1. Termos criados pelo autor SOBRE MONOMITIA E POLIMITIA1 para um representante não-especialista apresentando uma
(Monomythie / Polymythie, no
original). (N.T.) A consciência da grande honra de poder falar neste intervenção paradigmaticamente incompetente; apenas um
Colóquio sobre o mito se associa, no meu caso, a um temor representante (afinal, todas as regulamentações de paridade
veemente e a uma esperança receosa. Temo que me convi- começaram na estaca zero), mas pelo menos um; e, nesse
daram porque me atribuem uma competência quanto à filo- caso, fica totalmente plausível que não se contratou necessa-
sofia mitológica. Seria um erro crasso: não tenho essa com- riamente a mim, mas que bastaria que fosse alguém de fora:
petência. Mas tenho outra coisa, a saber, aquela esperança quem é que queria cometer um crime e continuar no local do
receosa de que, sabendo mais do que poderia gostar que sou- crime? A outra razão seria esta: vocês ficaram sabendo que
bessem daquela minha incompetência em relação à filosofia atribuo à Filosofia uma “competência de compensar incom-
mitológica, me convidaram, muito pelo contrário, por duas petências” [Inkompetenzkompensationskompetenz]; e pode-
razões muito diferentes, seja por uma, seja pela outra, ou até riam deduzir que, se isso for uma regra geral, também deve
pelas duas. Uma das razões poderia ser esta: vocês me con- valer no caso específico do tema do “mito”; então o autor
vidaram para falar não apenas apesar, mas justamente por dessa calúnia filosófica deve mostrar o que tem a oferecer.
causa da minha incompetência: porque aqui, neste Colóquio Ora, o que tenho a oferecer é o louvor do politeísmo. E fa- 2. Expressão alemã (Eulen nach
– digamos: por motivos de paridade – se reservou um lugar zendo isso, claro, estou carregando corujas a Atenas2, à Atenas
Athen tragen) para falar de uma
redundância. (N.T.)
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do Spree3, pois trata-se de reflexões que tocam – não por aca- é (posição I) bom ou (posição II) ruim. Essas duas posições 7. [3] C. Lévi-Strauss, Das wilde
so – em pensamentos que costumam ser cultivados e publi- – a afirmativa, mais ou menos alegre, em relação ao ocaso Denken [La pensée sauvage]
3. Rio que atravessa Berlim. (N. T.) (1962), Frankfurt/M. 1973,
cados (de forma muito mais ampla) por Michael Landmann4, do mito, de Comte até Horkheimer/Adorno e Topitsch, e sobretudo p. 302 s.; sobre a
consciência como um todo em seu estágio tardio: enquanto histórias: a fofoca de todos os dias, lendas, fábulas, epopeias, und Wirkungspotential des
6. [2] W. Nestle, Vom Mythos zum Mythos”, in: M. Fuhrmann (org.),
Logos. Die Selbstentfaltung ilustração [Aufklärung] essa história é, parece, e não importa relatos de viagem, contos de fada, romances policiais e tudo Terror und Spiel. Probleme der
des griechischen Denkens von
se isso corresponde exatamente ou não à ideia da fórmula que tiver ainda de história. De um modo elementar, os mi- Mythenrezeption, Munique 1971
Homer bis auf die Sophistik und (Poetik und Hermeneutik, vol.
Sokrates. Stuttgart 1940. de Bultmann, o grande processo da demitologização. Nesse tos são: histórias. Pode-se dizer que um mito é mais ficcio- IV), p. 11-66, cf. p. 527 s. – L.
sentido, o mito, além de tudo que ainda possa vir a ser, é nal que uma history e mais real que uma story, mas isso não Kolakowski, Die Gegenwärtigkeit
des Mythos, Munique, 2ª ed.,
isto: algo que estamos em via de deixar para trás, e isso ou muda nada na constatação fundamental de os mitos serem 1974.
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histórias. Quem quiser se despedir do mito, tem que se des- não se trata de mitos porque essas histórias fossem mate-
pedir das histórias, e isso não é possível, pois: “Nós homens mática, mas porque essa matemática consiste em histórias.
sempre estamos envolvidos [verstrickt] em histórias”, como Tudo isso serve para a diferenciação, mas confirma ao mes-
8. [4] W. Schapp, In Geschichten diz Wilhelm Schapp; “a história representa o homem”8, ele mo tempo a constatação fundamental: mitos são histórias.
verstrickt. Zum Sein von Mensch
diz, falando de todas as pessoas, e ele tem razão. É esse nosso
und Ding. Hamburgo 1953, Ora, o narrar de histórias não acabaria assim que se che-
p. 1 e 103; sobre a avaliação envolvimento [Verstrickung] em histórias que nos obriga a
atual dessa abordagem, cf. H. ga ao saber? Os mitos não teriam que desaparecer onde a
narrar essa ou outras histórias; às vezes é a única liberdade
Lübbe, Geschichtsbegriff und verdade aparece? Mas é nisso que está o engano, a meu ver.
