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MULTIPARENTALIDADE E O CONCEITO DE FAMÍLIA NO DIREITO

BRASILEIRO

André Machado1
Edson Saldanha (Orientador)2

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o atual conceito de família para fins
legais no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de demonstrar a evolução das bases
constitucionais projetadas em 1988 e sua adequação à realidade social do nosso país nos
últimos tempos. Para tanto, o trabalho apresentará uma análise sobre o texto constitucional em
sua redação original e, especialmente, o conteúdo da norma jurídica para fins de definição do
conceito de família. Por conseguinte, será traçado um breve histórico sobre as demandas
sociais que se destacaram desde a promulgação da Constituição, há 30 anos, culminando na
revisão judicial do conceito de família para fins legais, sobretudo no que tange ao valor social
da afetividade, incorporado ao Direito como critério de definição do conjunto familiar. Em
seguida, serão analisados os efeitos jurídicos dos novos entendimentos jurisprudenciais, mais
exatamente as possibilidades de configurações familiares e o conceito de multiparentalidade
pertinente. A proposta é verificar os institutos jurídicos afetados e desdobramento disto em
relações jurídicas específicas, a exemplo do casamento e da união estável.

Palavras-chave: Multiparentalidade. Família. Conceito.

1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, corroborada pela legislação civil, doutrina e
jurisprudência que lhe contemporânea, concebeu um conceito de família cuja relevância afeta
as relações jurídicas como a instituição do casamento e da união estável. Contudo, não se
pode ignorar que o conteúdo deste conceito sofreu diversas alterações desde a consolidação de
tais marcos, de modo que a demanda social das últimas décadas veiculou a necessidade de
revisão, no sentido de adequar os paradigmas jurídicos à realidade social.
Exemplo deste fenômeno é a chamada multiparentalidade, cujo principal condão é o
de sustentar a necessidade de amparo legal de diversas formas de composição de um núcleo
familiar. Com efeito, aquela que pode ser referida como “configuração tradicional de família”
não mais reflete a realidade do tecido social, no qual os núcleos familiares apresentam-se sem
um modelo rigoroso, mas por isso deslegitimados a pretender uma segurança jurídica na sua
formação e desdobramentos.

1
Qualificação do autor
2
Qualificação do orientador
Nota-se que hoje que nos lares brasileiros a família apresenta-se por diversas
configurações e, com frequente surpreendente, contestam as ideias há muito conservadas
sobre quais são as possibilidades de se formar uma verdadeira família. Desde núcleos com
apenas uma mãe e seus filhos, ou mesmo sobrinhos, até famílias monoparentais, essa
realidade não mais pode ser ignorada para efeitos de garantia de direitos assegurados a Atal
instituição.
Não à toa, os nossos tribunais superiores já esculpiram decisões nas quais contestou-
se em definitivo a prevalência de um modelo familiar para sejam efetivados direitos e
garantias dos indivíduos, a exemplo do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nessa toada,
ganha destaque também a discussão sobre as configurações familiares nas quais os indivíduos
estão unidos por verdadeiros laços de afetividade, relativizando os fundamentos das relações
de parentesco que pareciam engessadas desde um padrão que, embora respaldado em algum
momento no seio social, não mais se faz hegemônico e está bem longe de corresponder a
dinâmica das unidades familiares que por este se espalham.
No primeiro capítulo do trabalho, traremos à lume a atual composição normativa,
presente em nossa Constituição, no que diz respeito à instituição família e suas espécies.
Nesse sentido, será conceituada a família multiparental, a fim de delimitar os primeiros
contornos da busca pela efetivação de direitos e garantias inerentes a sua relevância social nos
moldes do texto constitucional.
Em seguida, será feito um estudo mais detido sobre a base teórica em que se alicerça
o conceito de multiparentalidade, com especial análise sobre o princípio da efetividade,
verificando a consagração deste último no nosso Tribunal Constitucional para daí verificar a
eficácia do núcleo parental em matéria de direitos civis.
Por fim, iremos delimitar o reconhecimento do núcleo multiparental enquanto uma
das espécies constitucionais de família, verificando, assim, a sua equivalência para fins legais
em relação a outras configurações familiares, como o casamento e a união estável.

