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Antropologia, Voto e
Representação Política
 copyright © 1996, Mareio Goldman e Moacir Palmeira

Capa
Andrea Vilela de AlmeitÚl
APRESENTAÇÃO
Projeto Gráfico
Contra Capa
Mareio Goldman e Moacir Palmeira
Produção Editorial
Casa da Palavra

O que pode significar um trabalho antropológico sobre elei-

ções? Não se trata aqui, certamente, de reivindicações fora de moda
Catalogação-na-fonte
a respeito de fronteiras acadêmicas supostamente estritas ou de
purezas disciplinares suspeitas e empobrecedoras. Trata-se, sim,
A636 Antropologia, voto e representação política. I Moacir de indagar de que modo uma certa tradição teórica e de pesquisa
Palmeira, Mareio Goldman (coordenadores)- Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 1996.
pode ser utilizada na construção de abordagens inovadoras de fenô-
menos que dizem respeito, não apenas a outras disciplinas acadê-
244 p.
micas, mas também a todos os que deles, direta ou indiretamente,
ISBN 85-86011-02-09 participam.
I. Antropologia Social. 2. Sociedade e Política.
.~. Processo eleitoral - Brasil. 4. Voro - Brasil. I. Goldman,
Se excetuarmos trabalhos como os de Pereira de Queiroz ( 1973;
Mareio (coord.). II. Palmeira, Moacir (coord.). III. Título 1976) e Vilaça e Cavalcanti (1965), de inegável viés antropológico
coo 306
porém voltados para debates mais abrangentes a respeito da socie-
CDU 316.334.3 dade nacional, o interesse dos antropólogos brasileiros pelas elei-
ções é relativamente recente. Os trabalhos de Sá (1974),
Martinez-Alier (1977) e Caldeira (1980) foram as primeiras objeti-
vações do esforço de observação e análise do processo eleitoral. De
um ponto de vista interno à disciplina, esse esforço parece se situar
1996 na confluência da atenção que a antropologia vem concedendo a
Todos os direitos desta edição reservados à duas vertentes do pensamento antropológico: em primeiro lugar, o
Contra Capa Livraria Ltda. interesse no que se costuma denominar, por falta de termo mais
adequado, sociedades complexas, ou seja, o fato de que os antropó-
Rua Barata Ribeiro, 370 I 208 logos têm se dedicado cada vez mais a estudar as sociedades das
22040-000 - Rio de Janeiro - R] quais fazem parte; em segundo lugar, o interesse específico pelo es-
Te! (55 21) 236-1999 tudo da política, ligado - como foi publicamente assumido por
Fax (55 21) 256-0526 vários antropólogos ilustres- a razões extra-acadêmicas 1 , mas tam-

l I MARCIO GOLDMAN e MOACIR PALMEIRA
bém a desafios de ordem propriamente intelectual: nos mais dife-
rentes tipos de sociedade, a política aparecia como um domínio de
atividades m~rca~o sim~ltaneamente pela escolha individual e pe-
los grandes ntuais colenvos. Esse esforço daria lugar, numa época
em que as ciências sociais ainda tendiam a pensar-se como ciências
naturais e estavam marcadas pelo modelo da divisão de trabalho e
da e~p~ci~lização, ao projeto de uma 'antropologia política',
subdtsCiphna da antropologia social com objeto e métodos próprios.
N~s~e contexto, diríamos que as pesquisas antropológicas so-
bre poltttca (e, dentre elas, aquelas sobre eleições 2 ) levantam uma
série de questões que, embora não exclusivas desse tipo de investi-
gação, apresentam aqui uma certa especificidade que deve ser leva-
da em consideração.
O primeiro conjunto de questões diz respeito ao estudo de um
'objeto' deste tipo. A antropologia dita 'social' ou 'cultural' se definiu,
durante muito tempo e até hoje, como o estudo de grupos dotados
de uma certa organização e de um determinado conjunto de valo-
res. Os trabal~os sobr.e as chamadas 'sociedades primitivas' não pa-
recem ter sofndo mutto com este tipo de abordagem. Todavia, no
momento em que a antropologia começa a se debruçar mais di reta-
mente sobre sociedades de larga escala, os problemas tendem a apa-
recer; problemas que, aliás, ricochetearam sobre os 'primitivos',
levando a uma série de questionamentos em torno de noções como
tribo: grufo, ou me~m? sociedade e cultura. O que seria um grupo?
