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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS


CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Captura Críptica:
direito, política, atualidade
______________________________
Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal de Santa Catarina

Captura Críptica: direito, política, atualidade.


Revista Discente do CPGD/UFSC
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Centro de Ciências Jurídicas (CCJ)
Curso de Pós-Graduação em Direito (CPGD)
Campus Universitário Trindade
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Captura Críptica: direito política, atualidade. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação


em Direito. – n.2., v.2. (jan/jun. 2010) – Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina,
2010 –

Periodicidade Semestral

ISSN (Digital) 1984-6096


ISSN (Impresso) 2177-3432
1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito – Periódicos. Universidade Federal de Santa
Catarina. Centro de Ciências Jurídicas. Curso de Pós-Graduação em Direito.
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A vida nua como conceito ético-político: uma


genealogia

Murilo Duarte Costa Corrêa

O conceito de vida nua surge na literatura agambeniana em textos muito


diversos; desde Homo sacer I (2007), originalmente publicado em 1995, sua
formulação conceitual atravessa igualmente as preocupações mais
contemporâneas de Giorgio Agamben, encontradas em Mezzi senza fine (1996),
passando por O que resta de Auschwitz (1998), seguindo-se até um
desenvolvimento ulterior em L’Aperto: l’uomo e l’animale (2002).
Nesse percurso, uma das chaves na genealogia da nuda vita agambeniana
é o texto que Agamben escreve em homenagem a Gilles Deleuze, por ocasião
de seu falecimento; L’immanenza assoluta é, depois, incorporado a um livro de
Éric Alliez (2000) e republicado, mais tarde, em uma coletânea de artigos de
Giorgio Agamben denominada La potenza del pensiero (2005).
Nele, Agamben revela aquilo que, disseminando-se por seus textos
posteriores, permitiria esquadrinhar o pano de fundo de sua filosofia: o projeto
de uma filosofia da vida como uma filosofia que vem. Na base de seu projeto,
encontra-se a problematização, desde logo política, da vida como objeto do
poder – da operação de poder que, a fim de engendrar uma produção da vida
humana e politicamente predicada (bios), toma por ponto de inflexão o vivente
a fim de aplicar-se sobre ele, excluindo de seu âmbito a vida animal (zoé). Tal
conceito encontra-se presente em textos como L’immanenza assoluta (2005) e
Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (2007). Eis o desenvolvimento
que Agamben, passando por Foucault, retoma da fundação aristotélica da pólis
grega.


Professor de Filosofia do Direito e Teoria do Direito, vinculado ao Departamento de
Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba
(UNICURITIBA); Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da
Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP-PR). Mestre em Filosofia e Teoria do
Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Paraná (FD/UFPR). Contato: http://murilocorrea.blogspot.com

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No mesmo sentido, Agamben descartará os conceitos puramente