2 O CONCEITO DE FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E


LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
O primeiro aspecto a se pensar sobre o conceito constitucional de família é
justamente em relação a sua amplitude; a qual, sem dúvidas, não poderia ser esgotada pelo
texto legal. Aliás, há de se dizer que logo a Constituição é quem deve consolidar o sentido
amplo e abrangente, isto é, verdadeiramente plural, da família na atualidade.
A delimitação teórica desse conceito exige a observância das perspectivas
multidisciplinares que o contempla, a exemplo não só do Direito, como também da
Sociologia, da Psicologia, da Antropologia etc. Com isso, conclui-se que o cuidado na
definição deve atender à complexidade do contexto social que acompanha o tema e, em
mesma medida, não pretender uma elaboração demasiada a ponto de esvaziar a aplicabilidade
prática do conceito.
A própria doutrina jurídica já identificou a dificuldade e o cuidado inerentes à
definição de família, sobretudo em razão das mudanças no contexto social, conforme observa
RODRIGO PEREIRA (2002, pp. 226-227), “a partir do momento em que a família deixou de
ser o núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do afeto e do amor, surgiram novas
e várias representações sociais para ela”. De mesmo modo, CAIO MÁRIO PEREIRA (2001,
p. 170) destaca a perspectiva sociológica do conceito:
Numa definição sociológica, pode-se dizer com Zannoni que a família
compreende uma determinada categoria de “relações sociais reconhecidas e
portanto institucionais”. Dentro deste conceito, a família “não deve
necessariamente coincidir com uma definição estritamente jurídica”.
[...]Quem pretende focalizar os aspectos eticossociais da família, não pode
perder de vista que a multiplicidade e variedade de fatores não consentem
fixar um modelo social uniforme.

Assim, corrobora-se a ideia de que a pretensão de estabelecer um conceito único e


absoluto de família é pouca possibilidade para abranger a complexa e múltipla gama de
relações socioafetivas que vinculam as pessoas no contexto da atualidade.
Ao nos debruçarmos sobre o texto da Constituição Federal de 1988, verificaremos
que à família fora concebida no texto constitucional como instituição da mais alta relevância
para a construção e desenvolvimento democrático da nação, sendo por isso considerada a base
da sociedade e, desse modo, tendo especial proteção do Estado, conforme se depreende do
art. 226 da Carta Magna, in verbis:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes. [grifamos]

Note-se, assim, que pelo texto se pode interpretar como três as categorias expressas
de família, notadamente: o casamento, a união estável e o núcleo monoparental. Isto por si já
demonstra uma grande evolução do direito pátrio, evidenciando uma busca contínua do
constituinte derivado em adequar o texto constitucional à complexidade da sociedade
brasileira ao longo das décadas, desde a promulgação da Carta Magna de 1988.
Com efeito, veja-se que a simples referência expressa de categorias familiares já é
suficiente para relativizar o primado da instituição do casamento, em seus moldes ortodoxos,
sobretudo, enquanto forma unicamente possível de família na sociedade brasileira. Neste
sentido, foram esvaziadas as impressões estigmatizantes de outras composições familiares, a
exemplo do concubinato.
De outro lado, nota-se que o abrigo constitucional conferido à união estável fora
meio imprescindível de efetivar segurança jurídica a vários núcleos familiares que sempre
existiram, sendo, aliás, muito comuns socialmente. O que se fez, em verdade, fora consolidar
a salvaguarda de direitos cíveis aos cidadãos, relacionados, por exemplo, às questões
sucessórias.
Da mesma forma, olha-se com muito otimismo para a inclusão da chamada família
monoparental. Trata-se fazer abranger pelo direito uma realidade social que não pode ser
ignorada: a existência de um incontável número de famílias compostas por apenas um dos
pais e, mormente, seus descentes. Ora, em quantos dos nossos lares, hoje, pode-se encontrar
mães que dão conta da tarefa heroica de criar por si mesmas os seus próprios filhos,
cumprindo, simultaneamente, além deste, vários outros papéis sociais e, ainda, sendo
solidárias com os problemas vividos por outras famílias inseridas no mesmo contexto social?
O reconhecimento dessa configuração familiar é passo muito importante na consolidação dos
direitos efetivos de receber, por parte do Estado, tratamento digno e comprometido com a
ideia de base social da qual alude o texto constitucional.
Não se pode deixar de destacar, ainda, a progressiva separação que opera entre a
instituição familiar e a Igreja, especialmente desde a segunda metade do século XX.
Conforme pontua OLIVEIRA (2001, p. 336),
desde então tem se tornado mais nítida a perda do valor do Estado e da Igreja
como instância legitimadora da comunhão de vida e nota-se uma crescente
rejeição das tabelas de valores e dos “deveres conjugais” predeterminados
por qualquer entidade externa aos conviventes.