Geschichtsinteresse. Analytik que nos resta diante daquilo que acontece conosco, a saber:
Não questiono que os mitos tenham realmente entrado no
und Pragmatik der Historie. poder pelo menos narrar e renarrar de outra maneira aquilo
Basel,Stuttgart 1977, sobretudo lugar ainda vago da verdade, quando as pessoas ainda não
que não podemos mudar. Fazemos isso também quando fica
p. 145 s, 168 s., que ressalta possuíam conhecimento. Mas isso é um desvio, pois os mi-
o caráter dominante das quase irreconhecível que se trata de uma história, como no
histórias enquanto experiência tos não são, quando não se faz um uso contra-mítico de-
caso de Prometeu: aqui, o homem representa a história que
(cf. sobretudo p. 54 s.) e sua les, estágios prévios ou próteses da verdade, mas a técnica
constituição como cultura da representa o homem. Claro que isso leva à questão de saber
mítica – o contar de histórias – é algo fundamentalmente
experiência da contingência.” (p. quando os mitos podem ser ultracurtos e quando devem,
269 s.) diferente, a saber: a arte de levar a verdade existente – e não
como diz Hans Blumenberg, desenvolver um “detalhismo
ausente – para o alcance das nossas condições de vida. De
9. [5] Blumenberg, mítico”9 [mythische Umständlichkeit]; seja como for: trata-se
“Wirklichkeitsbegriff”, p. 43 s. um modo geral, a verdade ainda não chegou a essas condi-
de histórias. E certamente também é importante saber se as
ções de vida quando ela, como no caso dos resultados das
10. [6] A. Gehlen, Urmensch und histórias, como acredita Gehlen,10 se transformam em mi-
Spätkultur, Philosophische ciências exatas e suas fórmulas, se apresenta como abstração
tos quando, de certa maneira, permanecem ‘insaturadas’, no
Ergebnisse und Aussagen, sem referencial ou, como a verdade sobre a vida, a morte é
Frankfurt/M., Bonn 1964, sentido de a identificação empírica de suas personagens ser
sobretudo p. 222. cruel ao ponto de não poder ser preenchida de vida. Nesse
suspensa: no fundo, trata-se de representantes de uma “nar-
caso, não apenas podemos, mas devemos recorrer a histórias
rativa em si”, que somente será preenchida concretamente
(aos mitos) para trazer essas verdades para o nosso mundo
no momento de sua recepção. Desse modo, a história repre-
de vida [Lebenswelt] ou para narrá-las, em nosso mundo de
senta todo mundo, mas trata-se de uma história. E mesmo
vida, naquela distância que nos permite suportá-las. Em úl-
11. [7] R. Barthes, Mythen des quando parece que o núcleo dessa história é um “sistema
Alltags [Mythologies] (1957), tima instância, para suportar as verdades, não temos outra
Frankfurt/M., 4ª ed. 1976, p. 88.
semiológico”,11 uma matemática disfarçada, por assim dizer,
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12. [8] F. W. J. Schelling, coisa a não ser as histórias, principalmente se valer do que das dificuldades de Gantenbein, a saber, de fazer uma escolha
“Philosophie der Mythologie”
(1820 s.), in: Sämmtliche Werke, Schelling diz: “Que a própria linguagem seja apenas uma mi- diante da riqueza de seu guarda-roupa mitológico, que fosse
K. F. A. Schelling (org.), divisão tologia extinta!”12 Uma coisa é a verdade, a outra é a questão ele mesmo se não estivesse mais vestido de nenhuma his-
2, vol. 2, Stuttgart, Augsburg
1857, p. 52. O papel do mito,
de como conviver com ela: para aquela serve, no plano cog- tória; e por isso também não procede a afirmação de que a
portanto, não consistiria apenas nitivo, o saber; para esta, no plano da vida, as histórias, pois história universal da consciência seja aquilo que, como disse
em transformar algo estranho o saber tem a ver com verdade e erro, as histórias têm a ver no começo, se quer que seja: um striptease chamado “pro-
em algo familiar, mas também
em manter algo aterrorizante com felicidade e infelicidade. A tarefa das histórias não é a gresso” no qual a humanidade se despe aos poucos, de forma
à distância; tentei caracterizar verdade, mas a maneira de conviver com ela (por isso é um mais ou menos elegante, dos seus mitos para finalmente ficar
o mito como procedimento de
distanciamento e de proteção consolo saber que os escritores têm pelo menos a possibili- miticamente nua, ou, por assim dizer, vestida com nada mais
no meu resumo das teses de dade de mentir). Por isso as histórias (os mitos) não devem que si mesma. Essa imagem não é frívola, mas se mantém
Blumenberg in: Fuhrmann (org.),
Terror und Spiel, p. 527-530.
