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Psicologia Junguiana na Contemporaneidade: A vivência surda no conto "O


Patinho Surdo"

Thesis · November 2017

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Cesar Braz
Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo
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FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE - FACIS

CESAR DOS SANTOS SILVA BRAZ

PSICOLOGIA JUNGUIANA NA CONTEMPORANEIDADE: A


VIVÊNCIA SURDA NO CONTO “O PATINHO SURDO”

ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA JUNGUIANA

São Paulo
2017
Cesar dos Santos Silva Braz

PSICOLOGIA JUNGUIANA NA CONTEMPORANEIDADE: A


VIVÊNCIA SURDA NO CONTO “O PATINHO SURDO”

Monografia apresentada à FACIS como


requisito parcial para obtenção do título
de especialista em Psicologia Junguiana.

São Paulo
2017
RESUMO

Viver como surdo nos dias de hoje geralmente é um verdadeiro desafio, principal-
mente para uma criança, considerando sua personalidade que ainda está em forma-
ção e também sua dependência à família. O propósito deste estudo é do investigar o
conto adaptado “O Patinho Surdo” e analisar se o conto pode ser relacionado à
vivência surda, através de uma análise simbólica do mesmo. A linha de problemati-
zação fundamenta-se na questão: Quais aspectos coletivos dessa vivência estão
presentes no conto? As suposições iniciais apontavam que o conto correspondia a
vivência do surdo de modo coletivo, devido as condições em que vivem, a falta de
comunicação com os pais que geralmente não conhecem a Libras. Este estudo é do
tipo qualitativo de cunho reflexivo conceitual com delineamento bibliográfico acerca
de uma leitura investigatória sobre o conto “O Patinho Surdo” e sua relação com a
vivência surda, na perspectiva da Psicologia Analítica. O estudo foi realizado por
meio do levantamento de materiais bibliográficos, relacionados aos conceitos fun-
damentais da Psicologia Analítica, aos sujeitos surdos, a Libras e os contos. Os
resultados apontam para a correspondência do conto à vivência, que consiste em
uma dificuldade imensa na apropriação de sua identidade surda, em frustração, em
falta de relacionamento com a mãe e no preconceito enfrentado na sociedade.

Palavras-chave: Surdos, Conto de Fadas, Patinho Surdo, Psicologia Junguiana.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 4

CAPÍTULO 1 .......................................................................................................................... 8

CONCEITOS DE PSICOLOGIA ANALÍTICA .......................................................................... 8

CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................ 11

ASPECTOS PSICOLÓGICOS DO SURDO .......................................................................... 11

CAPÍTULO 3 ......................................................................................................................... 16

DADOS SIMBÓLICOS DO CONTO DE FADA E A RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO


DA CRIANÇA SURDA ........................................................................................................... 16

CONCLUSÃO........................................................................................................................ 21

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 23

ANEXO A - CONTO DE FADAS “O PATINHO FEIO” .......................................................... 27


4

INTRODUÇÃO

Este tema surge da minha experiência como intérprete de Língua Brasileira


de Sinais (Libras). Nestes anos de convivência com Surdos, pude entrar em contato
com muitas realidades que para mim, hoje, me parecem padronizadas. É surpresa
para mim se os pais do Surdo se comunicam integralmente com seus filhos, pois o
padrão é que os pais dependam de um intérprete para conseguir entender seu filho,
e geralmente esse intérprete é da escola ou mesmo da faculdade.
Uma iniciativa que me chamou muito a atenção foi a popularização de con-
tos de fada adaptados à realidade surda, ou seja, são aqueles contos que conhece-
mos, porém com personagens surdas e ouvintes, tendo seu título modificado, como
por exemplo “Rapunzel Surda”, “Chapeuzinho Surda” e “Cinderela Surda” por exem-
plo. Os contos são modificados minimamente por pedagogos, intérpretes de Libras
com o objetivo consciente de auxiliar crianças a se apropriarem de sua identidade
surda (XAVIER, 2009).
Dentre estes contos, encontrei “O Patinho Surdo”, que se trata de um conto
onde um pato surdo nasce em uma família de patos ouvintes. A problemática se dá
quando o patinho não se adequa a oralidade dos irmãos e da mãe, até que resolve
sair perdido a procurar seus iguais, até que, depois de muitas aventuras, encontra
patos usuários de língua de sinais. Desse conto adaptado, imaginei que o conto
inspirado pelo tradicional “O Patinho Feio” pudesse ser o padrão de vida do sujeito
Surdo.
Meu contato com Surdos se iniciou quando decidi fazer um curso de Libras.
A Libras é uma língua, que foi reconhecida oficialmente e tardiamente como segun-
da língua do Brasil e a primeira língua dos Surdos pela lei nº 10436 de 24 de abril de
2002 e regulamentada por meio do decreto 5626/2005. É uma língua viva e autôno-
ma como as demais línguas, como o inglês, espanhol ou mandarim, tendo em sua
estrutura síntese, semântica, nível morfológico, fonológico e pragmático
(CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001). Por meio dela, assim como as demais línguas, é
possível passar quaisquer tipos de informações, como científicas, poéticas, jornalís-
ticas etc.
Assim como toda língua, a Libras não é utilizada por todos os países, sendo
que cada país possui sua própria língua de sinais, como a American Sign Language
5