biológicos de vida, como é o caso da concepção vitalista de Xavier Bichat
(1822), que compreendia a vida como o conjunto de funções capazes de
resistirem à morte, e retornará uma vez mais a Aristóteles, em De Anima, a fim
de demonstrar que o isolamento de uma função orgânica que permite descer aos
modos pelos quais a vida pode se expressar, rearticulando-a segundo uma série
de atividades correlatas (nutrição, sensação, pensamento), afigura-se
insuficiente para definir vida.
Ao redor desse núcleo conceitual, Agamben articulará toda a
problemática de sua filosofia, que passa por temas de ordem política e teológica
– ao empreender a releitura do conceito de soberania vinculado ao estado de
exceção schmittiano (SCHMITT, 2006), a fim de demonstrar a implicação do
poder sobre a vida no seio dos conceitos de soberania e de exceção –, ética – ao
trabalhar o conceito de política como o “dar forma à vida de um povo” – e, a um
só tempo, metafísica – ao perceber uma misteriosa simetria entre os fenômenos
de poder e a tradição filosófica ocidental. Do entrecruzamento e da extensão
dessas linhagens, surge a possibilidade de pensar a captura da vida nua pelo
biopoder como o fenômeno estruturante da soberania política conhecida no
Ocidente.
Conscientes de que esses fios encontram-se emaranhados sobre o canevás
de uma filosofia da vida, que Agamben busca desentocar, não sem carregar algo
dos demais fios conosco, puxamos a linhagem da vida nua para caracterizá-la
como conceito ético-político. Interessa-nos, sobremaneira, a conceituação do
corpo biopolítico do Ocidente como forma de vida, e sua articulação, um tanto
ambivalente, com o conceito de vida nua.
Agamben refere-se ao conceito de vida nua de forma ambígua. Longe de
constituir um paradoxo insolúvel, ou uma evidente inconsistência conceitual, a
equivocidade pragmática do termo parece despertar uma sutil pregnância. Por
vezes, encontraremos nos textos de Agamben uma referência aparentemente
negativa ao conceito de vida nua; trata-se disso, precisamente, quando vai
desvendar as relações de simetria entre o homo sacer e o soberano político
(AGAMBEN, 2007), ou na ocasião em que Agamben descreve o Láger, e
afirma que, no campo de concentração, “A vida nua a que o homem foi
reduzido, não exige nem se adapta a nada: ela própria é a única norma, é
absolutamente imanente” (AGAMBEN, 2008, p. 76).

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Ao mesmo tempo, é possível encontrar referências positivas ao conceito


de vida nua. Uma das mais marcantes delas encontra-se ao final de Homo sacer:
o poder soberano e a vida nua I. Refutando momentaneamente a tese
foucaultiana de uma nova economia do corpo e dos prazeres como formas de
subjetivação, Agamben escreve que seria preciso “fazer do próprio corpo
biopolítico, da própria vida nua, o local em que constitui-se e instala-se uma
forma de vida toda vertida na vida nua, um bíos que é somente a sua zoé”
(AGAMBEN, 2007, p. 194).
Outra referência a uma positividade imanente ao conceito de vida nua
pode ser encontrada no primeiro ensaio de Mezzi senza fine (1996), intitulado
Forma-di-vita. Revisitando a recorrente distinção grega entre zoé (o simples
fato de viver, comum a todo vivente) e bíos (a forma ou maneira de viver
própria de um singular ou de um grupo), Agamben forja o conceito que dá
nome ao ensaio – forma-di-vita:

(...) una vita che non può mai essere separata dalla sua forma, una vita in cui non è
mai possibile isolare qualcosa come una nuda vita. [...]. Una vita che non può
essere separata dalla sua forma, è una vita per la quale, nel suo modo di vivere, ne
va del vivere stesso, e nel suo vivere, ne va innanzitutto del suo modo di vivere.
Che cosa significa questa espressione? Essa definisce una vita – la vita umana – in
cui i singoli modi, atti e processi del vivere non sono mai simplicimente fatti, ma
sempre e innanzitutto possibilitá di vita, sempre e innanzitutto potenza.”
(AGAMBEN, 1996, p. 13-14).

Utilizando-se dos hífens para demarcar a inseparabilidade ontológico-


política do conceito de forma-di-vita, Agamben dá a ver um sentido positivo da
vida nua. Olhando atentamente, o corpo biopolítico pode ser objeto de uma
afirmação cujo conteúdo é a de uma forma de vida “toda vertida na vida nua,
um bíos que é somente a sua zoé” (AGAMBEN, 2007, p. 194). Ao mesmo
tempo, forma-de-vida é a vida na qual já não se pode isolar qualquer coisa como
uma vida nua – uma vida que não pode ser separada de sua forma.
Nesse ponto, intervém a vida nua como conceito ético-político; se, de um
lado, a vida humana é assim predicada por sua forma, persiste uma negatividade
de fundo, intrínseca àquilo que Agamben chama macchina antropologica.
O que define a máquina antropológica – antiga ou moderna – é a
contradição que, segundo Agamben, estaria em obra em nossa cultura
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(AGAMBEN, 2002, p. 42). Nela, está em jogo a produção do humano através


