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Resumo

Propomo-nos, no presente trabalho, a investigação dos escritos históricos de


Xenofonte, autor ateniense do século IV AEC, a partir de um eixo de questões que
tematizarão as relações entre poder e comunidade, bem como os meios através dos quais
o autor visa à produção de um conhecimento politicamente útil para seus leitores na
orientação de suas vidas presentes, o que chamamos de paidéia pelo passado.

Apesar de privilegiarmos em nosso conjunto de fontes as obras tradicionalmente


tidas como históricas, a saber: a “História de meu tempo” (Hellenika), a Ciropédia e a
Anábase, um estudo aprofundado do pensamento histórico de Xenofonte a partir dos
marcos propostos necessariamente implicará a investigação de escritos de cunho mais
filosófico (como seus diálogos socráticos) ou político, como os Poroi, tratado sobre as
formas de exploração das riquezas atenienses. Argumentaremos, ademais, que nas obras
tradicionalmente situadas fora dos limites da historiografia, existem referências indiretas
a esta, seja sob forma de analogias, comentários, ou a mobilização de características do
contexto temporal e de elementos da memória social de forma a atingir determinados
fins.

Uma das questões centrais do trabalho dirá respeito à inserção do ateniense no


contexto intelectual de entre os séculos V-IV AEC, com suas questões relativas à
identidade do mundo grego por oposição ao mundo bárbaro, encarnado especialmente
nos persas; às ansiedades despertadas pela relação conturbada entre poder e justiça (ou
natureza e costume, nos termos dos sofistas), e entre educação/conhecimento e ação.
Tomaremos por hipótese a apropriação e adaptação das reflexões de Tucídides, de cuja
obra inacabada Xenofonte propõe-se continuador, e Sócrates, de quem o escritor foi
discípulo no início de sua vida pública, até ver-se exilado de sua cidade natal. Mais
especificamente argumentaremos que o autor dá a Tucídides uma leitura socrática.

Subsidiariamente, investigaremos a(s) forma(s) como o ateniense apresenta


sua(s) história(s), assumindo por hipótese que o gênero historiográfico não estava
fixado no século IV, sendo passível de inúmeras experimentações literárias, das quais
Xenofonte se vale no diálogo com a tradição (não só os historiadores, mas também
Homero, Hesíodo e os tragediógrafos e comediógrafos) e com interlocutores
contemporâneos, como Platão e Isócrates, construindo para si um lócus narrativo a
partir do qual requer a autoridade de educador da Grécia.
Objetivos

Nosso trabalho tem por objetivo central articular as narrativas produzidas por
Xenofonte com as questões “da ordem do dia” do tempo em que escreve. Deste objetivo
central, decorrem os seguintes objetivos subsidiários:

(1) Mapear a constelação maior de disputas que integram as discussões no espaço


político (tanto no interior da cidade quanto nas relações entre poleis);

(2) Articular a historiografia que Xenofonte produz com seus interesses e crenças
filosófico-políticas, para além de um “socratismo” geral levado como fórmula, que de
contornos tão extensos torna-se inviável como explicação;

(3) Examinar os limites entre a história e os demais gêneros literários: há estudiosos que
classificam a Ciropédia como biografia, outros a consideram um “espelho de príncipes”,
outros como “proto-romance”; mas sua matéria-prima é a alteridade projetada no tempo
(o passado) e no espaço (o bárbaro, o persa). Existe uma diferença clara entre esta obra
e, por exemplo, os logoi persas de Heródoto? Se sim, quais?;

(4) Examinar como visões sobre o passado são mobilizadas em obras não
prioritariamente historiográficas, por exemplo, como a derrota ateniense é tratada nos
diálogos socráticos escritos por Xenofonte ou de que formas a vitória em Salamina
contra os persas, no século VI AEC, é ativada no discurso público ateniense como
índice de legitimação de seu império.

Hipóteses

A hipótese central de nosso trabalho consiste em que a historiografia seria


dotada de historicidade e, portanto, a forma de narrar, a organização dos fatos com
vistas à explicação do passado e o conteúdo dos discursos (partes essenciais da
historiografia grega clássica) representariam uma tomada de partido. Desta hipótese
central decorrem as seguintes hipóteses colaterais:

(1) A apropriação xenofonteana dos ensinamentos socráticos privilegiaria uma


injunção paidêutica da história, uma “função de orientação”, dirigida sobre tudo
às aristocracias, nas quais uma das preocupações centrais seria a educação do(s)
líder(es).
(2) Esta apropriação não se restringiria à apresentação de exemplos positivos ou
negativos (embora esta fosse uma estratégia não desprezível das narrativas em
questão), mas veicularia um discurso específico sobre o poder e sua relação com
a comunidade.
(3) O poder operaria uma “corrosão” no tecido social (intra ou interpoleis) sempre
que deixado operar sem mecanismos “de freio”, que poderiam ser dados
especialmente pelas aristocracias educadas nos preceitos do conhecimento de si,
da justa medida, e do autocontrole (refreio das paixões do corpo e do espírito,
enkrateia).
(4) O gênero historiográfico, no século IV AEC, não estaria sujeito a regras formais,
de modo que Xenofonte ter-se-ia beneficiado da experimentação com distintos
gêneros literários consagrados no intuito de criar um lócus de enunciação a partir
do qual a tentativa de dar sentido ao passado tivesse um engajamento agônico
com seus antecessores.

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