(ASL), a Langue des Signes Française (LSF), a Australian Sign Language (Auslan),
Língua de Sinais de Maurício, Israeli Sign Language (ISL) etc.
Porém, antes de ela ser reconhecida, já existia há muitos anos, sendo im-
possível determinar o ano de seu nascimento (CHOI, 2011). Sabe-se que a Libras
teve forte influência da LSF, pois a Libras começou a se estruturar quando Conde
Hernest Huet, surdo francês, foi convidado por Dom Pedro II, imperador do Brasil, a
projetar no Rio de Janeiro o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, hoje conhecido
como Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) (CHOI, 2011). Este instituto
funcionava como internato para meninos surdos, onde eles se formavam no que
hoje é equivalente ao Ensino Regular (Ensino Básico, Fundamental e Médio), e
voltavam aos seus estados, onde disseminavam a Libras, criando institutos e asso-
ciações de surdos e difundindo a Libras onde até então se usavam sinais caseiros.
O uso de sinais caseiros não era adequado, pois são gestos constituídos de
significado somente entre uma mãe e seu filho, não compreensíveis por nenhuma
outra pessoa fora de seu círculo de convivência (TERVOORT apud BEHARES e
PELUSO, 1997) fazendo com que o surdo não seja incluído de fato nas diversas
áreas da sociedade. Como sinais caseiros não são uma língua, não expressa tam-
bém todo tipo de pensamento, por ter discurso pobre e emergencial.
A criação do Instituto Imperial de Surdos-Mudos foi seguida pela criação do
Instituto Santa Therezinha em São Paulo em 1929 para meninas, só havendo um
crescimento significativo de números de atendidos a partir da década de 60
(BUENO, 1993). A Libras obteve enfim uma publicação de suma importância, que foi
a primeira estruturação da gramática, a primeira vez que foi defendida como língua
de fato pela Dra. Lucinda Ferreira de Brito através de seu livro “Por Uma Gramática
de Língua de Sinais” em 1995 (FERREIRA, 1995/2010).
Essa língua é utilizada pela Comunidade Surda, que são, como o nome diz,
Surdos que partilham da mesma língua e de uma cultura específica própria e deriva-
da do modo de viver desses indivíduos. Eles consideram o não-ouvir como natural,
por isso se denominam Surdos, e não Deficientes Auditivos (SASSAKI, 2002). Den-
tre estes surdos, pode-se dividi-los em oralizados e sinalizantes. Segundo Quadros
(2004), os oralizados são os surdos que conseguem se expressar pela língua oral e
realizar leitura orofacial, desenvolvida em um forte trabalho junto a Fonoaudiologia.
Os sinalizantes são os surdos que tem a Libras como primeira língua, e o português
escrito como segunda língua.
6

No Brasil, ter deficiência auditiva significa pertencer ao segundo maior grupo


dos tipos de deficiência, chegando a cerca de 2 milhões de pessoas com deficiência
auditiva severa segundo o Censo do IBGE de 2010.
É necessário salientar que não são todas as pessoas que tem deficiência
auditiva que são considerados Surdos. Como foi dito, o Surdo é o que faz parte da
Comunidade Surda e utiliza a Libras. Então as pessoas que tem algum nível de
perda auditiva, e utilizam como primeira língua o português, não fazem parte desta
comunidade. Estes surdos possuem características e costumes comuns. Mesmo os
surdos oralizados costumam preferir a Libras pois por meio dela conseguem ter
acesso a 100% do que é dito, enquanto que através da oralização, há os entraves
do aparelho auditivo com som não-natural, as dificuldades de diferenciações de
palavras como vaca e faca, a leitura labial extremamente difícil, fazem com que a
Libras seja a língua natural da comunidade.
Apesar da surdez ser adquirida muitas vezes por Rubéola ou administração
incorreta de medicamentos, Meningite etc., a surdez não deve ser considerada como
doença, mas como uma identidade cultural (NÓBREGA et. al., 2012).
A maioria quase que absoluta dos Surdos nascem em famílias ouvintes que
nunca ouviram falar da Cultura Surda, da Libras e de todo contexto cultural que
existe. Por este motivo, sofrem perante o diagnóstico da deficiência auditiva. E pela
falta de informações nos serviços de saúde, tanto particulares quanto públicas, a
criança vai crescendo sem língua e muitas vezes sem interação com o mundo, numa
fase tão importante para o desenvolvimento biopsicossocial-espiritual.
Geralmente as crianças conhecem a língua de sinais após os 3 ou 4 anos de
idade, enquanto qualquer criança ouvinte com desenvolvimento satisfatório tem
contato com a língua desde o nascimento.
Pela vivência em escolas, entrei em contato com uma história em Libras
chamada “O Patinho Surdo”, que consiste no conto do Patinho feio com algumas
adaptações, enfocando a questão da interação entre o surdo e o ouvinte. É possível
que o conto infantil seja a representação simbólica vivenciada pela maioria dos
Surdos.
Este estudo é do tipo qualitativo de cunho reflexivo conceitual com delinea-
mento bibliográfico acerca de uma leitura investigatória sobre o conto “O Patinho
Surdo” e sua relação com a vivência surda, na perspectiva da Psicologia Analítica.
Segundo Gil (1999), a pesquisa bibliográfica é fundamentada em materiais já publi-
7

cados, como livros e artigos científicos que permitem investigar os fenômenos e


estudos realizados na área. O estudo foi realizado por meio do levantamento de
materiais bibliográficos, relacionados aos conceitos fundamentais da Psicologia
Analítica, aos sujeitos surdos, a Libras e os contos.
O estudo tem a seguinte organização: Inicia-se pela introdução, onde há a
apresentação do tema e suas motivações, composto também de um quadro teórico
e conceitual acerca da Comunidade Surda, dos Surdos e da Libras.
Em seguida vem o capítulo 1 com o título “Conceitos de Psicologia Analíti-
ca”, abordando os conceitos básicos da Psicologia Analítica, através da literatura
clássica, o papel dos contos para os indivíduos e a sociedade em geral, tomando
como base a literatura junguiana.
O capítulo 2 “Aspectos Psicológicos dos Surdos” traz o que há na literatura a
respeito da cultura surda e do indivíduo surdo, suas especificidades e suas diferen-
ças da cultura ouvinte predominante.
O capítulo 3 “Dados simbólicos do conto de fada e a relação com o desen-
volvimento da criança surda” traz então a leitura simbólica do conto, linkando a
Psicologia Junguiana, o conto e o Surdo, associando a vivência do surdo descrita
pela literatura e o conto de fadas. O trabalho segue com a conclusão, as referências
e o anexo.
Este estudo vem contribuir para o meio científico em um momento em que
não se é encontrada nenhuma reflexão junguiana até o momento sobre a vivência
surda. Este trabalho vem também elucidar aos clínicos algumas vivências de surdos
que são comparáveis ao conto adaptado “O Patinho Surdo”. Serve também como
incentivo aos demais junguianos a atentar-se a esta minoria que sofre pela falta de
psicólogos no Brasil que conheça a Libras e os aspectos desta cultura.
O objetivo deste estudo visa investigar o conto “O Patinho Surdo” e analisar
se o conto pode ser relacionado à vivência surda, através de uma análise simbólica
do mesmo. Acredita-se que o conto representa simbolicamente o padrão vivencial
da pessoa surda.
8

