituar os processos de alfabetização e letramento foi confirmada
pela análise da produção bibliográfica relativa à questão, a qual apresenta diversas
orientações metodológicas sob a forma de sugestão de trabalho ou relato de experi-
ência. Explorar as funções sociais da linguagem escrita, realizar tentativas de escrita
e de leitura, oportunizar situações de produção e interpretação de textos e articular
a escrita com outras linguagens são as orientações metodológicas mais frequentes. A
partir delas e considerando que os processos de alfabetização e letramento, apesar
de distintos, são indissociáveis e interdependentes, as autoras defendem o enrique-
cimento do processo de letramento das crianças e a estimulação da alfabetização
como uma das finalidades da educação das crianças pequenas.
Elieuza Aparecida de Lima e Ana Laura Ribeiro da Silva trazem, no quarto capítu-
lo, Em lugar da mecanização e da improdutividade: contribuições de Freinet para
a alfabetização, uma discussão relativa à alfabetização de crianças, jovens e adultos,
com base em revisitações das técnicas de Celestin Freinet buscando a superação de
entendimentos aligeirados sobre elas. Partem de apropriações teóricas surgidas em
estudos e pesquisas sobre práticas educativas na/de escolas infantis. Essas práticas,
equivocadamente, dirigem-se, de modo geral, à aquisição precoce da técnica de es-
crita, com sacrifício do direito à infância. Discutem, assim, a necessidade de cons-
tituição de elementos mediadores entre a teoria estudada e a prática concretizada,
entendendo que as Técnicas Freinet ocupam lugar de destaque.
A professora Regina Lúcia Mesti, em Imagens e Narrativas no percurso de alfa-
betização de Jovens Adultos e Idosos, apresenta a análise de um projeto pedagó-
gico de alfabetização de jovens, adultos e idosos desenvolvidos pela Universidade
Estadual de Maringá como parceira do Programa Alfabetização Solidária no período
de 1996 a 2004. O direito à escolarização dessa população foi assegurado no texto
da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 e assumido como Edu-
cação Básica pelo Ministério da Educação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 1996. Antes e depois desses fatos institucionais a alfabetização tem sido
desenvolvida pelos movimentos sociais e pesquisadores que analisam o processo de
significação desses alunos que enfrentaram obstáculos diversos em seu percurso de
aprendizagem da leitura e escrita. Os princípios educacionais desse projeto estão
referenciados nos estudos de Paulo Freire que valorizam o conhecimento do univer-
so vocabular no desenvolvimento de práticas de alfabetização em um contexto da
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comunicação que intensifique as interações com o universo escrito. Apresentação do livro
13
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Com essa profusão de ideias e experiências, esperamos contribuir com a forma-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO ção e atuação de professores pedagogos, educadores infantis e alfabetizadores, rea-
firmando o compromisso com os estudos e a ampliação de suas práticas pedagógicas
de alfabetização e letramento.
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1 Apontamentos
sobre a história da
alfabetização
Considerações iniciais
Este capítulo é dirigido a professores em processo de formação inicial, que em
meio aos aprendizados que constroem a sua identidade docente tornam-se educado-
res e... alfabetizadores!
Com a finalidade de levar ao futuro professor o conhecimento de questões rela-
cionadas à história da alfabetização, os próximos parágrafos conduzirão às páginas do
desenvolvimento da escrita na humanidade e da história do ensino da leitura e da es-
crita no Brasil, tomando como referência trabalhos de diversos pesquisadores da área.
Iniciamos com o relato de uma história muito comum em nosso cotidiano escolar
sobre as descobertas que as crianças fazem acerca do sistema de escrita. Era uma vez,
uma criança que queria aprender a ler o mundo da escrita que a rodeava e a escrever
todas as palavras que pudessem existir. Ela buscava compreender o que eram aqueles
sinais, como eles se misturavam e se tornavam compreensíveis para as pessoas. Queria
aprender a ler e a escrever! Certo dia, rodeada de outras crianças e sob o olhar atento
de uma professora, no espaço da sala de aula e cercada pelo mundo da escrita, essa
criança parou diante de um quadro contendo as letras do alfabeto e disse:
– Professora, quer dizer que apenas com essas letras eu posso escrever tudo o que
existe no mundo?! – interrogou e exclamou ao mesmo tempo a criança que havia dado
mais um passo rumo à compreensão do nosso complexo sistema de escrita alfabético.
Nas histórias que compõem o caminho que cada um percorre para compreender
e se apropriar do sistema de escrita a ponto de se tornar leitor e escritor, alfabetizado
e letrado, se encontra a chave para que o futuro professor se encante com a arte de
aprender a ensinar a ler e a escrever as crianças, os jovens, os adultos e os idosos.
Ao relembrarmos nossas histórias e o percurso que fizemos para nos tornarmos
alfabetizados e letrados, reconhecemos a importância da leitura e da escrita em uma
sociedade grafocêntrica como condição para a emancipação humana.
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Nas páginas iniciais do livro “Alfabetizar e letrar: um diálogo entre teoria e prática”,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Carvalho (2005) escreve as reminiscências de alguns escritores sobre a forma como
aprenderam a ler e a escrever. Nos relatos de Ana Maria Machado, Graciliano Ramos,
Bartolomeu Campos de Queirós e Françoise Dolto, além das memórias agradáveis,
doces e amargas do momento e do caminho que cada um percorreu diante das letras,
são evidenciados aspectos importantes para pensarmos a história do ensino da leitura
e da escrita no Brasil: os processos de ensino e de aprendizagem, as concepções de
linguagem escrita, os métodos, as cartilhas, enfim, os elementos da organização do
trabalho pedagógico na área da alfabetização. Mas quando, de fato, a humanidade
começou a se preocupar com o ensino da leitura e da escrita?
Foi a necessidade de continuidade de uso dos sistemas de escrita que motivou os
homens a se preocuparem com o seu ensino as novas gerações ao longo da história. A
invenção da escrita ocorreu simultaneamente à invenção da alfabetização, ou seja, das
regras de aquisição, compreensão e uso desse sistema, observa Cagliari (1999, p. 12).
Parte de uma história que se iniciou há milênios, as origens da escrita para Leroi-
Gourhan tem início por volta do ano 50 000 antes de nossa era, nas incisões em pedra
ou osso, passando por figuras gravadas ou pintadas, pela figuração gráfica, até atingir,
por volta do ano 15 000, “uma destreza técnica quase igual a da época moderna” (apud
DUBOIS et al., 2002, p. 222).
Neste sentido, a primeira grande invenção do homem relacionada ao domínio da
escrita é atribuída aos grafismos, também conhecidos como pictogramas, “escrita do
tipo arcaico, figurativa, que representa o conteúdo da língua (e não a língua com as
palavras e os sons)”, categorizados por M. Cohen como a primeira fase da história do
desenvolvimento da linguagem escrita. A segunda é representada pelos ideogramas,
constituídos por signos que representam “de modo mais ou menos simbólico o signi-
ficado das palavras”. A terceira é identificada pelos fonogramas, que indicam “signos
abstratos que representam elementos de palavras ou de sons, como nas escritas alfabé-
ticas”, distinguindo-se das demais pelo uso de letras que representam os sons da fala
(apud DUBOIS et al., 2002, p. 223).
Do aparecimento dos primeiros pictogramas, forma inicial que os homens inven-
taram para comunicar-se por escrito, até o desenvolvimento do sistema de escrita alfa-
bético passou-se milênios. A partir dessa invenção, séculos foram necessários para que
a difusão desse sistema se tornasse uma preocupação educacional e seu ensino fosse
institucionalizado nas escolas primárias.
Nossas escolas, tal como conhecemos hoje, tiveram suas proposições constituídas
durante os séculos XVI e XVII. Imbuídos das críticas à organização do ensino medieval
e com a preocupação de revisar o que se fazia no ensino do latim, além de propiciar
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novas formas de articulação entre o saber e a memória, os pensadores dos séculos XVI Apontamentos sobre a
história da alfabetização
e XVII mudaram profundamente os fins, os meios e os estatutos da escola, atribuindo-
lhe um papel social central e propondo novas formas de escolarização, oferecendo
valiosos registros sobre a constituição das teorias pedagógicas da modernidade.
A nova educação que despontava com a modernidade, que se organizava de forma
coletiva, advoga a necessidade de um método de ensino capaz de reter o conhecimen-
to ensinado sem sobrecarregar o intelecto. Educar pelos sentidos, tornar a imaginação
e a memória repleta de coisas sensíveis com a finalidade de auxiliar os processos de
ensino foi uma das preocupações centrais do pensamento renovador.
A partir desse princípio Comenius (1592-1670) introduz, no livro Orbis Sensua-
lium Pictus1, o Alfabeto Simbólico, o qual é representado por imagens de animais, cujo
som natural por eles produzido relaciona-se às letras do alfabeto e a sua pronúncia,
seu valor fonético.
1 Orbis Sensualium Pictus (O Mundo das Coisas Sensíveis Ilustrado), importante obra de
Comenius publicada no ano de 1658, ainda não apresenta tradução para a língua portuguesa.
O livro é considerado como a matriz através da qual se produziram os livros de textos didáticos
que formaram as crianças da sociedade ocidental moderna, durante trezentos e cinquenta anos
(NARODOWISKI, 2006).
2 Referente à onomatopeia (palavra cuja pronúncia imita o som natural da coisa significada).
Que imita a coisa significada (Dicionário Eletrônico Aurélio). Formação de uma palavra a partir
da reprodução aproximada, com os recursos de que a língua dispõe, de um som natural a ela
associado; onomatopoese (Dicionário Eletrônico Houaiss de língua portuguesa).
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Com esse método, Comenius acreditava que as crianças desenvolveriam completa-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO mente o hábito de ler. A imagem era utilizada como um recurso auxiliar para fixar as
letras na memória O Alfabeto Simbólico forneceria uma estratégia à lição das letras e
tornaria mais fácil o ensino da língua materna em relação à forma como era feito até
então, tendo como recurso a silabação prolixa dos silabários em uso. A prática desses
alfabetos havia sido precedida por outras manifestações similares desde o século XVI, e
foi amplamente difundida entre os homens de letras que passaram a utilizar o alfabeto
visual como um meio para fortalecer a memória (LORA, 2001).
Das ideias educacionais preconizadas por Comenius e seus interlocutores até a ins-
titucionalização da escola primária para todos, com a tarefa de ensinar a ler, escreve e
contar, foram necessários mais de três séculos para que o ensino da linguagem escrita
se difundisse entre as classes populares. A criação e universalização da escola primária
pública, gratuita, obrigatória, laica, ofertada e mantida pelos Estados Nações é uma re-
alidade atribuída ao final do século XIX, que acompanha o movimento de organização
dos sistemas nacionais de ensino em vários países.
Foi somente nesse contexto que o ensino da leitura e da escrita se tornou popular
e foi institucionalizado em larga escala na e pela escola primária.
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tomaremos como referência as contribuições da historiografia, dentre as quais desta- Apontamentos sobre a
história da alfabetização
camos os estudos de Maria do Rosário Longo Mortatti (20003; 2004), nos quais buscou
compreender os sentidos atribuídos à alfabetização ao longo da história da educação
brasileira.
Ao discorrer sobre a “História dos Métodos de Alfabetização no Brasil”, Mortatti
(2004) a divide em quatro momentos assim identificados: 1º. A metodização do ensino
da leitura; 2º. A institucionalização do método analítico; 3º. A alfabetização sob medida
e 4º. Alfabetização, construtivismo e desmetodização. Cada um desses momentos é
caracterizado pela disputa em torno das tematizações, normatizações e concretizações
relacionadas ao ensino da leitura e da escrita e a respectiva fundação de uma nova
tradição sobre o tema.
O primeiro momento, delimitado entre 1876 e 1890, caracteriza-se pelo processo
de metodização do ensino da leitura e é marcado pela precariedade do ensino existen-
te nas últimas décadas do Império:
Até o final do Império brasileiro, o ensino carecia de organização, e as poucas
escolas existentes eram, na verdade, salas adaptadas, que abrigavam alunos
de todas as “séries” e funcionavam em prédios pouco apropriados para esse
fim; [...] Habitualmente, porém, iniciava-se o ensino da leitura com as chama-
das “cartas de ABC” e depois se liam e se copiavam documentos manuscritos
(MORTATTI, 2006, p. 5).
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, questão de método. O momento, marcado pelo processo de metodização do ensino
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO da leitura, centra o debate em torno dos defensores do “método João de Deus” e dos
adeptos dos métodos de marcha sintética: da soletração, fônico e da silabação.
O segundo momento refere-se ao processo de institucionalização do método
analítico, que alcança o nível das normatizações, centrado na urgência nacional de
alfabetizar a população brasileira na recente República. Tal fato vai influenciar as ini-
ciativas postas em prática no momento delimitado entre a década de 1890 e meados
da década de 1920, propiciando tanto discussões em torno da formação dos mestres
como uma ampla divulgação relativa ao método analítico através da produção de
artigos, revistas e cartilhas escritas por uma geração de normalistas, dentre os quais
se destacam Joaquim Brito, Ramon Roca Dordal, Lima Barreto, João Kopke, Oscar
Thompson (MORTATTI, 2006).
Esse período é marcado pela crença propagada mundialmente de que uma nação,
para ser civilizada, precisa difundir as primeiras letras aos seus cidadãos, alcançando
ressonância na nova república brasileira, que passa a advogar em prol do ensino da
leitura e da escrita aos seus novos cidadãos da república como fator de modernização
social.
O advento da República é acompanhado por um período de reformas da instrução
pública paulista que se inicia pela Escola Normal, com a criação da Escola-Modelo,
destinada à prática de ensino dos normalistas. No âmbito do ensino primário e das
instituições escolares são criados os Grupos Escolares, considerados como “o marco
da modernização educacional paulista”. Criados em 1893 no Estado de São Paulo,
“a partir da reunião de escolas isoladas agrupadas pela proximidade”, essas institui-
ções escolares eram obrigadas “a adotar o tipo de organização e método de ensino
das escolas modelo do estado”. Esse modelo de escola graduada fundamentava-se na
classificação dos alunos pelo nível de conhecimento em classes, baseava-se no ensino
simultâneo, na racionalização curricular, na ordenação dos conteúdos escolares, do
tempo e do espaço escolar4 (SOUZA, 2004, p. 113-114).
Na monumentalidade de seus edifícios, os grupos escolares deveriam fazer sobres-
sair a República recém-inaugurada. No entanto, o ritmo e a extensão do processo de
escolarização instaurado “foram marcados por uma concepção restrita de cidadania e
pela exigüidade dos recursos materiais e humanos disponíveis para instituir a escola
20
nos moldes então julgados necessários à formação do cidadão republicano” (CARVA- Apontamentos sobre a
história da alfabetização
LHO, 2000, p. 16).
Entretanto, a despeito da exiguidade dos recursos materiais e humanos disponíveis
para instituir a escola primária nos moldes desejados no campo do ensino da leitura
e da escrita, o período foi marcado pela institucionalização do método analítico para
o ensino da leitura.
Assim como as reformas republicanas da instrução pública serviram de modelo
para os demais estados da federação, o método analítico também foi disseminado em
outros estados brasileiros por meio de “missões de professores” paulistas “especial-
mente mediante a ocupação de cargos na administração da instrução pública paulista
e a produção de instruções normativas, de cartilhas e de artigos em jornais e em re-
vistas pedagógicas”. A obrigatoriedade da utilização do método nas escolas paulistas
perdurou até a Reforma Sampaio Dória de 1920, que garantiu a “autonomia didática”
aos professores primários (MORTATTI, 2006, p. 6).
As apropriações diferenciadas acerca do método analítico suscitaram acirrados em-
bates quanto à melhor forma de empregá-lo no ensino da leitura, assim como disputas
entre seus partidários e os defensores dos tradicionais métodos de marcha sintética. As
discussões continuaram enfocando o ensino inicial da leitura e o ensino da escrita con-
tinuou a ser compreendido como uma questão de caligrafia, que requeria treino. Foi
naquele momento, “já no final da década de 1910, que o termo “alfabetização” começa
a ser utilizado para se referir ao ensino da leitura e da escrita” (MORTATTI, 2006, p. 8).
Tais embates contribuíram para a fundação de uma nova tradição na qual o método
analítico passa a ser considerado como “a nova bússola” para o ensino da leitura e es-
crita envolvendo questões didáticas “como ensinar, a partir da definição de habilidades
visuais, auditivas e motoras da criança a quem ensinar” (MORTATTI, 2006, p. 8).
O terceiro momento, denominado por Mortatti (2006, p. 9) “A alfabetização sob
medida”, evidencia uma mudança em relação aos dois primeiros momentos, postulan-
do como ato fundador a relevante contribuição de Lourenço Filho com a criação dos
Testes ABC para verificação da maturidade necessária ao aprendizado da leitura e
escrita que, a partir de “novas e revolucionarias bases psicológicas da alfabetização”,
focaliza a atenção no nível de maturidade da criança para aprender a ler e a escrever,
relativizando a preocupação com os métodos de ensino, passando a utilizar os méto-
dos mistos ou ecléticos, evidenciando uma mudança em relação aos dois primeiros
momentos.
Naquele período, os problemas da alfabetização eram associados à ênfase demasia-
da nos métodos de ensino, o que possibilitou a repercussão e a longevidade dos Testes
ABC, cuja primeira edição ocorreu no ano de 1934 e a última em 1974, confirmando
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sua validade e relevância para o período em destaque e inaugurando o terceiro mo-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO mento de constituição da alfabetização como objeto de estudo. Mortatti (2006) sa-
lienta a continuidade da produção de cartilhas durante o período, marcadas por um
ecletismo metodológico em resposta aos impasses gerados pela adoção de um só mé-
todo – sintético ou analítico – generalizando o uso de cartilhas com os denominados
métodos “misto” ou “eclético”, que passam a ser acompanhadas pelo manual do pro-
fessor e precedidas pelos exercícios do chamado período preparatório.
A nova tradição fundada refere-se ao “como ensinar subordinado à maturidade
da criança a quem se ensina; as questões de ordem didática, portanto, encontram-se
subordinadas às de ordem psicológica” (MORTATTI, 2006, p. 10).
O quarto momento estudado por Mortatti (2000), intitulado “Alfabetização: cons-
trutivismo e desmetodização”, caracteriza-se pelo questionamento da tradição fundada
no período anterior, deslocando a ênfase das discussões em torno dos métodos de
ensino e do nível de maturidade para aprender a ler e a escrever para o processo de
aprendizagem da criança.
Esse deslocamento decorre “de novas urgências políticas e sociais que se fizeram
acompanhar de propostas de mudança na educação, a fim de se enfrentar, particular-
mente, o fracasso da escola na alfabetização de crianças” (MORTATTI, 2006, p. 10).
Diante desse quadro, o início da década de 1980 torna-se palco de uma “revolução
conceitual” no campo da alfabetização com a introdução do então chamado construti-
vismo, a partir das pesquisas sobre a psicogênese da linguagem escrita desenvolvidas
por Emília Ferreiro e seus colaboradores, provocando, na acepção de Mortatti (2000;
2006), um processo de desmetodização da alfabetização e o questionamento acerca da
necessidade de utilização das cartilhas.
Essa proposta vem responder aos anseios por uma escola democrática, que possibi-
litaria a erradicação do analfabetismo no Brasil, servindo de fundamento ao chamado
ciclo básico de alfabetização, que vem deslocar a ênfase para o processo de aprendi-
zagem, o papel do professor e da escola, secundarizando os “tradicionais” métodos e
procedimentos de ensino que, no entanto, continuam a coexistir com essa “revolução
conceitual” no âmbito da alfabetização. É preciso evidenciar que foi sobre o ciclo bási-
co que incidiu o foco de atenção das normatizações e concretizações do período. Em
relação às tematizações, congregou-se um discurso não mais técnico e sim acadêmico-
científico, propalam Vieira, Mendonça e Schelbauer (2005) ao resenharem o livro de
Mortatti (2000).
Sobre esse período, a autora ainda aponta a emergência do pensamento interacio-
nista em alfabetização, ressaltando as tematizações de Smolka:
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Fundamentando-se na relação entre pensamento e linguagem de acordo com Apontamentos sobre a
as teorias de L. S. Vygostky, M. Bakhtin e M Pêcheux, e propondo um “confron- história da alfabetização
to” pedagógico-epistemológico com os resultados das pesquisas de Ferreiro,
Smolka aborda a alfabetização como um processo discursivo, enfocando as rela-
ções de ensino como fundamentais nesse processo e deslocando a discussão de
como para por quê e para quê ensinar e aprender a língua escrita na fase inicial
de escolarização das crianças (MORTATTI, 2000, p. 275).
23
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, competente da leitura e da escrita tem sua origem vinculada à aprendizagem inicial da
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO escrita, desenvolvendo-se basicamente a partir de um questionamento do conceito de
alfabetização” (SOARES, 2004, p. 7).
Com isso, a discussão do letramento no Brasil surge enraizada ao conceito de
alfabetização:
24
Por fim, a autora advoga a necessidade de reconhecermos: Apontamentos sobre a
história da alfabetização
25
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, a nossa época trouxe à área. Foram inegáveis as contribuições do passado e são ine-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO gáveis as contribuições do presente, como um processo histórico, já que cada época
produziu o conhecimento acerca da alfabetização em resposta ao desafio de ensinar as
novas gerações a ler e a escrever.
O desafio para nós, professores em exercício ou em processo de formação inicial
e continuada, consiste em reconhecermos a necessidade do aprofundamento teórico-
prático no campo da alfabetização e do letramento a fim de enfrentarmos, parafrasean-
do Soares (2004), “o reiterado fracasso escolar na aprendizagem inicial a língua escrita
nas escolas brasileiras”.
Nas palavras de António Nóvoa (1992, p. 219) encontramos a explicação e a mo-
tivação de retornarmos ao passado acerca de um tema que parece sempre nos exigir
os olhos voltados ao presente. O educador português esclarece, com a perspicácia de
historiador da educação, que são as questões do presente que devem orientar nossa
interrogação ao passado, “de forma a que ao esforço de compreensão histórica corres-
ponda uma intervenção mais consciente na realidade educativa”.
Com uma intervenção mais consciente da realidade da alfabetização no Brasil e dos
conhecimentos necessários para encaminhar o desenvolvimento do ensino e da apren-
dizagem da leitura e da escrita, contribuiremos com uma das condições fundamentais
para o processo de emancipação humana.
Referências
COMENIUS ( Joh. Amos Comenii). Orbis sensualium pictus. Pragae: [s.n.], 1979.
Edição Fac-símile da Edição de 1685.
DUBOIS, Jean et al. Dicionário de lingüística. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
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LORA, Esther Aguirre. Enseñar com texto e imágenes. Una de las aportaciones de Apontamentos sobre a
história da alfabetização
Juan Amós Comenio. Revista Electrónica de Investigación Educativa, México, v.
3, n. 1, mayo, 2001. Disponível em: <http://www.uned.es/manesvirtual/Historia/
Comenius/Lora/contenido-lora.html#inicio>. Acesso em: 12 fev. 2010.