Quats senam seus limites e qual seu grau de autonomia? Prisionei-
ros de u~a categoria deste tipo não estaríamos condenados a per-
der os meios de encontrar uma inteligibilidade que necessariamente
ultrapassa em todas as direções os limites que nos damos?
A reação a este modelo sociologizante ou culturalizante se de-
2 senvolveu ao longo da década de 1960, quando o chamado movi-
mento 'processualista' da antropologia social britânica - e é
significativo que isso tenha ocorrido justamente no contexto da
chamada 'antropologia políticà- propôs a substituição dos grupos
pelas redes e processos, como objetos fundamentais da investigação
antropológica. Na verdade, este é o segundo descentramento ope-
rado pela antropologia política de tradição britânica. O primeiro,
ocorrido na década de 1940 com o estrutural-funcionalismo, des-
I i
APRESENTAÇÃO •
locara a questão do poder, retirando-o da esfera tradicionalmente
atribuída a ele pela filosofia e ciência políticas - o Estado - , e
alocando-o no espaço de um 'sistema político' constituído por di-
versas instituições sociais. O problema é que se este modelo indis-
cutivelmente descentrava o poder por um lado, ele o recentrava por
outro, ao insistir na busca das funções políticas que, na ausência
formal do Estado, seriam desempenhadas por outras instituições,
cm especial pelas famosas linhagens.
A crítica processualista da década de 1960 opera, então, um
novo descentramento, ao criticar as noções de sistema e função e
valorizar o processo político enquanto tal, bem como as interações
sociais concretas. Poderíamos perguntar, contudo, se um novo
recentramento não se opera aqui, recentramento que se dá a partir
do pressuposto de um predomínio das relações interindividuais e
que acaba desembocando num transacionalismo in~ividualista .e
manipulatório. Devemos reconhecer que, quando apltcado a realt-
dades sociais de larga escala, este modelo tem como conseqüência
quase inevitável a limitação da abordagem antropológica a dimen-
sões ou aspectos supostamente 'marginais' à sociedade estudada.
Nesse sentido, o processualismo não consegue escapar da recor-
rente tendência da antropologia britânica em opor indivíduo (ou
interações individuais) e sociedade (ou grupos). Tendência circular,
pois o privilégio dos grupos leva, em última instância, a encará-los
como uma espécie de superindivíduos, e o privilégio de redes
centradas em indivíduos conduz a nelas descobrir todas as proprie-
dades de um grupo, ainda que informalmente organizado.
A estes modelos, que poderíamos designar de 'microscópicos',
respondem algumas tendências presentes em certas vertentes da
antropologia cultural norte-americana e da antropologia francesa.
Trata-se grosso modo, nesses casos, de privilegiar o estudo dos valo- 3
res ou das representações, ou seja, o estudo das ideologias. ~odeio
aparentemente cômodo quando estamos às voltas com realtdades
de larga escala cujo recorte em termos de grupos, ou mesmo de
processos, dificilmente parece bem sucedido.
Mas, se a conseqüência dos modelos sociológicos e processualistas
é a fragmentação do objeto em uma multidão de subgrupos ou pro-
 i MARCIO GOLDMAN e MOACIR PALMEIRA
cessos mais ou menos marginais, a do modelo culturalista é a tentati-
va de apreender grandes sistemas ideológicos que caracterizariam glo-
balmente uma sociedade. A uma vertente 'microscópicà corresponde,
pois, uma outra, de caráter, digamos, 'macroscópico': se, no primeiro
caso, tende-se a buscar grupos minoritários ou identidades locais no
interior da sociedade abrangente, no segundo trata-se de descobrir
um traço, ou um conjunto de traços, que definiria de imediato e de
forma global esta sociedade.
