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RECENSÃO

Património, Ruralidade e Turismo.


Etnografias de Portugal Continental e dos Açores,
de Luís Silva,
por Xerardo Pereiro

Análise Social, 217, l (4.º), 2015


issn online 2182-2999

edição e propriedade
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9
1600-189 Lisboa Portugal  —  analise.social@ics.ul.pt
RECENSÕES 855

silva, Luís
Património, Ruralidade e Turismo.
Etnografias de Portugal Continental e dos Açores,
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2014, 211 pp.
isbn 9789726713449

Xerardo Pereiro

Este é um livro do antropólogo Luís Silva portuguesa, com destaque para o autor
(cria), com um prefácio de João Leal deste magnífico livro. Um livro de 168
sobre as novas funções do campo em páginas muito acessível na linguagem,
Portugal, a sua multifuncionalidade, as não exclusivamente orientado para aca-
novas produções e consumos, e também démicos. Ele teve como base um longo,
as suas representações. João Leal afirma multisituado e longitudinal trabalho de
neste prefácio a continuidade e renova- campo do autor em Portugal Continental
ção do olhar ruralista da antropologia e nos Açores. Ao contrário de um a­ nterior
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livro em língua portuguesa (Silva, 2009), ruralidade portuguesa é idealizada pela


que se centrou no turismo rural, este foca imagem turística assente em três elemen-
a problemática relação entre patrimónios tos-chave para o autor: a paisagem, as
cultur-naturais e turismo. relações sociais e a autenticidade.
Além de uma introdução geral, o livro A primeira parte aborda os signifi-
estrutura-se em três partes, que integram cados do património cultural, os seus
cinco capítulos, unidades que dão corpo usos turísticos e os seus efeitos em con-
a cinco casos de estudo bem etnografa- textos rurais. Estamos a assistir a uma
dos pelo autor, e com um fio condutor mudança, relativamente recente na sua
bem definido. A maioria dos textos já intensidade e extensão, que é a conver-
tivera publicação anterior em revis- são do património cultural de emblema
tas científicas internacionais de grande nacional e também regional, diria eu, a
prestígio, portanto já eram conhecidos e símbolo de promoção turística. Isto é, o
reconhecidos pelos académicos. Agora, património cultural já não é só para nós,
com esta publicação, o autor torna aces- é cada vez mais para os outros, sendo este
sível em língua portuguesa e para um convertido em mercadoria, ou melhor, a
público mais alargado, trabalhos publi- experiência turística deste.
cados anteriormente em inglês. Este O primeiro caso de estudo é apresen-
exercício de partilha e transferência de tado pelo autor no capítulo 1, e refe­re-se
conhecimento com os estudados e outro ao seu trabalho de campo em Castelo
público mais vasto é muito relevante para Rodrigo (município de Figueira de
os leitores, que dispõe assim de um livro Castelo Rodrigo, distrito da Guarda).
­
muito agradável na sua apresentação e Nesta aldeia histórica as casas habitadas
estrutura, esclarecedor, analítico e pro- foram-se convertendo em património
fundamente reflexivo. cultural através de processos de institu-
Logo na introdução geral, o autor cionalização de uma imagem idílica do
apresenta a dupla realidade do rural, a rural. Esta segunda vida do património
material (geográfica) e a imaterial (ima- vai afogar a primeira vida e gerar con-
ginada), e as suas premissas em relação frontos entre visões e agentes sociais
à permanência do rural português, recu- participantes no processo de patrimo-
sando a utilidade do conceito de “pós-ru- nialização. Ela é fundamentalmente pro-
ralidade” para este caso, assumindo antes tagonizada por práticas governamentais
o de “nova ruralidade” para definir as que usam tecnologias de poder para
transformações na conceção e no papel alhear os residentes e os seus pontos de
do rural nas últimas décadas. Luís Silva vista sobre as suas habitações sociais.
chega a afirmar aqui algo com o qual Neste capítulo, o autor desenvolve uma
não posso estar mais de acordo: “(…) crítica às teorias e práticas da governa-
hoje talvez mais do que no passado e de mentalidade, por não contemplarem a
diferentes formas, a ruralidade é uma resistência e a contestação, mas também
constante da sociedade portuguesa”. E a por não escutarem e integrarem o ponto
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de vista dos r­esidentes do património concorrência e tensão intracomunitária,


