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@ Juremir Machado da Silva, 2010

Capa: Eduardo Miotto


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Editoração: Cio Sbardelotto
Revisão: Mariane Farias

Editor: Luis Gomes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960 ,
S586m Silva, Juremir Machado da
O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos
sem medo da ABNT e da CAPES 1Juremir Machado da Silva.
- Porto Alegre: Sulina, 2010.
95 p.
A ciência é um empreendimento
ISBN: 978-85-205-0557-1
essencialmente anárquico:
l. Pesquisa - Metodologia. 2. Comunicação Social. o anarquismo teorético é mais humanitário
3. Sociologia. I. Título. e mais suscetível de estimular o progresso
CDD: 301 do que suas alternativas
CDU: 303.1
representadas por ordem e lei.
316
Paul Feyerabend

Todos os direitos desta edição reservados à


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Paul Feyerabend

Abril/2010
Impresso no Brasil 1 Printed in Brazil
1 ABERTURA
Resolvi escrever este livro depois que um estudante de
20 anos me procurou com um ar muito preocupado. Era um
menino inteligente e aplicado. Lembro-me de que ele tinha os
olhos azuis quase turvos de angústia. Estava terminando a sua
monografia de conclusão de curso e ouvia, nos corredores da
faculdade, muitos boatos que o apavoravam. Com os olhos
cheios de lágrimas, deixou escapar a sua inquietação: "Professor,
eu ainda não sei a diferença entre apud e in". Comecei a rir. Ele
,.. ficou branco. Tentou explicar-se: "Ouvi dizer que as bancas não
perdoam qualquer erro desse tipo". Fiquei olhando para ele com
inveja dos seus 20 anos. Acho que o meu silêncio o deixava
ainda mais perturbado. Ele precisava falar: "Todo mundo morre
de medo da ABNT. Tenho uma colega do ano passado que nas
referências bibliográficas colocou vírgula em vez de dois pontos
depois da cidade, antes da editora, e levou a maior bronca dor
avaliadores" .
Depois de alguns instantes em que me diverti com a
pureza daquele guri, tentei acalmá-lo. Mas ele ainda me fez
uma pergunta desconcertante: "Se a gente põe vírgula em vez\
de dois pontos depois da cidade, na bibliografia, o trabalho perde

) a cientificidade?". Naquele momento, no apogeu da sua juven-


tude, a vida dele dependia de um esclarecimento quase metafí-
, sico: quando usar in ou apud para não perder a cientificidade da
pesquisa? Até aí, eu estava preparado para dar-lhe uma resposta
convincente. Podia, inclusive, justificar esse latim que lhe parecia
tão esquisito. Mas o que dizer em relação à cientificidade dos
dois pontos preferidos pela ABNT? Na França, usa-se vírgula
mesmo e nunca ouvi ninguém reclamar. No Brasil, já ouvi longas

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discussões sobre temas que sempre me fazem pensar em polê- A tarefa de um pesquisador pode ser resumida em formu-
micas medievais sobre o sexo dos anjos: deve-se usar bibliografia lar e testar hipóteses. Alguns entendem que não se deve perder
ou referências bibliográficas? Conclusão ou considerações finais? tempo formulando hipóteses que possam ser refutadas. Limitam-
Introdução e conclusão devem ser numeradas? se a formular hipóteses previamente "testadas". O resultado,
Conheci um doutorando tão preocupado com um pos- embora banal, é sempre positivo. Essa reflexão se impôs a mim
sível fechamento definitivo da palavra conclusão, que via qua- e à decisão de escrever este livro quando pensei nas últimas mil
se como um epitáfio, que preferiu chamar este último ato de hipóteses que analisei em projetos, monografias, dissertações e
"abertura". Achei que era original. Em poucos meses, partici- teses que caíram em minhas mãos. Se faltava ainda um estímulo,
pando de muitas bancas, percebi que era uma nova tendência. em meio a tantos afazeres, ele veio quando um professor me
Ao retomar para casa, depois da conversa com o jovem do in e fez a seguinte pergunta: "Você conhece alguém da ABNT? Eu
do apud, da vírgula e dos dois pontos, comecei a pensar que queria que eles me explicassem algumas escolhas que fazem e
as suas dúvidas faziam sentido. Eu mesmo tinha passado por que não me parecem racionais". Fiquei sorrindo. Não, eu não
• situações parecidas. Uma vez, um colega me implorou para conheço ninguém da ABNT. Jamais alguém se apresentou ou
incluir algumas notas de rodapé num texto ou ele não poderia foi apresentado a mim como sendo da ABNT.
aprová-lo no conselho científico de um congresso. Perguntei- O professor em questão teve um momento de hesitação.
lhe se o texto deixava dúvidas que precisassem de esclareci- Depois, gaguejou: "A ABNT manda ou recomenda?". Não
mentos em notas. Disse-me que não. Mas notas de rodapé, respondi. Quando ele já estava indo embora, achei necessário
segundo ele, sempre dão legitimidade e cientificidade. Salpiquei dizer-lhe algo. Limitei-me a balbuciar: "A ABNT não é o pro-
uma dúzia de notas ao acaso e o meu texto foi saudado pelos blema". Ele se foi. Fiquei com o problema na mão. Afinal, qual
pares como um exemplo de rigor científico. é o problema? Uma metodologia para usar, ao menos, em co-
Meu olhar sobre esses aspectos começou a ficar mais municação, que não seja artificial nem hilariante como "estudo
aguçado. Cada monografia, dissertação ou tese exibe um longo exploratório com base em revisão bibliográfica". Muitas vezes,
referencial teórico e uma parte sobre metodologia. Raras vezes visto com algum humor, parece que se faz o óbvio e está bem.
o referencial teórico e a metodologia se encontram. Quase nunca Quer dizer, está bem se houver um rótulo para fazer desse óbvio
a metodologia deriva do referencial teórico. Na maior parte das uma metodologia. Algo assim: "Método das aproximações su-
vezes, o referencial teórico é um olhar emprestado que enche cessivas em relação a um objeto multifacetado".
páginas, fixa um pano de fundo e não tem utilidade para a aná- Uma pergunta que me fazem com frequência também
lise. Já a metodologia parece uma grade que se escolhe num me impulsionou a escrever este livro: o que faz um texto ser
supermercado metodológico. De posse da sua metodologia o acadêmico? Ou: para ser acadêmico um texto precisa ser
pesquisador sai pelo mundo tentando enfiar o vivido num obscuro, ilegível e ter palavras difíceis ou nunca usadas? Outra
parâmetro (que chamará de paradigma para ganhar em cien- pergunta (feita quase sempre por jornalistas e publicitários): é
tificidade) preexistente. Tudo o que não cabe na matriz, espirra. preciso mesmo seguir as regras do texto acadêmico?
No fundo, é como colocar água numa forminha de gelo. O Posso garantir que para escrever bem em termos aca-
excesso vira e está resolvido. dêmicos não é preciso escrever mal.