O segundo conjunto de questões também remete à 'antropo-
logia política'. Ainda que se costume situar o nascimento dessa 'es-
pecialidade' antropológica na década de 1940, com os trabalhos
esrrutural-funcionalistas sobre a África, é preciso reconhecer, como
demonstrou Adam Kuper (1988), que a questão do poder está bem
no centro da própria constituição da antropologia social. Neste tra-
balho, Kuper mostra que a grande teoria de Maine- um jurista,
lembremos - , dividindo as sociedades entre as que estavam fun-
dadas sobre um 'contrato' estabelecido por indivíduos livres e aque-
las baseadas em um 'status' que constrangeria a priori a posição e a
ação de seus membros, deriva inequivocamente da oposição movi-
da pelo autor às teorias militaristas que admitiam a universalidade
do indivíduo e, pelo menos potencialmente, a do Estado. Paradigma
de todas as great divide theories, o modelo político-jurídico de Maine
restringe claramente o objeto da antropologia às chamadas socieda-
des sem Estado.
Como vimos, as teorias sistêmicas da década de 1940 e as
processualistas da década de 1960 introduziram alguns descen-
tramentos neste modelo, recentrando, contudo, o estudo do poder,
seja nos sistemas, seja nos processos e agentes políticos. Ao longo
da década de 1970, os antropólogos assistiram, um pouco de fora,
' 4
é verdade, a alguns descentramentos mais radicais, oriundos em
parte dos movimentos políticos da década de 1960 com suas reivin-
dicações ligadas a demandas minoritárias específicas. A obra de
Michel Foucault, por exemplo, nos ensinou que o poder não preci-
sava necessariamente ser encarado como uma substância localizada
aqui ou ali; podia ser tratado como um feixe de relações imanentes
a rodas as dimensões da vida social. E que, portanto, uma teoria do
poder talvez não fosse necessária, devendo ser substituída por uma
analítica empírica das relações de poder em domínios precisos. Do
APRESENTAÇÃO •
mesmo modo, Gilles Deleuze e Félix Guattari sugeriram que~ p~­
der envolve sempre a subjetividade e que, longe de opormos o mdJ-
víduo à política ou à sociedade, deveríamos t.ratar de busca: as
inscrições simultaneamente individuais ~ coleuva~ da repressao e
do desejo. Mais próximo da antropologia: Bour~1eu demonstro.u
como as perspectivas sistêmicas e estruturais de:enam ser submeti-
das ao crivo da atenção no jogo efetivo das prát~cas e !~tas de. rodos
os tipos implementadas nos mais variados níveis da v1da soc1al.
Não menos radicais foram as iniciativas dentro da própria dis-
ciplina, de autores como Leach, Bailey, Bloch e ~eertz. O primei-
ro, ao perceber que a política entre os Kachm ~undav~-se em
princípios que atravessavam roda a socie.dade, .a?nu ~ammh~ ao
questionamento de fronteiras entre domímos soc1a1s. Baliey, apoian-
do-se fortemente nos rrab:llhos de Erving Goffman e reformula~do
0
conceito de comunidade- que remeteria não à idéia de l.ocaltda-
de mas a determinado tipo de relações sociais que permean~m tan-
to as pequenas quanto as grandes. coletividades - qu.esnono~ .a
pertinência da hierarquia esta?ele~1da e~.tre macr~ : mlcro-polt.u-
ca. Bloch, trabalhando com ntua1s polltlcos e rehg10sos, qu~suo­
nou a separação entre os dois domínios e s~geriu que a a.urondad.e
(dominação) tradicional do esquema webe~1ano e a autondade reli-
giosa calvez sejam uma única e mesma coisa. Geertz, p~~sando o
Estado e a política nos rermos em que eram pensados e v1v.1dos peb
população do Bali pré-colonial, demonstrou q~e os nrua1s co•:sn-
ruíam 0 cerne mesmo da política naquela sociedade (e, poss:ve.l-
mente, não apenas nela) e questionou a universalidal:e da propna
noção de poder e a idéia de que, n.ecessariamente, esteja em jogo na
política apenas a dominação soCial. Esses auto~es, em moment.os
distintos, estudando povos muito diversos e apo1an~o-se em te~ nas
de referência muito diferentes, questionaram o parad1gma :vebe~•a~_o
do poder, comum às ciências sociais, e to~n~ra~ sem s~nudo a 1de1a
de uma antropologia política como subd1sc1plma relanvamente au-
tônoma da antropologia social.