parar quando a verdade se manifesta, pois, muito pelo con- rigorosamente dentro dos limites da metafórica da “verdade 16. [11] H. Blumenberg, Paradigmen
trário, é somente nesse momento que podem começar: o nua”, analisada por Blumenberg.16 Emil Lask falava da “nudez zu einer Metaphorologie, Bonn
saber não é o túmulo, mas o ponto de partida da mitologia. lógica”; da mesma maneira podemos falar da nudez mítica: 1960, p. 47-58.
Embora precisemos do mundo “falado”, vivemos no “mundo no âmbito fundamental do humano, trata-se daquela nudez
13. [9] H. Weinrich. Tempus. narrado”:13 Não há como não haver mitos, narrar é preciso. que não existe. O mito-nudismo [Mythonudismus] almeja
Besprochene und erzählte Welt
algo impossível; pois, me parece, qualquer demitologização
(1964), Stuttgart, Berlim, Köln, Por isso, não podemos nos despir dos mitos como das rou-
Mainz, 2ª ed., 1971. é um processo muito bem compensado: quanto mais mitos
pas, embora despir-se das roupas nem sempre é fácil. “O meu
alguém despe, tanto mais guarda consigo. Por isso mesmo,
terno é a minha identidade”, diz Gottfried Benn. Um dos dois
tenho dúvidas sobre o striptease, ou, mais exatamente, dúvi-
grandes metaforistas de Zurique, Gottfried Keller escreveu:
das sobre a ideia da Aufklärung enquanto striptease de mitos.
14. “Kleider machen Leute”, título de “O hábito faz o monge”;14 e se for mesmo assim, que “a histó-
um conto famoso de Keller. (N. T.) A ideia, como já disse, é ela mesma um mito; por isso chegou
ria representa o homem” e que as histórias fazem o monge,
a hora de encontrar um antimito. Vocês todos conhecem o
sem dúvida, o hábito que faz o monge tem a ver com as histó-
conto de fadas sociopsicológico de Christian Anderson, “A
rias que fazem o monge. Por isso, o outro grande metaforista
roupa nova do rei”, e devem se lembrar: alguns marqueteiros
têxtil, Max Frisch, escreveu em seu Gantenbein: “Provo / ex-
15. [10] M. Frisch, Mein Name sei espertos do ramo, para promover a produção e a venda da-
Gantenbein (1964), Hamburg perimento histórias como roupas.”15 Mas não se deve deduzir
1968, p. 19.
queles hábitos que fazem o monge, empurraram para a classe
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história), está numa situação muito difícil. Por isso vale: a po- único absoluto no singular, que não tolera outros mitos ao 20. Beispiel (= exemplo),
originalmente algo que se conta
limitia faz bem, a monomitia faz mal. Quem participar, através seu lado: sou sua única história; não terás outras histórias paralelamente, ou seja, uma
da vida e das narrativas de muitas histórias, ganha, mediante ao meu lado. parábola; numa etimologia
popular (usada aqui pelo autor),
uma história, a independência da outra e vice-versa, havendo
Como vítima da didática universitária, tenho consciên- a palavra foi aproximada a Spiel,
várias interferências transversais; quem só pode e é obriga- jogo. (N.T.)
cia de que, para falar de forma compreensível, deve-se dar
do a participar, na vida e nas narrativas, de forma monomí-
exemplos [Beispiele20], jogos paralelos; mas não vou trazer 21. [14] Lévi-Strauss, Das wilde
tica, de uma única história, não tem essa independência: ele
apenas um exemplo, vou direto ao jogo central, principal Denken [La pensée sauvage],
fica totalmente possuído por ela da cabeça aos pés, isto é, por p. 292; cf. C. Lévi-Strauss,
e final. Acredito então no seguinte: o mais bem-sucedido Strukturale Anthropologie
uma uniformização do envolvimento monomítico. Por cau-
mito do mundo moderno é daquela espécie monomítica, a (1958), Frankfurt/M. 1971, p.
