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VOLUME

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FRANCISCO DORATIOTOO BRASIL NO MUNDO
LI LIA MORITZ SCHWARCZ
GUSTAVO H. B. FRANCO E LUIZ ARANHA CORRÊA DO
LAGO O PROCESSO ECONÔMICO

ELIAS THOMÉ SALlBA CULTURA


A ABERTURA PARA O MUNDO

18 1922
INTRODUÇÃO
Centenário da Independência.
Semana de Arte Moderna (em São Paulo).
LlLIA MORITZ SCHWARCZ
10 de março AS MARCAS DO PERíODO
É eleito Arthur Bernardes.

5 de julho
Sublevação do Forte de Copacabana e da Escola Militar.

1924

Início do movimento revolucionário em São Paulo.


Início da "Coluna Prestes".
Revolta do Encouraçado em São Paulo.
"SÓ UM NOME, MUITO MAIS QUE UM NOME"

1925
A virada do século XIX para o XX apresentou, no Brasil, características tão
Confronto entre Coluna Prestes e tropas federais. Avanço da Coluna. dramáticas quanto decisivas para o destino futuro do país. Em maio de
1888, era tardiamente abolida a escravidão, uma vez que fomos a última
1926 nação do Ocidente a dar fim a esse tipo de sistema de trabalho compulsó-
rio e violento - ainda depois dos Estados Unidos (1865) e de Cuba (1886).
Posse de Washington Luiz na presidência.
Um ano e meio após a Abolição caía a Monarquia, por demais vinculada à
escravidão e, ao final, isolada entre as demais forças políticas.
1927
O cenário que então se abriu era propício a todo tipo de utopia e proje-
A cidade do Rio de Janeiro ganha o seu primeiro plano de ção. A República surgiu alardeando promessas de igualdade e de cidadania
remodelação: o Plano Agache. - uma modernidade que se impunha menos como opção e mais como
etapa obrigatória e incontornável. O grande modelo civilizatório seria a
1930 França, com seus circuitos literários, cafés, teatros e uma sociabilidade
urbana almejada em outras sociedades.
Eleições presidenciais com a vitória de Júlio Prestes.
Todo o panorama otimista que antecedeu à República lembra o fenô-
26 de julho meno que Hanna Arendt chamou de "a era da assimilação", quando dife-
Assassinato de João Pessoa no Recife. rentes regiões do mundo - com a experiência moderna da emancipação
e da assimilação, que teve início já no contexto da Revolução Francesa -
3 de novembro
experimentaram uma espécie de suspensão das restrições de fundo legal,
Getúlio Vargas recebe o poder de junta governativa.
moral, político e social, tradicionalmente vigentes. Tal situação levou a
um sentimento bastante generalizado de que era possível "erguer-se da
escravidão", "sair do gueto", liberar-se do isolamento e acreditar na pro-
messa da inclusão e da mobilidade ascendente. Essa parecia ser uma nova
era em que, findas as formas de trabalho escravo e mandatório, e abertas
(por meio da educação) as possibilidades de acesso à cidadania e às novas
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racial- nova moeda corrente. Como mostra o antropólogo Louis Dumont, 21