CAPÍTULO 1: CONCEITOS DE PSICOLOGIA ANALÍTICA

Para pensar a psicodinâmica da vivência da infância do surdo na falta da fala,


considera-se o desenvolvimento de complexos materno e/ou paterno negativos.
Os processos do inconsciente não são acessados diretamente, mas é neces-
sário a intermediação do consciente, sendo então observáveis através dos conteú-
dos inconscientes que chegam à consciência (JUNG, 2013).
Sobre o inconsciente, Jung (2013) observou em pessoas com esquizofrenia
que a inconsciência não é composta somente por conteúdos que outrora foram
conscientes e já não são mais, o que é chamado por ele de inconsciente pessoal.
Há uma "camada ainda mais profunda" que é universal, de forma nenhuma inventa-
da, mas descoberta, e aparece espontaneamente em tradições, mitos, contos de
fada, fantasias, sonhos, visões e ideias delirantes, seja em qual país for. Impulsos,
modo de agir constituem o comportamento instintivo de toda humanidade. Jung
(2013) escolheu o termo "arquétipo" para se referir a estes instintos.
Então, além do inconsciente que contém conteúdo de ordem pessoal com ori-
gem em experiências e aquisições pessoais, tal como Freud afirma em sua teoria,
há também o inconsciente coletivo, que se trata de uma camada mais profunda
(JUNG, 2014)
Os arquétipos são os elementos originários e que serve de base para a psi-
que humana. É impossível representa-los ou ter acesso direto a eles, mas é possível
experimentar de seus efeitos por meio das imagens arquetípicas. Eles se manifes-
tam tanto coletivamente nas características de um povo quanto de forma pessoal por
meio dos complexos. Os arquétipos são os conteúdos do inconsciente coletivo, são
“tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que existiram
desde os tempos mais remotos” (JUNG, 2014 §5)
O arquétipo é então, coletivo e inconsciente e para chegar à consciência de
forma pessoal é necessário apresentar-se através dos complexos (JUNG, 2013). O
complexo se constitui de um núcleo, que é o arquétipo, sendo que ao redor deste
núcleo giram as experiências do sujeito referentes ao arquétipo (JACOBI, 1957).
Quando o complexo é constelado estando carregado de afeto, pode se opor as
intenções do Ego, se comportando como um corpo estranho que “implica um estado
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conturbado de consciência” (JUNG, 2013, §200), dificultando as intenções da vonta-


de consciente, muitas vezes tendo um grande domínio sobre a personalidade.
No processo de individuação, que é um processo contínuo de integração de
conteúdos inconscientes à consciência, tais complexos serão confrontados, trazendo
a expansão do consciente e o processo de individuação (JUNG, 2014).
Segundo Kast (1997), os complexos materno e paterno se estabelecem pela
experiência direta com seus representantes e é importantíssimo para o desenvolvi-
mento do sujeito, organizando-se a partir das referências materna e paterna. O
complexo paterno é carregado de energia e, se positivo, tem amor, afeto e carinho, e
no caso de complexo paterno negativo, há raiva, ressentimento e rancor.
Kast (1997) destaca que os complexos negativos costumam causar grandes
impactos, como trazer dificuldades em trilhar um caminho próprio, impactos sobre
medos, insegurança, inferioridade e culpa. Segundo Corneau (1991) a figura paterna
tem função importante no desenvolvimento dos filhos.
Inicialmente, o bebê busca a mãe como objeto de desejo e identificação, de
forma que a mãe está mais próxima que o pai. O pai mais tarde exerce seu papel
importante de autoridade (JUNG, 2014), de nomear a realidade, organizar o mundo
externo e transformá-lo em acessível. Já o complexo materno pode produzir efeitos
diversos (JUNG, 2014). Em mulheres, intensificação, atrofia ou extinção dos instintos
maternos, por exemplo, com diversas consequências sociais e psíquicas.
Sabe-se então que os contos, especificamente, são representações arquetípi-
cas de forma simples e pura de caráter coletivo. Sua simbologia relaciona-se aos
aspectos inconscientes. Von Franz (1990) afirma que são os contos os que mais
refletem as estruturas básicas da psique.
A humanidade busca sentido para sua vida desde o tempo primitivo, e uma
das provas disso são os contos, que até hoje continuam fazendo sucesso, que até
hoje são contados em nossas escolas, em nossas famílias e nas ruas.
Platão registrou em seus escritos que mulheres idosas contavam estórias
simbólicas para seus filhos e que fazia parte da educação deles. Além disso, os
egípcios deixaram para nós registros de contos em papiros e colunas (VON FRANZ,
1990).
Von Franz (1990) também afirma que os contos foram contados para adultos
como prática comum até o século XVIII, diversão para povo do campo na Europa no
inverno.
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Rico em simbologia, está repleto de relações com o inconsciente humano.


