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A literatura brasileira contemporânea entre consensos e dissensos

A literatura brasileira contemporânea parece já ter escolhido por excelência


um espaço de produção, um perfil de escritor, assim como tema e traços
característicos. Alguns críticos afirmam, legitimam, outros contestam, diz Regina
Dalcastagnè (2012) “é difícil pensar literatura brasileira contemporânea sem
movimentar um conjunto de problemas, que pode parecer apaziguado, mas que se
revelam em toda a sua extensão cada vez mais que algo sai de seu lugar”.

É que mexer com arte, cultura, linguagem é adentrar um espaço onde o poder
se faz presente e este está sempre nas mãos de uma classe dominante. Ao
iniciarmos os estudos sobre a prosa da ficção brasileira atual somos advertidos a
refletir sobre este “jogo de forças” em que está situado a literatura, observando que
há uma fertilidade e qualidade que emana do universo literário brasileiro
contemporâneo, mas que nem sempre são reconhecidos ou aparecem nas
universidades, se fazendo desta maneira necessário “deslocar a nossa atenção de
modelos, conceitos e espaços que nos eram familiares até pouco tempo atrás”
(RESENDE, 2008) e nos lançarmos em pesquisas que se façam conhecer essas
vozes “não autorizadas” presentes na contemporaneidade.

A literatura é um campo vasto e deve ser visto com o olhar da pluralidade é o


que defende Regina Dalcastagnè, muitos escritores novos estão surgindo e nessa,
há muita gente escrevendo literatura, o mais complicado nesse campo literário é a
legitimação enquanto escritor, pois a “classe dominante” já escolheu o perfil daquele
que pode escrever literatura e quando acontece uma ruptura deste perfil, toda classe
se ver ameaçada por ser dissonante para eles.

Maria Valéria Rezende rompe com este perfil e ao fazer isso está sob o
julgamento e comentários deselegantes dessa classe dominante que se sente
ameaçada, prova disso foi as manchetes dos jornais quando a escritora ganhou o
prêmio Jabuti na categoria melhor romance com sua obra Quarenta dias em 2015, “
Maria Valéria Rezende desbanca medalhões e vence Jabuti de romance”, “veterana
desbanca Chico Buarque e Cristovão Tezza” esta última soa ainda mais deselegante
para a escritora, uma vez que nem seu nome é citado.
Assim como fertilidade e qualidade, constatações apresentadas por Beatriz
Resende, no que se refere à temática em questão, a professora pesquisadora
apresenta ainda uma terceira que é a multiplicidade como consequência da primeira,
para a mesma, na literatura brasileira contemporânea não há espaços para regras
ou fórmulas fechadas, pois a multiplicidade está presente em todas as dimensões
literárias contemporâneas, seja na linguagem, formato, temáticas, espaço de
produção e até publicação, já que existe uma gama de escritores apostando na
publicação em redes sociais.

Enquanto traços característicos dominantes, Resende (2008) apresenta: a


presentificação, o retorno do trágico e o tema que é a violência nas grandes cidades.
Apesar de uma multiplicidade, também no espaço de produção, os escritores ainda
optam por escrever sobre a violência nas grandes cidades e mais uma vez a
escritora Maria Valéria Rezende rescinde com este protótipo, não fala sobre a
violência nas grandes cidades, tampouco tem por espaço e cenário as metrópoles,
mas o grande sertão, a exceção de Quarenta dias(2015) que tem por cenário Porto
Alegre – RS.

Em O vôo da guará vermelha(2014), corpus desta pesquisa, sentimos esta


urgência em lidar com o presente, seja nos diálogos que acontecem entre Rosálio e
Irene, seja na própria estrutura do romance. A escritora é criativa, dona de uma
escrita viva que muito se aproxima da realidade, para tanto, ela cria um narrador
personagem contador de histórias, de causos, que tem uma linguagem simples e
popular.

