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SOCIOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

Prof: Dr.João Freire.

Dramas do capitalismo informacional


Lorena Karla Costa Bezerra

A sociedade em rede é historicamente marcada por uma profunda restruturação


organizacional e tecnológica do capitalismo. Os capitais e mercados encontram-se hoje
integrados em escala global pelos avanços no processamento de códigos, linguagens e
informações em que se destacam, como pontua Castells, a microeletrônica, a
computação, a engenharia genética e as telecomunicações. Todas essas áreas se
agrupam em torno de um novo paradigma da Tecnologia da Informação, que flexibiliza
os fluxos de capitais no tempo e no espaço, mas também tece novas problemáticas no
seio das interações entre poder, economia, sociedade e informação.

Diante disso, processos de polarização, desigualdade, miséria e exclusão social


são amplificados em sua relação sistêmica com uma lógica de mercado irrestrito, que
fundamenta a atual evolução do capitalismo em sua fase informacional. Quando a
distância social e econômica entre a fração mais rica e mais pobre de dada sociedade é
especialmente grande, nós temos o que é designado como desigualdade. Se, por outro
lado, os dois extremos da pirâmide de distribuição da riqueza crescem, enquanto os
segmentos intermediários se estreitam, então chamamos este fenômeno social de
polarização. A miséria é uma situação costumeiramente definida por órgãos oficiais
como um rendimento 50 % abaixo daquele que caracteriza a linha da pobreza. Por sua
vez, a exclusão social é concretizada, sobretudo, na segregação espacial e territorial de
determinados grupos minoritários desvalorizados socialmente. Estes processos se
imbricam em combinações complexas, que assumem formas particularmente
assustadoras pela sua abrangência na dinâmica entre economia, poder, riqueza e
informação dentro do sistema capitalista integrado pelas tecnologias em rede.

O caso da África Subsaariana é emblemático. Dos anos 1980 aos anos 1990, a
participação da África no mercado mundial se encolheu sensivelmente. E, desta forma,
um continente praticamente inteiro foi excluído pelos efeitos perversos da globalização.
Muitas são as razões que relegaram à África os piores indicadores socioeconômicos que
se corporificaram em sua exclusão social do Capitalismo Mundial Integrado (CMI), na
pobreza extrema de parcelas significativas de sua população, na imensa desigualdade e
polarização de boa parte de seus países. Uma das mais marcantes foi a sua incapacidade
de se modernizar durante a transição para a nova etapa do capitalismo. Ainda na década
de 90, a África não dispunha de uma rede elétrica confiável, nem linhas telefônicas em
abundância ou qualquer tipo de infraestrutura e capital humano para se informatizar e,
dessa forma, conectar-se à sociedade em rede1.

Até mesmo faltavam insumos em função da precariedade tecnológica para


modernizar a agricultura e, assim como consequência, a produção agrícola não era
expressiva, não se tornando competitiva para os padrões internacionais. Além de tudo
era baseada em um modelo voltado para a exportação, que não pretendia suprir as
demandas internas por gêneros alimentícios, e que ainda contribuía para corroer
economias tradicionais de subsistência. Não deixando, portanto, muitas alternativas para
a população, que efetivamente precisava satisfazer suas necessidades básicas. Esta
situação de pauperização ganha destaque no cenário mundial e atrai a ajuda financeira
de organizações filantrópicas, empréstimos de governos etc. Inclusive nesse período
cerca de metade do PIB de muitas das nações subsaarianas é originada desse tipo de
ajuda. Por outro lado, essa dependência de “injeções” de dinheiro estrangeiras torna a
economia dessa região muito vulnerável à influência das potências, que concedem tais
empréstimos, inflando as dívidas externas até as alturas.

Sendo Estados endividados, que não têm como pagar estas dívidas, seus
representantes fazem acordos e conchavos políticos com as potências desenvolvidas
para se manter no poder, beneficiando os interesses neocoloniais destas últimas e
espoliando as riquezas nacionais para seus próprios bolsos e contas bancárias. As elites
locais passam a controlar todo o comércio e a conceder monopólios a determinadas
empresas do país em questão. Este controle se constitui como mais uma fonte de lucros
para os envolvidos, enquanto se ignoram as consequências reais para o
desenvolvimento, pois se perdem os incentivos, dessa maneira, para os investimentos
estrangeiros. Sem infraestrutura e capital humano, de um lado, e a presença de
instituições governamentais poucos confiáveis de outro, caracterizadas pelas práticas
clientelistas e de patronagem, que dão vida a Estados Predatórios, a integração da África
Subsaariana ao capitalismo internacional é parcial e seletiva.

Algumas das principais fontes de riqueza do continente são os diamantes e o


petróleo. Mas mesmo nesses ramos extremamente lucrativos os donos do poder não
mobilizam os ganhos obtidos para reinvestir no país de origem, mas para engordar suas
contas pessoais. As elites, na verdade, tem um alto padrão de consumo e fazem uso de
produtos estrangeiros, aos quais têm amplo acesso, a despeito da miséria circundante.
Cabe então a pergunta: a partir de que momento os estados nacionais africanos se veem
enredados nessa espécie de parasitismo?