Silveira (1994) afirma que os contos são como os sonhos, representam aconteci-
mentos psíquicos, entretanto, diferindo dos sonhos no fato dos sonhos apresenta-
rem também conteúdo pessoal, sendo que os contos se referem a vivência coletiva
numa dimensão arquetípica.
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CAPÍTULO 2: ASPECTOS PSICOLÓGICOS DO SURDO

O nascimento de um filho Surdo é sempre inesperado. Uma família não es-


pera nem imagina na maioria das vezes que seu filho vai nascer com algum tipo de
deficiência.
Observa-se que há um padrão entre os surdos que infelizmente obtém o di-
agnóstico tardiamente (SOUSA, 2011) trazendo inclusive dificuldades na oralização
ou no aprendizado do surdo, também atrasando a aquisição de alguma língua, seja
a Libras ou a oralização.
Muitas mães demonstram sofrimento e angústia diante do diagnóstico de
surdez. As mães relatam diversas reações diante do diagnóstico, como o choque,
que mostra o impacto da notícia. Há também os sentimentos de tristeza, culpa e
muito choro, diferenciando de uma pessoa para outra quanto ao grau vivenciado
(SOUSA, 2011).
Sousa (2011) realizou uma pesquisa em famílias atendidas no Centro de Re-
ferência em Educação e Atendimento Especializado do Ceará (CREAECE) com dez
mães de filhos surdos. O estudo baseou-se em analisar as reações das mães ao
receberem o diagnóstico de surdez e as expectativas em relação ao futuro do filho
surdo. Algumas mães relatam ter sido castigadas por Deus no momento do choque
inicial.
Quando o impacto inicial do diagnóstico passa, as mães vivenciam diversos
sentimentos até acostumar com a ideia e pensar no futuro do filho. Algumas mães,
segundo Sousa (2011) buscam na religião a aceitação da realidade posta, tentando
amenizar o sofrimento.
Monteiro, Silva e Ratner (2016) realizaram uma pesquisa sobre o que os
surdos narram sobre a descoberta de sua própria surdez, com cinco surdos adultos,
e concluíram que os surdos vivenciam nas famílias o desprezo, negação, raiva,
tristeza, desapontamento e luto. Uma das participantes surdas da pesquisa chega a
dizer que ninguém deseja ter um filho surdo. Há um impacto do diagnóstico na famí-
lia muito forte, e isso pode afetar o desenvolvimento do surdo.
Solé (2005) associa a alienação do surdo à mãe e os traços depressivos à
falta de uma língua. A Libras não tem substituído a língua oral por conta da falta de
12

informação geral nos meios públicos e na sociedade, resultando na falta de projeção


e de esperança dos pais na criança (SOLÉ, 2005).
A aquisição da Libras inicia-se tardiamente, geralmente de três a cinco anos,
em alguns casos até 9 anos. Solé (2005) considera que essa demora causa um
obstáculo na constituição subjetiva destes surdos.
Solé (2005) considera importantíssima a necessidade de os surdos serem
inseridos em uma língua deste o nascimento e que o que a mãe pensa sobre a
surdez tem influência enorme sobre o surdo, assim como o pai, e assim todo o meio
social. Se tornam na criança uma barreira ao acesso simbólico.
Pode-se associar ao sentimento da família em relação ao Surdo, como se
ele estivesse em posição de prejuízo em relação as demais crianças. Mas no futuro,
ele se dará bem. Há uma fala que manifesta este sentimento no trabalho de Sousa
(2011, p.57):
Tenho as melhores expectativas possíveis! Ela é extremamente interessada
e quando ela se interessa por alguma coisa ela vai atrás. Ela faz curso de
caratê e vai ser oferecido um curso de instrumento e ela vai fazer. Eu tenho
boas expectativas dela.
Uma segunda mãe relata: “Tenho boas expectativas porque ela é uma garota
inteligente, inclusive está fazendo um curso de instrutora, ela tem muita força de
vontade” (SOUSA, 2011, p.58).
Também há perspectivas negativas em relação ao filho, onde em um caso a
mãe afirma que a aprendizagem do surdo é muito lenta, apesar de ser atencioso,
dedicado, ter vontade, não terá condições de trabalhar por ser dependente (SOUSA,
2011, p. 59).
Percebe-se que há perspectivas para o futuro, ou famílias sem perspectivas
de que o filho seja autossuficiente. As famílias podem enxergar o surdo como inca-
paz justamente pela falta da língua, que gera uma fantasia de que o surdo é lento,
tem dificuldade de aprender e é agressivo. Ou seja, a família não compreende a
identidade nem a cultura surda que exige formas diferentes de se comunicar e de
ensinar.
Quando o impacto inicial do diagnóstico passa, as mães vivenciam diversos
sentimentos até acostumar com a ideia e pensar no futuro do filho. Algumas mães,
segundo Sousa (2011) buscam na religião a aceitação da realidade posta. Algumas
13

mães relatam ter sido castigadas por Deus no momento do choque inicial, porém
passam a crer que é a vontade de Deus.
Essas reações da família podem significar um impacto na vida do surdo a
ser interpretado como rejeição e a vivenciar um afastamento materno/paterno que
possa contribuir para desenvolvimento de complexo negativo paterno/materno.
O choque ocorre pela falta de informação na sociedade sobre pessoas com
deficiência, e principalmente sobre o surdo e sua cultura, suas possibilidades e suas
potencialidades.
A mãe do Surdo chega a sofrer com o preconceito da sociedade, fazendo
com que a própria mãe possa discriminar seu filho, no momento em que evita cuidar
do filho, desiste de procurar informações, evita ir atrás de uma Escola Bilíngue para
Surdos, onde os Surdos aprendem a Libras como primeira língua e o Português
como segunda língua de modo escrito.
Percebe-se a forma do surdo se posicionar na vida: muitos se consideram
em uma posição desfavorável, assim como o patinho. Solé (2005) relata que alguns
surdos têm ansiedade diante da possibilidade de estarem perdendo conhecimentos
importantes para sua vida, como se os ouvintes fossem capazes de conhecer tudo
que existe. Isso leva a uma idealização da posição de ouvinte. É uma posição que
coloca o próprio surdo para baixo, o fazendo sentir desqualificado em todas as ques-
tões.
A sociedade em geral demonstra, por discurso e por ações, não querer os
surdos na convivência diária. Isso é perceptível quando se lembra que a Libras foi
reconhecida como língua somente em 2005 e também quando encontramos TVs,
conselhos profissionais, universidades quebrando regras e não contratando intérpre-
tes de Libras, e demais espaços em que eles estão totalmente colocados à parte do
mundo, expulsos como se não pertencessem a sociedade.
Não são poucas as vezes em que o meio despreza a opinião e as potencia-
lidades de um surdo. Witkoski (2009) identifica o preconceito da sociedade, através
da norma da fala, e percebe que este preconceito está no cotidiano. A surdez foi
concebida com o tempo como desvio da normalidade, tratada como uma patologia.
Inclusive nos meios acadêmicos, a autora identifica a falta de escrita científica a
respeito, numa forma de manter a condição patologizante do surdo culturalmente. O
ouvintismo, que é a ênfase na palavra falada, na oralização, é valorizada na socie-
dade por conseguir nivelar os surdos a condição “normal”.
14

