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O INTERNO E O EXTERNO NA EXPLICACAO SOCIOLOGICA: CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES DAS REALIDADES E DOS MODELOS! Fernando Augusto Albuquerque Mourio! Resumo: Publicado originalmente nos Anais de um Coléquio realizado na Associagiio Internacional de Sociélogos de Lingua Francesa (Genebra, Suiga, 1993), este texto discute, na linha de Georges Balandier, a necessidade de um equilibrio, no plano explicativo, entre fatores internos e fatores extemos, no que concerme a analise das sociedades globais, bem como as dindmicas das Relagées Norte-Sul. Do ponto de vista tedrico-metodolégico, aponta os riscos e as armadilhas existentes no nivel da realidade social, com reflexos sobre os modelos interpretativos dessas mesmas realidades. Este texto, embora datado, foi escrito e apresentado durante uma conjuntura internacional em que diversos regimes autoritirios se transmutaram em democracias multipartidarias, e cediam as presses por uma abertura crescente de seus mercados. Passado quase um quarto de século, verifica-se atualmente uma retomada das pressdes liberalizantes, impostas a partir dos centros de poder financeiro e militar. Uma retomada da iniciativa, em reagdo aos discursos tecnicistas e impositivos, torna-se entdo mister para aqueles que nao abandonam um imaginario utdpico. Palavras-chave: Explicagdo sociologica. Fator extemo, Fator interno. Terceiro Mundo. Periferia © semiperiferia, Abstract: Originally published in the Annals of a Colloquium held at the International Association of French-Speaking Sociologists (Geneva, Switzerland, 1993), this paper discusses, in the line of Georges Balandier, the need for an explanatory balance between internal factor and extemal factor, regarding the analysis of global societies, as well as the dynamics of North-South relations. From a theoretical- methodological point of view, it points out the risks and pitfalls that exist at the level of social reality, with reflections on the interpretive models of these same realities. This text, although dated, was written and presented during an international conjuncture in which various authoritarian regimes were transmuted into multiparty democracies, and yielded to pressures for a growing openness of their markets. Almost a quarter of a century later, there has been a resumption of the liberalizing pressures imposed by the centers of financial and military power. A resumption of the initiative, in reaction to the technicist and impositional discourses, then becomes necessary for those who do not abandon a utopian imaginary. Keywords: Sociological explanation, External factor. Internal factor. Third World. Periphery and semiperiphery. 2 Versdo original: MOURAO, Femando Augusto Ibuquerque, L'intereet'extere dans |'explication sociologique. HUTMACHER, Walo (Org.). Bulletin n®7 de Association Internationale des Sociologues de Langue Francaise. Geneve: Service de la Recherche Sociologique, 1991, p. 7988, Tradugio de Bruno Anselmi Matangran. * Socidlogo, professor aposentado da Faculdade de Dircito ¢ do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras Cigncias Hlumanas da Universidade de So Paulo, Precursor, no Brasil, das sociologias do continente africano e das relagdes internacionais, Partiipou do projeto da publicagio da ITistoria Geral da djrica, da UNESCO, como membro do Comité Cientitico Intemacional ¢ do Bureau do proeto, como viee-presidente, Fundou o Centro de Estudos A\ricanos da USP. E-mail: faam@@usp br. CADERNOS CERU V. 2 dez. 2016 O paradigma de pais moderno, capitalista ou socialista, torna-se hoje um objetivoaseralcangado por todos no caminho que conduz.ao progresso. Os pafses subdesenvolvidos s6 atingirio uma certa plenitude, que Ihes permitiré participar do cenério internacional, depois de terem percorrido a experiéneia historica de uns e de outros. A caracterizagao positiva ou negativa em termos de paises modemos © tradicionais, segundo Cyril Black (1969, p. 3-31), é ainda uma das apresentagdes do problema em termos de dicotomia, Esta série de correntes seja_neocléssica, seja neokeynesiana ou neomarxista, se constitui de excelentes formulagdes que, no entanto, na pratica, se revelamescamoteadas, maltratadase, omais frequente, desconhecidas, A visao critica, simplificadora da realidade, segundo a qual os paises tradicionais acabam por ser simples objetos de disputa, com as vantagens da natureza heuristica, prevé que estes devem percorrer a experiéneia histérica daqueles, 0 que ndo é to simples. Paralelamente a isso nascem outras correntes, como a “desconexio” de Samir Amin, tio discutida ha alguns anos. Este conceito de relagdo de autarquia, uma opgio de desenvolvimento auténomo que, na realidade, no traz um novo sistema adequado, nos conduz “a lugar nenhum, a utopia”, segundo as palavras de Mério Murteira (1988, p. 163). De certa forma, desesperador verificar a construgdo de paradigmas que, tendo doutrinado durante muitos transformaram- correntes finalistas anos, em seguidas por adeptos figis que nao nos conduziram efetivamente a um caminho seguro, Onde, portato, encontra-se 0 erro: nos paradigmas ou nos processos de aplicagao? Uma boa parte dos trabalhos de sociologia que se referem ao Terceiro Mundo ¢ a seus produtos nos conduzem no somente a esta confusio, mas também a ideias de natureza finalista que ainda no puderam resistir aos choques de processos, seja em nivel internacional ou nacional. CADERNOS CERU V MOURAO, F » Nowe r Creio que, em uma fase de transmundializagio, que Wallerstein chama de “economia-mundo”, seja tradicionalmente centrada sobre 0 eixo atlantico ou sobre ocixodabacia doPacifico (atualmentedesignada como 0 futuro eixo possivel), é quase impossivel tratar ou