o racismo emergiu em finais do XIX, justamente num mundo em que a
percepção hierárquica das classes cedeu lugar a um ideário mais iguali-
tário. Tratou-se, pois, de uma grande reversão de expectativas, diante de
um contexto que parecia até então se apresentar como um livro aberto, a
oferecer uma miríade de possibilidades de inserção e identificação com
uma ordem social consolidada em classes e com a crença internacional
de que a cultura e a educação eram o principal veículo para a abolição das
travas da escravidão e demais processos de servidão compulsória.
Indivíduos outrora excluídos, por conta da cor ou origem, passaram
a ter acesso a diferentes instituições de consagração e a galgar posições
elevadas na hierarquia política do Império. Tudo parecia sinalizar para
uma integração sem obstáculos e barreiras intransponíveis. Contudo, tal
abertura social- experimentada no Brasil no final do século XIX, mas não
apenas - seria freada por novos critérios de alteridade racial, religiosa, étni-
ca, geográfica e sexual. Marcadores sociais de diferença dos mais vigorosos,
porque condicionados por realidades e hierarquias sociais, mas moldados
por critérios considerados racionais e objetivos - porque biológicos -, fa-
ziam agora grande sucesso. Um novo racismo científico, que acionava uma
Antônio Luís Ferreira pletora de sinais fisicos para definir a inferioridade e a falta de civilização,
Vista geral da missa campal realizada no Campo assim como estabelecer uma ligação obrigatória entre aspectos "externos"
de São Cristóvão para comemorar a Abolição e "internos" dos homens. Narizes, bocas, orelhas, cor de pele, tatuagens,
A Abolição foi ao mesmo tempo o último e o mais popular dos atos da Monarquia. expressões faciais e uma série de "indícios" foram rapidamente transforma-
A medida tardou e o Império pagaria caro por isso.
dos em "estigmas" definidores da criminalidade e da loucura. O resultado
ALBÚMEN. 51.5 X 28.7 CM. RIO DE JANEIRO. 17 DE MAIO DE 1888
foi a condenação generalizada de largos setores da sociedade, como negros,
COLEÇÃO DOM PEDRO DE ORLEANS E BRAGANÇA.
ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES. RIO DE JANEIRO
mestiços e também imigrantes, sob o guarda-chuva seguro da biologia.
Como mostra Maria Alice Rezende de Carvalho, numa época em que
as principais cidades brasileiras passavam a anunciar novos repertórios
acerca da vida em sociedade, em que se convenciam acerca do imperativo
formas de inclusão, imaginou-se um novo mundo, não mais cerceado por do progresso e da integração do Brasil a um Ocidente, expressaram-se mo-
modelos de hierarquia social estrita, ou vinculados a critérios de origem vimentos opostos, repletos de "deslumbramento", mas também "pavor".
ou nascimento. Deslumbramento diante das novas benesses das cidades e possibilidades de
Esse cenário seria, porém, convulsionado pela entrada dos racismos e participação; pavor. em face do desmoronamento da ordem reconhecida ou
das teorias raciais de toda ordem, que impuseram novas divisões entre os das novas formas de segregação. Nas novas urbes, mais do que as quimeras
grupos humanos, agora justificadas por argumentos e teorias biológicas. O fáceis do progresso'único e obrigatório, impunha-se agora uma acomodação
resultado foi, na expressão de Leo Spitzer, em seu livro Vidas de entremeio, um incômoda entre o passado e o futuro, o novo e o velho, "o mundo do asfalto