SOUZA, Rosa Fátima de. Lições da escola primária. In: SAVIANI, Dermeval; ALMEIDA,
Jane Soares; SOUZA, Rosa Fátima de; VALDEMARIN, Vera Teresa. O legado
educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004.
p.109-162.
27
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO 119-135.
Proposta de Atividade
Indicações de Leitura:
28
Apontamentos sobre a
história da alfabetização
Anotações
29
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
30
2 Formação e atuação do
professor alfabetizador
Marieta Lúcia Machado Nicolau
As políticas públicas na área educacional devem ter como uma de suas metas a for-
mação do professor, particularmente do professor alfabetizador. Essa formação precisa
cuidar da aquisição de conhecimentos fundadores para o desenvolvimento profissio-
nal os quais propiciam ao indivíduo uma atuação fundada em conhecimento científico
e impregnada de dedicação, envolvimento no âmbito da sala de aula, junto a seus
pares, famílias e comunidade.
Nessa formação, que tem o caráter de ser continuidade da formação primeira e que
se dá em serviço, é preciso considerar a natureza do espaço escolar. A escola, devido
à diversidade e heterogeneidade que apresenta, é um fórum privilegiado de atuação;
nessa instituição há pessoas de diferentes faixas etárias; de níveis socioeconômicos di-
versos; experiências várias de escolaridade e mesmo de vivências diferentes fora desse
alcance; umas estão na escola há muito tempo; algumas há menos tempo; outras são
ingressantes; há professores bem sucedidos, outros nem tanto. Esses fatores interferem
na motivação para o trabalho docente e indicam também a variabilidade e a singularida-
de das experiências de cada pessoa, das equipes que compõem a instituição educativa.
Os conhecimentos, as percepções da realidade, as visões de mundo, as conceituações
sobre o papel da educação e da escola podem diferir muito entre os professores.
Por outro lado, o tipo de gestão da escola corrobora para criar um determinado ’cli-
ma’: diretivo demais, tolhendo a criatividade, a iniciativa e a vontade de se conseguir
mudanças que aprimorem a ação educativa; ou, por outro lado, desarticulado, em que
cada um faz o que bem entende, trazendo insegurança aos envolvidos e dificultando
a consecução de objetivos comuns. Neste sentido, Vieira (2001, p. 8-9) pontua que:
São muitos os desafios que a gestão da escola tem que encarar: resgatar a função
social da escola, elaborar o projeto pedagógico, encaminhar a avaliação institucional,
entre outros. Para serem enfrentados esses desafios necessitam que a ação educativa
31
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, se dê com a adesão dos “atores” da escola. Daí a importância da formação continuada
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO dos professores ( VIEIRA, 2001).
A formação continuada pode ocorrer em serviço, enquanto os professores estão
desenvolvendo a sua ação educativa. Ela permite que os problemas sejam discutidos e
superados e que novas metas sejam propostas para enfrentar as dificuldades que sur-
gem no cotidiano da escola. O próprio professor pode detectar quais são os aspectos
em que necessita ser ajudado ou que podem ser objeto de trabalho por um grupo
de educadores, por todos eles ou, ainda, por toda a equipe da escola. Esse tipo de
formação pressupõe uma proposta de capacitação que não cessa e que pode se dar
sob a forma de seminários, cursos, oficinas, observações direcionadas a determinados
objetivos, projetos, discussões de textos sobre temáticas educacionais, audiência a pa-
lestras e mesas-redondas, e ainda treinamento mediante meios digitais.
O importante é que a formação continuada em serviço contribua para que o grupo
de educadores da escola se torne uma equipe coesa em torno de ideias comuns de
educação relativos: à função social da escola; ao compromisso com o Projeto Pedagó-
gico; aos métodos de alfabetização em questão; às experiência em alfabetização; às
reflexões acerca do momento ideal para alfabetizar as crianças; crianças escritoras e
leitoras.
32
interage direta e indiretamente. Tudo isso influencia suas experiências enquanto es- Formação e atuação do
professor alfabetizador
critora e leitora.
Portanto, se as atividades da escola se limitarem à transmissão de conteúdos res-
tritos, desvinculados da realidade, as possibilidades das crianças de criar, imaginar e
compreender o mundo serão muito mais limitadas.
33
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, como o principal indicador de delegação de autonomia às escolas. Outro aspecto é a
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO constituição do projeto por meio de uma construção paulatina, contínua, dialogada,
em que diferentes pontos de vista dos envolvidos são analisados, ponderados até que
se chegue a um posicionamento que expresse as opiniões da maioria dos participantes
de um grupo, com aberturas constantes para as mudanças que se fizerem necessárias.
Para Vasconcellos (1995, apud SOUSA; CORRÊA, 2002, p. 51), o projeto pedagó-
gico, nunca definitivo, resulta de um processo de planejamento participativo, que se
concretiza à medida que vai se desenvolvendo e que deixa claro o que se pretende
realizar para a transformação da realidade. Há uma dialética de continuidade-ruptura,
que necessita de elementos novos para obter avanços significativos.
O projeto pedagógico da escola precisa considerar as demandas sociais “apresen-
tadas a uma instituição competente, democrática e de qualidade” (SOUSA; CORRÊA,
2002, p. 52). Para articular as demandas sociais, é necessário respeitar a prática dos
sujeitos que constroem o projeto pedagógico e o que eles têm a dizer. O projeto
pedagógico pode levar a instituição escolar a definir, mudar e/ou reforçar a sua identi-
dade. Vasconcelos (1995 apud SOUSA; CORRÊA, 2002, p. 52) expõe que ao se propor
uma mudança, a maior dificuldade é sustentá-la. Por isso destaca a importância da
participação dos professores em sua elaboração e implantação. Por isso, também, os
movimentos de elaboração do projeto pedagógico devem considerar o cotidiano da
escola.
34
relacionada com outras sílabas formam novas palavras. Formação e atuação do
professor alfabetizador
Apesar de encontrarmos grandes diferenças entre os métodos e de estes se apoia-
rem em diferentes concepções de aprendizagem e desenvolvimento, eles utilizam dife-
rentes estratégias: auditiva para uns, visual para outros. É importante frisar que ao en-
fatizar as habilidades perceptivas, tais métodos descuidam de aspectos fundamentais,
como a competência linguística das crianças e suas capacidades cognoscitivas.
As “cartilhas” são recursos que facilitam colocar os métodos analíticos e sintéticos
em prática. Seus textos visam essencialmente à decifração de letras e sílabas, descon-
siderando as experiências dos leitores; trazem repetições enfadonhas devido à preo-
cupação com a formação de automatismos. Essas são algumas das críticas ao uso de
cartilhas para alfabetizar as crianças elaboradas por Emília Ferreiro, piagetiana, pes-
quisadora argentina e radicada no México, que trouxe, junto com colaboradores, uma
inestimável contribuição teórica a respeito da aquisição da leitura e escrita.
Em suas pesquisas sobre a psicogênese da linguagem escrita, Ferreiro (1988) pro-
curou compreender o desenvolvimento da leitura e da escrita do ponto de vista dos
processos de apropriação de um objeto socialmente constituído (e não do ponto de
vista da aquisição de uma técnica de transcrição) e buscou ver se havia modos de orga-
nização relativamente estáveis que se sucediam em certa ordem. Pôde constatar que,
Da mesma forma que as atividades podem variar no âmbito da sala de aula, é impor-
tante que sejam introduzidas fora da sala, que os espaços do pátio sejam aproveitados
35
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, diariamente pelas crianças e que as experiências auferidas possam se reverter em di-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO versos tipos de relatos e representações. Assim, escrever, sobre o que foi desenvolvido
no recreio, ou em uma excursão, desenhar, pintar, recortar e colar, dramatizar, falar do
que mais gostou de fazer ou sobre o que não foi agradável, propor novas brincadeiras,
levantar problemas e pensar em solução para resolvê-los são atividades que levam os
alunos a sentir prazer em conversar e, ao mesmo tempo, a valorizar suas próprias ex-
periências e as vivenciadas pelos colegas.
Assim, Nicolau (2003, p. 215) afirma que as crianças se tornam prazerosamente
leitoras e produtoras de textos, na acepção de Jolibert (1994). A prática da leitura e da
escrita, em situações sempre contextualizadas, com função social clara, permitirá que
as crianças busquem a compreensão do texto e compartilhem-na com seus parceiros,
indo além de sua simples decifração.
Ao ensino cabe desafiar o aluno para que tenha acesso a novas aprendizagens e a
instauração de um clima de letramento na escola e na sala de aula, através de “eixos
diferentes e complementares: linguagem oral, produção de textos, leitura e domínio da
base alfabética e das convenções gráficas” (SCHMIDT; MARQUES; COSTA, 2003, p. 195).
36
Formação e atuação do
É boa para escrever e ler e passar de ano e ser bom trabalhador. Só que as professor alfabetizador
classes estão estragadas [...]. Não estou gostando porque passo frio [sala de
madeira com frestas].
37
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, que participavam da pesquisa por meio de troca de mensagens. Diariamente, um alu-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO no era o mensageiro. Cada descoberta, cada pergunta considerada interessante pela
classe era compartilhada com a outra classe. E dessa forma, a função social da escrita
era intensamente vivenciada.
Questões teóricas que envolvem a aquisição da escrita, conforme indica Teberosky
(1989), eram exploradas para que as crianças compreendessem as regras do sistema
alfabético, as convenções que o regem (segmentação de palavras, ortografia, pontua-
ção) e outros pontos que viessem a estimular a interpretação e o uso da variedade da
linguagem escrita.
Com as professoras discutíamos os saberes básicos da alfabetização, como os in-
dicados por Lemle (1987): a formação do conceito de símbolo; a discriminação das
formas das letras; a discriminação dos sons da fala; a consciência da unidade palavra e
a organização da página escrita.
O fato é que, no decorrer de um ano letivo, mediante muito empenho e criativi-
dade das professoras e das próprias crianças, os resultados obtidos nas duas escolas
foram altamente compensadores. Os alunos escreveram belos textos e foi editado um
livro que foi oferecido a cada criança, intitulado Nossas Primeiras Histórias. Na co-
memoração de entrega dos livros, um aluno, expressando a importância do trabalho
realizado, disse: ”Agora, posso ensinar a minha mãe a ler”.
1 A matéria apresenta dois artigos: IWASSO, Simone. Escolas particulares começam a alfabetizar
alunos a partir dos 3 anos; NETTO, Andrei. Educadores europeus divergem sobre idade para
começar o ensino formal. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 dez. 2009. Vida &, p. A14.w
38
e Epistemologia das Ciências da Universidade de Genebra, André Giordan, o qual Formação e atuação do
professor alfabetizador
entende que, desde muito jovem, a criança sente o desejo de decifrar a escrita para
ter acesso às informações.
Essa posição não é unânime. Uma corrente da pedagogia e da psicologia ainda
acredita que, antes dos 6 ou 7 anos, as crianças não estão maduras o suficiente para
tal carga de esforço cognitivo. Argumenta-se que há algumas bases importantes a se
adquirir antes da aprendizagem da leitura e da escrita.
Neste sentido, uma primeira questão para reflexão é a de que é preciso considerar,
para o processo de alfabetização, “uma criança real e de verdade e não uma crian-
ça utópica e abstrata” (BRANDÃO; PASCHOAL, 2009, p. 13), bem como valorizar a
“construção do conhecimento e não a acumulação de informações” para favorecer o
desenvolvimento e a aprendizagem da criança. Para Batista (2009, p. 70-71), também é
necessário observar que “a construção do conhecimento implica a ação sobre os obje-
tos, mas essa ação nunca é puramente cognitiva, pois nela intervêm em graus diversos
a afetividade, o interesse e os valores”.
Brandão e Paschoal (2009, p. 20) referem-se a Kramer (2006) quando esta autora
reconhece o direito da criança à educação, conceituando as crianças como “sujeitos de
cultura e história, sujeitos sociais”; reconhecendo, ao mesmo tempo “a singularidade
das ações infantis e o direito à brincadeira, à produção cultural, próprias da Educação
Infantil, mas que devem estar presentes no Ensino Fundamental”.
Convém destacarmos que na Educação Infantil cada momento se constitui em uma
vivência, cada objeto em uma oportunidade de busca, de experimentação e de desco-
berta. Isso, em nosso entender, só se torna possível mediante uma ação pedagógica
comprometida com a criança, suas características, necessidades e possibilidades de
produzir e interagir com a cultura (NICOLAU, 2003). Acrescentamos que esse posicio-
namento vale para os anos subsequentes ao Ensino Fundamental.
Lima (2001, p. 26), por sua vez, focaliza o meio como contexto de desenvolvimen-
to, compreendendo que não se trata somente do meio físico, mas fazem parte dele
práticas culturais, instrumentos e objetos pelas ideias que ventilam, pelas informações
que circulam.
Embora haja um ideal de que a criança receba da sociedade o que nela há de me-
lhor, é impossível desconsiderar que
39
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Filho e Garcia (2001 apud MORENO; PASCHOAL, 2009, p. 40) expõem que no
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Brasil está aceita a concepção de criança cidadã, mas que na realidade há muitos pro-
blemas que afetam a infância brasileira nos seus primeiros anos de vida, tais como:
“[...] o trabalho infantil, os maus-tratos, o abuso, a violência e a privação de direito ao
convívio familiar, como as crianças órfãs em abrigos”. Contudo, Nicolau (2000, p. 119)
assevera que:
Tendo em vista que a escola é para a criança um local privilegiado para a aprendiza-
gem e o desenvolvimento, parece-nos imprescindível que os educadores considerem
sua participação ativa na escola, suas possibilidades, benefícios e problemas que essa
participação pode acarretar.
Segundo Brailovsky (2008, p. 17), há um consenso absoluto a respeito das “bon-
dades éticas” da participação educativa – família, docentes e alunos. O autor relaciona
várias formas de participação na escola: atuação nas reuniões de pais, estar a par das
comunicações entre escola e família, organização de materiais, oferecimento de ideias,
presença nas capacitações e planejamento de eventos. De acordo com o autor, a parti-
cipação dos alunos é desejável, além de ser indicador de avaliação, não no sentido de
“saber a lição”, mas do aluno que, em classe, pergunta, mostra interesse e é motivado.
Enfim, a ideia de participação democratiza a experiência escolar.
Entendemos ser necessário que o professor crie condições para que haja uma par-
ticipação geral, ficando sensível e observando as reações dos alunos de modo a captar
as suas necessidades, facilidades e dificuldades. Assim, independentemente do nível
de produção dos alunos, todos devem ser estimulados a atingir níveis mais altos de de-
senvolvimento. Para isso, é preciso que diferentes pontos de vista de alunos e profes-
sores sejam respeitados e que tanto o pensamento convergente quanto o divergente
devem encontrar eco na escola.
Temos procurado enfatizar, para a formação e atuação do professor alfabetizador, a
importância do entendimento da concepção de criança, fundamentada em pesquisas
e estudos, a importância de aproveitar cada oportunidade para estimular o desenvol-
vimento das potencialidades infantis e as interações interpessoais. Salientamos o valor
da participação na escola, e sobretudo a necessidade de uma observação atenta por
parte do professor em relação à forma como esta se dá.
40
Crianças escritoras e leitoras Formação e atuação do
professor alfabetizador
O desenvolvimento da criança e sua inserção no mundo que a cerca demandam a
aquisição da escrita e da leitura como condição para a compreensão da realidade e sua
transformação. Essa aquisição deve se dar de forma a considerar as múltiplas lingua-
gens da criança e o professor alfabetizador como um mediador, que apoia e desafia os
educandos para se interessarem e se sentirem felizes em construir o conhecimento,
valorizando a cultura como o bem maior a ser buscado pela escola.
A aquisição da escrita e da leitura se enriquece quando há ampliação do universo
cultural por meio das várias áreas do conhecimento. Neste sentido, Andrade e Marques
(2003, p. 39) afirmam que:
41
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, a visão, na medida em que a vida social está repleta de símbolos a serem decifrados”
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO (ALMEIDA, 2002, p. 11). Isto acontece porque a orientação do homem na sociedade
urbana moderna utiliza-se muito de símbolos. Almeida chama a atenção para o caso
do analfabeto que, pela via oral, pode dominar a cultura de um grupo social, além de
poder desempenhar uma atuação política e fazer-se entender.
Almeida (2002, p. 12), apoiada pelas contribuições de Soares (1985), pondera que
“os atos de ler e escrever são muito mais que transpor sons em letras; significa também
aprender, compreender significados em língua escrita (ler) ou expressar significados
por meio da língua escrita (escrever)”.
Considerações Finais
Todas essas reflexões, que são conteúdos da formação do professor alfabetizador
e devem permear a atuação desse profissional, vão além do restrito domínio do ob-
jeto de conhecimento que é a alfabetização e sua transposição didática. Embora esse
domínio seja essencial, ele deve estar configurado em um âmbito maior, que é o da
compreensão das finalidades da educação, da função da escola, da concepção de
infância e de criança. E ainda: o professor deve conhecer as teorias da aprendizagem
e todos os instrumentos de organização didática e pedagógica para o exercício da
função docente.
O modo como se dá essa formação deve considerar uma perspectiva crítico-reflexi-
va, construída com os professores para o desenvolvimento de um pensamento autô-
nomo, observada a construção coletiva de um projeto político-pedagógico, articulado,
integrado à realidade da escola, de seu entorno e de sua comunidade. Essa perspectiva
na formação do professor é a que deve também orientar a educação das crianças em
processo de alfabetização.
Referências
ABREU, Ana Rosa. Acolhimento: uma condição para a aprendizagem. Pátio: Revista
Pedagógica, Porto Alegre, v. 4, n. 15, p. 17-21, nov. 2000/ jan. 2001.
42
ANDRADE, Cyrce; MARQUES, Francisco. Brinquedos e brincadeiras: o fio da infância Formação e atuação do
professor alfabetizador
na trama do conhecimento. In: NICOLAU, Marieta. L. Machado; DIAS, Marina Célia
M. (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância.
Campinas, SP: Papirus, 2003. p. 37-74.
43
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, NICOLAU, Marieta Lúcia Machado. Escolarização e socialização na Educação infantil.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Acta Scientiarum, Maringá, v. 22, n. 1, p. 119-125, 2000.
PENIN, Sonia T. Sousa; VIEIRA, Sofia Lerche. Refletindo sobre a função social da
escola. In: VIEIRA, Sofia Lerche (Org.). Gestão da escola: desafios a enfrentar. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002. p. 13-43.
SCHMIDT, Maria Helena C. B.; MARQUES, Maria Lucia; COSTA, Vera Lucia V. G. da.
In: NICOLAU, Marieta. L. Machado; DIAS, Marina Célia M. (Org.). Oficinas de sonho
e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus, 2003.
cap. 11. p. 193-205.
SOUSA, José Vieira de; CORRÊA, Juliane. Projeto pedagógico: a autonomia construída
no cotidiano da escola. In: DAVIS, Cláudia; VIEIRA, Sofia Lerche et al. (Org.). Gestão
da escola: desafios a enfrentar. Rio de Janeiro. DP&A, 2002. p. 47-75.
VIEIRA, Sofia Lerche. Apresentação. In: ______. (Org.). Gestão da escola: desafios a
enfrentar. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 7-12.
Proposta de Atividade
1) Após lerem atentamente o texto, em grupo, reflitam sobre o projeto pedagógico de uma
escola pública de Ensino Fundamental, destacando a concepção de educação e de alfa-
betização. A partir dessas reflexões, elabore um texto dissertativo contendo as análises
do grupo.
44
Formação e atuação do
professor alfabetizador
Indicações de Leitura:
Anotações
45
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
46
3 Alfabetização,
letramento e
educação infantil
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Heloisa Toshie Irie Saito
47
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, A confirmação da relação a qual nos referimos pode ser encontrada na produção
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO bibliográfica relativa à alfabetização e letramento voltada para a educação infantil1, que
teve, nas últimas três décadas, um significativo crescimento (LUCAS, 2008). Na análise
de 30 textos (1 livro, 18 capítulos de livros e 11 artigos), publicados entre 1980 e 2005,
que versam sobre a interseção entre as temáticas em questão, observamos que, depen-
dendo do modo como tais processos são conceituados ou criticados por seus autores,
considera-se função ou não da educação infantil alfabetizar e/ou letrar.
Quando o processo de alfabetização era conceituado como aprendizagem de um
código, semelhante ao momento em que no Brasil predominava o uso de métodos sin-
téticos e analíticos para alfabetizar, cabia à educação infantil, conforme críticas apon-
tadas por Góes (1984) e Souza (1989), realizar exercícios de coordenação motora, de
acuidade auditiva e visual, de orientação espacial e temporal, de copiar e juntar letras
e sílabas, ou seja, garantir a prontidão das crianças para a aprendizagem da leitura e
da escrita, que ocorreria somente no nível posterior de escolaridade. Trata-se, nesse
caso, segundo Kramer e Abramovay (1985), de uma educação infantil com função pre-
paratória, compromissada com o conceito de prontidão, com o objetivo de minimizar
dificuldades de aprendizagem e problemas de repetência e evasão escolar.
Na década de 1980, por intermédio das investigações realizadas por Ferreiro e
Teberosky (1985) a respeito da psicogênese da escrita, a alfabetização passou a ser
compreendida como um amplo e contínuo processo de construção, que tem início
antes de a criança ingressar na escola e envolve o reconhecimento das finalidades
da linguagem escrita, seus usos e funções. A partir dessa forma de conceituar o pro-
cesso de alfabetização, aliada ao movimento em prol de uma educação infantil com
função pedagógica, considerou-se que esse nível de escolaridade poderia favorecer o
processo de aprendizagem da leitura e da escrita à medida que promovesse contato
com o material escrito, priorizando seu sentido social (KRAMER; ABRAMOVAY, 1985).
Nessas condições, privilegiou-se a imersão no mundo da escrita e delegou-se o início
da sistematização necessária à apreensão do sistema de escrita para o nível posterior
de escolaridade.
A discussão a respeito da pertinência ou não de um trabalho que envolva a lin-
guagem escrita na educação infantil ganhou fôlego na atualidade em virtude do mo-
vimento de diferenciação do processo de alfabetização do fenômeno correspondente
48
à necessidade de, além de ler e escrever, saber usar socialmente essas habilidades – o Alfabetização, letramento
e educação infantil
letramento. Tal movimento defende a necessidade de, concomitantemente, ensinar as
crianças a ler e escrever e a utilizar a leitura e a escrita em diferentes situações sociais,
reconhecendo os processos de alfabetização e letramento como indissociáveis e inter-
dependentes, porém distintos.