A especificidade de uma abordagem das eleições apoiada ~m
certas premissas derivadas da tradição antropológica fica espeCial-
 r·J MARCIO GOLDMAN e MOACIR PALMEIRA
mente clara quando levamos em conta o tipo de tratamento a que
este objeto foi tradicionalmente submetido, em especial pela ciên-
cia política. Com freqüência, os trabalhos acerca do processo elei-
toral parecem estar marcados por algumas temáticas centrais bem
delineadas. Voltados principalmente para explicar o funcionamen-
to dos partidos políticos e sua adequação aos problemas da repre-
sentação, estes trabalhos parecem descuidar-se de alguns pontos
fundamentais desse conjunto de questões. Tudo se passa como se
estivéssemos às voltas com um esforço destinado a evitar uma pos-
sível relativização das únicas forças tidas a priori como fundamen-
tais no processo: partidos políticos e grandes conjuntos sociais, como
classes e seus segmentos.
Limitando-nos ao caso brasileiro, podemos constatar que a
evoluçã~ dos trabalhos sobre eleições entre 1950 e 1990 parece apon-
tar na dtreção de um privilégio cada vez mais acentuado de uma
visão 'internalista' do fenômeno, visão que se concentra em parti-
cular na análise dos partidos políticos. É preciso reconhecer, em
primeiro lugar, que esta progressiva valorização dos partidos como
c.entrais e, ao menos potencialmente, como legítimos e representa-
tiVOS, depende de um condicionamento histórico preciso.
Elaborado pouco após o processo de redemocratização de 1945,
o trabalho pioneiro de Victor Nunes Leal (I 949) parece ainda ecoar
o questionamento do sistema partidário desenvolvido prática e teo-
ricamente a partir de 1930. Escrevendo a partir da segunda me-
tade da década de 1960, os demais autores dispõem da experiência
partidária que se desenrola entre 194 5 e 1964, período no qual se
concentram suas abordagens. Além disso, parte desta produção teó-
rica se desenvolve no contexto do regime militar de 1964 que, como
se sabe, procurou promover novamente a desvalorização dos parti-
6 ~o.s. Tentando atribuir a estes uma posição central no processo po-
lmco e advogando sua absoluta necessidade para o funcionamento
da democracia, a literatura produzida a partir da década de 1970
estava certamente participando de uma luta contra o fechamento
do espaço institucional.
Por outro lado, é possível indagar, de um ponto de vista menos
histórico, se essa supervalorização dos partidos não representa igual-
APRESENTAÇÃO •
mwte o efeito de algumas premissas teóricas e éticas, constituindo-
\c, ao mesmo tempo, em responsável pela desvalorização de outras
variáveis que fazem parte do processo analisado. A crítica cada vez
mais incisiva às visões 'sociológicas' e a progressiva adoção de uma
perspectiva 'internalista' apontam claramente nesta direção. Além
disso, é possível constatar que este modelo sobrevive ao fim do regi-
me militar e é constantemente acionado para dar conta tanto da
nova estrutura partidária que então se estabelece quanto das elei-
\Ões ocorridas a partir deste momento. Assim, diversos trabalhos a
respeito das eleições presidenciais de 1989 tendem a enfatizar exata-
mcnte os elementos presentes nas abordagens teóricas mais gerais.
Nesse sentido, as abordagens tradicionais das eleições tendem
a conferir um caráter mais ou menos negativo tanto à dinâmica
eleitoral quanto ao comportamento do eleitor. A explicação para as
questões levantadas são em geral encontradas na jàfta de algum ele-
mento tido a priori como essencial: racionalidade, informação, tra-
dição e organização partidárias, eficiência governamental etc. As
explicações para os comportamentos dos eleitores oscilam entre uma
pretensa irracionalidade do eleitor, o fato dele não dispor das infor-
mações necessárias para decidir de forma correta, e a suposta desor-
ganização do sistema partidário-eleitoral do país.