novo "embaraço da marginalização". Em vez da trajetória assimilacionista e os bolsões da miséria" (Carvalho, 1994:16-17, 27). Diferente da suposta
que se apresentava como estrada de percurso longo, mas possível, houve marcha evolutiva, única e mandatória, ocorreu uma sobreposição de tem-
a retomada de um projeto hierárquico, agora pautado na diferenciação poralidades e a afirmação de uma modernidade periférica. Diante de um
AS MARCAS DO PERÍODO

A ABERTURA PARA O MUNDO

22 republicanismo radical- que se manifestou nomeadamente na primeira


década do século -, de uma faxina social nas cidades e da evidência de
novas formas de exclusão, eclodiram várias revoltas e manifestações de
cunho popular, as quais, cada uma à sua maneira, denunciavam as falácias
desse processo que prometia a "civilização fácil".
Dessa maneira, no Brasil, o conceito de modernização combinou-se com
o de tradição. Se, de um lado, os engenheiros converteram-se em símbolos
máximos da modernidade, de outro, práticas rituais legadas dos tempos da
escravidão insistiam em dividir os mesmos espaços dessa urbanidade recém-
-inaugurada. Talvez por isso o movimento foi, ao mesmo tempo, de acomo-
dação e de transformação das grandes capitais nacionais, traduzidas em
cartões-postais brilhantes dessa nova era anunciada pela iluminação elétrica.
Mas havia algo de incômodo e dificil nesse novo aglomerado ético
que reunia urbanidade, progresso e industrialização. Estava em curso
um processo inédito, que implicava acelerada transformação do espaço
urbano e sua eleição como novo lócus das representações, a despeito dessa
modernização não alcançar de modo homogêneo todo o país. Ao mesmo
tempo, uma série de intelectuais anotava tais mudanças com grande des-
confiança e ceticismo, aliando-se aos excluídos. O dissenso estaria presente
também nos jornais, na literatura, que apontavam para as novas estrati-
ficações urbanas e para a formação de grupos outrora integrados ou não
evidentemente isolados: gaúchos, afro-brasileiros, sertanejos, seringueiros,
indígenas da floresta. A cidade surgia assim reformada - de forma fisica
e moral-, ao mesmo tempo que se tornava mais corriqueiro questionar
a existência de uma só via que levaria à civilização. Palco do conflito, a
cidade era agora personificada pelas assim chamadas "camadas perigo-
sas", pelo movimento de reação "dos de baixo", ou ainda "pelo barulho e
mobilização das multidões". Esse tipo de interpretação, como bem mostra
a historiadora Angela de Castro Gomes, correspondia à visão das elites
dirigentes, que percebiam tais movimentos como "hordas anárquicas"-
como se não passassem de manifestações "espontâneas e violentas" -, Augusto Malta
sem notar que eram antes associações dos mais variados tipos, que agiam Avenida Central, atual Rio Branco, Rio de Janeiro
de maneira ordenada, a partir de abaixo-assinados, campanhas públicas Em 1" de janeiro de 1906 f~ram inaugurados, de ponta a ponta da avenida Centra~, postes. com ilumín~ção
e protestos organizados. ,' , bolos da modernidade e do progresso. A nova avenida, com seUS predlOs, lOjas e populaçao
e1etnca, Sllll r b '1'
O fato é que no final do século XIX, e a partir de tantas novidades elegantes, seria um dos grandes emblemas da nova Repúb Ica rasl eIra.
FOTOGRAFIA, 19 06
ofertadas por esse momento de mudanças velozes, reordenava-se a velha
tópica do "paraíso terreal", da "terra sem males", dos "trópicos plácidos"; ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES, RIO DE JANEIRO