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Nem fazer frases e parágrafos intermináveis. hora de escrever, a partir de textos que vinha publicando e de
Revelação: apesar d? que pensam alguns, a profundidade leituras que me impressionam, o meu pequeno manual de
não se encontra no tamanho da frase. antimetodologia positivista. Na verdade, um esboço de meto-
Cada campo tem suas regras. Não se joga futebol com a dologia aberta para o campo da comunicação baseado em
mão (salvo o goleiro, Maradona e o atacante francês Thierry Martin Heidegger, Edgar Morin, Jacques Derrida, Jean-François
Henry). A regra de ouro do texto acadêmico em ciências huma- Lyotard, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Thomas Kuhn e
nas é muito simples: nada pode ficar sem argumentação. Certa Paul Feyerabend. Embora possa existir uma relação ou res-
vez, numa dissertação, ao final de cada capítulo, havia esta frase: sonância, não estou tentando fazer eco a Eco. Os tempos são
"É assim porque está escrito nas estrelas". Não vale. É mão. O outros. As escalas também.
texto acadêmico é um texto argumentado em que tudo exige A aventura é a mesma.
demonstração. Uma aventura que vai muito além da ABNT.
O resto é estilo (ou falta de). Ainda bem.
As estrelas não são um bom suporte para textos.
Talvez nenhum livro teórico tenha me marcado tanto
quanto Contra o método (1977), de Paul Feyerabend. Lançado ~ EM BUSCA DE UM CAMINHO
nos Estados Unidos em 1975, causou furor nas hostes positi-
Passa o tempo, as questões se repetem. O que busca um
vistas. Eu o li, pela primeira vez, em 1983, aos 21 anos de idade,
pesquisador do imaginário e da comunicação? O que o diferen-
quando cursava, ao mesmo tempo, as faculdades de História e
cia de um leitor de jornais, de um telespectador, de um ouvinte,
de Jornalismo. Na verdade, comprei-o de um estudante de
de um internauta obsessivo? O que significa analisar no con-
Filosofia e Jornalismo que estava largando tudo para virar hare
texto de uma narrativa do cotidiano? O que separa o trabalho
krishna. Acho que não cheguei a pagá-lo. Pelo que sei, sem
do jornalista da atividade do pesquisador em comunicação? O '.I

prova cabal, aquele jovem saturado de racionalismo ocidental


que prova que a prova de um é melhor do que a prova de
hoje é um empresário bem-sucedido no ramo da metalurgia.
outro? O tempo de observação? O espaço para apresentação
Contra o método me abriu caminho para outro livro desesta-
dos resultados? A interlocução com teóricos no papel de fontes
bilizador: A Estrutura das revoluções científicas (1982), de
privilegiadas? O jornalista cobre, o pesquisador descobre? O
Thomas Kuhn, lançado originalmente em 1962.
jornalista cobre para descobrir, o pesquisador descobre a pró-
Depois desses dois livros, nunca mais fui o mesmo. Ainda
pria cobertura do jornalista?
não sei se isso é bom ou ruim. Os dados estavam lançados para
O que transforma um argumento em prova?
mim. Não foram poucas as loucuras que fiz pensando seguir o
Essas perguntas estavam em meu artigo "A Questão da
que mostravam. Feyerabend e Kuhn desmontaram discursos de
técnica jornalística: cultura e imaginário" (Revista Famecos, n°
autoridade com base na autoridade de que dispunham para
39, 2009). O tema apareceu em meu livro As Tecnologias do
tanto. Um belo paradoxo. Reli esses textos seminais em 2009.
imaginário (2003), onde tratei da cobertura jornalística como
Concluí, o que pode ser mais uma loucura, que estava na
um descobrimento e esbocei a noção de narrativas do vivido.