Apesar de reconhecerem a distinção entre os processos de alfabetização e letramen-
to, concebendo o primeiro como aprendizagem da leitura e escrita enquanto técnicas
e o segundo como estado ou condição do sujeito imerso no mundo da escrita, alguns
autores que fazem referência ao processo de letramento posicionam-se de forma dife-
rente em relação à função da educação infantil. Para Junqueira Filho (2001) e Ostetto
(2004), há lugar na educação infantil para a linguagem escrita, pois a concebem como
um instrumento cultural, no entanto apregoam que se deve primar pelo letramento
e só se preocupar com a alfabetização se as crianças derem indícios de interesse por
ela. Nicolau (2003) defende que cabe à educação infantil estimular a aprendizagem da
leitura e da escrita, incluindo-as em um processo mais amplo – o letramento. Mello
(2005), Britto (2005) e Faria (2005) consideram que a educação infantil deve assumir
o letramento como uma de suas funções, deixando a tarefa de alfabetizar as crianças
para o Ensino Fundamental.
Em razão dessas divergências, apresentaremos a seguir algumas orientações meto-
dológicas sob a forma de sugestão de trabalho ou de relato de experiência, com dois
objetivos: localizar o leitor na discussão realizada no Brasil, nas últimas três décadas,
a respeito da pertinência de um trabalho pedagógico que envolva a linguagem escrita
na educação infantil e auxiliar o professor que atua com crianças pequenas a encami-
nhar sua prática, de forma intencional e sistemática, tendo em vista os processos de
alfabetização e letramento.
49
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, que envolvia a linguagem escrita, tais textos retomavam reflexões a respeito da função
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO da educação infantil e reafirmavam a importância da redefinição do conceito de alfabe-
tização enquanto um processo amplo e contínuo, isto é, que envolve muito mais do que
a aprendizagem de um código e que tem início antes do ingresso da criança na escola.
Como parte do movimento de definição do termo letramento, somente em alguns tex-
tos publicados a partir de 2001 foram incluídas orientações que abordam tal processo.
Vale destacar que são muitas e variadas as possibilidades de trabalho com lingua-
gem escrita na educação infantil visando aos processos de alfabetização e letramento.
A seguir, apresentaremos pontualmente apenas as orientações metodológicas com
maior frequência presentes nas fontes analisadas, tais como a necessidade de explorar
as funções sociais da linguagem escrita, a importância de realizar tentativas de escri-
ta e de leitura, de oportunizar situações de produção e interpretação de textos e de
articular a escrita com outras linguagens.
50
A situação é bem diferente para as crianças da zona rural ou de setores urbanos Alfabetização, letramento
e educação infantil
socialmente marginalizados, como salienta Perez (1993, p. 79):
[...] trazer à tona as funções e os usos sociais da escrita e, tendo isso como
premissa, possibilitar às crianças encontros efetivos com a linguagem escrita,
visando não instrumentalizar, mas incorporar a escrita como prática cultural de
registro e comunicação.
Cabe então ao professor inspirar-se em situações que ocorrem fora da escola para
criar atividades de aprendizagem escolar. Segundo a professora Fernanda Flores, em um
dos relatórios destinado aos pais de seus alunos apresentados por Cavalcanti (1997),
por meio de atividades que envolvam a escrita e a leitura em situações reais de uso, e
não em situações artificiais e sem significado, os alunos podem refletir sobre a necessi-
dade e o modo como é utilizada a língua escrita na nossa vida. Isso ocorre, por exemplo,
quando elas escrevem textos portadores de mensagens que podem ser lidas por outras
pessoas, como a professora, familiares, colegas. Desse modo, as crianças adquirem co-
nhecimento sobre como se escreve e aprendem por que e para quê escrevemos.
51
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Em outro relatório apresentado por Cavalcanti (1997), a professora Paula Stella
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO afirma ser importante conversar com as crianças sobre a utilidade do registro como
apoio à memória e sobre a possibilidade de se estabelecer comunicação por meio da
escrita. Para isso, é necessário planejar e promover situações nas quais as crianças se
sintam incentivadas a fazer uso da escrita como instrumento de comunicação. Em uma
dessas situações, seus alunos escreveram uma carta para um amigo da classe que havia
mudado de turno. Conforme relata a professora, eles aprenderam que, por meio da
escrita, é possível estabelecer correspondência com indivíduos não presentes e que é
necessário adequar a mensagem às circunstâncias.
Nicolau (2003) expõe que as experiências de vida das crianças, bem como suas
manifestações e representações, revelam seu grau de letramento, ou seja, indicam o
que elas sabem acerca das finalidades da linguagem escrita. Cabe então à instituição de
educação infantil criar situações para aproximar, cada vez mais, as crianças das funções
e dos significados da linguagem escrita, como as sugeridas a seguir:
[...] ouvir histórias contadas e lidas, folhear e ler imagens de livros de histó-
rias com e sem textos, inventar histórias, dramatizando-as, recontando-as, res-
pondendo a questões e/ou se expressando nas linguagens que preferirem; a
descobrir o significado de cartazes afixados nos estabelecimentos comerciais
e nas ruas; a comentar acerca dos programas de televisão assistidos; a relatar
ocorrências observadas na pré-escola e fora de seu âmbito, representando-as
por meio de suas múltiplas formas expressivas, inclusive valorizando as muitas
oportunidades que o jogo teatral oferece; a avaliar situações decorrentes de
seus jogos e brincadeiras, enfim, a conversar e a representar sobre tudo, inclu-
sive sobre seus familiares, suas vidas e expectativas (NICOLAU, 2003, p. 213).
52
O exercício de tentativa de escrita é também denominado escrita espontânea. Trata- Alfabetização, letramento
e educação infantil
se de um exercício inicial no qual a criança é estimulada a escrever ‘como sabe’ e que
faz com que ela “[...] se sinta encorajada a utilizar a escrita como um veículo para sua
expressão criadora, mesmo que ainda não domine o código convencional” (PEREZ,
1993, p. 101).
Abramowicz e Wajskop (1999) assinalam que, por meio da escrita espontânea, as
crianças exercitam a escrita, criam hipóteses, inventam, repetem e copiam. Fundamen-
tadas nos estudos de Ferreiro e Teberosky (1985) a respeito da psicogênese da escrita,
as autoras supracitadas salientam que, nesse momento do processo de aprendizagem
da linguagem escrita, cabe ao educador respeitar as tentativas de escrita das crianças,
mesmo que estejam distantes da escrita convencional. Tais tentativas permitem reco-
nhecer as hipóteses levantadas pelas crianças a respeito da escrita, podendo, a nosso
ver, constituir-se em uma das formas de avaliar o processo de aquisição dessa lingua-
gem pelas crianças, bem como a qualidade das intervenções pedagógicas realizadas.
Apesar de a prática de realizar tentativas de escrita ter sido amplamente difundida,
Rego (1992) adverte ser necessário tomar alguns cuidados em relação a sua produção,
pois na pesquisa realizada por Ferreiro e Teberosky (1985), essas tentativas foram utili-
zadas como instrumento para diagnosticar a maneira como a criança representa o seu
pensamento por meio da escrita, não tendo fins didáticos. Rego alerta sobre a realiza-
ção indiscriminada de tentativas de escrita, considerando que houve uma distorção na
utilização desse tipo de recurso: por ser espontânea, acreditou-se que não seria neces-
sário (nem salutar) que o professor interviesse na produção da criança, dificultando o
avanço em direção à escrita convencional.
Uma forma de promover tal avanço é propor situações nas quais as crianças tenham
oportunidade de experimentar a escrita e discutir, problematizar e responder às per-
guntas por elas feitas sobre esse exercício, propõem Abramowicz e Wajskop (1999).
Neste sentido, solicitar que a criança leia o que escreveu, desde o início do trabalho,
tem um sentido pedagógico: sem desqualificar o trabalho da criança, a professora está
ensinando que, enquanto ela não se apropriar do código formal, sua escrita será de
difícil compreensão, o que a impedirá, por exemplo, de usar a escrita como forma de
comunicação (SAMPAIO, 1993).
O exercício de tentar escrever deve vir acompanhado do exercício de tentar ler, não
apenas a sua produção, mas também os demais textos registrados convencionalmente.
Tal exercício, chamado pseudoleitura, é, na visão de Cavalcanti (1997, p. 26), o “[...]
ato de imitar a leitura a partir de um texto que [as crianças] conhecem de memória”.
Tal exercício possibilita analisar, entre outros aspectos, as relações entre a linguagem
oral e a escrita. Enfim, pseudoleitura é uma simulação do ato de ler.
53
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Essa simulação muitas vezes se transforma em situação de pesquisa por parte
ALFABETIZAÇÃO E do aluno, que tenta relacionar as partes gráficas que vê no texto com as par-
LETRAMENTO
tes orais que segmenta em sua fala. Essa simulação pode contribuir para que
características da escrita se tornem observáveis para os alunos: semelhanças e
diferenças, desenho, traçado da letra. Mas o mais importante, em atividades
deste tipo, é o esforço das crianças em relacionar logicamente a escrita à fala e
vice-versa (CAVALCANTI, 1997, p. 26).
[...] podem registrar seus textos seguindo as próprias formulações que já ela-
boraram sobre a escrita, ainda que distante da escrita formal, assim como o
professor pode exercer o papel de ‘escrivão’ dos textos elaborados oralmente
por elas.
Isto é possível porque, à medida que as crianças têm contato com textos escritos,
por meio de uma prática pedagógica sistemática e intencional, adquirem informações
sobre a estrutura dessa forma de linguagem, verificando suas diferenças em relação à
linguagem oral, percebendo que diferentes textos possuem sintaxe e estrutura tam-
bém diferentes, que existem tipos e tamanhos variados de letras, que o texto pode vir
acompanhado de ilustrações etc.
54
Foi o que Steyer (2001) comprovou em uma minuciosa pesquisa acerca da maneira Alfabetização, letramento
e educação infantil
como as crianças em idade pré-escolar escreviam textos ao verificar que nessas situa-
ções elas estavam adquirindo conhecimentos a respeito, por exemplo, da: utilização
da folha para escrever; orientação da escrita na folha; diagramação textual (como as
crianças organizavam o texto no espaço da folha); necessidade de haver separação
entre as palavras; existência de pontuação.
Na mesma pesquisa, Steyer (2001) constatou que as crianças conseguem interpre-
tar um texto, mesmo que essa interpretação ainda não seja convencional, ao diferen-
ciar um livro de história de outros tipos de livro, ao identificar as capas dianteiras e
traseiras dos livros, ao estabelecer relação entre uma história e um portador de texto
(pelo folhear, ilustrações, nome do livro, nome do autor, logotipo da editora, nomes
de outros livros que pertencem à mesma coleção, margens, paginação).
Com base nos resultados obtidos, Steyer (2001, p. 153) concluiu que a criança
pequena é um “[...] sujeito ativo, ao mesmo tempo leitor e escritor, produtor e inter-
pretador de textos, protagonista de uma relação interativa e criativa com o texto”. Em
vista disso, a autora pontua ser perfeitamente possível propor e realizar situações de
produção e interpretação de texto para as crianças da educação infantil.
Seguem a mesma direção as observações de Britto (2005), para quem não é neces-
sariamente obrigatório usar o sentido da visão para ler um texto; podemos utilizar a
audição para estudar um texto escrito enunciado em voz alta por outra pessoa. É o
que ocorre quando uma criança ouve uma história contada/lida por alguém. Por isso,
Pode-se dizer que, na educação infantil, ler com os ouvidos é mais fundamental
do que ler com os olhos. Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas se ex-
perimenta na interação, na interlocução, no discurso escrito organizado, com
suas modulações prosódicas próprias, como também aprende a sintaxe escrita
e aprende as palavras escritas (BRITTO, 2005, p. 19).
Portanto, para que as crianças pequenas se sintam leitoras e usufruam dos prazeres
da leitura, não é necessário que estejam alfabetizadas, registra Deheinzelin (1990).
Cabe ao professor mediar esse ato, lendo-lhes textos diversificados e de boa qualida-
de – condição indispensável, em nosso entendimento, para estimular o processo de
alfabetização e enriquecer o de letramento.
Schmidt, Marques e Costa (2003, p. 199) ressaltam que a leitura de textos diversos,
além de incentivar as crianças a conhecer as diferentes formas de estruturá-los e suas
características específicas, também as ajuda a aprender que eles possuem finalidades
diferentes, como as exemplificadas a seguir: prazer – texto literário; orientação pres-
critiva de procedimentos – receita; informação sobre novidades – notícia; expressão
de sentimento ou solicitação – carta.
55
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Em suma, o trabalho sistemático, intencional e contínuo de produção e leitura de
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO textos estimula a criança a aprender, de modo significativo, o código alfabético e apro-
funda o seu nível de letramento.
[...] através do uso de várias linguagens a criança expande sua atividade, libera
suas fantasias, exercita a imaginação, ao mesmo tempo em que constrói conhe-
cimentos sobre a leitura e a escrita, num universo particular repleto de sentido
e significado.
56
Se as crianças puderem conviver com a escrita e com a leitura – realizadas inicial- Alfabetização, letramento
mente pela professora – enquanto vivem muitas experiências significativas – por e educação infantil
exemplo, conhecendo o espaço por meio de passeios pelos arredores da escola,
pelo bairro, pela cidade; conhecendo pessoas que trabalham na escola, de visita dos
pais, mães e avós da turma à escola, de leitura de histórias, de poesias, de audição
de música, de filmes; se puderem conhecer mais sobre os assuntos que chamam
sua atenção por meio de observação e experimentação na natureza, leitura, vídeo,
conversa com especialistas... e se puderem comentar essas experiências e registrá-las
por meio de desenho, pintura, colagem, modelagem, brincadeiras e teatro de fanto-
ches –, a leitura e a escrita constituirão o próximo passo que a criança vai querer dar
em seu processo de apropriar-se do mundo (MELLO, 2005, p. 35-36).
Em outras palavras:
[...] se queremos que nossas crianças leiam e escrevam bem e se tornem verda-
deiras leitoras e produtoras de textos [...], é necessário que trabalhemos profun-
damente o desejo e o exercício da expressão por meio de diferentes linguagens:
a expressão oral por meio de relatos, poemas e música, o desenho, a pintura,
a colagem, o faz-de-conta, o teatro de fantoches, a construção com retalhos de
madeiras, com caixas de papelão, a modelagem com papel, massa de modelar,
argila (MELLO, 2005, p. 36).
57
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Algumas considerações finais
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO As orientações metodológicas que envolvem os processos de alfabetização e letra-
mento presentes na produção bibliográfica destinada aos profissionais e pesquisadores
da educação infantil, aqui apresentadas, confirmam a existência de uma estreita relação
entre as formas de conceituar tais processos e a função conferida a esse nível de ensino,
auxiliando a compreensão da polêmica relembrada no início deste capítulo.
Verificamos que se conceituada como aprendizagem de um código, semelhante ao
momento em que métodos sintéticos e/ou analíticos eram amplamente utilizados, nem
a alfabetização, nem o letramento tem espaço na educação infantil. Nesse caso, sua
função é propor exercícios que visam à preparação das crianças para a aprendizagem da
leitura e da escrita, a qual deveria ocorrer no nível posterior de escolarização.
Os estudos de Ferreiro e Teberosky a respeito da psicogênese da escrita permitiram
conceituar a alfabetização como um amplo processo de construção que aborda, além da
aprendizagem do sistema de escrita, a inserção no mundo da escrita e que se inicia mui-
to antes do ingresso da criança na escola. Essa ampliação do conceito de alfabetização,
aliada ao movimento em prol de uma educação infantil com função pedagógica redefi-
niu a relação entre esse nível de ensino e a linguagem escrita: cabe à educação infantil
propiciar a aprendizagem da linguagem escrita, com sentido e significado, por meio de
um ambiente alfabetizador. Como resultado desses encaminhamentos, presentes nos
textos analisados publicados a partir de meados da década de 1980 até meados da dé-
cada de 1990, as crianças conviviam com materiais escritos utilizados nas mais diversas
práticas sociais, ouviam histórias (e outros textos) lidas pelas professoras e tentavam
ler e escrever. Como resultado dessas práticas, algumas dessas crianças, a depender da
qualidade das intervenções pedagógicas, aprendiam a ler e escrever, muitas não.
Entre os textos analisados publicados a partir do final da década de 1990, não há
unanimidade a respeito do papel da educação infantil frente a essa discussão. Há os que
defendem o trabalho com diversas formas de linguagens, inclusive a escrita, mas não a
priorizam; há os que consideram que se deve primar pelo letramento e sistematizar o
ensino do sistema de escrita somente se as crianças demonstrarem interesse por ele; e
há os que concebem a aprendizagem do sistema de escrita no âmbito do letramento.
Frente a tantas divergências, vale esclarecer que concebemos, conforme Soares
(1998), alfabetização e letramento como processos indissociáveis e interdependentes,
porém distintos. Isto significa que não é possível separar um do outro e que um de-
pende do outro, apesar de haver diferenças entre eles. Ao contarmos uma história,
admitindo o diálogo entre o contador e as crianças, referenciando o autor da história e
a importância de ele a ter registrado por escrito, possibilitando que muitas crianças, nas
mais distantes localidades, a pudessem escutar (ou ler), estamos promovendo práticas
58
de letramento escolar. Nessa mesma situação, ao apontarmos com o dedo a direção da Alfabetização, letramento
e educação infantil
escrita (da esquerda para a direita; de cima para baixo), ao demonstramos que o que
estamos lendo está registrado por meio de sinais (letras, sinais de acentuação e de pon-
tuação), ao destacarmos a letra inicial do nome do personagem principal da história,
estamos promovendo práticas alfabetizadoras.
Pelo exemplo acima, podemos desenvolver práticas pedagógicas que favorecem,
concomitantemente, os processos de alfabetização e de letramento. Contudo, salienta-
mos que conceber alfabetização como aprendizagem de técnicas necessárias para ler e
escrever e letramento como condição do sujeito imerso no mundo da escrita, ou seja,
distinguir um processo do outro, é condição para revestir tais práticas de intencionali-
dade e sistematicidade.
É por isso que consideramos como uma das finalidades da educação infantil en-
riquecer o processo de letramento das crianças e estimular seu processo de al-
fabetização. Acreditamos que, ao nos posicionarmos dessa forma, não estamos nem
propondo e nem defendendo uma antecipação da escolarização, muito menos desres-
peitando o tempo de infância; apenas defendemos a indissociabilidade e interdepen-
dência dos dois processos. Trata-se de admitir a possibilidade de alfabetizar letrando e
letrar alfabetizando também para as crianças pequenas, de acordo com as possibilidades
e os limites desse nível de escolaridade (LUCAS, 2008).
Por fim, encerramos este capítulo confirmando a importância da temática a respeito
da relação entre os processos de alfabetização e letramento e a educação das crianças
pequenas tanto para a formação do professor alfabetizador, quanto para a promoção
de uma educação infantil que respeite a criança, propiciando-lhe situações efetivas de
aprendizagem que potencializem o desenvolvimento humano.
Referências
59
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, CAVALCANTI, Zélia (Org.). Alfabetizando. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Sons sem palavras e grafismos sem letras: linguagens,
leituras e Pedagogia na Educação infantil. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; MELLO,
Suely Amaral (Org.). O mundo da escrita no universo da pequena infância.
Campinas, SP: Autores Associados, 2005. p. 119-140.
FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres. Com a palavra, a escrita! In: KRAMER, Sonia et
al. (Org.). Infância e Educação infantil. Campinas, SP: Papirus, 1999. p. 49-76.
GÓES, Maria Cecília R. Critérios para avaliação de noções sobre a linguagem escrita
em crianças não alfabetizadas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 49, p. 3-14,
maio, 1984.
MANRIQUE, Ana Maria Borzone de. No caminho rumo à escrita e à leitura. In:
CUBERES, Maria Teresa González (Org.). Educação infantil e séries iniciais:
articulação para a alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 59-71.
60
MELLO, Suely Amaral. O processo de aquisição da escrita na Educação infantil: Alfabetização, letramento
e educação infantil
contribuições de Vygotsky. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart; MELLO, Suely Amaral (Org.).
Linguagens infantis: outras formas de leitura. Campinas, SP: Autores Associados,
2005. p. 23-40.
PEREZ, Carmen Lúcia Vidal. Com lápis de cor e varinha de condão... um processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Revisitando a
pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993. p. 78-107.
SCHMIDT, Maria Helena Costa Braga; MARQUES, Maria Lucia; COSTA, Vera Lúcia
Vôos Gomes da. O processo de aquisição da leitura e da escrita na infância. In:
NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de
sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus,
2003. p. 193-229.
61
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, STEYER, Vivian Edite. Escrita e leitura na Educação infantil: um mundo de
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO possibilidades. In: ROMAN, Eurilda Dias; STEYER, Vivian Edite (Org.). A criança de 0
a 6 anos e a Educação infantil: um retrato multifacetado. Canoas, RS: Ulbra, 2001.
p. 149-168.
Proposta de Atividade
2) De cada uma dessas orientações, destaque uma sugestão de trabalho ou uma experiência
relatada neste texto.
Indicações de Leitura:
FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres. Com a palavra, a escrita! In: KRAMER, Sonia et
al (Org.). Infância e Educação infantil. Campinas, SP: Papirus, 1999. p. 49-76.
GUEDES, Adrianne O.; BARREIROS, Tereza Cristina. Cartas sobre leitura e escrita na pré-
escola ou a formação de narradores: uma paixão nas entrelinhas. In: KRAMER, Sonia et
al. (Org.). Infância e Educação infantil. Campinas, SP: Papirus, 1999. p. 15-48.
62
MANRIQUE, Ana Maria Borzone de. No caminho rumo à escrita e à leitura. In: Alfabetização, letramento
e educação infantil
CUBERES, Maria Teresa González (Org.). Educação infantil e séries iniciais:
articulação para a alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 59-71.
Anotações
63
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
64
4 Em lugar da
mecanização e da
improdutividade:
contribuições de Freinet
para a alfabetização
Elieuza Aparecida de Lima / Ana Laura Ribeiro da Silva
65
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, final do século XIX, que elaborou um conjunto de técnicas e princípios pedagógicos
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO direcionadores do ensino a partir do respeito e da escuta às expressões infantis.
Este capítulo tem o objetivo de apresentar as contribuições de Freinet para a alfabe-
tização, contribuindo para a superação das apropriações aligeiradas de sua pedagogia,
especialmente daquelas reducionistas à organização do espaço escolar em “cantos”
que não mudam a essência da vida escolar autoritária e improdutiva. Para isso, busca-
mos entender as técnicas Freinet não como práticas isoladas, mas no conjunto das di-
retrizes que as norteiam. Inicialmente, torna-se relevante a compreensão de conceitos
de homem e de atividade basilares na Pedagogia Freinet.
Quais as implicações dessas idéias para as reflexões sobre a alfabetização? Uma das
implicações é que, na educação, o tateio experimental possibilita à criança ser ativa
diante do conhecimento e envolve a percepção de um aspecto do processo de conhe-
cimento que a escola, de modo geral, parece desconsiderar: o caminho que a criança
66
percorre a partir do conhecido em direção ao desconhecido (PODDIÁKOV, 1987), isto Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
é, processo de aquisição autônomo de novos conhecimentos e novos dados sobre contribuições de Freinet
para a alfabetização
objetos e fenômenos circundantes propulsores do aperfeiçoamento autônomo dos
procedimentos da atividade prática e cognoscitiva.