ideário que inundou a imaginação local e, sobretudo, dos estrangeiros


durante tanto tempo. Um país de muitas raças convivendo em situação de
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24 conflito social, moral e político; uma nação dividida por tantas diferenças Entretanto, outros motivos explicam a designação República Velha e, 25
regionais e raciais, eis aí novas polarizações que se enraizavam no discurso sobretudo, a persistência da expressão. Razões de cunho político e social
local. De um lado, a cidade, definida pela indústria, pelas oportunidades existiram, e talvez seja por isso que a alcunha se enraizou. Afinal, esse foi
de trabalho, pelo mercado, mas também por uma política de exclusão e um contexto em que as práticas coletivas de higienização e de aplicação do
de distanciamentos. De outro lado, os "demais Brasis", perdidos nos ser- determinismo racial levaram a políticas de exclusivismo e de isolamento
tões, longínquos na realidade e na imaginação, ou nas florestas fechadas. social, largamente denunciadas pelos testemunhos de época. Finda a es-
Aí estavam "dois Brasis" que eram na verdade um só, mas a conviver de cravidão, novas modalidades de hierarquia se estabeleceram, sendo a raça
maneira ambivalente e conflituosa. Talvez por isso, o período largo desse e a biologia bússolas a orientar a "nova civilização".
volume tenha ficado conhecido, durante tanto tempo, como República Além do mais, largas parcelas dessa sociedade, definitivamente mesti-
Velha e não como República Nova, Jovem República, ou simplesmente çada, experimentaram nesse momento um processo de queda social, uma
República. E o termo "velha" carrega aqui mais adjetivações do que uma espécie de "intimidação social", diante da realidade que se abria, pós-escra-
primeira leitura, mais ingênua, possa prever. vidão. Muitas famílias que há muito tinham se separado das amarras do
Muitas razões cercam a adoção costumeira de um nome, que não pode cativeiro viram-se, por motivos econômicos, sociais e morais, presas a um
ser exclusivamente atribuída a um descuido ou descaso da historiografia. processo de rebaixamento. Indivíduos que receberam educação esmerada
Para começar, não seria a primeira vez que um novo momento atribuiu a si em finais do XIX, e que se distinguiram por sua erudição e especialização,
mesmo os méritos da "novidade" e jogou para outro período a designação viram suas pretensões ruírem, sendo integrados a essa nova massa que
de velho e ultrapassado. É o caso da Revolução de 1930 e do Estado que agora ganhava a cidadania e a condição ampla de "libertos". Esse perigo a
então se montou, prontamente designado como "Novo" - Estado Novo. que se viam expostas famílias cada vez mais remediadas, de um processo
Segundo essa visão, caberia unicamente ao governo de Getúlio Vargas de achatamento social que as convertia em classes médias destituídas e
o estabelecimento de uma verdadeira res-publica e a introdução de uma moradoras dos subúrbios das cidades, tornava-se rapidamente realidade.
realidade social, moral e política deveras moderna. Mas, no período que Muitos não toleravam ser confundidos e misturados com negros e mulatos
vai de 1900 a 1930, estouraram muitos conflitos e não foram poucos os recém-saídos da escravidão. Outros constituíram novos laços de solidarie-
movimentos autoritários que procuraram assegurar o novo regime na dade e se dissociaram da imagem de libertos, termo forte, que reacendia
marra - na base delmuita eugenia e estado de sítio -, e igualmente não sempre a imagem da escravidão, a qual, pretensamente distante, insistia em
se desconhece o processo de institucionalização jurídica, legal e estatal por se reapresentar. Na verdade, a abolição "aboliu" um complexo sistema de
que passou a Primeira República. Resta entender por que o nome "pegou". mecanismos sociais de distinção, próprios e necessários em uma sociedade
Dizem os historiadores franceses que a pecha que recaiu sobre a Idade de tipo estamental cuja diferenciação era dada pelo nascimento. Durante o
Média, como o tempo "das Trevas", nada tem a ver com esse momento em Império, e pela própria natureza do regime escravocrata, previa-se a mobi-
particular, ou seu suposto fechamento e "mau tempo" (político e social). lidade social e, no limite, a alforria, o que significa dizer que a escravidão
Ao contrário, para além das cruzadas, da peste, da fome, do isolamento, e possibilitava, por vezes, a mobilidade individual, mas não a social, ou em
passados os primeiros momentos, o período foi de grandes e "luminosas" maior escala. Ora, com a República e a entrada em vigor de uma ordem
produções sociais, culturais e artísticas, expressas, como diria Georges social em mudança, e que passou a classificar os cidadãos com base em cri-
Duby, nesse "tempo das catedrais". Foi a Renascença que definiu a si térios raciais, a instabilidade da posição desses grupos tomou-se evidente,
mesma como um novo nascimento (do nada) e condenou a Idade Média e, ademais, tão ameaçadora quanto embaraçosa. Afinal, antigos privilégios
às trevas e ao escurecimento, assim como o Iluminismo, em pleno século e distinções mais próprios do Antigo Regime foram transformados em
XVIII, chamou para si as luzes e tratou de fazer pouco dos períodos que tábula rasa nesse mundo de cidadãos desempatados por critérios raciais.
lhe antecederam. Novos momentos tendem, pois, a ver o passado a partir N~sse contexto, havia também o medo da reescravização ou de novos
de lentes de curto alcance que o deformam, reduzem e selecionam, tendo trabalhos compulsórios. Por outro lado, a instabilidade política dos pri-
um ponto de vista destacado: o seu. meiros anos republicanos gerava temor e saudades da Monarquia. Não de
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AS MARCAS DO PERÍODO