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Sustentei que cobrir é descobrir. A cobertura jornalística é um excesso de familiaridade. O cronista desvela, revela, descobre,
dispositivo de recobrimento que deve resultar num desvela- "desencobre". O escultor, de certa maneira, faz o mesmo, arran-
mento. Recobrir significa utilizar todos os elementos possíveis cando da matéria bruta uma forma. Pode-se alegar, no entanto,
para cercar o objeto de maneira a fazê-lo exprimir-se. A relação que a forma não estava lá no interior da pedra, tendo sido acres-
\\ entre o sujeito e o objeto obrigatoriamente precisa ser de diálogo. centada pelo escultor. Já o cronista arranca mesmo a tênue
\
I Mas a cobertura como recobrimento se faz em busca de um cobertura do vivido e ilumina, revelando uma contradição, des-
descobrimento. A pesquisa traz à luz o que está encoberto por cobrindo um paradoxo, destacando uma incongruência, o que
alguma sombra. Não se trata, no entanto, de revelar a essência se mantinha na obscuridade em plena luz do dia. O pesquisador
do objeto, mas simplesmente aquilo que, dele fazendo parte, é um cronista do imaginário.
permanece invisível por causa do excesso de familiaridade Pesquisar é fazer vir à tona o que se encontra, muitas
ou de alguma deficiência do olhar do observador. Pesquisar o vezes, praticamente .pa superfície do vivido. .
cotidiano nada mais é do que revelar aquilo que permanece As palavras podem esconder mundos. 'A comun'icação
encoberto pela familiaridade sob uma camada tênue e tenaz pode encobrir. Heidegger foi, nesse sentido, teórico da (in)co-
de "entranhamento". Aquilo que se funde, desaparece. municação. Malagrida, citado em epígrafe em O Vermelho e o
É preciso fazer o caminho inverso: desencavar. negro, também: "A palavra foi dada ao homem para ocultar o
A cobertura só se completa quando o descobrimento se seu pensamento" (apud Stendhal, 1971, p. 141). Tudo está aí.
realiza. Cobre-se para descobrir. Cobre-se para "desencobrir". " Falar ou fazer falar é uma operação de seleção, de edição e de
Esse processo passa, ao menos, por três fases: estranhamento estratégia. Aos poucos, contudo, o mais importante ocorre por
(procedimento antropológico de saída de si por meio do qual o uma espécie de banalização do sentido. A lente torna-se opaca.
pesquisador tenta abstrair os seus valores, trocar de "lente" ou Em lugar de ampliar, apaga. Pierre Bourdieu referiu-se com
simplesmente colocar de lado os seus pré-conceit~s), "e~tranha- acerto a esse problema da percepção: "Os Jornalistas têm 'óculos'
mento" (procedimento compreensivo e fenomenológico de em- especiais a partir dos quais veem certas coisas e não outras; e
patia por meio do qual o pesquisador mergulha no universo do veem de certa maneira as coisas que veem e não outras. Eles
outro, tentando, na medida do possível, colocar-se no lugar desse operam uma seleção e uma construção do que é selecionado"
outro para sentir aquilo que lhe escapa, viver uma experiência (1997, p. 25). Uma questão se impõe: o pesquisador não opera
que não é a sua, praticar a diferença como repetição de uma da mesma maneira? Também o pesquisador usa 'óculos', sele-
vivência) e, por fim, "desentranhamento" (procedimento por ciona e constrói o que vê.
meio do qual o pesquisador sai do outro, volta a si, retoma os Posicionado como pesquisador, Bourdieu comporta-se
seus valores, afetado pelo objeto, e numa abordagem dialógica como se fosse detentor de um metaponto de vista: "Os jornalis-
busca narrar o vivido como cronista do eu/outro). tas, grosso modo, interessam-se pelo excepcional, pelo que é
.Sim, nesse sentido o trabalho do pesquisador não parece excepcional para eles. O que pode ser banal para outros poderá
diferente do trabalho do escritor ou de qualquer outro artista. O ser extraordinário para eles ou ao contrário. Eles só se interes-
cronista pode ser definido como aquele que levanta o véu do sam pelo extraordinário, pelo que rompe com o ordinário, pelo
cotidiano, trazendo à tona aquilo que estava escondido pelo que não é cotidiano - os jornais cotidianos devem oferecer co-