Solé (2005) identificou em sua prática profissional muitos suros que possu-
em inabilidade no convívio social, tanto entre surdos e principalmente quanto entre
sujeitos ouvintes.
Sobre o surdo não ter voz na sociedade, é muito conhecido em todos os
meios da área da educação o famoso evento do Congresso de Milão, que ocorreu
em 1880, reunindo profissionais que trabalhavam com educação de surdos
(BAALBAKI; CALDAS, 2011). Neste congresso ficou concordado que os surdos não
têm problemas fisiológicos em relação ao aparelho fonador, portanto, poderiam
aprender a falar, e extinguir o uso das línguas de sinais, e aplicar por todo o mundo
o Oralismo, que é a teoria de educação de surdos que prioriza o ensino da fala ao
surdo (BAALBAKI; CALDAS, 2011).
Nesse Congresso houve a participação de 174 congressistas, dentre eles
Alexander Graham Bell, que teve uma mãe surda e se casou com uma surda, e
somente um congressista surdo, onde ouvintes decidiram proibir o uso da língua de
sinais, sem que houvesse representação e a opinião dos surdos sobre o assunto
(BAALBAKI; CALDAS, 2011). É comum que algumas pessoas pensem que a Libras
não é uma língua, mas gestos incapazes de comunicar algo. Assim, o surdo está
sempre em uma posição de “coitadismo” e de doente perante os ouvintes.
Solé (2005) diz que, embora sejam muitos os surdos que trabalham e estu-
dam, os pacientes e os pais dos surdos buscam atendimento psicoterapêutico pelo
motivo da dificuldade que o surdo enfrenta perante o convívio social. Seus familiares
consideram que significa depressão ou tristeza. A autora relata também que duas
das características que mais apareciam em seus atendimentos psicoterapêuticos
eram justamente os traços depressivos.
O surdo traz em si um registro de muitas frustrações. Solé (2005) em sua
experiência, detectou que os surdos possuem baixa tolerância a frustração. E isso
se inicia no período da infância, como por exemplo em um momento em que o pai
de um surdo nega algo ou impeça que a criança faça alguma coisa, os filhos rejei-
tam e não aceitam esse impedimento de forma alguma.
Solé (op.cit.) também identifica que muitas crianças surdas aos quatro ou
cinco anos de idade não possuem controle esfincteriano ou não se sujeitam a menor
frustração pela falta do relacionamento paterno causado pela falta de uma língua.
Por meio do olhar, no caso das famílias que não sabem Libras, não é possível fazer
cortes necessários a criança, e essa falta de cortes os deixam muito angustiados.
15

Muitas vezes as crianças se comportam com agressividade quando os pais


não atendem suas necessidades. Solé (op.cit.) também afirma que nas escolas,
professores de tais crianças se queixavam de falta de memória e muita incapacidade
de dizer o que foi ensinado no dia anterior, além de agitação, as vezes agressivida-
de entre os colegas e dificuldade de leitura e escrita.
Solé (op.cit.) identificou nos pacientes em que atendeu em sua clínica e em
outros contextos de sua prática profissional que muitos surdos adolescentes se
apresentam como se não tivessem história, muitos não sabiam o nome do avô ou
onde o pai trabalha, e não havia nenhum tipo de planejamento de vida, nada de
pensar ou ter dúvida a respeito do futuro, também nenhuma preocupação a respeito
disso.
Perlin (1998) descreveu as identidades surdas em 5 categorias: identidade
surda híbrida, que são os surdos que nasceram ouvintes e se tornaram surdos; as
identidades surdas de transição, que são surdos que viveram sob o domínio da
cultura ouvinte, geralmente os que são oralizados, e aprenderam a Libras sendo
inseridos na comunidade surda; a identidade surda incompleta, que é aquela em que
o surdo vive na cultura ouvinte e nega a identidade surda; e a identidade surda
flutuante, que é formada por surdos que reconhecem que são surdos, mas despre-
zam a comunidade, sem se comprometer com ela.
As identidades surdas mostram que na realidade alguns surdos não se per-
cebem como tal. Enquanto não se conscientizar de suas limitações, potencialidades,
não conseguirão fluir. Não são poucos os surdos que passam a fluir da vida e a
lograr conquistas sociais também, como bons empregos, protagonizarão frente as
lutas junto à comunidade surda e destaques em geral. São aqueles que se deram
conta de suas potencialidades e de seus limites próprios da condição surda.
16