Enfim, é importante observar que a maior parte das análises
que buscam escapar deste modelo não conseguem evitar a arma-
dilha que consiste em isolar as eleições como momento especial e,
conseqüentemente, como objeto privilegiado. Analisa-se, pois, a
cobertura jornalística, o noticiário da televisão, as pesquisas de opi-
nião, os aros governamentais, o comportamento da população ...
durante o período das eleições, como se fosse possível encontrar aí a
chave explicativa para o fenômeno estudado.
Face a esse tipo de tratamento, os trabalhos antropológicos sobre
eleições aqui reunidos adoram, de diferentes maneiras, uma pers-
pectiva apoiada em ao menos três caracteres distintivos: ampliação
do campo de análise; busca de uma abordagem positiva; reintrodução
da dimensão sociológica.
 MARCIO GOLDMAN e MOACIR PALMEIRA
Em primeiro lugar, o campo de análise é ampliado nas mais
diversas direções: representações 'nativas', faccionalismos, vida co-
munitária, família e redes sociais, imprensa, identidade étnica, fes-
tividades, biografias, estruturas de mediação e cultura parlamentar
são as principais dimensões introduzidas nas análises.
Em segundo lugar, trata-se de evitar as abordagens puramente
negativas. Ou seja, em lugar de partir de supostas 'faltas' ou 'carên-
cias' do eleitorado ou do sistema como um todo, busca-se apreen-
der o que há aí de específico c de positivo. Assim, as representações
dos eleitores são mais que o produto deformado do atraso político
ou da falta de informação; as facções políticas não se reduzem a
sobrevivências de um passado a ser abolido; as relações intra-comu-
nitárias, familiares ou étnicas são vistas como constituintes do pró-
prio processo eleitoral; os meios de comunicação ganham um papel
ativo que não se limita a refletir estruturas supostamente dadas de
antemão; as festas e as representações a elas associadas não são mero
suplemento da atividade política; a rrajetória dos candidatos e a
campanha podem ser vistas como processos mutáveis c imprevisí-
veis; os mediadores políticos c a dinâmica da vida parlamentar pas-
sam a ser encarados como fenômenos dotados de uma certa
particularidade e eficácia específica.
Enfim, se, como vimos, a evolução dos trabalhos da ciência
política brasileira sobre o fenômeno eleitoral se caracteriza por uma
progressiva 'de-sociologização' do objcto, é preciso deixar claro que
a reintrodução da dimensão sociológica por parte dos antropólogos
não equivale, de forma alguma, a um retorno ao tipo de reducio-
nismo sociologizantc que os cientistas políticos têm toda razão em
desejar ultrapassar. Trata-se, antes, de tentar captar processos que
poderíamos denominar de microsociológicos ou micropolíticos,
8 desde que estes termos não sejam entendidos de forma equivocada.
A análise antropológica de fenômenos como as eleições não se
reduz a um estudo meramente suplementar, ou mesmo comple-
mentar, àquele desenvolvido há muito tempo pela sociologia ou pela
filosofia c ciência políticas. A idéia de uma 'divisão do trabalho'
entre essas disciplinas, onde as últimas abordariam as grandes ques-
tões deixando aos antropólogos a tarefa de analisar o que foi por elas
APRESENTAÇÃO •
deixado de lado, é insustentável. Como já foi sugerido, não basta
supor "uma simples - mesmo que ampla- 'contextualização' de
ações individuais concebidas em termos lógicos"; cumpre "perceber
como as estruturas sociais e simbólicas não apenas circunscrevem
aquelas ações, mas atravessam diferentes unidades sociais, indiví-
duos ou não, incutindo-lhes significado" (Palmeira 1992: 30).