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tidianamente o extracotidiano ..." (1997, p. 26). De que forma o sair dos seus quadros teóricos antes de entranhar-se no desco-
pesquisador pode retomar ao cotidiano sem fazer do banal algo nhecido familiar do cotidiano.
extraordinário? Com que lentes deve olhar o vivido para perceber Em "A Questão da técnica", texto que se tomou ainda
o que é importante para os protagonistas do cotidiano e não mais célebre com o surgimento das novas tecnologias da comu-
/,
somente para um observador profissional? nicação, entre as quais a internet, Martin Heidegger levanta ou
Afinal, de onde olha quem olha? retoma uma série de ideias que podem ser apropriadas para a
A resposta só pode ser óbvia: de algum lugar. construção de uma metodologia aberta: "O caminho é um
Os passos, portanto, de uma antimetodologia positivista, caminho do pensamento. Todo caminho do pensamento passa,
antes de qualquer conclusão, devem ser: de maneira mais ou menos perceptível e de modo extraordi-
- Estranhamento nário, pela linguagem" (2002, p. 11). Como tomar perceptível
- Entranhamento esse caminho da linguagem? Esta é a questão central de qualquer
- Desentranhamento trabalho em comunicação. Um pesquisador 'em comunicação
1
Deve-se poder fazer isso tanto numa pesquisa de campo, explicita o caminho do pensamento, tomado obra, 'através da
estudando, por exemplo, uma "tribo" urbana ou uma comuni- linguagem. Ao final de uma pesquisa, ele deve ser capaz de
dade virtual, quanto na interpretação de UnI texto, de um filme responder a seguinte pergunta: qual foi o caminho descoberto?
ou de qualquer objeto simbólico. A técnica, afirma Heidegger, "não é igual à essência da
técnica" (2002, p. 11). O pesquisador da comunicação não anda
atrás de essências. Mas a tese de Heidegger pode ser-lhe muito
3 NAS PEGADAS DE HEIDEGGER
útil na medida em que disso Heidegger deriva a ideia de que a
Heidegger trouxe à luz a relação escondida na palavra técnica (a tecnologia) não é neutra. A técnica de pesquisa tam-
Gestell (sujeição pela razão). O radical Ge é o mesmo dos verbos bém não o é. Uma metodologia (com suas técnicas) forma,
da pesquisa científica: rastrear, apresentar, evidenciar, repre- conforma e deforma um objeto. Em toda escolha metodológica
sentar, expor, demonstrar. Cabe ao cientista interpelar, requerer, há algo de aleatório. Heidegger pergunta: o que é a técnica?
deter, instalar, assegurar-se de alguma coisa. A técnica submete Duas respostas logo aparecem: "um meio para um fim" e "uma
racionalmente a natureza. As lentes dos jornalistas e dos pes- atividade do homem" (2002, p. 11). Ambas são exatas. Mas
quisadores ampliam ou reduzem o observado de acordo com o não são, no entender de Heidegger, a essência da técnica. A
grau de interesse do observador, do seu ângulo de visão e da primeira ideia remete a uma "concepção instrumental e antro-
sua grade de percepção. Uma teoria, por exemplo, ,é umaJente pológica da técnica". Nela o homem é senhor.
que deforma, conforma, reforma, informa e dá forma ao que se Diz Heidegger: "Pretende-se dominar a técnica. Este
observa. Teoria é pré-conceito. Conceito a priori. Uma metodo- querer dominar toma-se tanto mais urgente quanto mais a técnica
logia é uma lente de apoio que permite à teoria formatar o vivido. ameaça escapar ao controle do homem" (2002, p. 12). O mesmo
Em lugar de escolher uma teoria para melhor abordar um objeto, vale para a metodologia. O pesquisador imagina usá-la como
talvez fosse o caso de o pesquisador, por meio do estranhamento, . meio para um fim. Acredita que ela é neutra. Mas não é. Cada

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vez mais os pesquisadores são dominados pelas metodologias e pro-dução ~onduz do encobrimento para o descobrimento. Só
técnicas que escolhem. Descobrem o correto. Confundem-no se dá no sentido próprio de uma pro-dução enquanto e na
com o verdadeiro. Heidegger precisa: "O simplesmente correto medida em que alguma coisa encoberta chega a des-encobrir"
ainda não é o verdadeiro" (2002, p. 13). Tomemos um exemplo (2002, p. 16). Heidegger adorava hífens. Eles fazem sentido.
futebolístico. Um time perde por 16 a O. Um jornal simpático Essa "pro-dução" descobre um encoberto: o mecanismo que
ao derrotado dá como manchete: "Time perde por 16 a O". É sendo "pro" induz e conduz ao aparecer. Parece difícil? Nem
correto. Mas não é (toda) a verdade. Houve um massacre. Na tanto. Uma metodologia é um conjunto de técnicas e procedi-
"neutralidade" pode haver preferência. mentos que ajuda na "pro-dução" do descobrimento, fazendo a
O pesquisador da comunicação não precisa adotar o resposta aparecer: "A técnica não é,portanto, um simples meio.
essencialismo de Heidegger, mas pode adaptar as suas teses A técnica é uma forma de desencobrimento" (2002, p. 17). A
para tentar ver o que se esconde por trás do "correto", do "exato". técnica Ça metodologia) é uma "fôrma" de desencobrimento.
Heidegger fala em quatro causas dos fenômenos: a materialis, Faz o encoberto vir.à tona. Mas o faz conforme o seu padrão.
aformalis, afinalis e a efficiens. Há um efeito legitimador de No campo da comunicação no Brasil a "produção" for-
erudição na manutenção dessas palavras sem tradução. Os mata o descobrimento (a pesquisa) de outras maneiras também,
filósofos adoram citar palavras em grego e em latim, especial-
cada publicação servindo mais para satisfazer a burocracia e o
mente quando o interlocutor não as decifra. Por um lado, acre-
produtivismo acadêmicos do que para estabelecer um debate
ditam ingenuamente que certas línguas são mais expressivas do
de ideias. As regras e técnicas do universo científico são cada
que outras. Por outro lado, faturam com os efeitos de erudição.
vez mais definidas por uma necessidade de produção (tantos
Afinal, como diria Pierre Bourdieu, todo campo é um campo
artigos por ano), assim como as regras do campo jornalístico
de lutas em busca de troféus.
estão cada vez mais marcadas. pela necessidade do "furo", da
A quarta causa talvez seja a mais interessante para um
sensação e do "extraordinário". Essa "dis-posição", para usar
pesquisador em comunicação: como o resultado foi obtido?
outro termo de Heidegger, fixa uma posição e um apetite. O
Na verdade, o pesquisador pode fazer duas perguntas: qual a
que se esconde por trás dessa "pro-dução"? A busca de resul-
finalidade de algo? E como ele foi alcançado? Em tempos de
tados. A vontade de produzir estatísticas. Não só.
internet há quem se atreva a, perguntar: para que serve, diga-
Nem sempre o homem consegue trazer à luz aquilo que
mos, o twitter? A maioria pergunta: como se chegou a ele?
está escondido. Heidegger explica: "O homem não tem, con-
Quais os seus efeitos? Uma pesquisa em comunicação que dê
boas respostas a perguntas como essas, em relação a um objeto, tudo, em seu poder o desencobrimento em que o real cada vez
pode ser considerada eficiente e tendo cumprido sua finalidade. se mostra ou se retrai e se esconde" (2002, p. 21). Questão de
O que seria, nesse caso, a metodologia? O caminho feito para método. Quando o "real" se esconde, o método não funcionou.
se chegar às respostas a essas perguntas. Pode-se saber o caminho O resultado eficiente sai, portanto, do conjunto de lances feitos
antes de a caminhada ter sido feita? no tabuleiro da pesquisa. Em termos individuais, no entanto,
O pesquisador deve fazer a resposta aparecer. Esse uma má escolha metodológica pode levar a um resultado
processo, nos termos de Heidegger, é uma "pro-dução": "A satisfatório: a obtenção de um título acadêmico.