CAPÍTULO 3: DADOS SIMBÓLICOS DO CONTO DE FADA E A


RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA SURDA

Em todo conto encontra-se os heróis que apresentam características diferen-


tes dependendo da cultura e da própria história. Normalmente apresentam coragem
e esperança no enfrentamento de uma situação (VON FRANZ, 1990).
Silveira (1994) afirma que, mesmo que depois de um suposto aniquilamento
do herói, ele retorna com forças para enfrentar as situações, sendo esse retorno
doloroso para se enfrentar sozinho, trazendo então a figura de um sábio, uma fada
etc. se tornando um novo nascimento. É com certeza a figura do Patinho Surdo que,
na conquista da sua própria identidade, prossegue no caminho da individuação.
Alt (2000) já concluíra que somente com a tomada de consciência é que o su-
jeito consegue fortalecer o ego e resgatar o herói perdido no inconsciente.
Alt (2000) identificou em seu trabalho o aspecto da rejeição familiar e social.
Pazinato (2008) analisou o conto “O Patinho Feio” e identificou sofrimento, discrimi-
nação, abandono e solidão sofrida pelo fato da rejeição social que o patinho enfrenta
durante o conto. Já Corso e Corso (2006) interpretou o conto “O Patinho Feio” e
relacionou o sofrimento psíquico da personagem principal com sentimentos de
abandono e rejeição que decorreram da relação mãe-filho.
O que se repete nestas e outras interpretações do conto “O Patinho Feio” do
qual deriva o conto “O Patinho Surdo” é o temor, a rejeição materna, o desamparo e
abandono, rejeição da sociedade, a discriminação e a solidão. São tais sintomas
identificados da vivência surda que são trabalhados na contação de história do
“Patinho Surdo” para crianças.
O problema que aparece no conto é a pata botar ovos em um ninho que não é
seu (ACESSOBR, 2016, tradução nossa). No que se refere ao surdo, esse aspecto
pode estar relacionado ao caráter acidental do nascimento do surdo em uma família
de ouvintes. O surdo, apesar de fazer parte de uma família de ouvintes, se sente
pertencente a cultura surda, se considera filho e produto desta. É uma cultura já
existente, com seus costumes, suas práticas e com seus diálogos e estilo de vida
(SACKS, 2010). Este caráter acidental pode causar um senso de não pertencimento
a família e de deslocamento.
17

O bebê surdo não apresenta respostas frente aos estímulos dos pais, como
bater palmas, gritar ou bater panelas, por exemplo. E não reagir a tais estímulos é
algo normal para um surdo, mas para a maioria dos pais de bebês surdos recém
nascidos isso é uma catástrofe, e isso é evidenciado na reação que os pais cisnes
tiveram ao olhar aquele patinho falando em língua de sinais ao invés de grasnar, e
evidente também no fato da mãe cisne não saber como reagir (ACESSOBR, 2016,
tradução nossa). Tal reação de perplexidade demonstra a falta de informação que os
pais possuem sobre a Libras e os surdos, suas possibilidades e potencialidades, o
desconhecimento a respeito da própria cultura surda e do reconhecimento da Libras
como língua.
Por isso o surdo pode ter em falta esse olhar de amor, resultado em rejeição e
baixa autoestima, conforme Solé (2005). Jacoby (2011) entende que o sujeito possui
uma necessidade basilar e essencial de se refletir para poder se reconhecer. Neces-
sita-se disso para sentir-se aceito e real, acolhido e importante para outras pessoas.
Jacoby (2011) relembra a lenda grega de um hino de Píndaro na qual Zeus, após
terminar sua criação, celebrou seu casamento e perguntou aos deuses se eles
achavam que faltava algo e estes disseram que criasse as musas, que louvariam
seus feitos e seu universo, embelezando tudo através de suas palavras e música.
É possível perceber então que só existir é insuficiente e insatisfatório. Os fei-
tos de Zeus teriam que ser trazidos para a atenção consciente através de louvor. A
criação e a coisa-em-si necessitam disso. Do mesmo jeito, o sujeito necessita ter sai
existência vulnerável e frágil refletida, o ser humano individual precisaria ter sua
frágil e vulnerável existência refletida. Se ninguém em todo o mundo não se alegra
pelo fato da existência de determinada pessoa, não admira e ama o que esta pessoa
é e faz, há poucas chances dessa pessoa manter um equilíbrio narcisista saudável e
um senso de autoestima adequado, de acordo com Jacoby (2011).
Diante de uma família oralizada, o surdo se percebe deslocado. Falta com-
preensão e o aprendizado não acontece. Dependendo da família, a criança chega
aos 9 anos sem saber se comunicar. Sacks (2010) registrou inclusive casos de
surdos que não possuem memória antes da aprendizagem de uma língua de sinais.
Surdos que aprenderam sinais tardiamente só possuem memórias a partir do mo-
mento em que passaram a se comunicar com uma língua de sinais. A falta de uma
linguagem, segundo Capovilla (2000) traz consequências gravíssimas para o desen-
volvimento social, emocional e intelectual do ser humano.
18

A linguagem permite comunicação sobre todos os aspectos da realidade, se-


jam abstratos ou concretos, compartilhando experiencias emocionais e planejando a
vida particular e da comunidade que faz parte. Permite interagir com o mundo cultu-
ral além da experiencia física direta, e assim também adquire socialização, valores,
regras, normas sociais para viver em comunidade (CAPOVILLA, 2000).
Sem a linguagem, a criança fica confinada a “comportamentos estereotipados
aprendidos em situações limitadas” (CAPOVILLA, 2000, p. 100). A linguagem é de
suma importância e coloca a criança no mundo, no desenvolvimento de sua consci-
ência. Não possuir linguagem pode provocar uma deficiência no provimento de afeto
por parte dos pais, de cuidado e de amor.
O pai sai irritado da cena (ACESSOBR, 2016, tradução nossa) e isso de-
monstra o padrão da ausência paterna da relação com o filho surdo. Pode represen-
tar também a falta de disciplina, a agressividade costumeira ou mesmo a falta de
ordem e lei, que são aspectos derivados do complexo paterno. Corneau (1991)
aponta que uma das frustrações que o filho pode sofrer é com a ausência prolonga-
da do pai, falta de afeto que a criança necessita ou ameaças de abandono para
punir por exemplo provocam no filho uma falta de confiança em si mesmo, timidez
excessiva e dificuldade de se adaptar as situações em geral.
A maturidade pode ser prejudicada, a dependência, angustia, depressão, ob-
sessões, compulsões, fobias, tendência em reprimir raiva, e seu desejo pelo amor
poderá se manifestar de modo extravagante por meio de tentativa de suicídio, fugas,
doenças falsas, enfim (CORNEAU, 1991). Os filhos de pais ausentes se sentem
menos confiantes e com sentimento de inferioridade, que Solé (2005) identificou.
O Patinho Surdo então percebe que ali não é seu lugar e vai embora perdido,
podendo ser a representação da busca da sua própria identidade e ele se lança na
descoberta deste desconhecido. Von Franz (1964) diz que a fuga para lugares lon-
gínquos significa a busca da aproximação do inconsciente, e a solidão é o caminho
para esse encontro. Antes, o indivíduo se concentra nas questões externas, nos
problemas que se apresentam, e então ele passa a centrar nos interesses que são
internos, finalmente seguindo ao caminho da individuação.
O Patinho em sua busca encontra os cisnes de pescoço longo (ACESSOBR,
2016, tradução nossa) que na verdade utilizavam a Comunicação Total, que é o uso
de sinais e da oralização ao mesmo tempo (CAPOVILLA, 2000). O surdo que é
somente sinalizante não compreende a fala na Comunicação Total apesar de utilizar
19