admitir novas anilises sociolégicas do Tereeiro Mundo sem levar em conta as transformagées do paradigma internacional. Apesar da importincia do conceito de semiperiferia de Wallerstein, um conceito ainda por explorar amplamente, as transformagdes nascidas ao nivel do paradigma das relagdes internacionais me parecem centrais para compreender os sentidos — na linha de compreensio de Georges Balandier — destas alteragdes em conexdo com as alteragdes, num nivel mais interno, no nivel de cada um dos atores do processo internacional. As continuidades descontinuidades dio sentido a um proceso dialético, ‘um processo no qual este fator tempo emerge no plano das causalidades, das correlagdes. istido Do ponto de vista cultural, temos as até agora, no plano das aparéncias, o registro de duas culturas: uma de natureza universal, abstrata, fruto de um pensamento do século XIX e bastante difundida com a multiplicagdo das vias de comunicagdo, € a outra, ou as outras, de natureza particular, as culturas particulares. A unidade cultural, de natureza etnocéntriea, comegou a se destruir diante do aparecimento de culturas particulares que ganham ‘uma importincia ndo somente no plano das ideias, mas também como resultado de uma ago interna ou animadas de fora, por meio de ideias-chave deste fim de século que néo & sempre muito moderno (MOURAO, 1990, p. 151-155). 0 conceito de cultura universal, etnocéntrica, por oposigdo as culturas ditas menores ou também designadas como culturas pobres, enfrentou até aqui impactos consideraiveis. Em uma fase de desenvolvimento acelerado, & natural que nasgauma reelaboragdo do discursotéenico que nio © ode ao discurso utépico, a uma simples 3 formulagao maniqueista. E natural que, com o tempo, se comece a considerar e a apresentar de maneira engajada os elementos fundamentais dos pardmetros culturais comuns, em um contexto de formulagdes culturais mais amplas que variam de acordo com os espagos. Partindo do prineipio de que os conflitos so onipresentes na vida social ¢ de uma certa maneira, fundamentais As géneses hist6rico-sociais, & possivel admitir que, se “a diversidade cultural, sob seus miltiplos aspectos, pode, muito frequentemente, dar margem aos conflitos enraizados sob formas hostis de etnocentrismo, & igualmente verdade que esta mesma diversidade pode ser trabalhada de modo a se transformar em instrumento de aproximagao e no de desconfianga entre os povos. O recurso aos processos de dindmica cultural nos parece indispensivel, pois ndo vemos direito © quanto dependemos disso para um conceito de progresso sem a varidvel cultural. As persisténcias ou as mudangas em nivel cultural demonstram, no plano do discurso técnico, que “a relagdo tradigdo-mutagio é redutora” (RIBEIRO, 1989, p. 97), como também concorda Adelino Torres. A andlise dos processos de transformagao e de mudanga é mais que fundamental, & indispensivel para a compreensiio do processo que, devido as miltiplas sinteses que se seguem, nos confundem no nivel das causas, conduzindo inclusive alguns autores a confundirem mutagdo com mudanga, sobretudo em situagdes de causalidade duple usalidades provocadas no nivel da sociedade nacional. isto 6, causalidades provocadas pelo exterior e Em relagdo aos paises que estio transitando pelos estgios inferiores de desenvolvimento, os paises desenvolvidos temem que suas mudangas possam conduzit a niveis de desordem no plano internacional, levando os paises ditos “Modernos” a agirem sobre a revolugdo da modemizagio, de maneira a ajustar as necessidades dos primeiros em referéneia aos segundos. Convém ainda assinalar que, em fases nas quais o discurso téenico confronta as dificuldades de natureza financeira, entre outros, CADERNOS CERU V, 27, n. 2, dez. 2016 MOURAO, F.» Now D0 srt € comum recorrer ao discurso utépico como solugdo paliativa. A nogdo de progresso, por exemplo, passa a se aproximar mais de um dever ser, um julgamento de valor, do que da realidade propriamente dita, segundo a definigao de René Hubert (1938). Aparentemente, recorrer utopia, ou melhor, a utilizagdo do discurso utépico, sem ligagio com o discurso técnico, nasce como uma possivel solugdo em uma tentativa de evitar a ruptura do préprio discurso téenico, o que normalmente chega durante momentos de extensiio de crises econdmicas intemacionais que desfavorecem o Terceiro Mundo. No que diz respeito a subjetividade, é preciso considerar ainda que os paises do Terceiro Mundo, situados até recentemente em uma posigdo de juizes dos paises do Primeiro Mundo, esto passando a uma posigdo de acusados, jd que sio considerados ndo somente responsaveis por sua propria pobreza pela comunidade internacional, como ainda responsiveis também pela produgdo de drogas hoje amplamente consumidas no Primeiro Mundo. Diante de um mundo que tende a se unir em grandes blocos — Europa Ocidental (Mercado Comum Europeu), EUA/Canadé e 0 México; 0 Japao © os chamados New Industrialised Countries (NICS); 08 paises que formavam a antiga URSS -, a situagdo do Terceiro Mundo, sem nenhum mecanismo de ligagdo com os novos grandes blocos, determina uma situagdo de marginalidade. No plano psicolégico, verificamos uma posigdo equivocada das elites do Primeiro Mundo, que passam, atualmente, de acusados a juizes, penalizando em seus julgamentos Terceiro Mundo, que ndo consideram como membros confiaveis e entreveern como saida a responsabilidade © a interdependéncia global dos paises do Primeiro Mundo, Fsta seria, por sua vez, a ‘mica alternativa em fesposta & anarquia © & fragmentagao social do Terceiro Mundo, considerando 0 atraso ¢ a pobreza como responsaveis pela instabilidade internacional, 0 que aumenta as assimettias entre os dois mundos nos

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