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Heidegger tinha o seu lado piegas. a descobrimento dava- constrói. a jornalista, portanto, não é o camponês que cultiva a
se para ele "sempre que o homem abre os olhos e os ouvidos e terra, mas o explorador que provoca as energias sociais para
desprende o coração" (2002, p. 22). Faz sentido. As respostas alcançar um resultado máximo ao menor custo. a pesquisador
dependem das perguntas. Se o homem quer apenas explorar a não é somente o idealista em busca da verdade, mas também o
natureza, não descobrirá o que essa "dis-posição" "pro-duzirá" homem numa "lógica de carreira" em competição consigo mesmo
como efeito. Para Heidegger, como é sabido, a essência da (desafios) e com seus pares (concorrência). Pesquisa e jornalismo
técnica não é técnica. A verdade da metodologia também não é necessitam, contudo, de concorrência e de muita cooperação.
metodológica. Não se deve demonizar a técnica. Nem a meto- a que quer o jornalista? Tomar-se senhor das técnicas
dologia. Tampouco se deve endeusá-Ias. Quando o pesquisador
se submete à metodologia, perde o caminho do descobrimento.
A pesquisa, como o jornalismo, é uma cobertura (um recobri-
suas missões (informação, formação, conscientização).
o
quer pesquisador? Confirmar ou refutar a hipótese, descobrir
º
do jornalismo, orientá-Ias para os seus fins, dirigi-Ias para as
que

mento). Cobre-se para descobrir. o que se''encontra encoberto. a que consegue o jornalista que
a jornalismo investigativo, afirmei em As Tecnologias do crê na neutralidade da técnica? Enganar-se. Toda vez que acredita
imaginário (2003), também deve rastrear, apresentar, evidenciar, realmente na neutralidade das suas técnicas, resvala para as
representar, expor e, por meio de sua técnica, interpelar e asse- mitologias da sua profissão e em lugar de controlar as suas téc-
gurar-se de que chega à verdade dos fatos. Esta é a mitologia da nicas vê-se ameaçado de controle por elas. a que consegue o
profissão e, ao mesmo tempo, a sua "dis-posição". Mas, em pesquisador que crê na neutralidade da metodologia? a mesmo
tempos de exacerbação do poder da mídia, o jornalismo cada que o jornalista. Enganar-se. Ou seja, resvalar para o positivismo.
vez mais explora o requerer, o deter e o instalar-se, ou seja, o Se ao longo da história não foram poucos os que se pu-
lugar do outro. A mídia instala-se no lugar da justiça, inspeciona seram a questão mais simples e mais complexa, como julgar?, o
tudo e detém a verdade. Isto é, "pro-duz" a verdade. Essa "dis- romancista Marcel Proust foi direto ao ponto: "Quel critérium
posição" não deixa de ser também a da ciência. Esses aspectos adopter pour juger les hommes?" (1991, p. 298). Afinal, o
não invalidam a afirmação inicial válida para a pesquisa e para homem escolhe o método, mas o método pode dominar o ho-
o jornalismo: cobrir é descobrir, fazer-vir, fazer emergir, produ- mem. Se todos os personagens seriam capazes de cometer uma
zir uma notícia ou um resultado, revelar, interpelar os sujeitos e infâmia, fica a pergunta: seria o caso de deixar de vê-los? a ob-
os fatos. a jornalista e o pesquisador dialogam com o fato, servador, mesmo quando se imagina neutro ou científico, julga.
a uso das técnicas jornalísticas interpela o acontecimento a mesmo ocorre com o jornalista. A diferença entre esses dois
e o sujeito desse acontecimento, assim como a extração de mi- investigadores não está no objeto nem nos procedimentos: a
nério provoca a natureza. a uso de uma metodologia interpela jornalista pode confundir, nos termos heideggerianos, "correção"
o objeto assim como uma máquina "pro-voca" a natureza. Não e "verdade". Ao dizer que sua função é informar, está correto.
há neutralidade. a jornalismo não é como o moinho que apenas Não mente. É exato. Sustentar que as técnicas do jornalismo
abre suas pás ao vento sem afetar o meio ambiente, mas como o servem para o cumprimento dessa tarefa também é correto. Na
explosivo que abre as entranhas da terra para ter acesso ao seu exatidão há sempre uma parte precisa da verdade. a problema
patrimônio. A pesquisa não apenas descreve o objeto. Ela o não é o excesso, mas o que falta.