sinais, porque a Libras possui uma estrutura gramatical própria. Então, quando os
sinais são feitos na ordem gramatical do português, deixa de ser língua de sinais e
passa a ser português sinalizado. É por este motivo que o Patinho Surdo foge da-
quele lugar também.
A conclusão do conto é positiva, pois é encontrado pelos demais surdos, tra-
zendo o alívio do encontro de sua identidade, mas ele é encontrado pelos demais
patos surdos e sente o alívio do encontro de sua identidade (ACESSOBR, 2016,
tradução nossa) O surdo é sempre sozinho nesta luta antes deste encontro. É inte-
ressante perceber a admiração de crianças surdas ao verem adultos surdos ou
adolescentes. Isso pode se dar por não ter acesso a língua de sinais em casa, pois
os pais estão em momento de aprendizagem ou mesmo não se engajam em apren-
dem a língua do filho.
A mãe pato o avistando e o reconhecendo, correu para abraça-lo, pois era
seu filho nascido em outro ninho (ACESSOBR, 2016, tradução nossa). Nesse aspec-
to, demonstra-se o caráter acolhedor da comunidade surda. Era um surdo perdido
no mundo dos ouvintes e foi achado – é a impressão que Sacks (2010) registra.
Os cisnes já estavam desesperados procurando o patinho surdo, quando os
encontram (ACESSOBR, 2016, tradução nossa). Sem conseguir se comunicar,
surdos e ouvintes, chamaram o sapo, que era intérprete (ACESSOBR, 2016, tradu-
ção nossa). A família ouvinte só vai começar a aprender sobre a cultura surda a
partir do momento em que encontra essa comunidade e esse intérprete que faz a
intermediação, orienta e instrui a família sobre seus direitos (SACKS, 2010).
Geralmente os pais surdos encontram em profissionais raros, como Fonoau-
diólogos ou mesmo intérpretes de Libras as orientações e instruções para lidar com
seu filho surdo. Outros pais encontram nas igrejas o conhecimento sobre a cultura
surda.
O momento em que, por intermédio do sapo intérprete, a mãe pato explica
como foi o ocorrido pode significar esse momento de esclarecimento para a família
ouvinte de que o surdo na verdade possui uma outra cultura, mesmo nascendo em
lar ouvinte. Neste momento há a união e o estabelecimento de vínculo com surdos e
ouvintes, trazendo então para o mundo surdo a luz que faltava. Esse momento pode
caracterizar também uma mudança de sua condição de desajuste, além de poder
voltar para sua verdadeira casa.
20

A condição do surdo então é expressa nesse conto, marcado pela angústia e


sofrimento causado pela falta de comunicação com os próprios pais, o que pode
colocar em uma situação de ameaça na medida em que os pais não entendem o
que o surdo quer dizer.
21

CONCLUSÃO

É possível verificar que há uma epidemia de patinhos surdos no país. Não


no sentido de que a surdez seja uma doença, mas pela consequência da não comu-
nicação dos pais e da sociedade com o surdo, causando diversas consequências ao
sujeito surdo.
É possível perceber que o papel da fala e da comunicação é importantíssima
para o desenvolvimento de uma criança, e que a criança surda está sujeita a falta de
comunicação. Então a falta de comunicação com o filho e a falta de informações a
respeito dos surdos pode trazer conflitos e atrasos na educação do surdo, falta de
expectativa no filho, e proporcionar ao surdo uma vivência de sofrimento, abandono,
medo, rejeição, baixa autoestima e timidez. A falta de uma língua traz consequên-
cias sócias, emocionais e intelectuais.
É possível perceber também que o surdo procura por sua identidade, e
quando a encontra, passa a ter uma nova cultura e a pertencer a um segundo espa-
ço.
É importantíssimo, portanto, que a família surda possa buscar o aprendizado
da Libras desde o nascimento afim de estabelecer uma comunicação e evitar os
quadros patológicos da fase adulta. São surdos que passam por um sentimento, em
maior ou menor grau, de rejeição e, por não terem sido acolhidos pela barreira da
língua, não podem enfrentar com resiliência os desafios da vida.
A Libras é de suma importância para a comunidade surda. A difusão da Li-
bras deve ser estimulada nos diversos espaços da sociedade, principalmente em
escolas e universidades, afim de tornar a sociedade um espaço mais inclusivo.
A partir do momento em que a família ter mais informações acerca da sur-
dez, da Libras e da comunidade surda, e a sociedade estar aberta para receber o
surdo, será experimentado um real espaço inclusivo onde o ouvinte se adapta ao
surdo.
A família que busca conhecer a Libras logo quando sabe do diagnóstico po-
derá prover aos surdos uma base sólida, um lar de acolhimento preparando o surdo
para lidar com a vida que vem, sejam quais forem os desafios.
22