Neste sentido, o processo de conhecimento caracteriza-se como essencialmente
ativo especialmente atrelado ao conceito de trabalho. Trata-se de um trabalho diferen-
te daquele que conhecemos na sociedade alienada, um fazer com sentido e objetivo,
que satisfaça a necessidade de expressão e comunicação da criança; não o trabalho
maçante que obriga a criança a sua execução, mas, nas palavras de Mello (1992, p. 77):
67
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, grupo. Essa organização do espaço é condição necessária para a concretização das
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO técnicas Freinet. A sala de aula e a escola são organizadas em cantos ou ateliês para
que as próprias crianças realizem escolhas, planejem suas atividades e atuem motiva-
das pelo uso dos materiais, pelas técnicas e pela auto-organização em grupos, o que
promove o planejamento individual e coletivo, o respeito às regras da vida em grupo,
a autonomia do fazer sozinho ou em grupo e a solicitação de ajuda quando necessário
(FREINET, 1979).
Freinet postula que a comunicação constitui uma necessidade vital da criança. É
essa compreensão que justifica e valoriza a livre expressão como princípio vertebrador
na estruturação de suas técnicas de ensino (FREINET, 1979). A comunicação é uma
forma privilegiada da objetivação humana.
A Pedagogia Freinet baseia-se, pois, na essencialidade da vida humana. Freinet
procura resgatar o sentido de potencialidade da vida, que é, para ele, a consciência
do devir humano. Com base nessas ideias, passamos, na sequência, à discussão das
contribuições das Técnicas Freinet como fundamentos para as reflexões relativas à
questão da alfabetização.
As práticas pedagógicas tradicionais parecem fundamentadas por ideias segundo
as quais a escrita e a leitura seriam aprendidas por meio da exercitação do corpo, ma-
nifestadas principalmente por hábitos motores e pela fixação dos códigos lingüísticos
de forma mecânica.
Para Freinet, no entanto, as aprendizagens decorrentes dessas ações (traçar as pala-
vras, sem saber produzir textos e atribuir sentido à escrita) não têm força motora sobre
o pleno desenvolvimento da inteligência e personalidade infantis, sobretudo referen-
tes à formação da criança como leitora e produtora de textos. Entretanto, em lugar
dessas práticas, como tornar a criança sujeito ativo, capaz de atribuição de sentidos às
experiências propostas na escola?
Já no início do século passado, o professor Freinet (1973), inquieto e preocupado
com o processo de aprendizagem da escrita pelas crianças, a partir de sua própria prá-
tica pedagógica percebeu que a criança não é um receptáculo vazio e passivo e que ela
não deve ir à escola para copiar e ler textos de livros didáticos. Esse modo de tratar a
criança e a escrita está, como o autor concebeu, fadado ao fracasso.
Surgia da inquietação de Freinet (1973) a idéia de propor às crianças a produção do
texto livre embasada na concepção de uma criança capaz de se expressar e de comuni-
car conhecimentos e sentimentos. Nas palavras de Freinet (1973, p. 26-28):
A minha feliz descoberta – mas muito natural e eivada de bom senso – foi,
nesta fase [quando ele introduzia em suas aulas o trabalho com o texto livre],
convencer-me de que, diga-se o que se disser, a criança era capaz de produzir
assim textos válidos [...].
68
[...] O Texto Livre, quase unanimemente recomendado actualmente – embora Em lugar da mecanização
não seja sempre judiosamente praticado – não deixa de consagrar oficialmente e da improdutividade:
contribuições de Freinet
esta aptidão da criança para pensar e para exprimir e para passar de um estado para a alfabetização
de menoridade mental e afectiva à dignidade de um ser capaz de construir
experimentalmente a sua personalidade [...].
A cooperação não acontece apenas nas atividades propostas, mas no conjunto com-
plexo da vida escolar, em todas as suas organizações. Freinet (apud ICEM, 1979, p.
10) enuncia que “pela cooperação escolar, são as crianças que efetivamente assumem
a organização da atividade, do trabalho, da vida de sua escola”. Nessa perspectiva, em
uma organização cooperativa do trabalho escolar, as crianças participam de todos os
processos: do planejamento, das formas de organização para a realização das ativida-
des e da avaliação.
As técnicas de ensino elaboradas por Freinet têm sua fundamentação no grupo de
invariantes pedagógicas por ele estruturadas – as técnicas educativas – e apresenta
uma discussão sobre as concepções freinetianas motivadoras da organização de técni-
cas educativas que suprimissem as regras autoritárias da escola tradicional e conduzis-
sem a um trabalho funcional para a vida das crianças.
Nesse trabalho educativo funcional, a experiência da criança – sua atividade – deve
ser considerada como forma privilegiada de aquisição de conhecimentos. “Não são a
observação, a explicação e a demonstração – processos essenciais da escola – as únicas
vias normais de aquisição de conhecimento, mas a experiência tateante, que é uma
conduta natural e universal” (SAMPAIO, 1994, p. 88). Com isso, Freinet contribui para
repensarmos a escola tradicional e traz um dos principais conceitos de sua pedagogia.
Na escola tradicional, a explicação é o meio exclusivo para a aquisição de conhe-
cimentos. Nela, a experimentação participa apenas da demonstração da explicação
realizada. Para a Pedagogia Freinet, a maior necessidade na escola é a experimentação
da criança e a sua vivência orienta a aquisição de conhecimentos por uma necessidade
viva. Freinet explicita, assim, a própria experimentação da criança e a sua vivência
69
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, como propiciadoras da apropriação de conhecimentos. Para o autor, “A memória, tão
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO preconizada pela escola, não é válida, nem preciosa, a não ser quando está integrada
no tateamento experimental, onde se encontra verdadeiramente a serviço da vida”
(SAMPAIO, 1994, p. 89), uma vez que são as vivências que vão garantindo a formação
dos hábitos e das habilidades.
A memória não tem, para a Pedagogia Freinet, uma utilidade em si mesma. Esta
só pode ser explorada se ligada à experimentação, uma vez que essa ligação possibi-
lita a vida em si mesma. É a vida que necessita da memória, por isso possibilita seu
desenvolvimento e não a repetição e a técnica que a garantirão, como se concebia na
escola tradicional. Dito de outra maneira, as funções psicofisiólogicas, como a memó-
ria, serão formadas e desenvolvidas no seio de atividades nas quais sejam exercitadas
e necessárias (LEONTIEV, 1988).
Assim como a memória é uma habilidade formada pela experimentação e pela vi-
vência da criança, a inteligência não existe, para Freinet, por si mesma: “não é uma fa-
culdade específica, que funciona como um circuito fechado, independentemente dos
demais elementos vitais do indivíduo, como ensina a escolástica” (SAMPAIO, 1994, p.
90). A inteligência é derivada da experiência vivida pela criança. Quanto mais diversifi-
cada for essa experiência, mais desenvolvida se faz sua inteligência. Para Freinet, não se
trata de uma, mas de diferentes formas de inteligência que são oriundas do tateamento
experimental, isto é, da atividade da criança:
– a inteligência que vem das aptidões manuais, com as quais opera sobre o
meio para o dominar e o transformar;
– a inteligência artística;
– a inteligência sensível, que desenvolve o bom-senso;
– a inteligência especulativa, que constitui o gênio dos investigadores científi-
cos e dos grandes comerciantes e indústrias;
– a inteligência política e social, que forma os homens de ação e os condutores
de massas (FREINET apud SAMPAIO, 1994, p. 90-91).
70
Freinet pontua que a criança aprende quando atua e experiencia ela própria os Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
processos de aquisição de conhecimentos, em lugar de apenas ouvir o educador. No contribuições de Freinet
para a alfabetização
processo de conhecimento, o sujeito que aprende é ativo. Por esse motivo as técnicas
de ensino devem envolver a participação das crianças, não devendo ser impostas pelo
professor, porém articuladas de modo a contemplar/despertar interesses infantis. Es-
sas técnicas consideram que o trabalho educativo se concretiza por atividades conjun-
tas que se complementam e não por atividades individuais realizadas igualmente por
todos ao mesmo tempo.
No processo de alfabetização, o trabalho docente teria uma função primordial.
Trata-se de um trabalho integrado à funcionalidade e à vida e que, por isso, faça sen-
tido para a criança. “A criança não se cansa de um trabalho funcional, ou seja, que
atende os rumos de sua vida” (SAMPAIO, 1994, p. 92). O trabalho voltado a responder
necessidades de vida não se torna exaustivo e cansativo, mas dá motivação para sua
realização pelas crianças. Quando a proposta de trabalho responde a uma necessidade
da criança, esse trabalho tem para ela uma razão e, desta maneira, mesmo que ela não
realize a tarefa que mais a agrade, ela o fará com vontade por antecipar o resultado
final do trabalho.
O controle e a sanção caracterizam uma ofensa à dignidade humana, assinala Frei-
net, sobretudo se exercida publicamente. O autor ressalta a importância de que o tra-
balho do professor seja caracterizado no ato mesmo de sua realização por uma atitude
colaborativa do educador em relação ao trabalho da criança. O papel do professor
envolve, assim, atitudes dialógicas e de parceria com a criança, sem usar sua autori-
dade para conseguir da criança aquilo que lhe parece conveniente. A autoridade do
professor deve ser compreendida como a do organizador e orientador das atividades
e não como a da pessoa que aplicará a punição.
Nessa perspectiva, a alfabetização é tida como um processo constituído nas relações
interpessoais, caracterizando sua natureza social e condicionada política, cultural, pe-
dagógica e ideologicamente. Como sujeitos, as crianças e os professores protagonizam
o processo de alfabetização, assumindo diferentes papéis e funções nessa forma ativa,
interativa e plurissignificativa de atividade, em dependência do contexto social e das
exigências e necessidades dele decorrentes (MORTATTI, 2000; SMOLKA, 1999).
O entendimento do processo de alfabetização como um fenômeno cultural e histó-
rico, portanto multifacetado, vincula-se à compreensão de que “o jogo de interações”
vivenciado no espaço escolar é essencial.
A postura do professor defendida pela Pedagogia Freinet compreende que não há a
necessidade da fala exaustiva. O professor precisa aprender a suprimir suas lições ex-
positivas, precisa organizar seu trabalho de maneira que não haja necessidade de falar
71
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, o tempo todo e, com isso, possa oferecer às crianças uma atenção mais individualizada
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO de auxílio e colaboração nas atividades.
As técnicas elaboradas por Freinet expressam uma “condenação definitiva das práti-
cas escolásticas, em que todas as crianças fazem, ao mesmo tempo, as mesmas coisas”
(FREINET apud SAMPAIO, 1994, p. 94). Essa condenação é expressa pela compreensão
de que “A criança não gosta de sujeitar-se a um trabalho em rebanho. Ela prefere o
trabalho individual ou de equipe numa comunidade cooperativa” (SAMPAIO, 1994,
p. 94). Daí o destaque à importância do trabalho de cada um no resultado final. Cada
criança precisa compreender no trabalho concluído a importância de seu fazer para
aquela conclusão. Sem perceber a importância do seu trabalho no resultado final da
atividade, a criança pode compreender que não há razão para sua realização, o que o
tornará desmotivado e exaustivo.
Dada a estruturação da rotina diária por meio de técnicas complexas de ensino
– que envolvem a participação das crianças desde o planejamento, a execução de
forma cooperativa e mesmo a avaliação em atividades que se desenvolvem ao longo
de períodos muitas vezes extensos e para as quais as crianças têm relativa autonomia
para a estruturação de planos individuais de trabalho –, a ordem e a disciplina são
elementos centrais da organização da aula na Pedagogia Freinet. Segundo a experi-
ência do autor, serão aceitas e praticadas por sua necessidade, por fazerem sentido
para aqueles que a praticam desde que seja uma necessidade do processo e não por
imposição do professor. Essa necessidade acontece pela motivação da criança ao tra-
balho que realiza, na própria organização desse trabalho, sem que seja imposta de
forma autoritária.
Na acepção de Freinet, “os castigos são sempre um erro. São humilhantes, não
conduzem ao fim desejado e não passam de um paliativo” (SAMPAIO, 1994, p. 95).
Assim, destaca a inutilidade dos castigos quando o trabalho educativo é organizado
de forma cooperativa e significativa para a criança. Castigar é uma forma de camuflar a
falta de significado do trabalho que não foi realizado. Para a Pedagogia Freinet, um tra-
balho educativo organizado em prol da vida e da funcionalidade do aprendizado não
comporta castigos, porque não oferece oportunidades para que ocorram a indisciplina
e a falta de ordem. Nessa perspectiva, o trabalho cooperativo vai dando às crianças o
sentido da relevância do seu fazer para a realização do conjunto e a noção de que sua
falta com o grupo prejudicará a todos, descartando qualquer necessidade de castigos
desvinculados do trabalho realizado.
O trabalho cooperativo traduz as relações que se estabelecem na Pedagogia Frei-
net. Com ele, o professor deixa de ser o transmissor do conhecimento para assumir
o papel de colaborador qualificado junto às crianças na busca desse conhecimento. A
72
cumplicidade que se estabelece no trabalho cooperativo garante o êxito de todos e não Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
de uma determinada criança ou de um grupo delas. Nesse âmbito, ao mesmo tempo contribuições de Freinet
para a alfabetização
em que se sente parte do grupo, a criança sente-se autora e participante em todas as
atividades que realiza.
A Pedagogia Freinet defende ser essencial a participação da criança em todo o pro-
cesso educativo – seja por meio de decisões coletivas no processo de planejamento,
seja na apresentação final do trabalho realizado. Essa participação da criança – desde
pequena – nas decisões e nas escolhas da vida escolar a preparam para viver a demo-
cracia no sentido mais real da palavra: o de escolher e aceitar as escolhas alheias. Nas
palavras de Freinet, “A democracia de amanhã prepara-se pela democracia na escola.
Um regime autoritário na escola não seria capaz de formar cidadãos democratas”, a
verdadeira democracia se prepara “pelo exemplo e ação”, ou seja, na prática escolar,
quando se tem a oportunidade de expressar, argumentar e defender as próprias ideias
(apud SAMPAIO, 1994, p. 97).
Para uma pedagogia calcada no princípio da democracia, o respeito é uma caracte-
rística indiscutível, pois sem ele não há relação democrática nem digna entre as pesso-
as. As técnicas da Pedagogia Freinet direcionam o respeito mútuo a todas as suas ins-
tâncias: à livre-expressão da criança, as suas escolhas pessoais e às decisões coletivas.
O autor permite pensar a alfabetização como um processo intencional, que implica
a relação de sujeitos histórica e socialmente condicionados, mas ativos do ponto de
vista de sua função na produção de textos (escrita), na atribuição de significações e
sentidos para o texto (leitura), na sua própria formação, na relação que estabelecem
com os outros, na intervenção criativa sobre o mundo. Surge, assim, uma concepção
de leitor e de escritor – e de criança – como portador de palavras suas, apropriadas e
transformadas nas relações que estabelece dentro e fora da instituição escolar e que
constituem (e reconstituem permanentemente) a sua consciência de si e do mundo, a
sua inteligência, a sua personalidade.
Freinet alerta para as dificuldades que deverão ser enfrentadas no processo de
mudança em direção a uma escola democrática, reconhecendo que a implantação de
técnicas democráticas de ensino não se faz de uma hora para outra, nem com aprova-
ção total das pessoas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem. Essa é uma
posição política que tem consequências sociais. Em suas palavras, “A reação social e
política, que manifesta uma reação pedagógica, é uma oposição com a qual temos
que contar, sem que se possa evitá-la ou modificá-la” (SAMPAIO, 1994, p. 98). O autor
acrescenta que o antídoto às resistências está na “esperança otimista na vida, e na
perseverança como arma para toda superação”, para que na luta contra a pedagogia
tradicional o professor não se deixe abater pelas dificuldades de derrotá-la, contudo
73
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, seja capaz de encontrar formas de superá-la, aumentando as forças de sua crença na
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO escola democrática (SAMPAIO, 1994, p. 99).
Essas diretrizes pedagógicas, somadas às outras concepções anteriormente discu-
tidas, vão caracterizando as possibilidades de aplicação das técnicas elaboradas por
Freinet e, dessa forma, viabilizando um trabalho educativo pautado nas necessida-
des infantis e na formação do ser humano em suas máximas possibilidades.
As Técnicas de Ensino
Pelo exposto a seguir, apresentaremos uma a uma as técnicas elaboradas por
Freinet, sem que percamos de vista que elas constituem um todo indissociável que
respeita a livre expressão, o tateamento experimental e a cooperação como princí-
pios norteadores do trabalho educativo.
Surgida da intenção de ligar “o pensamento da criança ao texto definitivo”
(FREINET, 1978, p. 39), a imprensa possibilitou efetivamente, na acepção de
Freinet, a criação de um projeto diferenciado para a prática educativa. Marques
(1984, p. 24) aventa que a necessidade da imprensa surgiu das aulas-passeio que
Freinet realizava com a turma e que geravam textos que precisavam ser distribu-
ídos para todos em substituição aos manuais educativos que não despertavam
nenhum interesse das crianças. Freinet (apud MELLO, 1992, p. 44), relatando sua
experiência com a imprensa, revela que:
Sampaio (1994, p. 219) expõe que o texto livre2 “deve ser realmente livre, na
forma e no tema, elaborado em qualquer momento que chega a inspiração”, pois
somente dessa forma expressará elementos essenciais: “espontaneidade, criação,
vida, ligação íntima e permanente com o meio, a expressão profunda da criança”
(FREINET, 1976, p. 21). Para o ICEM (1979, p. 11), o texto livre:
2 Essa técnica, por suas características, não se aplica à educação infantil, mas ao Ensino Fun-
damental.
74
A IMPRENSA É UM INSTRUMENTO PEDAGÓGICO PARTICULAR: Em lugar da mecanização
- Ela favorece os tateios das crianças em suas diversas aprendizagens [...] e da improdutividade:
contribuições de Freinet
- Ela favorece as aprendizagens do espaço, dos sinais gráficos, da escrita, da para a alfabetização
leitura, das obrigações socializantes (ortografia e luta contra a disortografia,
legibilidade).
A imprensa é o INSTRUMENTO DE VALORIZAÇÃO DO PENSAMENTO ESCRITO
DA CRIANÇA:
- A página impressa recebe do leitor um status particular que coloca ao nível
do texto oficial.
- A imprensa tipográfica dá ao texto da criança a mesma importância do texto
do adulto.
De acordo com Élise Freinet (1979, p. 30-31, grifos da autora), as vantagens do uso
da imprensa na escola são:
75
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, correspondência, etc. [...] pode também gerar outras atividades: debate, teatro, dese-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO nho, música, expressão corporal” (ICEM, 1979, p. 11). Dessa maneira, integram-se à
“globalidade da expressão da criança” (ICEM, 1979, p. 11).
Élise Freinet (1979, p. 31) registra que “o texto livre libera o pensamento da crian-
ça, facilita sua expressão”. Através dele, a criança pode exprimir seus pensamentos,
sentimentos e idéias, aprendendo a expor e argumentar suas opiniões.
Já Freinet (1976, p. 21) considera que “um texto livre deve ser realmente livre.
Quer isto dizer que escrevemos quando temos alguma coisa a dizer, quando sentimos
a necessidade de exprimir, escrevendo ou desenhando, aquilo que em nós se agita”.
Por isso, o texto livre envolve o respeito à criança e a sua forma de expressar-se. Para o
autor, essa técnica utiliza a linguagem escrita “em prol da vida”, ou seja, utiliza a escrita
em seu papel social de comunicar idéias a outras pessoas.
O jornal escolar é instrumento de socialização e divulgação da livre expressão. “Ele
é o resultado do trabalho de um grupo de crianças [...] que querem comunicar aos
leitores as informações, as opiniões, as pesquisas feitas na classe” (ICEM, 1979, p. 12,
grifos no original).
São condições para o trabalho com o jornal escolar:
76
de busca igualmente partilhada de alternativas para a melhoria do trabalho educativo. Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
Com a correspondência inter-escolar, as crianças têm a oportunidade de conhecer ou- contribuições de Freinet
para a alfabetização
tras crianças de escolas diferentes, possibilitando a aprendizagem de outras realidades,
outros costumes, outras experiências etc. De acordo com o ICEM (1979, p. 14):
Na prática, tudo pode ser objeto de intercâmbio. Mas na maioria das vezes
as trocas têm a forma de: cartas individuais, cartas coletivas, textos impressos,
jornais escolares, álbuns, pacotes (presentes de todos os tipos, inclusive golu-
seimas), pesquisa, gravações em fita.
77
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, caracterizado pela busca de informações sobre temas de interesse da turma; passeio-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO repouso, marcado pela descontração de assistir a uma peça de teatro ou a um filme no
cinema, participar de um jogo na comunidade, fazer um piquenique; ou mesmo uma
atividade mais especial, como o passeio-estadia, que envolve a experiência de viajar e
hospedar-se em diferentes lugares.
Freinet julga ser igualmente importante permitir que o grupo de crianças opte por
“sair simplesmente por prazer, pela curiosidade e interesse e não pela obrigação esta-
belecida pelos objetivos educacionais da escola” (SAMPAIO, 1994, p. 181).
Baseado na necessidade de participação da criança em todas as atividades pro-
postas, Freinet propõe que, ao iniciar cada dia na escola, haja um tempo de relato de
experiências, reflexão e planejamento para as crianças.
A roda inicial é o primeiro momento de reunião da turma, é um momento de livre-
expressão e cada aluno tem a oportunidade de manifestar suas ideias, opiniões e senti-
mentos. É também um momento em que se planeja o dia, se discutam os conteúdos a
serem trabalhados: a escolha e seleção dos conteúdos pode partir de um relato, de um
interesse demonstrado, de uma hipótese levantada durante as conversas. A roda ofere-
ce à criança um momento privilegiado para sua expressão, para contar as novidades,
mostrar aos colegas algo que trouxe de casa ou achou no caminho da escola. Desse
ponto de vista, é a atividade na qual se exercita a expressão oral, a convivência no
grupo, o controle da própria conduta. É momento também de troca de informações,
de contextualização das experiências vividas individualmente; é o tempo de discussão,
com todos, dos problemas, das regras, daquilo que é importante para a criança.
É dessa troca inicial de experiências que surgem as ideias para as investigações que
produzirão os álbuns, a notícia que será impressa no jornal da classe e é ainda nesse
momento que o professor pode fazer a ligação entre os interesses apontados pelas
crianças e os conteúdos programáticos escolares – quando se trata, por exemplo, do
Ensino Fundamental.
As intervenções das crianças permitem ao professor estabelecer uma relação entre
problemas, situações cotidianas e conteúdos programáticos. Desta forma, é possível
um tema conduzir a uma nova atividade, tornando o trabalho significativo para as
crianças. Fazendo discussões, formulando hipóteses, questionamentos e reflexões,
cada criança pode colocar a sua visão do problema. O professor confirma ou não as
hipóteses, estimulando a reflexão e o pensamento crítico. Assim, a criança vai partici-
pando do planejamento das atividades e conhecendo os caminhos da busca do conhe-
cimento de forma autônoma e cooperativa.