cultural nas políticas de patrimonializa- inveja e competição por recursos e pres-
ção lideradas por políticos e arquitetos. tígio social.
Neste primeiro capítulo também se A segunda parte do livro envolve dois
mostra o efeito reduzido do turismo na capítulos sobre ecoturismo e governa-
regeneração rural em Portugal e tam- mentalidade nos Açores, centrando-se
bém na Europa, algo que na nossa pers- mais nos patrimónios naturais. O ter-
petiva é de geometria variável, tendo ceiro capítulo aproxima-se da observação
em atenção as diferentes relações entre de cetáceos e os seus efeitos sociocul-
turismo, agricultura e meios rurais. Este turais e económicos numa perspetiva
primeiro capítulo conclui com um tom qualitativa. Um foco de análise, parti-
reflexivo sobre a procura de conciliação cularmente relevante, e já presente nos
entre a proteção do património cultural capítulos anteriores, diz respeito à tensão
e a necessidade de as pessoas habitarem entre conservação e desenvolvimento
o património cultural, isto é, é preciso turístico, o que dificulta a governança
articular a componente estética com a de um turismo de base comunitária e a
componente social, algo que vem sendo distribuição dos benefícios gerados pelo
repetido por numerosos investigado- turismo.
res. Este capítulo, baseado numa etno- No capítulo quarto, o autor faz uma
grafia muito elucidativa e pedagógica, apresentação exemplar da governamen­
aponta para a necessidade de uma nova ta­lidade e das suas perspetivas teóricas
governança do património cultural em (governamentalidade transna­cional, con-
­Portugal. tra­­governamentalidade, gover­namenta-
O segundo capítulo apresenta os efei- lidade a partir de baixo, ecogoverna-
tos da construção patrimonial na per- mentalidade,…) aplicadas ao desenvol-
ceção dos residentes de Sortelha (aldeia vimento do turismo. O contributo do
histórica do município de Sabugal, dis- autor é muito importante neste capítulo
trito da Guarda), que potencialmente são porque, segundo uma perspetiva inspi-
de divisão ou de coesão social. Do ponto rada em Foucault, apresenta-nos uma
de vista económico, os efeitos positivos etnografia dos processos de patrimonia-
da patrimonialização ficaram aquém lização da paisagem na comunidade de
das expetativas ou previsões. Segundo o Sete Cidades (Açores).
autor, a consciência da singularidade do A paisagem é vista pelo autor como
património cultural leva consigo maior uma arena política contestada, um espaço
coesão social entre os residentes e tor- disputado, na qual interesses diferentes,
na-se uma fonte de orgulho pessoal e que ele muito bem analisa, podem diver-
coletivo. Mas o sentido do lugar e da gir no momento de utilizar os recursos
localidade podem ver-se ameaçados se o naturais. Na sua função antropológica de
turismo afetar a perda de privacidade das dar voz às pessoas, Luís Silva conclui que
comunidades recetoras, gerando assim os programas de conservação ambiental
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funcionam melhor quando o ponto de De acordo com Luís Silva, o ideal


vista local é tomado em consideração, pastoral passou em Portugal da litera-
e quando as comunidades locais parti- tura de ficção para as práticas turísti-
cipam ativamente no processo. O autor cas. Ainda assim, o autor afirma que em
também conclui que existem modos dife- Portugal, ao contrário de outros países,
rentes de os contextos rurais experimen- os portugueses frequentam pouco o
tarem a globalização. turismo rural, porque segundo ele sen-
A terceira parte do livro foca-se na tem mais atração pelas praias e porque
persistência da ideologia pastoralista em os citadinos ainda continuam a ter laços
Portugal. O pastoralismo é uma ideolo- familiares fortes com o rural. Em sín-
gia que idealiza os espaços rurais e pre- tese, recomendamos vivamente o livro
coniza a fuga da cidade para os campos, Património, Ruralidade e Turismo, que
considerados mais simples, próximos representa um contributo antropológico
da natureza, e repositórios de virtudes muito importante para melhor entender
perdidas nas cidades. O ideal pastoral é as complexas e dinâmicas relações entre
de dois tipos: a) imaginativo-complexo; patrimónios e turismo.
b) popular e sentimental. O primeiro é
bem expresso na literatura de ficção e referências bibliográficas
Luís Silva analisa, de forma sumária e bri-
lhante, a literatura portuguesa do século silva, L. (2009), Casas no Campo. Etno-
xix, o seu uso da dicotomia rural/urbano grafia do Turismo Rural em Portugal,
e a idealização do campo como cenário ­Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.
paradisíaco. Segundo o autor, o turismo
rural atual é também uma versão da ideo-
logia pastoral, catalisadora e força motriz
pereiro, X. (2015), Recensão “Património, Rurali-
da viagem ao campo na procura de revi-
dade e Turismo. Etnografias de Portugal Continental
goramento, relações sociais mais estrei- e dos Açores, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,
tas e amistosas, tranquilidade, calma e 2014”. Análise Social, 217, l (4.º), pp. 855-858.
“cura” (diria eu). Paradoxalmente, como
Xerardo Pereiro  »  xperez@utad.pt  » Universi-
nos mostra o autor, a maioria dos turistas dade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Escola de
rurais não querem ou gostam de viver no Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Eco-
campo por motivos profissionais, falta de nomia, Sociologia e Gestão » Edifício do Pólo ii
da echs, Quinta de Prados, 5000-801-Vila Real,
serviços, equipamentos, oportunidades
Portugal.
de emprego e o que consideram “tédio”.

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