20 21
A manipulação e a censura correspondem ao estágio guarda florestal é atingido pela destruição da floresta que pro-
primitivo das técnicas jornalísticas. O falseamento de dados tege, o jornalista e o pesquisador são envolvidos nas operações
remete à desonestidade em pesquisa. Não é mais a manipula- que executam. Na relação objetividade/subjetividade, jorna-
ção nem a censura explícit~ que caracterizam fundamental- lista e pesquisador têm seus imaginários formatados pelas téc-
mente a operação de encobrimento da mídia, mas a escolha nicas e métodos escolhidos. Às vezes, o que falta a jornalistas e
pelo que, sendo correto, não diz toda a verdade. A opção por pesquisadores não é a objetividade, mas a subjetividade.
uma teoria, em detrimento de outra, não leva ao mesmo im- ,
No ato de descobrir - trazerà , luz -, eles também ficam
passe?: O jornalismo produz versões. "Pro-duzir", no sentido a descoberto. A técnicajornalística, em sua fase pós-industrial,
heideggeriano, significa fazer passar do estado escondido ao espetacular, funciona como uma provocação: um modo de
não escondido. Revelar. Esta seria a essência do jornalismo. É desvelamento que interpela e afeta radicalmente o sujeito e os
exato que a técnica seja um instrumento e uma atividade do aconte9imentos cobertos. A "pro-vocação" faz o encoberto
homem. Mas isso, como se viu, não é a essência da técnica. O tornar-se descoberto. Faz a vocação da coisa aparecer. Trata-
surgimento de uma nova tecnologia interpela o mundo até se de um processo de obtenção de dados que transforma para
mesmo daqueles que não se servem diretamente dessa tecno- acumular ganhos (audiência) e fragmenta para crescer. A in-
logia. Da mesma forma, é exato que o jornalismo informa. Mas formação torna-se entretenimento ou convocação. É preciso
isso não é essência da técnica jornalística. Em princípio, esta estar ali. Vai-se da notícia ao espetáculo. Passa-se da ação à
deveria ser a revelação como enunciação da verdade. Porém, a contemplação, da descrição à dramatização, da apresentação
verdade que se enuncia, o que sobrevém, o que emerge, é o fato à construção de uma narrativa que repõe os fatos numa ordem
de que a técnica jornalística espetaculariza o fato, levando ao e numâ discursividade adequadas ao efeito. A finalidade cede
acontecimento. Da mesma forma, o pesquisador deveria reve- lugar à eficiência. Pronto.
lar a essência das coisas, mas o que vem à luz é a convicção de Feyerabend provoca: "As teorias são submetidas a teste
que as coisas podem não ter essência. li e, eventualmente, refutadas pelos fatos. Os fatos encerram
O jornalismo espetacular forja o seu destinatário, cria o \ componentes ideológicos, concepções antigas que foram per-
seu receptor e programa o seu jornalista. A pesquisa forma o didas de vista ou que jamais chegaram a ser explicitamente
seu destino a partir da escolha teórica e metodológica. Se a formuladas" (1977, p. 113). O que faz o jornalista? Deixa ao
técnica fosse apenas um instrumento e uma atividade do ho- pesquisador refazer o caminho completo. O pesquisador em
mem (o que também é correto), este controlaria todos os seus comunicação deve se~uir as pegadas do pensamento, expressas
efeitos. Não haveria espaço para a divergência. Não é assim. A nos vários tipos de linguagem verbal e não verbal, 'para locali-
energia elétrica transformou o mundo, inclusive daqueles que zar esses componentes ideológicos e essas concepções perdidas
não a possuem. A invenção da bomba atômica criou uma nova de vista. O trabalho de reconstrução é, ao mesmo tempo, um
I'
forma de estar no mundo para além do uso que o homem pode trabalho de desconstrução. Mais três passos importantes:
fazer dessa arma. A técnica, segundo Heidegger, não é apenas - Construção
um meio de atingir um fim, mas "um modo de desvelamento", - Reconstrução
Aquele que interpela também é interpelado. Assim como o - Desconstrução