A roda – ou reunião – final propicia a avaliação das atividades realizadas. É um
momento privilegiado de registro e sistematização do aprendizado. Nesse momento
78
as crianças relatam, ouvem opiniões e sugestões dos colegas para o encaminhamento Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
de suas atividades individuais e coletivas – e, novamente, exercitam a expressão, a vida contribuições de Freinet
para a alfabetização
em grupo e suas disciplinas, a convivência com a escrita em sua função social.
O fichário escolar cooperativo – ou fichário documental – consiste em uma forma
alternativa de material didático caracterizada pela organização de fichas de assuntos es-
pecíficos. Nesse fichário há o registro dos conteúdos estudados pela turma ou por um
grupo de alunos. As crianças registram os assuntos através da escrita ou por meio de
gravuras recortadas ou desenhadas que serão agrupadas em um fichário cooperativo
disponível à consulta autônoma de todos. Quando as fichas elaboradas se avolumam
e passam a exigir alguma forma de organização para otimizar sua utilização, o fichário
é organizado por ordem alfabética. É em momentos como esse – em que faz sentido
e é necessária – que a ordem alfabética é apresentada às crianças. De outra forma, a
escrita acontece sempre tendo como unidade mínima a palavra e o próprio texto que
manifesta o desejo de expressão das crianças.
Mais que um simples arquivo, o fichário escolar cooperativo caracteriza a docu-
mentação e a socialização do conhecimento não só para o grupo classe, como para os
correspondentes interescolares. É uma forma de troca de experiências e descobertas.
Segundo Mello (1992 p. 96, grifos da autora), buscando a autonomia da criança diante
do trabalho a ser realizado,
79
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, propõe a organização em cada sala de aula de uma biblioteca de trabalho onde, além
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO de exemplares de enciclopédias, livros paradidáticos e revistas, encontram-se livros
confeccionados pelas próprias crianças. Esses livros impressos pelas crianças remetem
a temas de interesse geral da classe “cujo professor se dispõe a coordenar cooperati-
vamente os trabalhos de investigação, organização, redação e documentação fotográ-
fica” (MARQUES, 1984, p. 29). A correspondência interescolar é veículo de divulga-
ção dos álbuns e de troca de informações com outras crianças sobre os estudos em
desenvolvimento.
Para organizar as atividades das crianças dentro de uma dinâmica de participação
e autonomia, Freinet propõe planos de trabalhos elaborados pelas próprias crianças
acerca do conteúdo que devem estudar em sala de aula, considerando o programa
curricular e os interesses das crianças3. Na concepção de Marques (1984, p. 26),
o professor os elabora junto com elas [as crianças] e segundo seus interesses
pessoais, mas não deixando de lado as exigências que o meio impõe, como por
exemplo o horário para a realização das atividades específicas, o programa, se
houver, a elaboração dos textos da correspondência. Estes planos permitem
ainda que a criança possa avançar segundo seu próprio ritmo, já que, após o
cumprimento de suas tarefas, poderá partir para outras atividades que sejam
de seu agrado, bem como procederá através dos mesmos à sua auto-avaliação.
3 Esta técnica de trabalho, por suas características, se aplica ao ensino fundamental e não à
educação infantil.
80
com o propósito de avaliar os acontecimentos e os trabalhos realizados durante a sema- Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
na. Tais planos oferecem às crianças o acompanhamento de seus estudos e as possibili- contribuições de Freinet
para a alfabetização
dades de escolhas que podem se estabelecer em cada instância do trabalho educativo.
Para a articulação dessa dinâmica que constitui a atividade na Pedagogia Freinet, o
espaço da sala de aula deve ter uma configuração distinta da sala de aula tradicional,
porque deve promover e favorecer a autonomia e a participação das crianças. Para
tanto, Freinet estruturou “cantos de trabalho, que comportam um número limitado
de alunos” (SAMPAIO, 1994, p. 187), alguns fixos e outros variáveis. De acordo com
Sampaio (1994, p. 187), “o material a ser utilizado em cada canto – ateliê ou oficina –
deve ficar organizado e ao alcance das crianças” de maneira que
81
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, turma, garante que as crianças conheçam o plano de atividades do dia e discutam esse
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO plano, façam sugestões, ajudem a decidir o que vão fazer, como vão fazer e, ao final, o
avaliem. Essa prática cria inúmeras oportunidades para que as crianças possam fazer,
das tarefas diárias da escola, atividades significativas que acarretem avanços igualmen-
te significativos no desenvolvimento de sua inteligência e de sua personalidade.
Nessa perspectiva de intensa participação das crianças, importa destacar que o edu-
cador não perde seu papel como coordenador do processo, mas deixa de ser mero
controlador, fiscal ou dono do processo. Freinet descobriu que a escola autoritária já
estava fora do lugar no início do século XX e promove, em seu tempo, aquilo que hoje
conhecemos como pedagogia da escuta, tratando da atitude do educador que está ao
lado e não contra suas crianças em seu processo de encontro com a cultura social e
historicamente acumulada, percebendo-as como alguém capaz de fazer teoria desde
ainda muito pequena e, por isso, dá voz a ela no processo educativo. Desse ponto de
vista, faz o processo de conhecimento nos moldes do processo de apropriação e de
objetivação que constitui a dinâmica responsável pelo processo de humanização pelo
qual devem passar as novas gerações.
Considerações Finais
Ao longo do texto, apresentamos diretrizes apontadas por Célestin Freinet e que
fundamentam suas técnicas de ensino buscando nortear a aquisição da linguagem es-
crita por procedimentos usados em função da necessidade dessa forma de linguagem.
Contrariando a metodologia tradicional, Freinet inicia o trabalho com essa linguagem
pela expressão escrita dos relatos feitos pelas crianças a partir das experiências sig-
nificativas que viveram. Neste sentido, Freinet ensina as suas crianças que escrever é
desenhar ideias, sentimentos, informações. Freinet (1977) defende seu método, de-
nominado Natural de aprendizagem da escrita, como a passagem de uma forma de
linguagem a outra – do desenho para a linguagem oral e escrita. Ao mesmo tempo,
defende a convivência, a utilização e o respeito às diferentes linguagens usadas pela
criança ao longo do Ensino Fundamental, preservando e cultivando sempre e essen-
cialmente o desejo de expressão e de comunicação, que são vislumbradas pelo autor
como necessidades vitais da criança.
Do que anunciamos, no processo de alfabetização, as interações e as atividades
entre pessoas – adultos e crianças – formam os relacionamentos fundamentais à apro-
priação da atividade de escrita e da leitura e de outras qualidades humanas que en-
volvem a colaboração, a solidariedade, a autonomia e o trabalho conjunto. Nesses
movimentos de interação, professor e criança são essencialmente protagonistas das
atividades partilhadas e vivenciadas no espaço escolar.
82
Nesse processo de interação e atividade, a comunicação entre professor e alunos Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
ganha força e possibilita avanços significativos no desenvolvimento da conduta infan- contribuições de Freinet
para a alfabetização
til, uma vez que, adulto e crianças, ao se perceberem sujeitos ativos, comunicam de-
sejos e necessidades, expressam seus conhecimentos e hipóteses. Neste sentido, o
papel do professor é ser mediador entre as crianças e o conhecimento pela motivação
e criação das necessidades deste conhecimento — dentre elas, a necessidade de se ex-
pressar pela linguagem escrita. É mediador ao oportunizar situações de aprendizagem
e momentos de interação, a partir da sua intencionalidade e da sua “escuta” daquilo
que as crianças falam, pensam e desejam.
Por esse prisma, os exercícios previamente produzidos pelos adultos para execu-
ção pelas crianças não fazem delas atoras e membros efetivos nas atividades sociais de
leitura e de escrita que podem vir a acontecer no interior das instituições educativas.
Esses exercícios limitam-se a um fazer mecânico, descaracterizado de sentido para a
criança. Para que o processo de alfabetização possa consolidar-se como uma atividade
e, desse ponto de vista, para que seja significativo e qualitativo para o desenvolvimento
humano, tem que fazer sentido para quem o vivencia. A criança tem que ser agente,
autora e sujeito das situações educativas, tornando-se ora leitora, ora escritora, mas
sempre ativa do ponto de vista dos jogos interativos e interdiscursivos que se estabe-
lecem na instituição escolar.
Tanto no que concerne à objetivação como no que concerne à apropriação do
conhecimento elaborado que se abre com a apropriação da leitura e escrita, Freinet
elabora técnicas condizentes à ideia da pessoa como capaz, desde que nasce, de agir
sobre o mundo e transformá-lo: ao abandonar os manuais escolares em favor da ex-
pressão das crianças, abre, para elas, as portas das bibliotecas, dos museus, dos labo-
ratórios, dos teatros. Com isso, amplia o conceito de alfabetização e traz para a escola
um pouco do espaço do camarim dos teatros, dos ateliês dos artistas, das gráficas,
das oficinas de artesãos, buscando ampliar o acesso das crianças ao mundo da cultura
humana, fonte de experiência e humanização.
Referências
83
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, FREINET, C. O texto livre. 2. ed. Lisboa: Dinalivro, 1976.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
84
RIBEIRO, A. L. Teoria Histórico-Cultural e Pedagogia Freinet: considerações Em lugar da mecanização
e da improdutividade:
sobre a mediação entre teoria e prática no processo de aquisição da escrita. 2004. contribuições de Freinet
para a alfabetização
Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Brasileira) Faculdade de Filosofia e
Ciências, Unesp, Marília, 2004.
Proposta de Atividade
1) Discuta com sua turma ou grupo quais as implicações pedagógicas do trabalho docente
com as Técnicas Freinet para a formação de leitores e escritores competentes desde a edu-
cação infantil?
Indicações de Leitura:
85
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
86
5 Imagens e narrativas
no percurso de
alfabetização de jovens,
adultos e idosos
Regina Lúcia Mesti
Aprender a ler e escrever é uma motivação especial para os alunos jovens, adultos
e idosos que frequentam a sala de aula das séries iniciais do Ensino Fundamental,
período no qual a perspectiva de organização do trabalho pedagógico tem como ên-
fase o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita dentre os estudos de conceitos
científicos, culturais e artísticos. Saber ler e escrever se constitui em uma necessidade
indiscutível de cada pessoa para participar dos bens culturais e direitos sociais e
políticos.
O direito à Educação de Jovens e Adultos foi assegurado no texto da Constitui-
ção da República Federativa do Brasil de 1988. Essa responsabilidade, assumida pelo
Ministério da Educação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de1996,
tem sido analisada em congressos, seminários e pesquisas educacionais. Segundo es-
ses documentos (BRASIL, 2000), a alfabetização de jovens, adultos e idosos, antes de
tornar-se modalidade da Educação Básica, fora desenvolvida, principalmente, por mo-
vimentos sociais. Atualmente, é atribuída à escola da Rede Pública Estadual a função
de sistematização da alfabetização e escolarização.
Os princípios teóricos e metodológicos que fundamentam a organização do tra-
balho pedagógico – que articula o processo de alfabetização e o estudo da cultura
– estão referenciados na apresentação das intervenções dos alfabetizadores em um
contexto especial de comunicação e significação, a saber, em um projeto de alfabetiza-
ção da Universidade Estadual de Maringá, parceira no Programa Alfabetização Solidária
(1998). Neste capítulo, analisamos as práticas de alfabetização e a atuação dos jovens,
adultos e idosos nas trocas simbólicas e interações com o universo da cultura e o pro-
cesso de aprendizagem da leitura e escrita.
A pesquisa do universo vocabular e a seleção de temas e palavras carregadas de
sentido para as práticas de alfabetização configuram-se em uma proposta do educador
87
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Paulo Freire (2006). Este educador realizou os círculos de cultura com trabalhadores
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO jovens, adultos e idosos, nas décadas de 70 e 80 do século XX no estado de Pernambu-
co, no Brasil. Conhecer o universo cultural e linguistico foi assumido como condição
primeira na organização do trabalho pedagógico de alfabetização.
A investigação sobre a história da comunidade colaborou com a identificação de
traçados de movimentos de vida dos alunos jovens, adultos e idosos. Esses sujeitos da
alfabetização e da significação problematizaram algumas situações que indicam con-
fronto entre as condições de vida e as histórias ouvidas nos palanques e lidas nas anti-
gas cartilhas. Associado às leituras e aos estudos das práticas culturais, o conhecimento
que conquistaram contribuiu para discutir as narrativas e os valores das lições escola-
res. Organizar o trabalho pedagógico tendo como objetivo promover o conhecimento
da linguagem escrita e seu uso social foi o trabalho diário do alfabetizador.
88
conhecimento. Na artimanha da comunicação, na investigação com o apoio de ima- Imagens e narrativas no
percurso de alfabetização
gens fotográficas, identificamos uma nova atitude no ato de contar, novos elementos de jovens, adultos e
idosos
nas narrativas que incluem os atores sociais trabalhadores em um espaço de tempo e
vida a caminho da sobrevivência. Nessas interações comunicacionais de produção de
texto alunos e alfabetizadores tornaram-se interlocutores no diálogo sobre a cultura.
Nesse contexto de comunicação foram desenvolvidas as intervenções pedagógicas,
próprias da alfabetização. Foi preciso ensinar e aprender as palavras em sua grafia e
reconhecer o sentido no texto, identificar os significantes e seus significados, compre-
ender o sistema de representação da linguagem escrita. Os atos de ensinar e aprender
a língua escrita em situações de comunicação fez esses autores formular e responder
às perguntas organizadoras de um texto: quem diz? O que diz? Como diz? Para quem
diz? Que tipo de texto está sendo escrito, descritivo ou narrativo? Com esse ato, assu-
mimos o enunciado como aquilo que é dito, e como produtores do texto, assumimos
a enunciação?
89
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Essa história oral de Roteiro, considerada uma versão da significação presente
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO na memória dos moradores, tem sua origem marcada pela doação de um lote de
terra para uma santa, e foi incluída em nossos estudos das práticas culturais daquela
comunidade, ganhando registro nos quadros das salas de alfabetização. A atuação de
alfabetizadores e alunos na reapresentação da história na forma escrita se constituiu
em uma oportunidade para ensinar e aprender a escrever e a organizar um texto.
Na produção de narrativas é preciso presentificar os sujeitos das ações e das
conquistas, localizar o espaço e o tempo dos acontecimentos e, ainda, identificar as
transformações nos cenários e nas situações vividas ao longo do século. Em sala de
aula, a transformação dos relatos orais em texto escrito exigia requisitos que ainda
não haviam sido conquistados na alfabetização: as normas da língua portuguesa que
foram apresentadas de forma sistemática não eram suficientes, as dúvidas geradas
no momento da escrita fizeram buscar constantemente os livros de gramática.
A escrita de diálogos sugestivos dos acontecimentos passados produziu um efeito
de sentido com certo ar teatral e instigaram significações dessas histórias de vida.
Essa origem de Roteiro não coube no livro de leitura, sua reapresentação se fez na
forma de interpretações. Todos se envolveram na produção de figurinos e compo-
sição do cenário com barcos, cascas de árvores e de mariscos. Nos ensaios sob a
direção do Professor Pedro Carlos de Aquino Ochôa, Diretor de Teatro da Univer-
sidade Estadual de Maringá, os personagens assumiam seu modo de ser e dizer na
apresentação da peça “Roteiro”, realizada em dois atos e duas sessões para a plateia
de moradores; podem-se ouvir os aplausos de confirmação de nossos colaboradores
entrevistados. Presenciamos mais do que a apreciação da peça teatral no pátio, ob-
servamos a ocorrência de reflexões sobre as condições de vida dos alunos trabalha-
dores que apontam para a relação entre as dimensões social, econômica e política,
como ensinou Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido (1980).
Atingida pela gestualidade de tantos envolvidos nesses atos de linguagem, a alfabe-
tização foi sistematizada a cada dia e assumida no contexto da comunicação com estu-
dos e sentidos construídos nas trocas sociais, cognitivas e afetivas. Os alfabetizadores
e os alunos são os trabalhadores da lagoa e das lavouras e usinas de álcool, esses ato-
res sociais que investigaram as Histórias de Vida em Roteiro e as reapresentaram no
texto teatral, assumiram a função de roteiristas na seleção das Imagens de Minha Vida
e completaram as informações do livro de leituras. Solicitados pelas intervenções
pedagógicas a atuarem como sujeitos da significação na leitura e escrita produziram a
história de Roteiro que não mais se conforma às lições de antigas cartilhas escolares.
O livro de leitura produzido em sala de aula não permaneceu intocável para o ano
seguinte, escrito e reescrito muitas vezes, incluiu os novos conhecimentos.
90
As narrativas e a organização do conhecimento Imagens e narrativas no
percurso de alfabetização
A análise do projeto de estudo da cultura em Roteiro instigou a busca de signi- de jovens, adultos e
idosos
ficação das imagens na história dos homens: o desenho e a fotografia. Ainda arte-
sanais, os desenhos traziam marcas das habilidades motoras e dos materiais que as
instauraram. Os processos manuais para construção de imagens nas pinturas diver-
sas empreendidas ao longo do desenvolvimento universal assumiram outra forma
no século XIX com a tecnologia da fotografia. O uso das fotografias em jornais pode
conduzir o dizer de duas maneiras: não interferindo nas relações com o texto es-
crito ou mantendo relação – de colaboração ou de contraposição – com o verbal.
Construções poéticas e imagens noticiosas correspondem a naturezas diferentes em
seus modos de existir, mas as duas provocam a dimensão sensível e inteligível do
observador.
91
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, dessas raízes da vida, foi preciso intensificar as interações com o patrimônio científico
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO da humanidade. Os estudos não permaneceram restritos aos temas locais, foram, sim,
ampliados em redes de sentido com leituras de obras da história e da arte. Algumas
das intervenções pedagógicas se constituíram em atos de leitura em busca de infor-
mações, o que evidenciou a existência de um universo de conhecimento sistematiza-
do pela sociedade que tratam de movimentos de vida próximos e distantes.
O diálogo no sentido da pedagogia freireana exige mais, requer que o conhe-
cimento e a linguagem também sejam ampliados. Ao identificarmos e utilizarmos
em sala de aula o modo de dizer peculiar daquela comunidade se deu o primeiro
“zoom”, ou seja, eles se expressaram e se aproximaram de suas significações. To-
davia, não limitamos os estudos e o uso apenas da linguagem conhecida por eles,
fizemos o movimento inverso, no segundo “zoom”, agora de ampliação para outros
universos culturais, conhecendo outras palavras e sentidos.
Podemos afirmar que são muitos os fatores que interferem positiva ou negativa-
mente na aprendizagem da leitura e escrita e na organização do trabalho pedagó-
gico. O que postulamos é a necessidade de práticas pedagógicas que desenvolvam
a sistematização da linguagem escrita em situações de uso e significação. Organizar
em narrativas escritas as histórias orais, apresentadas nas entrevistas, exigiu dos al-
fabetizadores e seus alunos a aprendizagem de fazer anotações e compor a histó-
ria das práticas culturais daquela população, desde o suposto encontro do Bispo
Sardinha com os índios Caetés. Para tanto, foi necessário organizar o tempo em
séculos, localizar o espaço geográfico da costa brasileira, identificar as etnias indíge-
nas presentes naquela região, analisar o processo de colonização antes e durante a
ocupação dos portugueses e, ainda, reconhecer nas pesquisas de Câmara Cascudo
(1976) algumas representações de festas folclóricas cujos desfiles viram e ouviram
em tempos remotos.
As manifestações por escrito foram insuficientes para perceber o sentido; nossos
participantes quiseram fazer o caminho inverso da representação para a interpreta-
ção. Os alfabetizadores, preparados pelas pesquisas e ensaios da professora Sueli
Souza, coordenadora do Grupo Fogança da Universidade Estadual de Maringá, re-
criaram os passos do folguedo Guerreiro e saíram do papel, esse espaço de repre-
sentação escrita e imagética, para a interpretação ao vivo e a cores que se fez em
outro espaço. No pátio da escola, com peças de vestuários encontrados nos baús,
dançaram ritmados pelos remanescentes tocadores de pífano que ensaiavam desde
a apresentação da peça teatral.
92
Considerações finais Imagens e narrativas no
percurso de alfabetização
As intervenções pedagógicas desenvolvidas nesse projeto de alfabetização de jo- de jovens, adultos e
idosos
vens, adultos e idosos foram fundamentadas no reconhecimento do universo cultural
e vocabular e na valorização dos sentidos atribuídos pelos alunos e alfabetizadores.
Essa responsabilidade de trabalho cooperativo, com a finalidade de selecionar os te-
mas de estudos e organizar os textos das salas de alfabetização, exige que o alfabeti-
zador pesquise para compreender o cenário de vida da comunidade e a organização
social, política e econômica nacional e internacional. A perspectiva teórica do estudo
da significação aponta para o contexto histórico, no qual o percurso de interações
sociais se faz no cenário do mundo do trabalho tracejado pela lavoura de cana e do
engenho de açúcar no nordeste brasileiro.
Ler e escrever, tarefa árdua, não foi dissimulada, mas sim sentida como empreitada
exigente e valiosa para conhecer e utilizar a língua portuguesa, registrar significações
no contexto da comunicação. Sistema complexo esse da representação da linguagem,
que exige dedicação contínua no ato ensinar e aprender. Os alfabetizadores aprende-
ram a sistematizar a alfabetização e muitos alunos persistiram na interação e aprendi-
zagem do universo escrito, assim como quem interfere na narrativa e recompõe sua
própria história de vida.
Nesse projeto de alfabetização, destacamos os estudos do processo de comuni-
cação humana como um dos fundamentos da educação de jovens, adultos e idosos
assinalados por Paulo Freire em sua prática pedagógica. Confirmamos que o desafio do
diálogo mobiliza, reciprocamente, os interlocutores no processo de conhecer e buscar
significações. O estudo sobre a cultura desencadeou a atuação nas experiências de
leitura e escrita que foram cuidadosamente organizadas e corrigidas pelos alfabetiza-
dores. O processo de escolarização colaborou para o registro do conhecimento organi-
zado em sala de aula e foi condição para o acesso ao patrimônio cultural da sociedade.
Vale salientar que alguns conceitos aqui valorizados e que se referem às práticas de
alfabetização e ao processo de aprendizagem da leitura e escrita estão desenvolvidos
nos demais capítulos deste livro.
O sentido e o contexto da comunicação também estão presentes na Educação a
Distância, uma vez que a prática pedagógica se realiza por meio das formas tecnológicas
que permitem as interações comunicacionais. Por exemplo, as interações com a cultura
manifestam-se em uma teleconferência e no diálogo entre os que atuam na análise e
discussão de um tema durante uma teleaula. Da mesma forma, as interações com o co-
nhecimento são possíveis com as trocas entre o escritor e o leitor deste capítulo de livro
que escrevemos, tendo como interlocutor você, aluno do curso de Graduação em Peda-
gogia a Distância na Universidade Estadual de Maringá e Universidade Aberta do Brasil.
93
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Referências
CASCUDO, Câmara Luís. Geografia dos mitos brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora; MEC, 1976.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2006.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: cotidiano do professor. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1986.