26 à princesa o mérito da "glória concedida". É nessa perspectiva que pode- 27


mos entender movimentos como a Guarda Negra (grande defensora da
realeza contra as manifestações republicanas), assim como as inúmeras
demonstrações de simpatia e afinidade para com o regime monárquico. Na
medida em que a libertação não foi assumida como ato político e devedor
da própria organização do grupo, o corolário foi admitir fidelidade para
aqueles considerados "os donos do ato". Criava-se assim uma monarquia
sagrada, um rei e uma princesa imaginários - muito longe do sistema
real-, distantes do aspecto "terreno" dos nossos primeiros representantes
republicanos, destituídos de carisma ou aceitação popular.
Portanto, são ambivalentes as compreensões e recepções da República,
sobretudo em seus primeiros anos. E a grita foi geral. Dizia-se que essa era
a "República que não foi", temiam-se novas escravizações, assim como se
lamentava que a promessa de inclusão social tivesse resultado na mais
absoluta exclusão.
Mas é de bom-tom e alvitre manter distância das falas sempre assertivas
das testemunhas e dos agentes de época, que em sua maior parte se limi-
taram a denunciar as arbitrariedades dessa nova ordem de Estado. Se tudo
Vincenzo Pastore isso é fato, é igualmente verdade que foi com o novo regime que se forjou
Mulheres negras sentadas em banco de praça não identijicada em São Paulo um processo claro de republicanização de nossos costumes e instituições. É
Diferentes temporaJidades conviviam nesse contexto: a rapidez da
nesse momento que os diferentes poderes tomaram forma definida, que se
urbanização e os costumes herdados de tempos de outrora
ensaiaram novos processos eleitorais (a despeito de serem ainda muito mar-
GELATINA/PRATA, CA. 1910
cados pela fraude) e que se rascunharam os primeiros passos no sentido de
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se constituir uma sociedade cidadã com modelos inaugurais de participação.
O processo, como veremos, será cheio de recuos, entraves e ambigui-
dades. Afinal, a tradição se inscrevia em meio à modernidade e o novo se
confundia com o velho. E é junto a esse caldo de paradoxos e conflitos que
uma monarquia concreta, mas daquela que, agora, vista ao longe, lembrava se movem os diferentes capítulos e autores que fazem párte desse terceiro
segurança e calma, e era prontamente transformada em mítica. Por aí se volume ela coleção História do Brasil Nação. Assim como o contexto é diverso,
explicam projeções que atribuíram à princesa Isabel, nominalmente, o final os vários textos, a despeito de cobrirem dimensões variadas e coincidirem
do regime escravocrata e o beneplácito da Abolição. Se parte da população em vários pontos, apresentam interpretações por vezes distintas - o que
entendeu a Abolição como um processo verdadeiramente revolucionário, só destaca a importância da pesquisa historiográfica que se faz em diálogo.
que trouxe a possibilidade de desenhar um futuro mais democrático e in- Limpamos repetições, mas não ruídos próprios à interpretação de cada autor.
clusivo, por outro, ela foi percebida como "dádiva", benesse, e não como o No capítulo 1, por mim redigido, sobre "População e sociedade", vão
resultado de luta e conflito. O antropólogo Marcel Mauss, em seu "Ensaio se delineando essas comunidades que aos poucos ganharam uma face mar-
sobre o dom", mostrou que faz parte da dádiva a obrigação de devolver. Isto cadamente urbana, com seu novo formato institucional e social. Esse é o
é, aquele que recebe um presente se sente compelido a retribuí-lo - isso contexto das grandes imigrações, primeiro europeias e depois asiáticas;
quando não se estabelecem graus de gratidão e de subserviência. Ora, feita os imigrantes chegavam ao Brasil com o sonho da pequena propriedade.
a Abolição, boa parte da população recém-liberta atribuiu à monarquia e Em sua maior parte, esse contingente populacional se dirigia a São Paulo,
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28 imantado pelas projeções de fortuna fácil, logradas nas fazendas de café: o dando ensejo a um fenômeno conhecido como "política do café com leite", 29
"ouro negro" dos trópicos. O resultado era muitas vezes desastroso, já que uma vez que nessas regiões se concentravam, respectivamente, os prin-
a dívida passaria a fazer parte do cotidiano desses imigrantes que, numa cipais produtores de café (São Paulo) e leite (Minas Gerais) do país. Daí
primeira fase, se afundavam em meio às despesas e às dificuldades de ordem advém a máxima de época, hoje bastante questionada pela historiografia,
econômica, social e cultural. A imigração se estenderia também para outras de que o Brasil fora governado como uma grande fazenda e que as decisões
regiões do país e mudaria a feição local, os dialetos, a culinária e os costumes. econômicas, mas também políticas e quiçá sociais, seguiram sempre uma