da oposição “homem/animal”, “humano/inumano”; eis o que elucida o
mecanismo de captura da vida nua pelo biopoder: tomando por base essas
oposições, a máquina funcionaria necessariamente por meio de uma exclusão
(que, segundo Agamben, é sempre já uma captura) e uma inclusão (que é
sempre já uma exclusão), nessa articulação entre dentro e fora, exclusão e
inclusão, que é, no fundo, uma zona de indeterminação, um espaço de exceptio.
O que deve ser obtido não é nem uma vida humana, nem uma vida animal, mas
propriamente uma vida separada e excluída de si mesma, ou, como diz
Agamben, “soltanto una nuda vita” (AGAMBEN, 2002, p. 43).
Esse isolamento da vida nua por um dispositivo antropológico, que
recorta e articula a forma humana sobre o suporte biológico do ser humano
implica, pois, a sacralização da parcela de positividade intrínseca ao conceito de
vida nua. Isolada da vida nua, a forma de vida humana é puramente atual – isto
é, absolutamente impotente. Para dotá-la de um princípio de agitação, é
necessário, antes de tudo, desativar os dispositivos de captura da vida pelo
mecanismo biopolítico. Em um mesmo gesto filosófico, pensar a forma de vida
inseparável da vida nua, isto é, como forma-di-vita, cujos modos de existência
tornam-se variáveis e potentes unicamente ao passo em que a variação contínua
da vida nua aplica-se à inoperosidade (NANCY, 1990) das formas de vida.
Na medida em que se afirma um bíos que é unicamente sua zoé, como
Agamben sugere ao final do primeiro volume do tríptico inacabado Homo
sacer, desfaz-se a captura da nudez da vida que sustentava as formas de vida
puramente atuais. Justamente aí, onde pudemos desentocar a vida nua como
uma biopotência, como princípio de uma variação contínua das formas de
existência, dela já inseparáveis, podemos extrair – em proximidade àquilo que
Deleuze referia com suas hecceidades, processos de individuação e com o
conceito de uma vida... (DELEUZE, 2003, p. 359-363) –, uma forma de vida já
não mais separada daquilo que uma vida... pode. A um só tempo, resta
esclarecida, ao menos por ora, a dimensão ético-política do conceito de vida
nua, e a atualidade do problema de se pensar sua afirmação como uma tarefa,
não apenas da política que vem, mas de um devir que desafia à própria
metafísica. Nesse sentido, Agamben nos fala de uma filosofia da vida que vem
(2005), como Deleuze convida a pensar uma vida... como a própria imanência –
pois a subjetivação, a forma-homem, é o que pôde constituir, até hoje, a mais
bem-acabada obra do dispositivo biopolítico.

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Referências

ALLIEZ, Éric. Deleuze: filosofia virtual. São Paulo: Editora 34, 2000.
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica Torino: Bollati
Boringhieri, 1996.
______. L’Aperto: l’uomo e l’animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002.
______. Estado de exceção. Homo sacer II, 1. Tradução de Iraci D. Poleti. São
Paulo: Boitempo, 2004.
______. L’immanenza assoluta. In: ______. La potenza del pensiero. Saggi e
conferenze. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2005, p. 377-404.
______. O poder soberano e a vida nua. Homo sacer I. Tradução de Henrique
Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
______. O que resta de auschwitz: o arquivo e a testemunha. (Homo sacer III).
Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
BICHAT, Marie François Xavier. Recherches phssiologiques sur la vie et la
mort. 4. ed. Paris: Béchet Jeune et Gabon, 1822.
DELEUZE, Gilles. Deux régimes des fous. Textes et entretiens (1975-1995).
Édition Préparée par David Lapoujade. Paris : Les Éditoins de Minuit, 2003.
NANCY, Jean-Luc. La communauté desœuvrée. Paris : Bourgois, 1990.
SCHMITT, Carl. Teologia política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.

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