Não sei dizer, não lembro bem, o que foi que aconteceu nos três dias
que esperamos prá professora Rosália acomodar-se na casa, ajeitar o
quarto dela, terminarmos de fazer tamboretes e bancadas, prá escola
funcionar, só sei que passei o tempo todinho caçando de ver essa
professora , sem poder pensar mais nada. (REZENDE, 2014, p.52)

Em termos de estrutura o romance é capitulado por cores e há um entrelaçar


de histórias, como uma colcha de retalhos a ser costurada, ora é o narrador
heterodiegético quem narra, ora é Rosálio ou Irene, narrador personagem a contar
suas histórias, sendo que essa mudança de narrador está manifestada na mudança
da fonte de times para arial.
Também o retorno do trágico se faz latente, como diz o Frei Betto, O vôo da
guará vermelha é um “romance, impecavelmente bem-escrito, surpreende pela
estética do estilo, pelo ritmo e pela terna policromia de uma história tragicamente
bela”. Segundo Beatriz Resende(2008), o trágico atravessa várias obras
contemporâneas, aproximando obra da realidade, sendo também uma maneira de
aproximá-lo do presente tão perseguido pelos escritores, essa característica
segundo a pesquisadora não é um traço específico do literário, mas do mundo pós-
globalizado.

Assim como nas obras de Sergio Sant’Anna sinalizados por Resende(2008),


em o vôo da guará vermelha “a inexorabilidade do trágico invadem dolorosamente
as relações pessoais tornando a vida somente suportável pelo consolo da
arte”(RESENDE, 2008, p.30). Irene e Rosálio são sujeitos invisíveis em uma cidade
que não parece ser muito grande e sofrem, Rosálio pela fome que sente das
palavras, das cores, de gente, de qualquer coisa que o faça “evocar histórias e que o
faça saltar para outras vidas”(REZENDE, 2014, p.9), Irene, pelo cansaço, pois a vida
não fora fácil para ela e com isso, sente apenas vontade de morrer “mas o menino e
a velha, quem vai cuidar?, Irene não pode ir embora, não é livre para
morrer”(REZENDE, 2014, p.35)

É neste cenário de uma cidade, “que o paradoxo trágico se constrói entre a


busca de alguma forma de esperança e a inexorabilidade trágica da vida cotidiana
que seguem convívio tão próximo com a morte” (RESENDE, 2008, p.31). São as
histórias contadas por Rósalio que ameniza a vida de Irene, fazendo-a viver,

Irene ficou deitada, não porque estivesse fraca, até se sentia bem!,
mas queria estar sozinha para pensar com mais sossego nas coisas
que ele dissera, lembrar como, por palavras ditas com a boca ou com
as mãos, cortara pela raiz a planta de desespero que havia crescido
nela e em seu lugar semeara satisfação e desejo de ainda viver de
amor, por pouco tempo que fosse, pouca vida que tivesse, antes tarde
do que nunca. Era tão bom esperar!(p.67)

Já Schollhammer, compreende que para se falar de literatura brasileira


contemporânea é necessário primeiro entender o que quer dizer o termo
contemporâneo e nesse “contemporâneo” o que quer dizer literatura. Para chegar a
uma resposta ele se debruça em teóricos como Roland Barthes, Nietzsche e chega
à conclusão de que “ser contemporâneo [...] é ser capaz de se orientar no escuro e,
a partir dai, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com um presente com
o qual não é possível coincidir” (SCHOLLHAMMER, 1987, p.10).

As reflexões apresentadas por Schollhammer ao longo do livro, nos fazem


entender melhor tal definição, a primeira é que para se acompanhar o sujeito pós-
moderno o escritor precisou também fazer adaptações no seu fazer literário, “a obra
com início-meio-fim não corresponde mais as necessidades deste sujeito
contemporâneo” assim surge as narrativas estilhaçadas, o sujeito pós-moderno por
si só é fragmentado, confuso, complexo, plural. É diante deste contexto, que os
escritores se vêem motivado pela urgência de se relacionar com o presente, mesmo
estando consciente da incapacidade de captá-las em sua especificidade atual
(SCHOLLHAMMER, 1987, p.10).

Em consonância, a pesquisadora Dalcastagnè nos lança diante de um eterno


conflito entre o escritor e a palavra, vendo a linguagem como uma armadilha
perigosa, ou podemos dizer como Barthes, vendo a literatura como uma trapaça,
sendo seu instrumento a palavra, estas “não são transparentes. Não temos como
ver, através delas todas as suas implicações (DALCASTAGNÈ, 2012, p.68), os
escritores conhecem este perigo que há na linguagem restando a eles tão somente
a insistência.

“As palavras jamais darão conta do vivido , como diz Gorz, então só
resta ao escritor a tarefa de tentar aproximações e de insistir. Insistir
ainda que o resultado seja inferior ao prometido, ao imaginado, insistir
mesmo que se sinta traído em suas emoções,em seus pensamentos.
A frustração diante do que não se pode dizer, talvez, só não seja mais
forte que a necessidade de continuar tentando ” (DALCASTAGNÈ,
2012, p.69)

Por outro lado, tem-se o narrador, outro elemento importante na tentativa de fisgar o
leitor e captar o presente. O narrador contemporâneo segundo Dalcastagnè(2012), é
um sujeito incerto que na maioria das vezes “tropeça no discurso, esbarra em outros
personagens, perde o fio da meada” e está sempre envolvido com a matéria
narrada.