Urbanidade, industrialização e imigração constituíam apenas uma mesma lógica. Com isso não se pretendeu dizer, porém, que a política seria
das faces desse largo Brasil, igualmente condicionado por seus "sertões", só e exclusivamente oligárquica. Ao contrário, Hebe mostra a relevância
pouco conhecidos. Ao lado das novas urbes, persistia uma feição isolada dos estados menores e das brechas deixadas pela rotinização da política.
e esquecida do país, que desnudava o dissenso e a falta de um projeto Já Francisco Doratioto, autor da parte 3, sobre relações internacionais,
único que combinasse modernidade e progresso. Aí estava uma "moderna destaca a importância dos anos que marcaram a Primeira República para
periferia da periferia" que, de alguma maneira, punha em risco o espelho a afirmação da soberania e da autonomia do país, a formação de mercados
luminoso das novas cidades. Mas mesmo por lá, nas cidades, a orquestração consumidores no estrangeiro, assim como a relevância da política que
andava desafinada. Esse é o momento em que ocorrem as primeiras greves fomentou a entrada de mão de obra imigrante em massa.
operárias, sobretudo em São Paulo, encenadas e lideradas por imigrantes e Na política externa, dois aspectos se destacaram, sobretudo quando
nacionais. A rua se afirma como espaço do povo - esse novo agente social, comparados a antigas modalidades imperiais. Em primeiro lugar, ensejou-
que irrompe na agenda dos estadistas republicanos. -se uma política de não intervenção na América Latina. O lema "somos
Esse ambiente é marcado por revoltas e greves, que Hebe Mattos captu- da América e queremos ser americanos" ganhou lugar diante do outrora
ra no capítulo 2, "A vida política - Além do voto: cidadania e participação influente: "somos da América mas queremos ser europeus." Além dessa
política na Primeira República brasileira". O objetivo é discutir o caráter primeira característica, percebe-se uma aproximação jamais conhecida com
particular da noção de cidadania, criada em um país recém-saído de larga os Estados Unidos. E, nesse sentido, se o papel inicial de Joaquim Nabuco
e arraigada experiência com a escravidão. De um lado, a exigência da foi fundamental, a atuação maior ficou por conta e responsabilidade de
alfabetização como critério eleitoral limitou em muito as possibilidades um dos grandes ícones do período: o barão do Rio Branco, ministro das
de participação da população nos sufrágios. De outro, o voto aberto levou Relações Exteriores desde 1902. Sua avant premíere na política deu-se com
a uma política restritiva e que fazia da afirmação da vontade um ato de o caso da Bolívia, exemplo que inauguraria uma espécie de modelo não
coragem, que por vezes levava a desenlaces pouco desejados. intervencionista de participação.
Em sua primeira fase, a República conheceu um período militar mar- Rio Branco não estaria mais à testa da política externa após 1912, ano
cado por um jacobinismo radical e viveu seus dias sob a égide da revolta e de sua morte, e também não presenciaria os estragos da Primeira Guerra
das mobilizações populares, prontamente abafadas por grupos armados. Se Mundial. Como mostra Doratioto, o Brasil foi o único país sul-americano
nas cidades ensaiavam-se as primeiras manifestações populares - exercício a participar do conflito, apesar de sua contribuição ter sido pouco signifi-
necessário para a plena cidadania que ainda estava por vir -, no campo, cativa: enviou 13 aviadores à Grã-Bretanha, uma missão médica à França,
práticas de clientelismo ainda davam a tônica e o acento da política. Mesmo alguns observadores do Exército e uma frota de seis navios que se dedicou
assim, a guerra civil foi um fantasma muito próximo durante os primeiros a patrulhar o Medit~rrâneo. No entanto, o país teria lucros com tal investi-
anos militares da República. Não por coincidência, e como mostra ainda da, uma vez que ocupou papel mais ativo nos tratados de paz pós-conflito.
Hebe Mattos, Prudente de Morais, o primeiro presidente civil, trataria Gustavo H. B. Franco e Luiz Aranha Corrêa do Lago assinam conjun-
de exonerar militares que ocupavam cargos no funcionalismo público. A tamente o texto sobre economia. Nele põem abaixo interpretações que
partir daí começaria o declínio do jacobinismo radical e o início da assim costumam afirmar que o período foi "tempo perdido" e que a economia da
chamada política dos estados ou dos governadores. Na maior parte do época ficou encastelada entre a política restritiva do Império e a industria-
tempo, paulistas e mineiros revezaram-se na presidência da República, lização por substituição de importações, que se apresentou após a crise de
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A ABERTURA PARA O MUNDO