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A técnica jornalística busca um efeito: a sensação. Em larização (interpelação)? Pelo uso da técnicajornalística (cons-
algum grau, todo jornalismo é sensacionalista. A essência (ver- -trução da notícia, reconstrução do acontecimento, dramatização,
dade) do jornalismo está na sua técnica. Mas qual é a essência leveza, pitoresco, fragmentação, identificação). O que se pode
da técnica jornalística deste começo de terceiro milênio? A es- fazer para evitar a conformação metodológica? Nada. Exceto
petacularização (sensacionalização) do acontecimento! O que é J apostar na pluralidade de métodos para que várias interpreta-
exato na técnica? Ser meio (instrumento) e fim (atividade do ções possam conviver e disputar O estatuto de verdade.
homem). Qual é a essência dessa técnica? Interpelar a natureza Assim como a extração de carvão afeta a natureza, inde-
e transformar o existente, queira-se ou não, para além do uso pendentemente do uso que se fará desse minério (aquecimento
que se faça de uma tecnologia, submetendo à razão (técnica) o de casas ou energia para máquinas), a formatação do acon-
vivido. A utilização de uma máquina pode causar desemprego, tecimento modifica a percepção do destinatário e irriga a sua
independentemente de um uso específico, ou inventar imagi- "bacia semântica" de modo a influir, com' o tempo, no seu
nários, copiar textos eruditos ou novelas policiais. O que é uma imaginário. Da mesma 'forma, alguns pesquisadores aplicam a
metodologia? Um meio para atingir um fim. Qual é a essência mesma metodologia a todos os seus objetos. Obviamente que
da metodologia? Uma forma de formatar o que é descoberto. os diferentes objetos dão as mesmas respostas. O que se desco-
Muitas perguntas decorrem dessa "dis-posição": o jorna- bre? Que a metodologia pode ser um processo de encobrimento.
lista descobre menos do que o pesquisador? Descobre o correto Se a produção de petróleo afeta o mundo, indiferentemente ao
enquanto o pesquisador descobre o verdadeiro? Descobre o uso desse combustível (mover carros de passeio ou caminhões),
provisório enquanto o pesquisador descobre o permanente? As a produção jornalística afeta o olhar, fabricando visões de mundo,
técnicas de pesquisas - e as metas impostas aos pesquisadores e a pesquisa afeta o olhar, produzindo mundos. O uso do petróleo
- provocam e interpelam o objeto e a cultura? Em lugar de fazer pode levar a mais POluição; a técnica jornalística pode levar a
emergir o encoberto pela familiaridade do cotidiano, numa ope- mais ou menos espetacularização (poluição imagética, ruído
ração sempre repetida de fabricação de diferença, a técnica de como dejeto). As metodologias podem levar a mais ou menos
pesquisa produz dados que, embora sendo exatos, não chegam positivismo. Ou à clareza.
a desvelar os sentidos implícitos do fenômeno coberto? A com- A .técnica jornalística não suporta o não acontecimento.
preensão não ocorre? A produção de sentidos toma o lugar do Logo, constrói o acontecimento jornalístico (ênfase no local, no
descobrimento de significados? Assim como o repórter, sempre nacional, na competição, no anedótico, na identificação, no culto
apressado e pressionado, o pesquisador reporta, relata, comenta, às celebridades, no espetacular etc.). As metodologias não
opina, mas não retira o véu? suportam a ambiguidade. O que é um acontecimento? Um fato
O que é exato no jornalismo? Cobrir para descobrir. O em si? Um fato bruto? Um fato novo? Uma nova interpretação?
que é exato na pesquisa? Investigar para chegar à verdade. Qual Os fatos só existem como narrativas, entre as quais ajornalística,
é a verdade do jornalismo atual? Espetacularizar, em graus, como reconstruções. A narrativa jornalística muda com o tempo
variadós, para vender e garantir a audiência (acumulação de e com as culturas. A narrativa científica faz parte da cultura
ganhos ao menor custo). Qual a verdade da pesquisa? Sua con- ocidental. A narrativa jornalística incorpora, cada vez mais, os
formação metodológica. Como se pode produzir essa espetacu- elementos da narrativa dramática como se fosse uma ficção,

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uma novela, uma intriga, com personagens, tensão crescente, Pesquisa e jornalismo são essencialmente aparência. Como diria
trama, desfecho, oposição marcada de papéis (bem e mal), Heidegger, o que "engaja o homem naquilo que ele não pode
simulação de contradições para dar profundidade psicológica por si mesmo nem inventar nem fazer"? No jornalismo atual,
aparente aos personagens. A narrativa científica alimenta seu é a contemplação, a vida por procuração, o êxtase pelo gozo
mito ou revisa sua origem: "Galileu realizou progresso alterando do outro, a delegação das emoções, o culto às celebridades, a
as ligações comuns entre palavras e palavras (introduziu con- transferência do si para o outro, a projeção no outro. O homem,
ceitos novos), entre palavras e impressões (introduziu novas como ironizava Baudrillard, sentado no sofá de casa vibra com
interpretações naturais) ..." (Feyerabend, 1977, p. 255). a existência, com as vitórias, com as ações de outros, com a
O pesquisador em comunicação deve atentar para, ao vida que não vive, com as ações que não pratica. Guy Debord
menos, três ordens de coisas: apostava numa superação pela sociedade ideal, numa mistura
- A relação entre as palavras de anarquismo e de marxismo. Baudrillard sabia que a mídia
- A relação entre as palavras e as coisas toma o lugar do acontecimento e dá ao telespectador uma sen-
- A relação entre as coisas e as coisas sação de vida que ele jamais experimentará de fato. Baudrillard
Se a técnica jornalística produz o acontecimento, como e Bourdieu, de ângulos diferentes, denunciaram o mesmo: "A
matéria necessária do seu fazer, a técnica de pesquisa alcança, televisão chama bastante a atenção nos tempos que correm. Faz
enfim, a neutralidade da observação? Evidentemente que não. falar dela. Em princípio, ela está aí para nos falar do mundo e
Nem se espera uma redução positivista dessa ordem. Como, para apagar-se diante do acontecimento como um medium que
então, as coisas poderiam se relacionar com as coisas sem se respeite. Mas, depois de algum tempo, parece, ela não se
palavras? Toda descrição é uma narrativa. Em contrapartida, respeita iliais ou toma-se pelo acontecimento (Baudrillard, 1999,
constata-se que a operação de pesquisa em condições de pro- p. 157). O resultado da pesquisa não pode fazer o mesmo. Deve
dução - como numa usina - interpela o tempo do descobrimento, ir além do véu que lhe dá cobertura.
inverte certa lógica de cobertura, afeta a concepção do conheci- O acontecimento jornalístico/midiático, resultado da luta
mento e inspeciona, controla e afere o produzido. Se "pro-vocar" num "campo" econômico, político e cultural, sofre os efeitos da
significa revelar a vocação de algo, a "pro-vocação" da pesquisa .busca da hegemonia: "Por meio do índice de audiência, é a lógica
atual faz emergir uma vocação industrial de pesquisa, assim comercial que se impõe às produções culturais" (Bourdieu, 1997,
como, no caso do jornalismo, a "pro-vocação" revela uma vo- p. 38). A pesquisa não pode seguir a mesma lógica. Ou segue?
cação produtivista de caráter sensacionalista. Evitemos o julga- Bourdieu mostra como o que se apresenta exatamente como
mento moral. O jornalismo deve produzir sensações, "furos", técnicajornalística - 'furo', exclusividade, tratamento da infor-
novidades efêmeras e informações passageiras. A pesquisa deve mação - corresponde, na verdade, às injunções da lógica da cOI~-
produzir validações, monografias, dissertações, teses, impres- corrência. O jornalista capaz de alcançar grande reputação é
sões de consistência, hipóteses, conceitos, verdades pardais e aquele cujas "categorias de percepção" estão adequadas às "exi-
informações quantificáveis. gências objetivas" da profissão (1997, p. 36)". O pesquisador não
O jornalismo é financiado pela'publicidade e pelos seus é obrigado a utilizar as lentes adequadas para também auferir de
públicos. A pesquisa não vive sem fundos estatais ou privados. prestígio e do reconhecimento dos s,eus pares? O pesquisador