94
OLIVEIRA, Marta Kohl. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e Imagens e narrativas no
percurso de alfabetização
aprendizagem. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 22,1999, Caxambu. Anais... de jovens, adultos e
idosos
Caxambu: [s.n.], 1999.
______. Sabedoria e ilusões da Filosofia. São Paulo: Abril. 1997. (Os pensadores).
Proposta de Atividade
1) Leia com atenção e procure compreender esse projeto pedagógico do capítulo Imagens e
Narrativas no percurso de alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos.
a) Descreva as ações práticas de alfabetização desenvolvidas pelos alfabetizadores e
alunos.
b) Identifique quais são os novos conhecimentos conquistados pelos alfabetizadores e
alunos.
c) Analise esse projeto de alfabetização de jovens, adultos e idosos desenvolvido em um
contexto da comunicação.
Indicações de Leitura
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2006.
Anotações
95
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
96
6 A apropriação da
linguagem matemática
nos primeiros anos de
escolarização
Silvia Pereira Gonzaga de Moraes
97
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Ao defender a necessidade da socialização dos conhecimentos matemáticos, Moura
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO (2007) nos provoca a pensar o ensino de matemática para os aprendizes em diferentes
etapas da vida, no caso específico deste texto, às crianças no início do processo de
escolarização.
Desse modo, compactuamos com os pressupostos da teoria histórico-cultural, a
qual defende que é por meio da apropriação da cultura, das ferramentas simbólicas
produzidas pelos homens que os sujeitos desenvolvem-se e humanizam-se. Apropriar
dos conhecimentos matemáticos constitui-se em uma das formas dos sujeitos torna-
rem-se sujeitos da cultura.
Esse pressuposto nos remete a pensar a seguinte questão: Como podemos ensi-
nar os conhecimentos matemáticos produzidos historicamente para crianças no
processo inicial de escolarização? Para nós, a apropriação da linguagem matemática
nos primeiros anos de escolarização constitui-se no processo inicial e sistematizado
do ensino da linguagem matemática às crianças que ingressam na escola, instituição
considerada espaço por excelência de desenvolvimento dos conceitos científicos, ca-
paz de fazer a mediação entre os conceitos cotidianos e o científico. Nas palavras de
Saviani (1991, p. 29): “Em suma, pela mediação da escola, dá-se a passagem do saber
espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à cultura erudita”.
A esse processo inicial e sistematizado de trabalho com os conhecimentos matemá-
ticos denominamos alfabetização matemática. Alfabetização compreendida articulada
com o processo de letramento, em que a escola possibilita à criança atividades para o
domínio dos códigos linguísticos (alfabetização) no contexto do letramento, ou seja,
em conjunto com a aprendizagem sobre a utilização social desse conhecimento. O
processo de domínio dos conteúdos matemáticos e da sua utilização nas diferentes
situações-problema do cotidiano dos sujeitos é chamado de literacia matemática, tra-
duzido para o Brasil de letramento em matemática. Esse conceito é empregado nas
avaliações realizadas pelo Programme for International Student Assesment (PISA), o
qual o define como sendo:
98
processo de escolarização, tenham condições de se apropriar das bases teóricas dos A apropriação da
linguagem matemática
conceitos matemáticos. nos primeiros anos de
escolarização
Vigotski (2000) e seus colaboradores, dentre eles citamos Luria, afirmam que antes
de entrar para a escola a criança já “[...] adquiriu um patrimônio de habilidades e
destrezas que a habilitará a aprender a escrever em um tempo relativamente curto”
(LURIA, 2001, p. 143). Essa afirmação foi feita por Luria por volta de 1930 do século
XX, no contexto da sociedade russa em que as crianças, em sua maioria, eram enviadas
para a escola a partir dos sete anos de idade. Atualmente, considerando os aspectos
históricos e sociais, um número maior de crianças, cada vez com menos idade, fre-
quenta as instituições de Educação Infantil. Diante dessa situação, a Educação Infan-
til constitui-se em uma etapa de suma importância no processo de escolarização da
criança e, consequentemente, na apropriação do patrimônio cultural da humanidade.
Essa instituição está organizada, a princípio, para prestar atendimento educacional à
criança em seus primeiros meses de vida até seu ingresso no Ensino Fundamental.
A Educação Infantil, como parte do processo de escolarização após a promulgação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/96), constitui-se na pri-
meira etapa da educação das crianças. Neste sentido, o processo de escolarização que
defendemos neste capítulo inicia-se desde o ingresso da criança em uma instituição
escolar, seja ela Educação Infantil, seja nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Retomando a questão levantada anteriormente, faz-se necessário refletirmos sobre
os encaminhamentos teórico-metodológicos utilizados no ensino das crianças na eta-
pa inicial de escolarização. Assim sendo, é preciso pensar quais conhecimentos mate-
máticos devemos ensinar, como ensinar e como a criança aprende. Ou seja, nos instiga
a pensar o ensino de matemática na dimensão matemática, pedagógica e psicológica.
Dar conta de responder a essa questão não é tarefa fácil, porém essencial para a con-
dução do processo de ensino e aprendizagem dos conceitos matemáticos às crianças.
99
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Dessa forma, concordamos com Leontiev (1983) quando afirma que o desenvol-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO vimento infantil depende das condições objetivas, isto quer dizer que a maneira de
a criança relacionar-se com o mundo, as atividades que ela realiza determinam o seu
desenvolvimento psicológico.
Desde muito pequena a criança tem a percepção numérica. Ela possui, de acordo
com Ifrah (2005, p. 19, grifos no original), uma “sensação numérica”. Este autor tam-
bém pontua que o “[...] número é simplesmente sentido e percebido não é ainda
concebido por ele [o bebê] de modo abstrato, e ele nem sequer terá idéia de se servir
de seus dez dedos para designar um dos primeiros números”.
A sensação numérica está relacionada com a capacidade de as crianças distinguirem
de maneira direta e utilizando os órgãos dos sentidos, principalmente a visão, para
determinar certa quantidade. Essa sensação numérica que a criança possui pode ser to-
mada como ponto de partida como uma etapa natural e primitiva no processo de con-
trole de quantidades. Em conformidade com Vigotski (2000, p. 165, tradução nossa),
Na fase natural ou primitiva, a criança resolve a tarefa planejada por via direta.
Uma vez resolvidas as tarefas mais simples, a criança passa para a etapa do em-
prego dos signos, mesmo sem ter consciência de como eles atuam. Ela segue
a etapa de utilização dos signos externos e, finalmente, a dos signos internos.
100
inseridas no sistema de numeração. A apropriação da
linguagem matemática
Ensinar a sequência e como escrevem os signos numéricos é uma tarefa que não nos primeiros anos de
escolarização
prescinde de conhecimentos elaborados. Esse trabalho pode ser realizado por qual-
quer adulto com conhecimentos matemáticos mínimos, como, por exemplo, a mãe,
a avó, a babá. No entanto, para ensinar as bases teóricas dos conceitos matemáticos
para as crianças, há necessidade de um profissional com formação e com conheci-
mento específico. No caso da instituição escolar, esse profissional é o professor.
As relações externas do conceito de número estão postas socialmente; as crianças
se deparam com eles em suas relações com o meio. Todavia, as atividades a serem
desenvolvidas na instituição escolar necessitam proporcionar às crianças a compre-
ensão das relações internas do conceito. Entendemos que, ao possibilitarmos ativi-
dades que revelem as conexões internas dos conceitos, permitiremos que as crianças
realizem a transição da sensação numérica ao processo de apropriação do controle
de quantidade utilizando-se das formas mais elaboradas produzidas pelo homem.
A organização do ensino para possibilitar a transição do senso numérico às for-
mas mais elaboradas produzidas pelo homem para o controle de quantidade deve
tomar como ponto de partida o conhecimento que a criança possui (Nível de Desen-
volvimento real – NDR) e desenvolver ações de ensino e aprendizagem para além
desse conhecimento. Isto significa que é necessário que a prática pedagógica incida
sobre os conhecimentos ainda não apropriados pelas crianças. A esse espaço entre
o conhecimento que a criança domina e aquele em que ainda precisa da ajuda do
outro Vigotski (2000) denominou Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Assim,
aquilo que a criança resolve com a ajuda do outro, no futuro terá condições de re-
solver sozinha, revelando um novo nível de desenvolvimento real. Esse movimento
entre NDR e a ZDP é contínuo e só cessa se ao sujeito não forem proporcionadas
atividades adequadas ou se não tiver condições vitais para o desenvolvimento das
atividades.
No caso do ensino do conceito de número, núcleo do ensino de matemática no
processo inicial de escolarização, deve-se partir, conforme os pressupostos da pers-
pectiva histórico-cultural, de situações-problema que revelem para a criança o modo
de produção humana desse conceito sobre o controle de quantidades, trabalhando-se
esse conhecimento em relação com as grandezas (peso, volume, superfície e longitu-
de, etc.).
O ensino de matemática para crianças no processo inicial de escolarização deve ser
desenvolvido de modo que elas compreendam os conhecimentos sobre as grandezas/
medidas destacadas nos objetos físicos e se familiarizem com suas propriedades fun-
damentais. Desta forma, as crianças, operando com objetos reais e neles focalizando
101
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, os parâmetros das grandezas, aprendem a comparar as coisas por uma ou outra gran-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO deza, determinando a sua igualdade e desigualdade. Em seguida, as crianças anotam
essas relações utilizando-se de signos.
O encaminhamento teórico-metodológico do ensino de matemática deve respeitar
o aspecto lógico-histórico do conhecimento matemático. A dimensão histórica é con-
siderada dentro da atividade de ensino como uma das formas de perceber o processo
histórico-cultural do conceito; nesse contexto, significa conceber o conceito inserido
em uma história na qual os homens, diante de necessidades objetivas, buscam e elabo-
ram soluções. A dimensão lógica diz respeito ao processo de apropriação do conceito,
considerando seu aspecto histórico pelo pensamento humano.
Portanto, trabalhar com a unidade lógico-histórica no ensino de matemática cons-
titui-se em uma forma de desenvolver os conhecimentos dessa área do saber que
considere o processo de produção dos conceitos como produto da atividade humana
diante das necessidades objetivas enfrentadas pelos homens (MOURA, 2004; ARAÚJO,
2007; DIAS, 2007; LANNER DE MOURA, 2007, MORETTI, 2007). Segundo Moretti
(2007, p. 98):
102
histórica de criação do conceito na singularidade criativa do sujeito que A apropriação da
aprende. linguagem matemática
nos primeiros anos de
escolarização
Assim, a formação do pensamento numérico deve se iniciar com situações-proble-
ma, por meio das quais as crianças tenham possibilidade de se apropriar do conceito
de número, iniciando com o numeral-objeto1 até os conceitos fundamentais do siste-
ma de numeração decimal, no qual o numeral é tratado de forma totalmente abstrata.
O processo de apropriação do conceito de número possibilitará à criança “[...] cons-
truir pensamento e linguagem numérica dimensionados pelo seu entendimento de
variação de quantidade” (LANNER DE MOURA, 2007, p. 74). Nessa lógica, o número é
trabalhado em relação com as diferentes grandezas, reforçando, assim, um dos princí-
pios do ensino de matemática em que os conceitos necessitam ser trabalhados em re-
lação, ou seja, como parte de um sistema, de modo a desvelar a essência dos mesmos.
Se em um primeiro momento a criança não tem ideia clara sobre a adição, ou se
somente realiza comparações de forma direta e externa, precisamos proporcionar-lhe
atividades para que possa abstrair as bases do conceito e conhecer suas relações inter-
nas, isto é, operar mentalmente.
O trabalho pedagógico proporcionará às crianças resolverem, em um primeiro mo-
mento, as atividades apoiadas nos signos externos – atributos como cor, tamanho,
entre outros – para posteriormente utilizarem-se dos signos internos. Ou seja, realizar
operações mentais apoiadas na memória, no pensamento e na abstração.
Por exemplo, para que a criança possa dominar as ideias contidas no processo de
controle de quantidade é preciso proporcionar-lhe atividades para que ela possa mo-
bilizar seu pensamento. Para que a linguagem matemática produzida historicamente
pela humanidade possa ser apropriada pelas crianças é preciso desenvolver atividades
que envolvam a complexidade das funções psicológicas das crianças2. Assim, a apro-
priação da linguagem se torna uma atividade que envolve compreensão, não se confi-
gurando apenas como uma atividade meramente motora.
A simples soletração cantada de músicas diversas não significa que a criança se apro-
priou da relação grafema-fonema contida na língua materna. No caso da matemática, a
103
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, repetição da sequência numérica ou mesmo a solução de algoritmos não leva a criança
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO a se apropriar do conceito de número.
O processo de apropriação da linguagem matemática deve se iniciar pelas relações
entre o controle de quantidades, no qual as crianças possam utilizar os signos externos
para a resolução das situações problemas; em seguida, passa a utilizar outras formas de
expressão de suas ideias, como, por exemplo, a linguagem pictórica, em que se utiliza
de desenhos até chegar às formas mais elaboradas e aos registros abstratos produzidos
pelo homem, como os números.
Dessa forma, proporcionar atividades que trabalhem com os aspectos lógico-histó-
ricos constitui um importante encaminhamento metodológico para o ensino de ma-
temática. Tratam-se de atividades de ensino que revelem o processo de produção do
conceito. No caso do ensino de matemática, o trabalho nessa perspectiva possibilitará
ao professor e ao aluno compreenderem essa ciência como uma produção humana.
No caso do ensino do número para as crianças pequenas, precisa evidenciar o seu
movimento conceitual, conforme estabelece Araujo (2007, p. 37):
Araujo está propondo que o ensino do número não deve começar com o sistema
de numeração decimal de forma pronta e acabada, mas revelar as ideias e os conceitos
contidos nesse sistema. A seguir, trabalharemos com uma atividade de ensino que
focaliza um dos conceitos básicos do sistema de numeração.
104
trabalhadas é a do Curupira (MOURA, 1996)3·. Vejamos a lenda e os encaminhamentos A apropriação da
linguagem matemática
metodológicos a partir desse recurso didático. nos primeiros anos de
escolarização
A lenda do Curupira
Certo dia, enquanto fazia inspeção pela mata, Curupira ouviu um barulho que
mais parecia um trovão. Era um ribombo que vinha do meio da clareira. Saiu cor-
rendo e começou bater nas árvores para que elas acordassem. Afinal, o Curupira
sempre faz isso quando pressente chuva. Ele avisa as árvores para que elas resistam
melhor ao mau tempo. Nessa manhã, o Curupira estava mais enamorado do que
nunca pela beleza das flores, das frutas e não percebeu que aquele estrondo não
vinha do céu. Foi uma árvore que o alertou sobre o perigo que corriam:
-- Acorda Curupira! Hoje você está no mundo da lua! Isso não é aviso de chuva,
isso é malvadeza do homem contra os animais.
Ao ouvir estas palavras, o Curupira não se conteve e saiu em disparada. Afinal,
se tem alguém que ele não perdoa é quem maltrata os inofensivos habitantes da
floresta. Tratou logo de juntar todos os bichos que estavam por perto para levá-los
longe do caçador que queria pegar os animais para tirar o couro. Deu forte assovio
e no mesmo instante estava reunida ali uma grande quantidade de animais.
3 Essa atividade foi produzida para a Oficina Pedagógica de Matemática vinculada ao GEPAPe-
FE/USP (Grupo de Estudos Pesquisa da Atividade Pedagógica – Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo) sob a coordenação do Prof. Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura.
105
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Em certo momento da vida social, os homens controlavam as quantidades de ove-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO lhas, por exemplo, utilizando-se de pedras, por meio da correspondência biunívoca
(uma pedra correspondia a uma ovelha), criando, assim, o que denominamos nume-
ral-objeto. Com a complexificação das relações sociais, aliado ao aumento da produ-
ção de bens de consumo o homem necessitou de meios mais eficazes para controlar
as quantidades produzidas. Portanto, é a partir das necessidades humanas que são
produzidos os conceitos para atender às demandas sociais. Do numeral-objeto até o
nosso Sistema de Numeração Decimal foi um grande caminho percorrido pelos ho-
mens. A invenção do sistema de contagem de base 10 constitui-se em uma das maiores
invenções humanas, revelando as potencialidades dos homens diante dos problemas
colocados pela vida em sociedade. A esse respeito, Moura (2007, p. 46-47) pondera:
106
e Moura (1997, p. 14, grifos no original) de História Virtual do Conceito. Assim o A apropriação da
linguagem matemática
denominaram porque tal recurso [...] coloca a criança diante de uma situação pro- nos primeiros anos de
escolarização
blema semelhante àquela vivida pelo homem ao ter que controlar quantidades
contínuas e discretas.
Lanner de Moura e Moura (1997) defendem que a situação-problema deve conter
grau de desafio e ludicidade para que as crianças se envolvam na busca de solução e se
apropriem de uma aprendizagem significativa.
A necessidade de que as atividades dirigidas às crianças no processo inicial de es-
colarização sejam desafiadoras e lúdicas está relacionada com o que Leontiev (2001)
enuncia sobre a atividade principal da criança na idade pré-escolar, o jogo. Este autor
também afirma que é por meio do jogo que a criança se relaciona e se apropria do
mundo a sua volta, no sentido de que tal atividade possibilita a apropriação das pro-
duções culturais elaboradas historicamente.
Na situação de jogo, a criança imita as ações dos adultos. Ela não pode, por exem-
plo, sair dirigindo um carro, mas pode simular essa situação por meio dos objetos que
oferecem condições para isso. Assim, um aro pode ser o volante, o meio pelo qual a
criança sai dirigindo seu carro imaginário. Essa é a forma de a criança apropriar-se do
mundo que a circunda, isto é, por meio da atividade lúdica ela reconstitui a realidade
(ARAÚJO; MIGUÉIS; NASCIMENTO, 2007).
Temos dois pontos importantes a destacar na atividade apresentada sobre a Lenda
do Curupira. O primeiro deles refere-se à qualidade da situação-problema, a qual nos
remete a pensar sobre o processo de organização do ensino pelo professor, isto é, a
organização das suas intervenções, em que se revela a intencionalidade pedagógica
diante do processo de ensino e aprendizagem. O professor precisa ter claro o concei-
to que pretende trabalhar para propor situações-problema que mobilizem o pen-
samento das crianças para que essas possam apropriar-se desse conceito. Conforme
Moraes (2008) é por meio da situação desencadeadora de aprendizagem que o pro-
fessor desenvolve sua intervenção junto ao escolar, estabelecendo uma relação entre
professor-conhecimento-aluno, pois para que a aprendizagem torne-se significativa a
atividade de ensino deve desencadear uma atividade de aprendizagem. A situação-
problema posta às crianças, conforme já tratamos, trabalha com um dos conceitos
constitutivos do sistema de numeração, possibilitando à criança pensar sobre o con-
trole de quantidade.
O segundo ponto que gostaríamos de mencionar, relacionado ao primeiro, diz res-
peito à amplitude dessa atividade, visto que, além de trabalhar com um dos conceitos
do sistema de numeração – correspondência um a um –, esse encaminhamento me-
todológico propicia um trabalho articulado entre o processo de apropriação da língua
107
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, materna e o da linguagem matemática. Isto significa que podemos explorar, com os
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO conteúdos presentes na lenda, os aspectos essenciais da língua materna, além de ter-
mos, também, um genuíno problema de aprendizagem matemática. Desta forma, os
trabalhos com essas duas linguagens podem ser articulados, não havendo primazia de
uma em detrimento da outra. A articulação entre o processo de apropriação da língua
materna e o da linguagem matemática torna-se importante visto que, na maioria das
vezes, no trabalho com as crianças em processo inicial de escolarização há predomínio
do ensino da língua materna, apropriação dos códigos linguísticos, ficando a lingua-
gem matemática para segundo plano, prevalecendo o emprego de atividades estéreis,
repetitivas e mecânicas.
Cabe registrar, também, que as crianças são mobilizadas a buscar a solução para a
situação-problema. Elas se envolvem na busca da resposta para ajudar o Curupira. Os
registros tornam-se significativos para elas e as operações que utilizam envolvem as
funções psicológicas superiores, o pensamento, a memória, a síntese. No entanto, para
que isso ocorra o professor deve reconhecer e orientar as ações das crianças e, apoiado
na situação-problema inicial, formular outras situações. A seguir, apresentamos uma
ampliação da situação-problema relativa à lenda do Curupira.
108
desenvolvidas para garantir que esse conceito seja apropriado pelas crianças. A apro- A apropriação da
linguagem matemática
priação pela criança do conceito de número e sistema de numeração envolve outros nos primeiros anos de
escolarização
conceitos, como agrupamento, ordem, base, valor posicional. Esses conceitos devem
ser trabalhados de forma que a criança compreenda o movimento conceitual e desen-
volva seu pensamento numérico.
O número é uma abstração da realidade quantitativa. Por isso, seu conhecimento
não se revela de modo direto, por meio da observação imediata dos objetos; ao con-
trário, para a sua apropriação são necessárias ações mentais sobre o controle de quan-
tidade, sobre as relações entre as coisas na vida. O conteúdo da abstração teórica não
existe na realidade, mas no pensamento humano. Desse modo, o conceito científico
ou teórico não se encontra no conteúdo objetivo, mas no método de assimilação, no
processo de estudo, na relação sujeito, objeto e mediação cultural.
No ensino de matemática, a escola deve possibilitar aos escolares a apropriação de
um “[...] sistema de representação do número e do espaço, considerando a natureza
social do processo de elaboração desses signos numéricos e da linguagem geométrica”
(ARAUJO, 2007, p. 36). Tal tarefa consiste na apropriação dos conceitos necessários
para que os sujeitos possam controlar o movimento das quantidades, das formas, do
espaço e das relações entre eles.
Considerações finais
A proposta para o ensino de matemática defendida por Davýdov (1982), Moura
(2003, 2007), Lanner de Moura (2007), Araujo (2007), Moretti (2007), Dias (2007) e
Moraes (2008) é contrária àquelas em que a criança, ao chegar à escola, é envolvida
com exercícios repetitivos, tanto de contagem oral quanto de transcrição escrita dos
numerais. Um exemplo desses exercícios rotineiros propostos às crianças é a escrita
repetitiva dos numerais, ou mesmo o cantarolar de músicas que envolvem a contagem
oral, por exemplo, a música intitulada “A galinha do vizinho”.
Não queremos descaracterizar, totalmente, a importância de tais exercícios, apenas
marcar os sérios limites dessa prática pedagógica para o desenvolvimento do pensa-
mento numérico. É claro que, para pensar numericamente a criança precisa saber con-
tar sequencialmente, e que para quantificar não pode contar um mesmo objeto duas
vezes, bem como precisa dominar a escrita dos dez signos numéricos, mas o conceito
de número envolve outros conceitos que somente esse tipo de exercício ou outros
parecidos não dão conta. Tal forma de trabalhar com os números parte de situações
artificiais, e se considera que a repetição leva à compreensão.
Desta forma, o ensino de matemática precisa ancorar-se em atividades de ensino
que propiciem aos alunos a apropriação do conceito. Para isso, é importante que as
109
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, atividades propostas às crianças partam de situações-problema semelhantes às vividas
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO pelo homem no processo de criação do conceito.