Podemos dizer que o Estado predatório surge no contexto dos conflitos entre
facções políticas em busca do poder e da riqueza e das crises econômicas geradas pelos
fiascos de sociedades e governos que não conseguiam assimilar plenamente os novos
imperativos capitalistas nem se integrar com a rapidez exigida aos moldes da dinâmica
de interdependência e integração global da economia. Antes já havia de fato desde a

1
Não havia praticamente profissionais qualificados para programar e consertar computadores. As
únicas universidades que ofereciam o curso de ciência da computação eram a do Zaire e a da Nigéria.
independência das antigas colônias relações de prebendalização, mas não propriamente
a pilhagem da maneira como que até hoje está configurada. Na urgência de repartir a
riqueza pilhada com camadas dominantes mais amplas por conta das pressões exercidas
por guerras civis, protestos e embates políticos, a estrutura do estado teve que ser
ampliada e teve de se relacionar com a economia do crime como mais uma fonte de
receita.

Como resultado, o contrabando, o tráfico de drogas e outras atividades ilícitas


foram incorporadas no processo de acumulação de riqueza para indivíduos investidos de
autoridade política. Este cenário fez crescer a miséria de forma espantosa e aumentar a
desigualdade entre ricos e pobres. O que gerou epidemias, guerras e fome, uma vez que
a lógica predatória retirou investimentos em educação, em assistência médica e em
outras políticas sociais e também em infraestrutura. Como podemos entender o
agravamento desses conflitos e contradições?

A mídia é responsável pela propagação da ideia segundo a qual o principal


motivo deste caos social em que a África mergulhou diz respeito a rivalidades étnicas
ancestrais, que assumiram a forma de grupos que não conseguem se entender obrigados
a coexistir em Estados-nação forjados pelos colonizadores. Mas para Castells as
disputas políticas reconstroem e redefinem as etnias como expediente para a expressão
de uma luta pelo acesso ao poder e aos recursos que representam os seus interesses
imediatos enquanto categoria social. Em outras palavras, as definições étnicas
arbitrárias baseadas nos preconceitos dos colonizadores foram (re) apropriadas para
objetivos políticos. Mas o que importa aqui é compreender que os conflitos étnicos
foram agravados pela herança colonial de um Estado moderno instituído juridicamente
que beneficiava e concedia privilégios a pequenos grupos de indivíduos de determinada
etnia entendida como socialmente dominante em detrimento da vasta maioria.

No período pós-colonial, ainda assim, a estrutura e funcionamento desse modelo


de estado permaneceram naquilo que havia de essencial ao lado do Estado costumeiro,
isto é, representado pelo poder informal das etnias dominantes em suas relações com as
demais etnias subjugadas. De qualquer maneira, seria injusto colocar apenas na conta
de alguns políticos mal-intencionados o fracasso das políticas econômicas da África
Subsaariana. O capitalismo tal como está posto e seu correlato processo de globalização
é, sem dúvidas, gerador de muitas zonas de exclusão social, em especial, a exclusão do
continente africano em sua incapacidade de construir alternativas autônomas para sair
do círculo vicioso de sua sujeição à hegemonia ocidental, que define as interações
econômicas globais e o modo de se inserir nelas. Estando à mercê de decisões
administrativas e políticas de elites locais que só rapinam para si próprias e para o
proveito das grandes nações europeias e dos Estados Unidos torna-se difícil vislumbrar
uma saída exequível em uma parte do mundo em que as inovações tecnológicas só
chegam com grande atraso.

A África subsaariana é em certa medida um caso único por conta de sua extrema
marginalidade nas relações comerciais em plano internacional e a miséria, desigualdade
e exclusão daí resultantes, que permitem a Castells referir-se a ela como o Quarto
Mundo em alusão a todo esse processo de desumanização da África. Mas está longe de
ser a única atingida pela perversão do sistema econômico. Na verdade, as relações de
trabalho tendem a se precarizar pela ação da ideologia reinante de flexibilização e
desregulamentação do mercado de trabalho. Como diz Castells: não se trata do fim do
emprego em razão de máquinas que substituem o trabalho humano, mas de condições
de trabalho mais precárias, que inclusive desvalorizam e remuneram mal atividades
produtivas que não exigem grande qualificação e domínio das tecnologias mais
avançadas de informação. Hoje o emprego está submetido à incerteza e instabilidade.
Em especial, das categorias profissionais menos qualificados. O mundo industrializado
e desenvolvido agora mingua em oportunidades de emprego em setores que permitem a
contratação de pessoas de baixa escolaridade para sua execução. Estas atividades são
deixadas a cargo dos países em desenvolvimento2, cuja mão de obra como um todo é
menos escolarizada e mais barata. Então certas etapas intermediárias do processo
produtivo como forma de diminuir custos com a produção são terceirizadas. Esses
custos podem envolver a própria mão de obra. Tanto a contratação de mulheres como de
crianças representam a possibilidade de pagar salários mais baixos do que seriam pagos
a um homem adulto pela mesma função.