sa dessa compulsão à identidade incondicional com a histó- 230: “Nada se assemelha mais
saber: o mito do progresso inexorável da história universal ao pensamento mítico do que a
ria única, a pessoa fica entregue a uma atrofia narratológica
rumo à liberdade na forma da filosofia da história da eman- ideologia política. Possivelmente,
e cai naquilo que se pode chamar a falta de independência esta apenas substituiu aquela na
cipação revolucionária. Esse mito – Lévi-Strauss o chama de
identitária por falta de não-identidade. Ao contrário disso, a nossa sociedade atual.”
“mito da Revolução francesa”21 – é um monomito: de ma-
diversidade polimítica de histórias garante o espaço livre das
neira anti-histórica, ele não tolera nenhuma história ao lado
não-identidades, que falta ao monomito. Ela é a divisão dos 22. [15] Agora em versão resumida:
dessa história universal emancipatória. Aqui fica claro que,
19. [13] Cf. H. Schelsky, poderes:19 ela divide o poder da história em muitas histórias e R. Koselleck, verbete “Geschichte,
Systemüberwindung – embora não se possa abolir os mitos (as histórias), é possí- Historie”, in: O. Brunner; W.
é exatamente por isso que – divide et impera ou divide et fuge Conze; R. Koselleck, Geschichtliche
Demokratie – Gewaltenteilung, vel centralizá-los através da institucionalização de um mito
Munique 1973, sobretudo p. 55 s. – de qualquer maneira: liberte-se dividindo, isto é, cuidan- Grundbegriffe. Historisches
monopolista e assim despluralizá-los. É algo que acontece Lexikon zur politisch-sozialen
do para que os poderes, que são as histórias, se controlem
então: meados do século XVIII – como Reinhart Koselleck Sprache in Deutschland. Vol. II,
mutuamente ao se apoderar de você, limitando desse modo Stuttgart 1975, sobretudo p. 658 s.
mostrou em suas análises sobre a história conceitual22 – a
o poder. É exatamente por isso que o ser humano ganha a
Filosofia da história, que nasce nessa época e ganha seu 23. [16] R. Koselleck, “Historia
chance libertadora de manter a própria diversidade, isto é, magistra vitae. Über die Auflösung
nome, proclama, na contramão do plural das histórias, “a”
de ser único. Ele não tem essa chance quando é dominado des Topos im Horizont neuzeitlich
história. Desde então, – desde essa “época das singulariza- bewegter Geschichte“, in: H.
indiscriminadamente pelo poder de uma única história; no
ções”,23 quando os progressos se transformam “no” progres- Braun; M. Riedel (org.), Natur
caso do monomito, ele é obrigado a aniquilar a constituição und Geschichte. Karl Löwith zum
so, as liberdades “na” liberdade, as revoluções “na” revolução 70. Geburtstag. Stuttgart, Berlim,
não-identitária de sua diversidade; ele se submete ao mito Köln, Mainz 1967, p. 265.
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e, finalmente, as histórias “na” história – a humanidade não politeísmo era – uma divisão dos poderes com base na luta e
tem mais o direito de se perder em histórias particulares, não nas regulamentações jurídicas – precisava da divisão das
optando, de modo multi-individual e multicultural, por ca- histórias mediante a polimitia. O monoteísmo é o fim do po-
minhos próprios rumo ao ideal humano, mas ela é obrigada liteísmo; trata-se do primeiro fim da polimitia, uma condi-
a percorrer, de forma determinada, essa história única do ção especialmente transcendental, isto é, histórica, da possi-
progresso enquanto único caminho possível em direção à bilidade da monomitia. No monoteísmo, o deus único nega,
meta da humanidade: ela tem que passar por esse caminho, pela sua própria unicidade, a pluralidade dos deuses. Com
24. Marquard usa aqui uma citação não há outro levando à liberdade,24 é aqui que ela chega à isso, ele liquida ao mesmo tempo as muitas histórias desses
conhecida da peça Guilherme
Tell, de Friedrich Schiller. (N.T.)
perfeição e a necessidade a acompanha: pelo menos é isso muitos deuses a favor da única história necessária: da histó-
que parece. Quem se esquivar dessa história emancipatória ria da salvação [Heilsgeschichte]; ele demitologiza o mundo.