3o 1929. Segundo os autores, estabeleceram-se compromissos pesados entre política econômica e fez com que as articulações para a chamada Revolução 31
as oligarquias, mas também entre modelos do passado e do futuro, ou de 1930 ganhassem força.
mesmo entre o conservadorismo monetário, que ficaria associado a nomes A última parte do livro, que analisa a cultura no período, é assinada por
como Rodrigues Alves, Joaquim Murtinho e Leopoldo Bulhões, entre outros, Elias Saliba. Com um texto bem-humorado e cheio de citações irreverentes,
e os interesses marcados pela lógica do mercado do café. O ensaio evita ele mostra como esse foi um momento marcado por paradoxos variados.
interpretações por demais esquemáticas, que tomam a economia como "Hei de ter sempre a mentalidade de 1903: rua estreita, bonde de burro, casa
uma operação de origem exclusivamente algébrica e "a política econômica de pasto, piada do Emmo de Menezes." A frase irônica é do escritor Agri-
como uma mera decorrência da ordem das parcelas". pino Grieco e resume o fim de uma época e o começo de outra no cenário
No período estabeleceu-se o Convênio de Taubaté, que preparou o país urbano do Rio de Janeiro - a grande vitrine mundana do Brasil na beIle
para o domínio da economia do café; a imigração acelerou-se, bem como époque. A modernidade era a grande preocupação dessa geração e por isso
a exportação de outros produtos naturais. Mesmo assim, até a Primeira Elias percorre as diferentes áreas em que ela se expressaria: a educação, o
Guerra Mundial o desempenho econômico foi bastante medíocre, a despeito jornalismo, as artes, a pintura e até mesmo a cultura popular. Mas, em to-
de certa diversificação interna da economia, com algum desenvolvimento das, o sucesso ficaria muito aquém das expectativas iniciais. Num primeiro
dos setores secundário e terciário, além de termos nos convertido no maior momento, ainda no início do século, as grandes esperanças deram lugar
país exportador de café e borracha. Tal prosperidade contrastava, porém, a demonstrações de ceticismo, quando não de revolta. Também a eclosão
com a persistência de importantes bolsões de pobreza, notadamente nas da Primeira Guerra Mundial marcaria fortemente nossa intelectualidade,
antigas regiões exportadoras do Nordeste. Por outro lado, a indústria de isso sem esquecer a discussão do modernismo, sempre pensado no plural.
que dispunha o Brasil não diferia do retrato de atraso econômico, isso Esse período de nossa cultura, e que não se esgota em 1930, conhecerá
num período de grandes oportunidades e notável crescimento da econo- uma grande efervescência, expressa na publicação de poemas, ensaios
mia internacional. Todas essas tendências pareciam favorecer a "vocação e romances, na veiculação de filmes e peças de teatro, as quais, no seu
agrícola" do país e não o contrário. conjunto, diziam pretender "compreender o país" e criticar as teorias de
O conflito mundial que se agigantou em 1914 acabou por afetar di- fora: sejam as consideradas eurocêntricas, sejam os modelos raciais que
retamente as exportações brasileiras. De um lado, seria interrompido o condenavam nosso destino como povo miscigenado. Como mostra o autor,
comércio com as "potências centrais". De outro, muitos mercados consu- essa é a época de uma geração vigorosa que conheceu os trabalhos de Mário
midores restringiriam suas importações de café. A indústria foi afetada em de Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Gilberto Freyre, Sérgio
menor escala que a agricultura, pelo menos numa visão de curto prazo. Buarque de Holanda, Villa-Lobos, Vitor Brecheret, Cândido Portinari, Murilo
Polêmico, o texto mostra como o debate sobre a extensão da substituição Mendes, Humberto Mauro; cada um, à sua maneira, clássico necessário
de importações nesses anos permanece ainda vivo, mas, como a indústria para pensar o Brasil.
representava menos de 17% do PIB, o seu efeito sobre o crescimento global Se o país começou a República encantado com a modernidade conhe-
da economia se mostraria bastante limitado. cida alhures, vai terminar os anos 1920 entre ansioso e angustiado para
A retomada da normalidade no pós-Guerra não significou, entretanto, conhecer certa "brasilidade", rever seu passado e projetar um novo futuro.
um período de maior prosperidade. O Brasil terminaria a Primeira República Já disse Roberto Schwarz que no Brasil tudo parece "começar sempre do
como um país pobre, apesar de ser, de longe, o mais populoso da América zero" e que por aqui o "nacional se descobre por subtração". Se tudo isso
Latina e apresentar um grande mercado interno potencial. A política é fato, parecia ser hóra de descobrir, no dizer de Roberto Da Matta, o que
de estabilização do café deitaria água em 1929 por conta da depressão faz do "Brazil, Brasil':, buscar certos modelos de identidade nacional, cons-
econômica e o final dos protecionismos. Antes que o país aprendesse a truídos pelo sementeiro da especificidade: os trópicos e a até então surrada
lidar com esse paradoxo, aperfeiçoasse suas instituições e políticas na área mestiçagem que de biológica se tornará cada vez mais sociocultural. Mas
monetária e cambial, ou soubesse administrar a posição de dominância essa já é outra história a ser percorrida no próximo volume, que se deterá
que tinha no mercado de café, a crise sacudiu os frágeis alicerces de nossa sobre o período de 1930 a 1964, que inclui o Estado Novo.
A ABERTURA PARA O MUNDO AS MARCAS DO PERÍODO