Atualmente, os surdos continuam a enfrentar problemas sociais que consiste


na falta de adaptação do mundo para a recepção e inclusão destes na sociedade.
Falta de estrutura, desconhecimento da população acerca da Comunidade Surda
etc. fazem com que a vivência do Surdo brasileiro se torne um verdadeiro desafio.
Portanto, é importante perceber que o movimento de intérpretes, pedagogos
e educadores em geral de, não somente interpretar contos infantis, mas adaptá-los a
vivência surda, inserindo personagens surdas e ouvintes, não vem somente como
um esforço cognitivo e consciente de ajudar o surdo a se aceitar como surdo e en-
tender sua cultura e sua especificidade. É possível pressupor que haja um movimen-
to coletivo e inconsciente que move educadores e demais profissionais em contato
com estes sujeitos, afim de permitir a criança surda a ter acesso desde cedo não
somente a contos aos quais anos atrás estava privado de ouvir dos pais e dos pro-
fessores, mas também de um movimento coletivo que os leve a fluir na condição em
que vieram ao mundo.
Pode-se supor que, como cada pessoa tem sua própria forma de experimen-
tar uma realidade, há diversas versões de contos de fadas que acabam oferecendo
diferentes formas de experiências destes contos. É uma vivência claramente expe-
rimentada pelos surdos, que não sabem que são cisnes, pois suas famílias e a
sociedade não reconheceram sua potencialidade, pelo contrário, possuem uma
representação de surdez como uma desgraça.
A contação desta história para crianças surdas, de forma lúdica, pode envol-
ve-la de forma que possa se identificar com os conteúdos do conto ao relacioná-los
com seus próprios conflitos psíquicos. Na criança pode surgir a possibilidade de
organização de suas estruturas psíquicas e o fortalecimento do ego, enfraquecido
pelas experiências comuns de surdos em famílias ouvintes. A criança então pode
transformar a realidade, sendo este conto contado nas escolas de suma importância,
pois tem caráter terapêutico devido ao simbolismo do conto.
23

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ANEXO A - CONTO “O PATINHO SURDO”

Em um lindo dia de sol, numa lagoa tranquila, uma revoada de aves chegou.
De um lado do lago ficaram os cisnes e do outro os patos surdos. Havia muitíssimos
patos, até que um casal de patos surdos se encontra e começa a bater um papo.
Conversaram, conversaram, até que resolveram começar a namorar. Logo os
dois foram arrumar o ninho, porque a pata surda estava prestes a botar ovos. Ela
botou um ovo, depois outro, e outro, e mais um. Então, depois do trabalho concluído,
foi passear para descansar, e saiu a nadar pela lagoa.
E passando pelo lado dos cisnes, sentiu uma forte dor.
- Puxa vida! Falta mais um ovo a ser botado! Não dá tempo para voltar para
meu ninho!
Então, com o ovo quase saindo, a pata viu de longe um ninho de cisne, correu
e botou ali mesmo. Então começou a chorar tristemente, porque não conseguiria
levar o ovo para seu ninho, e voltou para seu próprio ninho.
A mamãe cisne voltou e sentou sobre os ovos. Alguns dias depois, sentiu algo
se mexer embaixo, e saltou rapidamente para ver! Eram os ovos começando a
quebrar!
Os filhotes iam saindo e fazendo a festa. A mamãe cisne chamou o papai pa-
ra ver os filhotes nascendo, quando de repente sai um filhote falando em língua de
sinais. Era um pato surdo! Estranhamente se entreolharam não entendendo nada.
Sem saber como isso acontecera, papai cisne saiu irritado enquanto a mamãe
não sabia como reagir. Todos os cisnes conversavam e o patinho surdo ficava quie-
to, sem falar nada.
Então a mãe pata os levou para passear no lago. Todos estavam cantando
alegremente, mas o Patinho Surdo estava quieto olhando para eles, achando muito
estranho essa cantoria, percebendo que ali não era seu lugar.
- Que diferente! Eu não sou assim, como eles.... Eles cantam e eu sinalizo
com as mãos!
Então deixou o grupo e saiu a nadar angustiado, nadando e nadando. Pas-
sando pelos juncos no lago viu algo longe. Era o que parecia um grupo de cisnes
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falando em língua de sinais! Feliz, nadou para lá e encontrou com um cisne de pes-
coço longo e preto. O Patinho Surdo se aproximou e disse em língua de sinais:
- Oi!
O cisne de pescoço preto respondeu o Patinho com as mãos e com a boca ao
mesmo tempo. Aqueles cisnes respondiam com sinais ao mesmo tempo que oraliza-
vam, e o patinho surdo não entendia nada do que estava dizendo. Achando muito
estranho, concluiu que ali também não era seu lugar.
Triste e sozinho, o Patinho Surdo saiu a nadar por um longo tempo desespe-
radamente. Então um grupo de irmãos conversavam por sinais ali próximo e avista-
ram o patinho surdo sozinho. O grupo de patinhos foram até lá, se aproximaram e o
chamaram.
Tocando no ombro do Patinho, que estava encostado, sozinho no lago, triste,
perguntaram:
- Oi! Você fala em língua de sinais?
- Nossa!!! Vocês falam em língua de sinais! Ufa!!! – Respondeu o Patinho
Surdo aliviado.
Os cisnes então apareceram desesperados procurando o patinho perdido, até
que se encontraram.
Logo a mãe cisne apareceu longe procurando o Patinho Surdo perdido, e o
encontrou junto com os demais patos. A mãe cisne era ouvinte e não conseguia se
comunicar com a mãe pata surda. Então tiveram a ideia de chamar o sapo, porque
ele era intérprete e poderia intermediar a situação. A mãe cisne perguntou como
encontraram o filho perdido, e a mãe pata surda explicou o que acontecera.
Então a mãe pato explicou tudo para a mãe cisne, sobre o dia em que teve
que utilizar o ninho da mãe cisne para botar seu ovo e não pode levar para casa.
Então tudo ficou esclarecido, com a ajuda do sapo intérprete, eles foram se comuni-
cando e tudo ficou claro. Todos ficaram tranquilos, unidos e felizes.

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