Neste sentido, para chegar, por exemplo, ao sistema de numeração decimal, temos
um percurso a ser percorrido com as crianças, visto que o nosso sistema é uma síntese
complexa das produções humanas, abstração que precisa ser mediada pelo professor
e os instrumentos para que as crianças possam apropriar desses conhecimentos de
modo a desenvolver as suas máximas capacidades humanas.
Assim, neste capítulo, reforçamos a importância do professor proporcionar ativida-
des de ensino às crianças no processo inicial de escolarização que focalizem o modo
de produção do conceito, considerando seus aspectos lógico-históricos. Para isso, ele
deve utilizar-se de diferentes recursos metodológicos, como os jogos e a história virtu-
al do conceito. Diante disso, ressaltamos que o professor deve elaborar situações-pro-
blema que desencadeiam a necessidade do conceito na criança. Assim, orientada pelo
professor, ela se envolverá na busca da solução para problema e chegará à resolução
mais eficiente e matematicamente correta.
Acreditamos que essa forma de trabalhar com os conhecimentos matemáticos pos-
sibilita que as crianças, no processo inicial de escolarização, se apropriem das bases
teóricas dos conceitos matemáticos e, consequentemente, possam utilizá-los como fer-
ramentas simbólicas para a compreensão mais elaborada da realidade.
Referências
110
DAVÝDOV, V. V. Tipos de generalización en la enseñanza. Havana: Pueblo y A apropriação da
linguagem matemática
Educación, 1982. nos primeiros anos de
escolarização
IFRAH, G. Os números: a história de uma grande invenção. 11. ed. São Paulo:
Globo, 2005.
111
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, MORAES, S. P. G. Avaliação do processo de ensino e aprendizagem em
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Matemática: contribuições da teoria histórico-cultural. 2008. Tese (Doutorado em
Educação)–Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
VIGOTSKI, L.S. Obras escogidas II. 2. ed. Madrid: Centro de Publicaciones del
M.E.C.; Visor Distribuiciones, 2000.
Proposta de Atividade
112
b) Significado de alfabetização matemática; A apropriação da
linguagem matemática
c) Organização do ensino: papel do professor, atividade de ensino, a importância da situa- nos primeiros anos de
escolarização
ção-problema, significado de história virtual do conceito;
d) A criança pequena e os conhecimentos matemáticos;
e) Faça uma síntese sobre cada um desses conceitos.
2) Agora utilize a sua criatividade e a partir dos conceitos trabalhados elabore uma atividade
de ensino em que a situação-problema contemple conceito de agrupamento do sistema
de numeração.
Indicações de Leitura
IFRAH, G. Os números: a história de uma grande invenção. 11. ed. São Paulo:
Globo, 2005.
113
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
114
7 Diversidade cultural,
alfabetização e
letramento
Rosângela Célia Faustino
Introdução
Nos últimos anos, tem sido enfatizada a importância da diversidade cultural e seus
termos correlatos como o multiculturalismo, a interculturalidade, a pluradidade cultu-
ral e outros. Defende-se que as crianças, na escola, apresentam diferenças culturais e
que estas devem ser consideradas no processo de ensino e aprendizagem. No entanto,
tendo em vista serem temas recentes, ainda não está claro para a equipe pedagógica e
para professores, em que consistem essas diferenças, quais as implicações no processo
de ensino e aprendizagem, quais posturas a escola pode assumir e quais os encaminha-
mentos necessários em sala de aula.
Neste capítulo fazemos uma breve trajetória histórica sobre as questões econô-
micas e culturais a partir dos anos de 1970, contexto em que o projeto multicultural
ganha relevância e a escolarização passa a ter o objetivo de estimular a reflexão acerca
da importância da aprendizagem de todas as crianças, independentemente de sua con-
dição econômica e sociocultural. Discutimos aqui conceitos e políticas educacionais
levantando questões que convidam aos estudos e à ampliação das práticas pedagógicas
de alfabetização.
Investigando o tema, percebemos que a palavra cultura tem muitas definições, sen-
do que a maior parte delas provém das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, ao
realizarem pesquisas com diferentes grupos étnicos ou sociais e desenvolverem teorias
sobre o conceito. Na área da Educação, a palavra cultura é utilizada de forma genérica,
podendo tanto definir a organização específica de um grupo social – índios, quilom-
bolas e outros – como referir-se ao domínio de conhecimentos, informações e crenças
que uma pessoa detém, suas diferenças e particularidades.
No período atual, tem sido atribuída grande relevância à questão da cultura, com o
intuito de se combaterem discriminações e preconceitos raciais que em um momento
de crise econômica contribuem para uma maior exclusão social de grupos ou pessoas
diferentes do padrão imposto pelos defensores da supremacia branca traduzida em
“homem, branco, rico e bem sucedido profissionalmente” (SEMPRINI, 1999).
115
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, No sistema capitalista, esse padrão se estabelece e é disseminado principalmente
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO pela classe dominante, devido aos interesses de exploração da mão-de-obra dos traba-
lhadores visando à acumulação (CALLINICOS, 1995). Presente na sociedade, o precon-
ceito se expressa na escola forçando a política educacional a pensar alternativas. Uma
delas tem sido a ênfase dada às questões culturais, elemento que podemos perceber
pelos parâmetros e diretrizes educacionais, ou seja, pela análise dos principais docu-
mentos de educação da atualidade: “A educação [...] terá de dar mais atenção aos va-
lores culturais universais que, além da tolerância, promovem o gosto pela diversidade
cultural.” (DELORS, 1998, p. 237).
Acreditando que os professores ainda não realizaram estudos e debates suficientes
que lhes possibilitem maior clareza, posicionamento e encaminhamentos metodológi-
cos relativos ao tema da cultura na escola, apresentamos a questão da diversidade cul-
tural articulada à questão econômica mundial julgando ser esta de suma importância
para uma melhor compreensão sobre as relações sociais atuais e o papel da escola na
aprendizagem de todos, uma vez que as transformações econômicas ocorridas a partir
da crise estrutural do capitalismo em meados da década de 1970 (FAUSTINO, 2006)
processaram, de igual maneira, mudanças nas políticas públicas e educacionais.
116
altos índices de reprovação, evasão/expulsão, abandono, inadequadas condições de Diversidade cultural,
alfabetização e
funcionamento das escolas, baixos salários e inadequada formação de professores. letramento
117
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, responsabilidades domésticas ou ingressar no mercado de trabalho formal e informal.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Passados quase duzentos anos desde a criação e disseminação dos ideais da escola
pública, as crianças provenientes da classe trabalhadora ou de grupos culturais especí-
ficos continuam tendo menores condições de aprendizagem na escola, mesmo que a
frequentem em maior número e por maior tempo.
O gráfico abaixo, elaborado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística – mostra que a pobreza atinge principalmente as crianças indígenas e negras,
explicitando a vulnerabilidade desses grupos sociais.
118
Somado ao fator pobreza/exclusão, em relação aos grupos culturalmente diferen- Diversidade cultural,
alfabetização e
ciados – indígenas, quilombolas, e outros – existe a questão da discriminação por letramento
serem diferentes. Os organismos internacionais afirmam que, por não dominarem cor-
retamente a língua da sociedade envolvente, possuírem baixa escolaridade e dificulda-
de de lidar com os códigos modernos da sociedade (a escrita é o principal deles), têm
acesso desigual e limitado aos recursos produtivos e escassa participação nas institui-
ções sociais e políticas das sociedades em que vivem.
Diferentes estudos têm demonstrado que a escola não está promovendo a apren-
dizagem de todos.
Apesar das enormes esperanças que têm as crianças e seus pais nos professo-
res e nas escolas, muitos aprendem muito pouco pois os pobres têm escassas
oportunidades de concluir o ensino fundamental e, em conseqüência, de as-
cender a níveis mais elevados de educação média e universitária (REIMERS,
2003).
119
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Para essas correntes teóricas conservadoras, os jovens pertencentes às minorias
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO culturais – afro-americanos, mexicanos, mulheres e índios – deveriam receber um
modelo de currículo específico, com um projeto especial de educação adequado as
suas “inferiores capacidades mentais e seu provável destino em um mercado de tra-
balho secundário” (McCARTHY, 1993, p. 35).
Esse determinismo biológico, a-histórico e irreflexível, divulga que certos gru-
pos étnicos carecem das estruturas mentais adequadas, da necessária disposição
genética para a solução de problemas cognitivos e intelectuais de alto nível, sendo
assim incapazes de conseguir o mesmo aproveitamento nos estudos que conseguem
as crianças brancas. Desta forma, devem se submeter ao controle social e ingressa-
rem em cursos profissionalizantes, pois não teriam capacidade para seguir estudos
universitários.
McCarthy (1993) informa que essa teoria deixa de perceber que as culturas hu-
manas são históricas, sociais e políticas, se formam por meio de lutas e movimentos
humanos e não por criações biológicas ou genéticas.
Embora o determinismo biológico tenha sido combatido veementemente1 a partir
dos anos de 1950, permaneceu desenvolvendo estudos e ressurgiu com certo entu-
siasmo intelectual a partir dos anos de 1980: “[...] a idéia de que as diferenças gené-
ticas ou biológicas explicam as diferenças raciais de rendimento social e educativo
ainda tem vigência e está presente na consciência popular” (McCARTHY, 1993, p. 39).
Nos anos de 1980, no contexto da grande crise econômica do capitalismo que en-
gendrou um alto índice de desemprego e exclusão, atingindo principalmente os mais
pobres, houve a renovação das teorias conservadoras que receberam maior influxo ao
desenvolverem um discurso sobre o controle social, baseado não mais em questões
biológicas, mas com explicações mais relacionadas à cultura.
Segundo essas teorias (McCARTHY, 1993), o baixo rendimento das minorias cul-
turalmente diferenciadas e suas baixas taxas de titulação nas principais universidades
têm mais relação com o profundo sentimento de inferioridade intelectual e cultural
dos indivíduos negros em presença dos brancos devido ao ressurgimento do racismo
que os força a participar de protestos sociais ao invés de enfrentar o desafio acadêmi-
co de progredir nos estudos.
Em relação às dificuldades de aprendizagem das crianças na escola, as teorias da
“privação cultural” afirmam que as crianças provenientes dos diferentes grupos cul-
turais e de famílias pobres estão culturalmente privadas porque
120
[...] são oriundos de lugares que não lhes proporciona o tipo de estimulação Diversidade cultural,
organizada que favorece o desenvolvimento normal em conseqüência, estão alfabetização e
letramento
atrasados em seu desenvolvimento lingüístico, cognitivo e social, razão pela
qual, fracassam na escola (McCARTHY, 1993, p. 43).
Os autores que defendem esta idéia afirmam que as divisões feitas em algumas
escolas logo nos primeiros dias de aula do ano letivo nas salas de alfabetização, nas
quais se classificavam as crianças conforme suas “capacidades intelectuais”, organizan-
do salas de aulas com crianças muito capazes, capazes e menos capazes, ocasionavam
discriminações que interfeririam em toda a vida escolar do estudante.
Responsabilizando os professores pelo baixo rendimento das crianças filhas de
trabalhadores e de grupos culturalmente diferenciados devido à discriminação que
sofrem ao chegarem à escola, sugeriu-se que a solução para o enfrentamento dessa
situação seria a adoção de atitudes mais acolhedoras por parte dos professores para
que essas crianças consideradas menos capazes pudessem se inteirar melhor ao meio
escolar, porque a percepção que elas têm da conduta do professor é muito importante
em seu “rendimento” escolar.
Essas propostas de inclusão têm como objetivo “redimir” as crianças da herança de
suas origens com programas compensatórios, melhorando as habilidades necessárias
para seu êxito nas escolas públicas. Incluídas, as crianças desenvolveriam melhores ha-
bilidades linguísticas, de comunicação, de raciocínio, percepção, atenção e confiança
em si mesmas.
Em consonância com McCarthy (1993), as teorias que separam a educação da vida
política e econômica da sociedade têm alto poder de disseminação de seus ideários,
uma vez que estão afinadas aos discursos institucionais que fundamentam as políticas
educacionais liberais e neoliberais nas últimas décadas.
121
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, todos, uma vez que as crianças filhas de trabalhadores e aquelas provenientes dos gru-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO pos culturais diferenciados tiveram e têm pouco acesso e baixo rendimento escolar.
Se entendermos que o domínio dos códigos modernos da sociedade criados pela
humanidade nas relações sociais devem estar disponíveis a todos, podemos perceber
que a escola, como uma das principais instituições da sociedade capitalista, exclui
grande parte das crianças das oportunidades de conhecimento sistematizado, não por
uma questão cultural, mas econômica: “[...] em 1980, antes ainda que a recessão apre-
sentasse um efeito muito visível, somente um em cada três jovens negros que estavam
fora da escola tinha algum tipo de emprego” (APPLE, 2001, p. 129).
Considerando essa realidade, é de suma relevância que a escola possa garantir a
todos, independentemente das diferenças, o direito de aprender, pois “[...] a criança
assimila uma nova ação, se a mesma for atraente, interessante e se corresponder as
suas necessidades” (MUKHINA, 1995, p. 41). Em um ambiente de colaboração, coleti-
vidade, diálogos e trocas, os interesses pela aprendizagem serão estimulados.
As dificuldades que as crianças pobres encontram na escola têm relação com a ex-
clusão econômica que sofrem, sendo então de extrema importância que professores e
equipes pedagógicas tenham claro o fato de que o acesso ao mundo da escrita é respon-
sabilidade da escola, sendo este lugar privilegiado para a aprendizagem e a ampliação
da compreensão sobre as relações políticas e econômicas da realidade em que vivemos.
Consideremos o que asseverou Vigotski,
Até agora a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar, em rela-
ção ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da
criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas,
mas não se ensina a linguagem escrita ( VIGOTSKI, 1998, p.139).
122
de uma tecnologia, mas também o estímulo de relações coletivas na escola que façam Diversidade cultural,
alfabetização e
frente às teorias e práticas oriundas da sociedade dominante, de individualismo e mé- letramento
rito pessoal.
Neste sentido, destacamos o papel da formação e comprometimento dos profes-
sores com uma melhor e mais ampla aprendizagem das crianças. Essa formação com-
preende momentos de estudo em grupo, discussões, formulações, planejamentos, e
práticas transformadoras. Essas ações só se concretizam de forma adequada quando
assumidas por todos ou pela grande maioria dos profissionais que atuam em determi-
nada escola.
A escola, por sua vez, deverá oferecer condições adequadas de aprendizagem e
conscientização de todos. É papel do governo não apenas fazer o discurso em defesa
da boa educação, mas viabilizar as condições de trabalho, formação em serviço, mate-
riais didáticos diversificados e salários compatíveis.
Somado a isto, a opção por uma teoria demonstra o comprometimento da escola
e dos professores com a aprendizagem. Se a opção é por uma teoria revolucionária
como a teoria Histórico-Cultural, os procedimentos didáticos e os conteúdos selecio-
nados terão como objetivo que a criança, jovem ou adulto tenha acesso ao que há
de melhor em relação ao conhecimento produzido pela humanidade, possibilitando
tornarem-se seres humanos conhecedores, solidários, participativos e críticos, sendo
capazes de compreender, lutar e contribuir com a transformação deste mundo que
exclui para um mundo verdadeiramente humanizado.
Essa não é uma questão de fácil compreensão para nós professores, porque exige
um profundo esforço intelectual, estudos e mobilização em torno de questões relacio-
nadas ao conhecimento e sua democratização em uma sociedade de classes.
123
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Se optarmos pelas teorias culturais que predominam nas atuais políticas educacio-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO nais, nos PCNs e em grande parte do material pedagógico disseminado para as escolas
nas últimas décadas, acreditaremos que são os sentimentos de inferioridade das crian-
ças e o preconceito da escola que atrapalham sua aprendizagem.
Entretanto, se optarmos por uma teoria revolucionária que demonstra serem todos
os seres humanos capazes de aprender desde que a escola disponha de adequadas
condições de ensino e aprendizagem, compreenderemos que o ensino deve ser o
mesmo para todos, independentemente de sua condição econômico ou sociocultural.
Conforme Vigotski (2007),
[...] o ensino deve ser sistematizado de maneira que a leitura e escrita tornem-
se necessárias às crianças. Que tenha significado para as crianças e que repre-
sente uma necessidade a ser despertada, bem como incorporada a uma tarefa
imprescindível e relevante para a vida ( VIGOTSKI, 2007, p. 143).
Vigotski argumenta que uma criança de 4 anos pode aprender a ler, porém “[...]
a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida” ( VI-
GOTSKI, 2007, p. 144). Se assim não for, será uma atividade mecanicista e não repre-
sentará nenhum estímulo ao uso da leitura e escrita pela criança.
A diversidade (de ideias, opiniões, saberes, crenças, orientação sexual, etnias) será
considerada na medida em que todas as crianças forem ouvidas, estimuladas à parti-
cipação por meio de diferentes materiais de apoio como a literatura (universal, indí-
gena, afro etc.), obras de arte (telas significativas e plurais como são as de Tarsila do
Amaral, Candido Portinari, Vicent Van Gogh), poesias, músicas eruditas, ilustrações
trabalhadas por meio de atividades planejadas pelo conjunto de professores e suas
equipes pedagógicas.
Em sala de aula, as crianças organizadas, desafiadas e estimuladas por seus pro-
fessores, desenvolvem maneiras diferenciadas de participar das atividades: pensam,
argumentam, propõem, complementam ou modificam ideias, ampliam, copiam, rein-
ventam, criam..., desde que o ambiente de estudos e os materiais de apoio lhes pro-
piciem essas condições. Nesse processo, todas as crianças elaboram e reelaboram os
conhecimentos escolares, acrescentando-os aqueles que provêm de sua cultura.
A utilização de diferentes gêneros textuais e materiais de apoio já mencionados
favorecem um maior gosto pela escola e uma maior aprendizagem.
[...] no universo das salas de aula, há muitos fatores que dificultam o acesso das
crianças à leitura e à escrita mas os dados da avaliação indicam que é necessário
dar mais atenção a atividades de letramento, isto é, trabalhar desde muito cedo
com os diversos textos (e suas funções) que circulam socialmente, mesmo antes
de o aluno saber codificar e decodificar (CAFIERO; ROCHA, 2008, p. 75).
124
Esses procedimentos encantam e envolvem as crianças com a aprendizagem, e na Diversidade cultural,
alfabetização e
medida em que percebem que estão avançando nos estudos, aprendendo, se sentem letramento
2 As Terras Indígenas Ivaí e Faxinal, situadas no Paraná Central, respectivamente têm 1400 e
600 habitantes, falantes do kaingang como língua materna. A maior parte dos membros dessas
comunidades não tem renda fixa: vivem de roças comunitárias (cuja dimensão e qualidade da
terra não é suficiente para a subsistência de todos), algumas aposentadorias e da renda da ven-
da do artesanato. Os grupos indígenas que inicialmente recusavam a escola por ser esta uma
imposição do processo de colonização hoje a reivindicam por entender ser uma instituição por
meio da qual podem acessar novos conhecimentos de que necessitam na realidade à qual foram
submetidos para continuar sobrevivendo enquanto grupo diferenciado. Uma discussão porme-
norizada sobre essas questões encontra-se em Faustino (2006).
3 Nesse projeto participaram os professores doutores Lucio Tadeu Mota (Antropologia), Marta
Chaves (Pedagogia), Max Jean de Ornelas Toledo (Análises Clínicas), Mara Glacenir Lemes de
Medeiros (Meio Ambiente), Marcos Rafael Nanni (Agronomia).
125
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sistematização de materiais de apoio a serem utilizados.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO Todas as crianças da comunidade falam a língua kaingang como língua materna, e
quando pequenas (entre 4 e 10 anos) apresentam bastante dificuldade na língua por-
tuguesa oral e principalmente escrita. Para essas crianças indígenas, a aprendizagem
da leitura e escrita e o uso destas em diferentes contextos se apresentam com muita
dificuldade devido ao não domínio da língua oficial, o português na oralidade e ao
bilinguísmo utilizado nas escolas (método direto), que requer muito esforço de leitura
sem a assimilação dos conteúdos. Por praticarem muito pouco o português fora da
escola, nesta progridem lentamente.
No método bilingue, utilizado no ensino da língua materna nos primeiros anos da
escolarização, até que cheguem ao conhecimento da segunda língua as crianças apren-
dem a ler em sua língua materna, aprendendo o português na oralidade. As desvanta-
gens desse método consistem no fato de as crianças serem obrigadas a se alfabetizar nas
duas línguas, exigindo maior tempo e esforço, fator que explica a concentração maior
de crianças, com idades já avançadas, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, con-
forme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa – INEP (BRASIL, 2007, p. 20).
Como os povos indígenas representam grupos cuja organização sociocultural se dá
por meio da oralidade, a criança indígena chega à escola conhecendo pouco sobre a
função da escrita. As instituições educativas necessitam organizar seu ensino de forma
que a criança reflita sobre essa função para compreendê-la e da escrita poder se apro-
priar plenamente, desenvolvendo novas potencialidades intelectuais.
Considerados esses elementos, os professores Marlene e Adalton conversaram com
as crianças sobre o que fariam, explicaram como as atividades seriam desenvolvidas
e quais eram os objetivos do trabalho, dizendo, ao final que, “nossa turma poderá
contar, em um livro, como é feito o artesanato Kaingang e para que fazemos”. A
professora pediu que observassem o que precisa ter em um livro para que ele fique
bonito, possa ser lido e usado por outras crianças para estudar.
Organizados em grupos, receberam livros ilustrados, textos informativos, imagens
e materiais diversificados, previamente preparados. Passaram a conversar sobre o ar-
tesanato em sua comunidade. Das conversas, a professora solicitou que registrassem,
desenhassem escrevessem como é feito o artesanato, do começo ao fim.
Assim que as ideias iam surgindo, a professora ia estimulando a junção, ordenação
e organizando para dar-lhes uma característica de texto informativo. Mesmo aqueles
cujas famílias não praticavam o artesanato puderam, pelo que observavam no dia a dia
e pelos materiais de apoio que receberam, propor ordenações, seções que entrariam
ou não no livro, quais palavras seriam mais bem entendidas por aqueles que não co-
nhecem o artesanato e a cultura Kaingang.
126
Nos vários dias em que se envolveram com as atividades, os alunos puderam con- Diversidade cultural,
alfabetização e
versar com seus familiares e perguntar o que não sabiam. Saíram pela mata, na aldeia, letramento
com uma máquina fotográfica com o intuito de mostrar para a professora não-índia
onde se pode encontrar a matéria-prima (banbusa vulgaris), como ela é retirada, des-
crevendo em seguida todo o processo de preparo até que se torne um cesto ou balaio
que pode ser vendido nas cidades do entorno.
De volta à sala-de-aula, a professora solicitava que escrevessem coletivamente, da
forma como conseguissem, as informações necessárias para o livro. O professor indí-
gena auxiliava naquilo que as crianças não compreendiam e explicava em Kaingang a
organização do trabalho a ser desenvolvido.