Irene ri, amargo e torto, com uma banda só da boca para não deixar
ver a falha dos dentes da outra banda, ainda que ninguém a veja
agora, ainda que ninguém lhe olhe a cara de frente, nunca. Engraçada
aquela assistente social, “deixe essa vida", está certo, eu deixo essa
vida, não me importo de tudo se acabar agorinha, que esta minha vida
só tem uma porta, que dá para o cemitério, mas a senhora vai tomar
conta do menino e da velha? Era bom, que Irene já quase nem
consegue levar dinheiro toda semana... (REZENDE, 2014, p.11)

O vôo da guará vermelha nos dá pistas de um fazer literário contemporâneo,


esse misturar de vozes, ora de um narrador heterodiegetico, ora de um narrador
personagem, ora de um narrador benjaminiano que é o contador de histórias, requer
um leitor atento e compromissado, ao mesmo tempo a história bela e trágica de
Irene e Rosálio nos aponta uma escritora preocupada com as vozes que são
silenciadas tanto neste jogo de forças que é a literatura como dentro do próprio fazer
literário.

Por fim, entre os consensos e dissensos que permeiam os discursos em torno


da literatura brasileira contemporânea o que podemos perceber é uma preocupação
por parte dos escritores de saberem lidar com o presente, em alguns ela se
manifesta como uma urgência de romper com as construções discursivas de uma
classe dominante e opressora,

na perspectiva de uma reinvenção do realismo, a procura de um


impacto numa determinada realidade social, ou na busca de se refazer
a relação de responsabilidade e solidariedade com os problemas
sociais e culturais de seu tempo. Para outros [...] evocar e lidar com a
presença toma-se sinônimo de consciência subjetiva e de uma
aproximação literária ao mais cotidiano, autobiográfico e banal, o
estofo material da vida ordinária em seus detalhes mínimos.
(SCHOLLHAMMER, 1987, p.15)

Entre os dissensos, um longo debate se faz pertinente quando se fala em


fertilidade e multiplicidade, enquanto Resende afirma que ultimamente têm-se
publicado bastante e que novos escritores e editoras surgem a todo momento
(RESENDE, p.16), Schollhammer critica o mercado editorial com dados estatísticos
que comprovam a decadência do mercado do livro entre 1998 a 2007.

No que se refere à multiplicidade, ainda que haja uma concordância no que


se alude à produção literária, isso não se aplica a legitimidade e a valoração.
Segundo Dalcastagné, a literatura é ainda um campo homogêneo e escrever
literatura não legitima ninguém como escritor, em seu livro Literatura brasileira
contemporânea; um território contestado (2012), a pesquisadora apresenta o
resultado de uma pesquisa desenvolvido na UnB, em que foram analisadas 258
obras, correspondente a romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 pelas
editoras Companhia das letras, Record e Rocco.

Como resultado, observou-se que o corpus incluiu 165 autores (p.158), entre
estes 72,7% são homens, 93,9% dos autores e autoras estudadas são brancas,
78,8% possui escolaridade superior, mais de 90% vivem nas capitais sendo que
70% estão concentrados em Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas
Gerais.

Deste modo, percebemos que embora que tenha muitos escritores


escrevendo e sendo publicados nos últimos anos, nem todos são reconhecidos
enquanto literatura, os números desta pesquisa da Dalcastagnè, “indicam o perfil do
escritor brasileiro contemporâneo. Ele é homem, branco, aproximando ou já
entrando na meia idade, com diploma superior, morando no eixo Rio-São Paulo”
(DALCASTAGNÈ, 2012, p.162).

Cabendo aos escritores “não autorizados”, rotulações nas livrarias ou


desvalorizações de preço no mercado editorial. Os rótulos norteiam hoje grandes
discussões, há os que acreditam que eles são importantes para circulações de suas
obras e para afirmação de identidade e os que acreditam que eles desvalorizam
seus trabalhos. No final o que todos desejam é serem reconhecidos como escritores
de literatura, mas enquanto isso não é possível, falemos das vozes silenciadas.

Referências:

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território


contestado. – Rio de Janeiro: Editora Horizonte, 2012.

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século


XXI. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. – Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2009.

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