Cabe então questionar-se: teria o sistema constitucional esgotado todas as formas de


família? Por certo é que a fundação que ora se consolida em âmbito constitucional aponta para
um sistema aberto, que não pretende exaurir as composições familiares, senão que categorizar
modelos mais usuais. É como afirmam GAGLIANO e STOLZE (2017, p. 1081):
Especialmente por considerarmos — consoante afirmamos acima — que o
conceito de família não tem matiz único, temos a convicção de que a ordem
constitucional vigente consagrou uma estrutura paradigmática aberta,
calcada no princípio da afetividade, visando a permitir, ainda que de forma
implícita, o reconhecimento de outros ninhos ou arranjos familiares
socialmente construídos.

No mesmo sentido, LÔBO (2002) pondera o caráter exemplificativo dos tipos


expressos no art. 226 da Constituição:
Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da
Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os
mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais
entidades familiares são tipos implícitos incluídos
no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família
indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de
concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade
aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade.

Em síntese, conscientes da imprudência em pretender uma definição rigorosa e,


tendo em vista os próprios avanços legais sobre a matéria, é possível conceber o conceito de
família como “núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo socioafetivo, teleo
logicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes, segundo o
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”. (GAGLIANO; STOLZE, 2017, p.
1081).
Nessa esteira, cabe então trazer à lume a multiparentalidade pelo escopo de
determinar o seu amparo constitucional. Insta esclarecer, ao início, a conceituação básica do
termo. Conforme a lição de CASSETARI (2015, p. 160), dá-se a multiparentalidade com o
registro de três ou mais genitores de um mesmo indivíduo, podendo ser, desse modo, dois ou
mais pais ou mães. No âmago dessa ideia está a amparar o princípio da afetividade,
relativizando a necessidade de vínculo biológico como única fundação de laços de parentesco.
Para entender melhor o conteúdo e alcance desse princípio no nosso ordenamento
jurídico, conforme será aprofundado adiante, é necessário recompor o cenário de valores que
historicamente orientou a eficácia dos institutos jurídicos. Por ora, cabe apenas referir que o
reconhecimento da multiparentalidade para fins legais representa, ao mesmo tempo, a
expansão do conceito de filiação. Por efeito prático, isto muda significativamente as relações
jurídicas que importam ao Direito de Família, demandando do próprio Direito vigente a
adequação dos sistemas normativos a fim de assegurar a segurança jurídica necessária à
preservação do núcleo familiar multiparental.
Uma vez dado o passo decisivo, a frente, no reconhecimento da multiparentalidade
enquanto elemento social inafastável, trata-se agora de consolidar a base teórica que irá
assegurar a essa instituição familiar todos os direitos e garantias devidos àquilo que
Constituição alude como base social do Estado.

3 CONSOLIDAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO VALOR DA AFETIVIDADE PARA


FINS LEGAIS

4 A MULTIPARENTALIDADE E O CONCEITO DE FAMÍLIA NO DIREITO


BRASILEIRO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS
CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva. São Paulo:
Atlas S.A, 2015.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil: volume
único. São Paulo: Saraiva, 2017.

LÔBO, Paulo. Com Avanços Legais, Pessoas com Deficiência Mental Não São Mais
Incapazes. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-
avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes>. Acesso em: 12 de setembro de
2018.

OLIVEIRA, Guilherme de. Temas de direito da família. 2. ed. Portugal: Coimbra Editora,
2001.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil: alguns aspectos da sua evolução. Rio de
Janeiro: Forense, 2001.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice(Coord.). Direito de família e o novo


código civil. Belo Horizonte: Del Rey/IBDFAM, 2002.

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