mediante histórias próprias, se transforma em herege, em É algo que acontece de forma fundamental no monoteísmo
25. [17] Sem dúvida, essa
traidor da história, em inimigo da humanidade ou, na me- da Bíblia e do cristianismo, embora os teólogos costumem apresentação altamente
lhor das hipóteses, num reacionário. Assim, esse monomito protestar contra essa afirmação, apontando para o dogma simplificadora aproxima
demasiadamente o monomito
daquela história, que não pretende mais ser “uma”, mas “a” da Trindade e dizendo que o cristianismo, diferentemente à história cristã da salvação
história, leva ao fim da polimitia; gostaria de chamá-lo o do islã, não seria um monoteísmo “de verdade”. Mas, para [Heilsgeschichte]. A história
segundo fim da polimitia. o nosso contexto, basta pressupor que o cristianismo tinha cristã da salvação – queríamos
sinalizar isso justamente dizendo
um “efeito” monoteísta. O deus único do cristianismo traz a que o cristianismo não seria
Pois esse segundo fim da polimitia é um efeito tardio e
salvação usurpando a história com exclusividade. Ele exige o um “verdadeiro” monoteísmo,
longamente preparado por aquilo que se pode chamar, de pois apenas teve um “efeito”
sacrificium mythorum [sacrifício dos mitos]25 ainda antes de
forma análoga, o primeiro fim da polimitia, ou seja, o fim monoteísta – permaneceu ou
Deus, dentro da história filosófica do cristianismo, no final se tornou uma mono-história
do politeísmo, que era, por assim dizer, a época clássica da relativamente liberal, que tolerava
da Idade Média, dar ao seu poder salvacionista a imagem de
polimitia. A história não representa apenas o ser humano, – ou até inspirava – muito bem
um poderio arbitrário, dirigido contra o mundo. Quando, histórias colaterais, isto é, uma
mas também o deus: assim, havia tantos mitos na época do
além de tudo, esse poderio exigiu – nominalisticamente – o polimitia. Mas, mesmo na
politeísmo porque havia muitos deuses que apareciam em monomitia mais radical e mais
sacrificium essentiae [sacrifício da essência] do mundo e o
muitas histórias e dos quais podia e havia de se contar mui- resistente, me parece, a polimitia
sacrificium intellectus [sacrificio do intelecto] do homem, isso continua presente num plano
tas histórias. Aquela divisão dos poderes no absoluto, que o inoficial: a vingança da polimitia
fez com que o homem e o mundo se emancipassem: a cabeça reprimida é a piada.
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opta pelo profano, quando se exige do homem, no plano Nessa lacuna entrou – de forma aparentemente irresistí-
teológico, tirar, diante de Deus, não apenas o chapéu, mas vel – o monomito pós-monoteísta, isto é, a história eman-
também a cabeça. E quando a história da salvação se dirige cipatória e revolucionária da humanidade, proclamada pela
contra o mundo, o mundo, em legítima defesa, tem que se Filosofia da História como “a” história no singular (seja por-
formar contra a história. Dessa maneira, o mundo é compe- que ela é tratada, via utopia, como short story, seja porque ela
lido, indiretamente pelo próprio monoteísmo, à anistorici- ganha, via dialética, uma circunstancialidade mítica). Trata-
26. [18] Sobre o conceito da dade.26 Na era moderna, ele se forma através da sua rejeição se, depois de Deus se retirar pelo caminho de sua unicidade
“anistoricidade” da sociedade
moderna, cf. J. Ritter, “Hegel e a
também da última história, da história da salvação, ou seja, do mundo para o seu fim, da continuação da história da sal-
Revolução francesa” (1957), in: anistoricamente: como mundo das ciências exatas e como vação [Heilsgeschichte] por meios semidiferentes. Esse mito
J. Ritter, Metaphysik und Politik, sistema das necessidades; ele se objetiva no mundo dos me- do fim dos mitos permanece – não como secularização da
Frankfurt/M. 1969, sobretudo
p. 227; J. Ritter, “Subjektivität ros objetos. As histórias em geral passam a ser suspeitas: os história da salvação, mas como fracasso de sua secularização
und industrielle Gesellschaft” mitos como superstição, as tradições como preconceitos, as – a história única da entronização de um poder único para a
(1961), in: J. Ritter, Subjektivität,
Frankfurt/M. 1974, sobretudo p. histórias [Historien] como veículo do espírito desviador da redenção da humanidade. Ao mesmo tempo, esse monomi-
27, e J. Ritter, “Die Aufgabe der mera formação escolar. O fim do politeísmo, o monoteísmo, to chamado “história da emancipação” é separado da história 27. [19] In: Bubner (org.), Das älteste
Geisteswissenschaften in der
modernen Gesellschaft” (1963),
demitologiza, em última instância, o mundo condenando-o cristã da salvação pelo fim do monoteísmo na forma de sua Systemprogramm. Studien zur
Frühgeschichte des deutschen
ibid., sobretudo p. 130 s. à anistoricidade. cópia profana: historicamente é um fenômeno bastante tar- Idealismus, Bonn 1973 (Hegel-
dio e moderno, fazendo parte não da mitologia antiga, mas Studien, Supl. 9), p. 265.