32 Nessa, que vamos aqui apresentar, veremos a montagem de vários social-, personagens e atores ganharam as ruas e criaram formas diver- 33
modernismos - o paulista, o mineiro, o recifense, o do gaúcho e o do sas de atuação e projeção social. Mais do que um léxico novo, temos aqui
carioca, entre tantos outros - e a descoberta de um país que começava a experimentos novos e um ótimo exemplo dos usos oficiais da memória e
se olhar no espelho e, melhor ainda, a se reconhecer. Esses mesmos mo- de suas disputas simbólicas, que perduram até os dias de hoje.
dernismos representam os parâmetros finais deste terceiro volume, mar-
cado por ambivalências, como vimos, das mais gerais: passado a conviver
com presente, maxixe e lundu com música clássica, cordel com literatura BIBLIOGRAFIA
acadêmica, transporte acelerado com o ritmo do lombo de burro, um país
urbano ladeado pela realidade isolada dos sertões distantes, repressão e ARENDT, Hanna. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
exclusão social com processos de inclusão, clientelismos com processos CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República
até então desconhecidos de institucionalização política e social. que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
O antropólogo Claude Lévi-Strauss, em seu livro Pensamento selvagem, _ _o Teatro de sombras: a política imperial Rio de Janeiro: VérticefIuperj, 1988.
anotou que o homem é um animal classificador: primeiro classifica e de- _ _o Aformação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo:
pois passa a conhecer. Segundo ele, nosso pensamento age à maneira dos Companhia das Letras, 1990.
ameríndios: as coisas são primeiro nomeadas e depois se tornam úteis. A _ _ _o A construção da ordem e Teatro de sombras. Rio de Janeiro: uFRJ/Relume
utilidade não vem do uso, mas da necessidade de definir. Talvez por isso Dumará,1996.
Jorge Luis Borges tenha escrito que "tudo que vale a pena tem nome". CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro:
Voltemos à nossa querela. A classificação de República Velha foi o nome Sette Letras, 1994.
que vingou durante bom tempo, foi a maneira como os homens do Estado DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Guanabara,
Novo viram primeiro a si mesmos e, numa operação de contraposição, defi- 1990. [197 8]
niram tudo que os antecedeu. À maneira de Narciso, acharam feio o que não DUBY, Georges. O tempo das catedrais. Lisboa: Tempo Social, 1996.
era espelho. O leitor verá, porém, como é importante desconfiar das lutas DUMONT, Louis. Homo hierarchicus. São Paulo: Edusp, 1992.
políticas e simbólicas de uma época, marcadas pelos ânimos exaltados de FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São
seu próprio tempo. A denominação foi antes uma construção dos ideólogos Paulo: Ática, 1970.
do Estado Novo e representou forma de desqualificar o liberalismo (o grande GOMES, Angela de Castro; PANDOLFI, Dulce; ALBERTI, Verena (Org.). A
inimigo em questão) e o próprio passado. Afinal, exclusão, violência ou exis- República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
tência de "dois Brasis" não são privilégio ou monopólio da Primeira República. ___ ; ABREU, Martha. A nova "velha" República: um pouco de história
Aqui está um período polêmico; ambíguo e paradoxal, por certo, mas e historiografia. Tempo, Revista do Departamento de História da UFF,
igualmente afirmativo, em que se batalhou por direitos, pela separação V. 13, p. 11-24, 2009.
entre as esferas pública e privada e pelo direito à cidadania. Não por aca- LESSA, Renato. A invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência
so, a rua se converteu em local privilegiado, recebendo a moda, o footing, da Primeira República brasileira. Rio de Janeiro: Iuperj, 1988.
a vida social, mas também os jornaleiros, os grevistas, as manifestações LÉVI-STRAUSS, Claude. Pensamento selvagem. Campinas, SP: Papirus, 2005.
políticas e as expressões da cultura popular. Entre tantas faces, prefiro o MAUS s, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades
nome Primeira República. Primeira pois teve o protagonismo do início (para arcaicas. In: _ _0_. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac NaifY, 2003.
o bem e para o mal) e porque ensejou múltiplas e complexas formas de SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das
exercício da cidadania, algumas delas ainda hoje bastante desconhécidas. Letras, 1988.
É certo que história não tem volta ou retorno, mas é igualmente correto SCHW~RZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1985.
pensar que nesse contexto, em que tantos novos desafios se abriam - a SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria,
inauguração de um regime político e de novas modalidades de convívio no Brasil e na África Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro: EdUerj, 2001.

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