No entanto, não apenas no mercado formal essa força de trabalho é utilizada. O


desemprego e precarização das relações de trabalho são consequências estruturais dos
processos simultâneos de inclusão e exclusão do capitalismo informacional. As famílias
atingidas pela pobreza muitas vezes têm de lançar mão de seus membros mais jovens
para complementar a renda familiar. Assim crianças podem procurar emprego tanto em
atividades ilícitas como no mercado informal. Sabemos que há muita prostituição de
menores de idade em especial do sexo feminino no Brasil e na América Latina.
Inclusive há um turismo sexual internacional bastante dinamizado pela capacidade de
processar informações on-line justamente articulado para explorar econômica e
sexualmente os corpos dessas meninas. Na economia do crime, no Brasil, por exemplo,
crianças e adolescentes são levados para trabalhar no tráfico de drogas onde constroem
suas próprias referências e rede sociais com outros jovens e definem padrões de
comportamento, que podem oferecer status dentro do submundo em que estão inseridos.
“Meninos de rua” pedem esmolas e voltam apenas ao final do dia para seus lares para
entregar todo o dinheiro arrecado para seus pais. Empregadas domésticas ainda crianças
trabalham aos montes em países como a Venezuela. É o que Castells chama de
“desperdício” das crianças. Afinal enquanto estão exercendo essas funções, não estão
mais indo para a Escola e perdem a possibilidade ou a tornam mais distante de uma
mudança profunda para melhor em suas vidas.

Processos de desigualdade, pobreza, exclusão e polarização que, embora existam


em todo o planeta, manifestam-se mais intensamente nos países em desenvolvimento e
no Quarto Mundo. Desses processos, a exclusão social é talvez a expressa-máxima das

2
“Em desenvolvimento” é uma classificação utilizada por Castells, que eu apenas reproduzo para ser fiel
ao texto.
relações intricadas entre todos esses elementos, que levam segmentos inteiros à ruína e à
degradação, em suma a segregação social e simbólica das suas existências. Tal exclusão
às vezes toma a forma do encarceramento maciço de jovens negros na cadeia ou mesmo
de uma sobre-representação da população negra nas favelas do Rio. Mas também
quando direitos sociais básicos como acesso à saúde e à educação são negados
reiteradamente a estas frações populacionais.

A América Latina ainda sofre bastante com as restrições impostas pela lógica
desumana, que condenam minorias à pauperização, ao desemprego, à exclusão social,
com a desintegração familiar de muitas famílias pobres que perdem seus filhos, maridos
etc. para a prisão ou para as estatísticas de homicídio, com a perda de referências
institucionais positivas, com Estados até mesmo predatórios em alguns dos seus países.
Além disso, sob o ponto de vista do desenvolvimento nacional, sabemos que apesar de
estar consideravelmente integrada à sociedade em rede ainda não possui a infraestrutura
e tecnologias adequadas e o capital humano requerido para a produção de alta
tecnologia (embora os tenha bem mais que a África). E mesmo quando dispõe da
tecnologia para pôr algum produto novo para exportação muitas vezes encontra
dificuldades para competir no mercado desleal, que implicitamente define uma divisão
internacional do trabalho, além de todas as barreiras alfandegárias e medidas
protecionistas. Dessa forma, ao América Latina ser destinada implicitamente a fornecer
matérias-primas para as grandes potências, permanece em sua situação de
“dependência” econômica, uma vez que as commodities facilmente se desvalorizam,
além de terem um valor agregado bem inferior ao da exportação de tecnologias.

A grande questão é que um sistema como o capitalismo que tem alta


penetrabilidade em todos os domínios da vida social ainda mais agora com todo este
“informacionalismo” e seu poder de difusão de ideias e informações ( por exemplo, a
ação da publicidade) embrenhadas na sua lógica de mercado irrestrito desumaniza as
pessoas e as relações sociais estabelecidas entre elas. Crianças, delinquentes, mulheres,
prostitutas, negros e negras e quaisquer sujeitos em condições de vulnerabilidade social
são estigmatizados pelas narrativas conservadoras que pretendem equalizar o fracasso
econômico à mera incompetência individual. Mas isto também se deve à tendência
crescente de individualização do trabalho, não mais entendido como produto coletivo,
mas como esforço realizado por cada indivíduo independentemente dos marcadores
socioeconômicos que o acompanha. E junto a esta ideologia: a triste precarização das
relações de trabalho, porque afinal a mão-de obra é perfeitamente substituível pela
massa de desempregados sistematicamente gerada. Até porque não passa de mercadoria
dentro do sistema capitalista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e
cultura. Vol. I e III. São Paulo: Paz e Terra, 1999

__________. Fim de milênio. São paulo: paz e terra, v. 3, 1999. Análise do


livro fim de milênio

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