A partir desse conjunto de pressupostos, e sem desconhecer a
especificidade de cada abordagem, uma linha comum parece pre-
sente em todos os textos aqui reunidos. Goldman e Sant'Anna bus-
cam, deste modo, mostrar como as representações 'nativas' dos
eleitores fazem parte do processo, que não se reduz, portanto, a um
conjunto de ações mecânicas supostamente desenvolvidas, em um
quadro dado de antemão, por regras e limites formais. Da mesma
forma, Palmeira insiste sobre a diversidades de concepções de po-
der e política em jogo no fenômeno eleitoral, ao mesmo tempo em
que mostra que divisões microsociológicas e faccionalismos desem-
penham aí um papel fundamental. Hercdia e Guebel contextualizam
suas análises na dinâmica da vida comunitária c das relações famili-
ares, respectivamente. Bonelli demonstra como a cobertura jorna-
lística das eleições não está pautada apenas por grandes interesses c
ideologias globais, obedecendo também a dinâmicas próprias ao
funcionamento dos meios de comunicação. Seyfcrth, de uma pers-
pectiva histórica, revela a importância da questão étnica cm um
quadro eleitoral específico. Chaves inclui em sua análise não ape-
nas a importância das festas no processo eleitoral, corno também o
lugar central aí ocupado por um certo tipo de 'noção de pessoa'.
Trabalhando também com esta noção, ainda que a partir de um
quadro teórico distinto, Scotto demonstra como as biografias dos
candidatos em uma eleição majoritária fazem parte do jogo políti-
co, sendo objcto de construções e disputas fundamentais. Por fim,
as análises de Kuschnir e Teixeira tornam as eleições, de algum modo, 9
a postcriori. Enquanto a primeira analisa a relação entre a ação de
vereadores eleitos e as bases sociais e locais que garantiram sua elei-
ção, a segunda, detendo-se em um caso particular, demonstra que a
esfera parlamentar é governada, ao menos em parte, por um certo
conjunto de valores específicos.
 APRESENTAÇÃO •
' J MARCIO GOLDMAN e MOACIR PALMEIRA

Em suma, e ainda que referidos a momentos e contextos bem

delimitados, estes ensaios não se reduzem a 'análises de conjuntu-
I Referimo-nos aqui ao sentimento de que o conhecimento dos 'sistemas
ra'. Na melhor tradição da pesquisa antropológica, trata-se de, par-
JO!íticos' nativos era uma exigência prática para o suces~o _do mdtrect rufe
tindo de trabalhos empíricos precisos, propor chaves descritivas e 1I d 1 Grã-Bretanha nas suas relações com as colomas e para o pro-
interpretativas de aplicação mais geraP. Estes estudos sobre voto, .ll ora o pe a · · governo
••rama de descolonização progressiva que começava a :xtdsttr com ~ o
eleições e representação política- fenômenos cuja importância é " b · a preocupaçao os amencanos, n
I rabalhisraddohpós-ag;aergr~~~~f~:a:;~ dificuldade de adoção do sufrágio
quase desnecessário recordar - desenvolvem, pois, novas formas
contexto a c am ' d d · sua
de conferir inteligibilidade a uma série de problemas que, queira- . ! peça-chave de sua representação e emocraCla- ou com
umversa - ,
mos ou não, exercem uma influência decisiva sobre nossa existên- deturpação nos países do 'terceiro mundo·
cia coletiva e individual. 1 Importantes exemplos desse ripo de trabalho são: Bailey (1970; 1971);

l.andé (1977a; 1977b); Mayer (1963; 1977).

ldman e Sant'Anna (1995}, Palmeira (1992) e Teixeira
1
O s textos d e G o - · dí~·ren-
O ponto de partida deste livro foi um semwano intitulado ( 1996) foram publicados anteriormente em versoes mats ou menos e
Antropologia e Eleições, realizado às vésperas das eleições presiden- trs das que agora aparecem.
ciais de 1994 (enrre 31 de agosto e 2 de setembro) no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacio-
nal, Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual foram apre- Referências Bibliográficas
sentadas e debatidas dez comunicações escritas por antropólogos
acerca das eleições, do voto e de fenômenos correlatas. Ao longo ' .. F C 1970. Politics and Social Clwnge: Orissa in 1959. Berkeley:
I>AILU, . ·
dos quase dois anos transcorridos desde aquela reunião, muita coi- tlniversity of California Press. .
sa aconteceu: as eleições de 1994 tiveram seu desfecho, novas elei-
l!\ILE\, F. C. (org. )· 1971 · Gl.r.l~
.1''
arul Poison: 17w Policio o{ Repulal!OTI.