Com o estímulo dos professores, contaram histórias, escreveram, desenharam, pin-
taram, organizavam as informações, os textos e as fotografias. Escolheram a capa (feita
em E.V.A. pintado e recortado em formato da principal peça do artesanato Kaingang,
o balaio grande).
127
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, No mesmo projeto, outras turmas, acompanhadas pela equipe pedagógica, desen-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO volveram atividades com o tema meio ambiente, saúde, remédios do mato, comidas
tradicionais e outros. Partiram de conversas iniciais relativas ao tema e aos materiais
de apoio que receberam de seus professores, coletaram informações na aldeia, em
jornais, livros e revistas, discutiram com os colegas, elaboraram textos, prepararam vi-
veiros com plantas medicinais, classificando, nominando e, ao final de cada atividade,
escrevendo um livreto, de dez a quinze páginas, em português ou Kaingang.
Os trabalhos realizados na Terra Indígena Faxinal foram organizados pelas pro-
fessoras, e em uma festa no dia do índio4 expostos e apresentados pelas crianças aos
familiares e comunidade em geral em uma sala de aula da escola.
Considerações finais
Discutiram-se as diferenças culturais no contexto econômico e social da atualidade,
afirmando-se que as diferenças culturais não podem ser consideradas com um entrave
para a aprendizagem e desenvolvimento de todas as crianças.
Os grupos culturalmente diferenciados e as crianças filhas de trabalhadores tiveram
historicamente e ainda têm menores oportunidades de acesso ao conhecimento e,
consequentemente, ao domínio das tecnologias criadas pela humanidade, de forma
que estão excluídas de participação cidadã.
Predominam nos meios acadêmicos as teorias conservadoras que afirmam que a
exclusão de um grande número de crianças está relacionada aos determinantes bioló-
gicos – são intelectualmente inferiores em relação às crianças brancas, provenientes
das classes dominantes – ou culturais, são originários de meios desorganizados que
não estimularam seu desenvolvimento espontâneo, afetando a aquisição de habilida-
des necessárias ao conhecimento escolar e, sendo discriminadas pelos professores
e colegas, desenvolvem um sentimento de inferioridade que interfere em toda sua
trajetória escolar.
Essas teorias são cientificamente falaciosas, porém extremamente convenientes,
fomentadas e utilizadas pelo Poder Público, responsável pelas políticas educacionais,
pois, considerando ser a solução para o problema da exclusão, um maior acolhimento
e respeito por parte dos professores basta na elaboração de currículos mais específicos
para que essas crianças aprendam.
As teorias derivadas do materialismo histórico, como é o caso da Teoria Histórico
Cultural de Vigotski, Luria, Leontiev e outros, evidenciam que as diferenças culturais
128
são históricas e não biológicas e que as crianças diferentes culturalmente têm maior di- Diversidade cultural,
alfabetização e
ficuldade de aprendizagem porque a escola a elas disponível na maior parte das vezes letramento
Referências
CALLINICOS, Alex. Capitalismo e racismo. Tradução de: Race and class. Londres:
Bookmarks, 1995. Disponível em: <http://socialista.tripod.com>. Acesso em: 20 de
março de 2008.
CASTANHEIRA, Maria Lucia; MACIEL, Francisca Izabel Pereira; MARTINS, Raquel Marcia
Fontes. Alfabetização e letramento na sala de aula. Belo Horizonte: Autentica; Ceale,
2008.
129
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, DELORS, Jacques (Org.). Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; Brasília:
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO MEC/Unesco, 1998.
______. Resultados do SAEB 2003: versão preliminar. Brasília, DF: INEP, 2004.
LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: ______. Antropologia estrutural II. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.
MUKHINA, Valeria. Psicologia na idade pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
130
Diversidade cultural,
alfabetização e
letramento
Proposta de Atividade
Indicações de Leitura
CASTANHEIRA, Maria Lucia; MACIEL, Francisca Izabel Pereira; MARTINS, Raquel Marcia
Fontes. Alfabetização e letramento na sala de aula. Belo Horizonte: Autentica; Ceale,
2008.
131
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
132
8 Práticas pedagógicas
de alfabetização e
letramento na escola
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas / Analete Regina Schelbauer /
Suely Harumi Fugimoto / Ângela Rita Bellincanta Hercos / Maria Araci Guazelli
Introdução
No encerramento deste livro voltado ao estudo e à reflexão de questões teórico-
práticas relacionadas aos processos de alfabetização e letramento, apresentamos um
capítulo redigido a dez mãos. Quatro delas pertencem a professoras do Departamento
de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de Maringá envolvidas em
atividades de ensino, pesquisa e extensão que primam pela formação de professores
alfabetizadores. As outras seis mãos são de professoras alfabetizadoras que, de longa
data, atuam profissionalmente em centros de educação infantil e escolas de Ensino
Fundamental, públicas e privadas, com o compromisso de melhorar a qualidade do
ensino, em especial da alfabetização e do letramento.
A partir dos resultados de estudos e pesquisas na área de alfabetização e letramento
e da experiência com a formação inicial e continuada de professores, somados ao tra-
balho desenvolvido por professoras alfabetizadoras, objetivamos refletir sobre, relatar
e propor práticas pedagógicas que envolvam situações de ensino e aprendizagem da
leitura e da escrita e seus usos sociais, tendo como pressuposto a grande frequência de
práticas pedagógicas que envolvem o nome próprio; as raras situações que envolvem o
trabalho com o texto poético – gênero textual exilado da escola –; e a importância do
desenho infantil para o processo de apropriação da leitura e da escrita.
133
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, e ganharam espaço em propostas pedagógicas oficiais. Para Ferreiro (1985), as letras
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO que compõem o nome constituem-se em um dos primeiros conteúdos presentes nas
tentativas de escritas realizadas por crianças em processo de alfabetização.
Todavia, podemos olhar essa prática amplamente consolidada seguindo princípios
da teoria histórico-cultural, porque nos permitem compreender que o trabalho com a
escrita do nome próprio é uma forma de antecipar situações que a criança só poderia
lidar a partir da apropriação do sistema de escrita. Explorar pedagogicamente a escrita
do nome próprio:
Para as crianças que estão imersas no mundo da escrita, significa atuar na zona
de desenvolvimento potencial, pois lhes é possível, mesmo antes de saberem
ler e escrever, e se mediadas pela professora, identificar a grafia de seu nome,
palavra dotada de significação social, e de outras pessoas importantes para elas
(colegas de turma, professora, mãe, pai), compará-los entre si e procurar as
semelhanças e as diferenças com outras palavras (LUCAS, 2008, p. 276).
Isto quer dizer que o nome próprio não pode ser considerado como uma palavra
a mais, no mesmo nível de tantas outras. Ele deve ser concebido como uma palavra
singular, diferente de outras em vários aspectos. Por um lado, a carga emocional vincu-
lada com a escrita do nome próprio não pode ser comparada com a de outras palavras.
O nome próprio escrito, ou até mesmo a sua assinatura, é parte da pessoa, de sua iden-
tidade. Por outro lado, “o nome constitui uma palavra-texto, com grau de significação
ímpar: nele está contida toda a história da criança” (PARANÁ, 1990, p. 41). É por isso
que as crianças, ao entrarem em contato de forma sistematizada com a escrita, mani-
festam a vontade de aprender a escrever o seu nome e, a partir de então, colocar a sua
marca em todo espaço possível – papel, caderno, parede, brinquedos, etc.
Dentre as práticas pedagógicas indicadas para o trabalho a partir do nome próprio
relatamos a desenvolvida por uma professora de pré-escola. Ela dispôs as crianças sen-
tadas em círculo e solicitou-lhes que dissessem o seu nome de várias maneiras: alto,
baixo, com voz grossa ou fina, cantando, sussurrando... Cada criança escolheu uma
forma para se apresentar. Para que todos se conheçam e possam se dirigir aos colegas
134
chamando-lhes pelo nome, sugerimos que essa prática seja repetida várias vezes, prin- Práticas pedagógicas
de alfabetização e
cipalmente no início do ano letivo. Essa prática é carregada de significado pelo fato de letramento na escola
que as crianças, de acordo com Sampaio (1993), quando chegam à escola já sabem que
têm um nome que pode ser oralmente exposto ao grupo.
Da oralidade, a professora partiu para a leitura de um cartaz contendo uma adi-
vinha – “modalidade de literatura popular que solicita ao ouvinte uma resposta cer-
teira para uma pergunta enigmática” (DEBUS, 2006). Convém que essa leitura esteja
acompanhada de explicações necessárias para que as crianças cheguem à resposta
esperada.
O QUE É, O QUE É?
QUANDO NASCI EU NÃO TINHA
ESCOLHERAM E ME DERAM
AGORA QUE ELE É MEU
USAM MAIS DO QUE EU.
Resposta: __________________________
135
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, 2) mostrar a assinatura do portador da carteira de identidade e explicar que ela é
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO uma maneira pessoal de escrever o nome próprio para identificação;
3) mostrar a impressão digital – outro recurso utilizado para identificar ou re-
conhecer uma pessoa – e explicar como ela é feita;
4) criar uma cédula de identidade para ser preenchida pelas crianças ou pelo
professor que pode, nessa situação, atuar como um escriba;
5) organizar um formulário para colher junto aos pais as informações necessá-
rias para preencher a carteira de identidade ou pesquisar nas certidões de
nascimento das crianças;
6) orientar as crianças a desenhar seu auto-retrato em um papel corresponden-
te ao tamanho de uma foto 3x4, recortar e colar na carteira de identidade;
7) propor às crianças que inventem uma assinatura e a reproduzam na carteira
de identidade;
8) carimbar a impressão digital de cada criança em sua carteira de identidade;
9) plastificar as carteiras de identidade confeccionadas com papel adesivo trans-
parente ou guardar em saquinhos de plástico individuais para aumentar o
tempo de uso do documento;
10) brincar criando várias situações nas quais as crianças precisem identificar-
se por meio do documento reproduzido, tais como: exigir que mostrem a
carteira de identidade para entrar em um ônibus ou trem feito com as cadei-
ras da sala de aula; procurar o seu nome em uma listagem de passageiros;
esconder uma das carteiras de identidade para que as crianças descubram,
por meio da leitura do nome próprio, de quem é aquele documento.
136
linguagem oral, a qual, por sua vez, simboliza objetos, ações, fenômenos reais. Há, Práticas pedagógicas
de alfabetização e
nesse momento inicial de aprendizagem, uma relação entre a linguagem oral e a letramento na escola
137
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, terceira. No dia seguinte, solicitou às crianças, uma de cada vez, que circulassem no
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO cartaz, utilizando caneta hidrográfica, a primeira (ou segunda, ou terceira) letra do
seu nome. A partir de então, a professora conversou com as crianças a respeito: da
quantidade de letras marcadas; de quais letras foram circuladas; de quantas letras
foram necessárias para registrar cada nome da turma. Para encerrar a discussão do
dia, ela solicitou às crianças que escrevessem seus nomes ao redor do cartaz como
forma de ilustrar a resposta da adivinha.
Para que não se esquecessem da adivinha e, especialmente, de sua resposta,
propôs às crianças que a copiassem no caderno. Salientamos que a cópia nessas
circunstâncias é um ato significativo, porque costumamos recorrer a essa forma
de registro quando não podemos ou queremos esquecer algo, isto é, utilizamos a
escrita como recurso mnemônico (LURIA, 2006), sendo esta uma das finalidades
da escrita. O mesmo trabalho proposto para que fosse realizado coletivamente (no
cartaz) pode, agora, ser efetivado individualmente (no caderno): circular no texto
a letra inicial do nome próprio; passar lápis de cor sobre todas as letras que o
compõem.
O trabalho com os nomes próprios, além de possibilitar às crianças pensar sobre
algumas funções da linguagem escrita, permite estabilizar a sua grafia, tornando-os
palavras estáveis. Assim, os nomes próprios tornam-se “[...] palavras que as crianças
são capazes de escrever e ler antes mesmo de dominarem a base alfabética, dando
a impressão aos mais desavisados de que já são capazes de ler e escrever conven-
cionalmente qualquer coisa” (CAVALCANTI, 1997, p. 57).
O mais importante é que o conjunto dos nomes de uma turma se constitui
em um repertório comum de palavras conhecidas que, ao se tornarem estáveis,
podem servir de fonte de informação para o registro de outras palavras e de con-
fronto entre a sua escrita e a convencional, permitindo, por meio da intervenção
do professor, compreender o funcionamento de nosso sistema de escrita. Vejamos
abaixo uma atividade realizada por uma aluna de pré III1 de um centro de educação
infantil público, por meio da qual a professora pretendia que a escrita do nome se
tornasse estável.
1 Os alunos que frequentavam o Pré III, no momento em que este trabalho foi desenvolvido,
anterior à implantação do Ensino Fundamental de 9 anos, completavam seis anos de idade ao
longo do ano letivo.
138
Práticas pedagógicas
de alfabetização e
letramento na escola
139
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Tomando novamente um texto como ponto de partida para promover a alfabeti-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO zação e o letramento, relatamos a seguir o trabalho realizado por uma professora a
partir da exploração da letra de uma cantiga, para dar continuidade ao trabalho com
os nomes das crianças e objetivando estabilizar a grafia dessas palavras.
SE EU FOSSE UM PEIXINHO
E SOUBESSE NADAR,
TIRAVA O _____________________________
DO FUNDO DO MAR.
140
escrita, estimulando o processo de alfabetização e enriquecendo o de letramento. Práticas pedagógicas
de alfabetização e
Além disso, o trabalho com nomes próprios: oportuniza uma aprendizagem próxima letramento na escola
aos alunos, particular a cada turma, ligando o ensino a vivências realmente significati-
vas; possibilita que as crianças, ao comparar o registro de seus nomes com o de outras
palavras, busquem semelhanças e diferenças, transformando o processo de apreensão
do sistema de escrita em uma gostosa brincadeira.
Convite
José Paulo Paes
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio e pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
2 A respeito desse assunto, leia o Capítulo 7 do livro: A leitura de poesia na escola. Série For-
mação de Professores EAD nº 19.
141
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, base a linguagem verbal, porém utiliza recursos pictográficos. Essa orientação coaduna
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO com uma das implicações pedagógicas apresentadas por Vigostki (2000) ao explicar a
gênese da linguagem escrita na criança. Para ele, o desenho é uma linguagem gráfica
peculiar, uma etapa prévia da linguagem escrita. Para dar o passo mais importante em
direção à linguagem escrita, a criança
[...] deve compreender que não se pode apenas desenhar as coisas, mas tam-
bém a fala. Foi essa descoberta que levou a humanidade ao genial método da
escrita por letras e palavras, e essa mesma descoberta leva a criança a escrever
as letras. Do ponto de vista psicológico este fato equivale a passar do desenho
de objetos ao das palavras ( VYGOTSKI, 2000, p. 197).
3 Compreende um conjunto de cartões de cartolina com letras impressas que facilita a realiza-
ção de tentativas de escritas, pois permite que as crianças, de forma prazerosa, manipulem os
cartões, visualizando trocas, retiradas e inserções de letras.
142
poema representado no desenho. O relato dessa experiência, ainda que breve, eviden- Práticas pedagógicas
de alfabetização e
cia a relação de indissociabilidade e interdependência que há entre os processos de letramento na escola
Elas têm que saber que esses textos foram escritos por pessoas (autoras e au-
tores) e que nos explicam fatos que ocorrem no mundo, que refletem os sen-
timentos de seres humanos de uma maneira bonita, que quando os ouvimos
soam bem, são musicais (PAUSAS, 2004, p. 255).
Para dar sequência a essa prática pedagógica, a professora registrou esses pequenos
versos na lousa, evidenciando para as crianças as semelhanças e diferenças entre as
grafias das palavras. A seguir, trouxe um exemplo de duas palavras que rimam porque
terminam com o fonema /ã/:
RENAN
MAÇÃ
143
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, apenas de relações biunívocas (para cada fonema um grafema e vice-versa). Há também
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO as relações cruzadas que admitem mais de uma representação gráfica para uma unidade
sonora e uma unidade gráfica para mais de uma unidade sonora (FARACO, 1992).
É necessário ainda acrescentar, na situação anteriormente relatada, a existência
de palavras que têm o mesmo fonema, cujo registro é feito de forma diferente das já
apresentadas. É o caso, por exemplo, das palavras SAMBA e TAMPA. Há ainda situações
nas quais a letra N pertence à sílaba seguinte, mas nasalisa a vogal da sílaba anterior.
É o que ocorre com as palavras MARIANA e BANANA, presentes nos versos elaborados
pelas crianças.
MA RI A NA
BA NA NA
144
Práticas pedagógicas
M A Ç Â
de alfabetização e
B A N A N A letramento na escola
B A R C O
C A Q U I
C A R N E
J A N E L A
N A V I O
145
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sobre algum tema ou assunto estudado; memorizar informações importantes; relacio-
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO nar informações presentes em diferentes textos; propor outras atividades, tais como
dramatização, desenho, pintura, entre outras (ZAPPONE, 2005).
O “Cantinho da Poesia” era enriquecido, diariamente, com novas poesias, novas
rimas que as crianças traziam de suas casas. Elas se sentiram estimuladas a trazer esses
textos, porque a professora havia combinado que todos os dias, no início da aula, leria
uma poesia. Esse momento foi intitulado “Hora de Poetizar”. Entre as muitas poesias
lidas pela professora uma das que as crianças mais gostaram foi “Meu desenho”, de
autoria de Pedro Bandeira (1994).
Meu desenho
Pedro Bandeira
Nesse poema, o autor trabalha com a ludicidade partindo de uma ação corriqueira,
presente no ambiente doméstico e escolar e muito apreciada pelas crianças: o desenhar.
A partir de algo comum, Pedro Bandeira provoca encantamento, em crianças e adultos,
pelas coisas simples do mundo. É por isso que este autor faz parte de um grupo seleto
de poetas de rara sensibilidade, assim definidos por Abramovich (1997, p. 67):
Além de promover a fruição que estimula as crianças a gostarem desse gênero tex-
tual, podemos, segundo Pausas (2004), aproveitar esse rico recurso para incentivar as
crianças a pensarem sobre o sistema de escrita: escrevendo os títulos dos poemas lidos
para as crianças, buscando palavras nos textos das canções ou dos poemas, mudando
algumas palavras por outras semelhantes e que também rimem, registrando peque-
nos poemas no caderno. Podemos, inclusive, propor-lhes que os ilustrem, como fez a
criança que, ao representar o poema “Meu desenho”, desenhou um passarinho voan-
do em direção a um ninho, o qual não aparece no desenho, oferecendo-nos indícios
de que, ao interpretar o texto, extrapolou sua literalidade.
146
Sem descuidar da sistematização imprescindível para que as crianças compreendam Práticas pedagógicas
de alfabetização e
o sistema de escrita e aprendam a ler e escrever, a professora solicitou que as crianças letramento na escola
MEU DESENHO
PEDRO BANDEIRA
PALAVRAS IGUAIS PALAVRAS DIFERENTES
LÁPIS COM
COR FICOU
PASSARINHO VOOU
NINHO PERFEITO
As crianças cada vez mais se apaixonavam por textos poéticos. Com o envolvimento
das famílias, em pouco tempo “o nosso cantinho ficou pequeno para abrigar tanta
atividade poética”, disse a professora. Não havia mais espaço para guardar e expor as
produções das crianças, as quais se sentiram diante de um impasse: elas não queriam
trocar os trabalhos que estavam no Cantinho da Poesia por outros que chegavam se-
manalmente. Foi então que uma criança sugeriu a colocação de um varal embaixo da
lousa, no qual as poesias poderiam ser penduras com pregadores de roupa, o que
permitiria trocá-las semanalmente. Foi dessa ideia que surgiu o “Varal da Poesia”.
Não demorou muito e as crianças começaram a musicalizar os poemas que mais
gostavam, a experimentar novas rimas e, com a intervenção da professora, a refletir
147
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, sobre o sistema de escrita, criando novas poesias. Naquele momento, foi necessário
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO fazer algumas explicações às crianças a respeito da escrita de poemas.
O trabalho foi tão intenso que no final do ano a professora e as crianças resolveram
fazer um livro com as poesias escritas pelo grupo. O livro intitulado “Poetizar” conti-
nha poemas escritos pelas crianças selecionados por elas e pelos pais.
E assim, lendo os poemas afixados nas paredes, janelas, quadros e varal, pensando
sobre a escrita das palavras mais significativas de cada poema, comparando-as com
outras palavras e, inclusive, com os seus nomes próprios, a cada dia as crianças avan-
çavam no processo de aprendizagem da leitura e da escrita e de seus usos sociais,
conta-nos a professora. Em seu depoimento, ela mostrou-nos que é possível, conco-
mitantemente, “reavivar e trazer para as crianças pequenas essa atmosfera rítmica e
sonora do poético”, como salienta Debus (2006), e transformar a sala de aula em um
ambiente que favorece a aprendizagem da leitura e a escrita e de seus usos sociais de
forma significativa e prazerosa.
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Considerações finais Práticas pedagógicas
de alfabetização e
A partir do relato de algumas práticas pedagógicas e de sugestões de outras, rela- letramento na escola
Referências
BANDEIRA, Pedro. Por enquanto sou pequeno. São Paulo: Moderna, 1994.
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, FARACO, Carlos Alberto. Escrita e alfabetização. São Paulo: Contexto, 1992.
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
PAES, José Paulo. Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 1990.
PEREZ, Carmen Lúcia Vidal. Com lápis de cor e varinha de condão... um processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Revisitando a
pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993. p. 78-107.
VYGOTSKI, Lev Semiónovich. La prehistoria del desarollo del lenguaje escrito. In:
VYGOTSKI, Lev Semióvich. Obras escogidas III. Madrid: Centro de Publicaciones
del M.E.C.; Visor Distribuiciones, 2000. p. 183-206.
150
ZAPONE, Mirian Hirase Yaegashi. A leitura de poesia na escola. In: MENEGASSI, Práticas pedagógicas
de alfabetização e
Renilson José. Leitura e ensino. Maringá, Eduem, 2005. letramento na escola
Proposta de Atividade
1) A partir das experiências relatadas e das sugestões de trabalho apresentadas neste capítu-
lo, organize uma ação pedagógica que vise aos processos de alfabetização e letramento,
envolvendo os nomes de seus alunos ou um texto poético. Elabore no mínimo três inter-
venções, descreva-as minuciosamente e as justifique teoricamente. Lembre-se de que é
necessário que a prática pedagógica que vise aos processos de alfabetização e letramento
seja dotada de sistematicidade e intencionalidade. Então,a cuide para que ela:
• seja significativa para as crianças;
• prime pelo aspecto lúdico;
• permita que as crianças “brinquem” com as palavras, buscando semelhanças e diferen-
ças entre elas;
• promova contato efetivo com a linguagem escrita.
Indicações de Leitura:
PEREZ, Carmen Lúcia Vidal. Com lápis de cor e varinha de condão... um processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Revisitando a
pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993. p. 78-107.
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS,
ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
Anotações
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