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não vive também atrás do "furo" de investigação que lhe ga- É um processo de tortura. Precisamos retomar às origens simples
rantirá prêmios, novas verbas e tranquilidade para trabalhar? eretomar a ciência, para usar expressões heideggerianas, como:
Pesquisar é cobrir radicalmente o aparente. A essência I', -
modo de desvendamento
da técnica é um imaginário. A essência da técnica jornalística I - modo de desvelamento
ameaça a cobertura como descobrimento, limitando-se à reve- Um processo de descobrimento pela observação siste-
lação do evidente. O perigo, como mostrava Heidegger, não mática. Desvendar significa tirar a venda dos olhos do obser-
- /'

vem das máquinas, mas da essência da técnica, o que pode vador. D~lar significa tirar o véu gue encobre o objeto.
impedir o retorno ao engajamento inicial: cobrir para desco- Pesquisar significa trazer à razão.' Ao final de um trabalho de
brir. O correto sufoca a verdade. A regra (técnica) impede a pesquisa, de uma monografia, de uma dissertação ou de uma
novidade narrativa. Da mesma forma, a couraça metodoló- tese, o pesquisador deve ser capaz de responder a algumas
gica pode gerar tranquilidade e conformismo, impedindo a que\s;ões muito sim~ cl~s:
novidade teórica e a troca das lentes. Se o perigo no jornalismo , (f'- O que foi desvendado?

já não vem tanto da manipulação, mas do privilégio à correção \J} ),')6' - O que foi desvelado? ,
em lugar da verdade (aquilo que se esconde sob o exato), o - O que passou de encoberto a descoberto?
perigo na pesquisa não vem tanto dos riscos da aventura, mas - O que emergiu?
do excesso de garantias metodológicas. Se a produção da - O que veio à tona?
técnica moderna funciona como "pro-vocação", a técnicajor- Pesquisar é "fazer-vir", 'p~ar do encoberto ao desco-
nalística pós-industrial (fase do virtual) funciona como espeta- berto, fazer o objeto dizer "o que ele f'. Metodologias artificiais
cularização, e a metodologia na pesquisa pode funcionar como levam o'objeto a dizer o que ele não é, mas que se torna por
garantia de se chegar sempre às mesmas conclusões. Nos dois conformação metodológica. O pesquisador, ao final do seu
casos, os campos recobertos são alterados, interpelados, sub- percurso, deve poder responder a mais uma pergunta objetiva e
metidos à forte pressão e obrigados a liberar energias (naturais, "pro-vocativa":
sociais, culturais, políticas, econômicas) capazes de sufocá- - Como "fez vir"?
\- los. O'pesquisador, ao contrário do jornalista, tem por obrigação Em outras palavras:
repensar a cada dia o seu fazer. - Como descobriu o que estava encoberto?
Pesquisador e jornalista fazem o mesmo trabalho? Obvia- - Como fez emergir o encoberto?
mente que não. O pesquisador deve levar às últimas consequên- - Como fez o objeto falar?
cias uma operação de compreensão/explicação. - Como fez para passar do "correto" (exato) ao verdadeiro?
~ boa metodologia é só isso. Como fazer passar do
encoberto ãõ descoberto. A~ narrativas do vJyido e do imaginário
4 O ESQUEMA 3-4-5-6 pretendem fazer falar o que há de real no imaginário e o que há
de imaginário no real (vivido). Pressuposto: todo imaginário é
Uma metodologia complicada, excessivamente construí- real, todo real é imaginário. Nessa formulação há algo encoberto:
.da, artificial, faz o objeto dar respostas complicadas e artificiais. não é obviamente que o real inteiro' seja imaginário (operação

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