ções (municipais) se aproximam, alguns daqueles pesquisadores
( lxford: Basil Blackwell.
aprofundaram suas investigações, outros passaram a se dedicar a
. . d R" 1980 "P·u·l que Serve o Voto'( (i\s Elei-
novos temas de investigação ... Esses fatos esvaziaram a idéia de (· "JH \ Teresa P Jn•s o JO. · ' ' ·
.•\l.lll·. ' ' , . . p. ·t · d São Paulo)". ln: Bolivar Lamounwr
publicarmos os anais do seminário, no qual as intervenções dos ~-,-... , e o Cotidwno na en ena e p, l' . B . . ·z l970-
(org). vÍJto de Desconfiança. Ell'iç6e., c Mzulança o zttca no 'mt ,
debatedores foram tão relevantes quanto as dos expositores. Mas o
I 'J79. Petrópolis: Vozes.
i' ineditismo da experiência e a qualidade do que foi apresentado-
li ~1 . S \"I''\'""\ Ronaldo dos Santos. 1995. "Teorias, Rc-
além do empenho de Antonio Carlos de Souza Lima em tornar ( 'olll\1\'1 l>' aruo e • ·' ' "''' · - d 'V o"
' . t '- Pra't.J•·as· Elementos para uma ProLlematJzat,:ao o ot .
viável a publicação de seus resultados - levou-nos a propor aos Jlf"I',Cl1 açoes e v< • ,

Conwnicação I' Política 1(3): 139-152.

participantes que refizessem seus textos preservando o essencial do ]1
que foi originalmente apresentado, ou apresentassem outros que ,_. . ·. i\d 1988 17w bwention o{Primitive Society Tran.~formations
10 r..l•l'l·H, am. · .
considerassem pertinentes à temática do seminário e mais adequa- oj" 1111 Illusion. London: Rout1edge. . ,. . .,
dos ao contexto atual. . C l H l977a. "lntroduction: The Oyadic Basis of Chent~hsm.
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'l:EIXEIIL\, _Carla Costa. l 9<)6. "Dc~coro Parlamentar. A Le~"Íti 111 idade da
l'.slcr~ Pnvada uo Mundo Público'?" N<'l'ista Nra.,i/eira
Ciats .30 ( ll): ] I 0-127.
d:Ciéncia.\ So-
VCII.I<.:\, Marcos Vinicius e ALill <)l'EH<,ll'E. Holwrto Cavalcauti dt·. ]965 .
1 'sistema'; em última instância, não se trata propriamente de uma
.oronel, Coronéis. Hio de~ Janeiro: 11·mpo Brasileiro.
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O principal objetivo deste trabalho' consiste em discutir as
possibilidades de uma abordagem do processo eleitoral e do voto a
parrir de uma perspectiva apoiada sobre alguns pressupostos da an-
tropologia social ou cultural. Utilizamos, para isso, parte do mate-
rial empírico e teórico de uma pesquisa a respeito das eleições
brasileiras iniciada em 1994. Esta abordagem antropológica busca
evitar, em um primeiro momento, tratar o processo eleitoral como
tentativa de análise das eleições, com seus movimentos partidários e
de massa, mais suscetíveis talvez de um tratamento inspirado na
ciência política e em métodos quantitativos. Diríamos, antes, que
nosso propósito é a investigação do voto em sua densidade de esco-
lha individual e agenciamento coletivo. Em outros termos, trata-se
de mapear o conjunto de forças e processos globais que fazem com
que as escolhas políticas caminhem nesta ou naquela direção. Ques-
tão eminentemente antropológica, na medida em que a fusão dos
planos individual e coletivo, bem como do conjunto das institui-
ções sociais, aponta decisivamente para seu caráter de foto total.

Entre outras contribuições, esta abordagem especificamente

antropológica poderia colaborar para a superação de algumas difi-