3. O MAL-ESTAR NO MONOMITO da nova.
28. [20] F. Rosenzweig, Das älteste
Mas as pessoas são devedoras do mito: se isso proceder, A expressão da “nova mitologia” surgiu pouco antes de Systemprogramm des deutschen
como disse no início, essa anistoricidade do mundo moder- 1800. “Precisamos de uma nova mitologia”, “de uma mi-
Idealismus. Ein handschriftlicher
Fund. 1917. Heidelberg 1917.
no da objetividade não é um ganho, mas uma perda, a saber: tologia da razão” – essa é a opinião do autor do chamado (Sitzungsberichte der Heidelberger
uma perda que não será suportável e não poderá ser manti- “Programa sistemático mais antigo do idealismo alemão”, Akademie der Wissenschaften,
Stiftung Heinrich Lanz, Philos.-
da. Por isso, o mundo moderno não superou simplesmente de 1796;27 faço parte daqueles que defendem a opinião assu- histor. Klasse, Abh. 5). X. Tilliette,
os mitos e as histórias, mas apenas produziu um déficit em mida primeiro por Rosenzweig e ultimamente por Tilliette, “Schelling als Verfasser des
Systemprogramms?”, in: Bubner,
histórias, uma lacuna. de que esse autor era Schelling.28 Este, no entanto, que assim Das älteste Systemprogramm, p.
35-52.
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proclamava a “nova mitologia” – e é isso que me parece no- direitos exclusivos à felicidade. Nos lugares onde essa nova
29. [21] P. Szondi, “Antike und tável –, não se tornou o filósofo da nova, mas da mitologia mitologia está tomando conta do mundo contemporâneo, se
Moderne in der Ästhetik
der Goethezeit“ (1961-70), muito antiga. Isso ainda não vale para o sistema da iden- liquida exatamente aquilo que, na mitologia, era um aspecto
in: P. Szondi, Poetik und tidade, isto é, na filosofia da arte, onde, como mostrou de de liberdade: a pluralidade das histórias, a divisão dos pode-
Geschichtsphilosophie, Vol. I,
Frankfurt/M. 1974, sobretudo p.
forma enérgica Peter Szondi,29 ainda predominam por um res no absoluto, o grande princípio humano do politeísmo.
238 s., cf. p. 225 s. Cf. também P. tempo os “poetas com vocação” e “qualquer indivíduo ver- O cristianismo o expulsou do domingo do mundo moderno,
Szondi in: Fuhrmann (org.), Terror dadeiramente criativo” enquanto agentes intermediários da a nova mitologia o quer expulsar também dos dias úteis. Por
und Spiel, p. 639 s.
nova mitologia, pois cada um deve “criar para si sua própria isso, faz parte da nova mitologia o mal-estar na mitologia
mitologia [...] desse mundo [mitológico] ainda dominado quando a exigência se transforma numa realidade e quando,
30. [22] F. W. J. Schelling, pelo devir.”30 Mas, depois disso, depois do sistema da identi- como no caso do Schelling mais velho, se transforma numa
“Philosophie und Kunst” (1802-
05), in: Sämmtliche Werke, Abt.
dade, tudo indica que essa exigência de uma nova mitologia experiência. Me parece que as obras tardias de Schelling já
1, Vol. V, 1860, p. 444-446. se torne problemática e, no final, suspeita para Schelling: são uma reação a esse mal-estar quando se distanciam da
parece que, para ele, a nova mitologia passou a ser associada nova mitologia. Por esse motivo, a Filosofia da mitologia de
à ideia de que não estamos precisando de uma nova mito- Schelling não se preocupa com a nova mitologia, mas com a
logia, uma vez que já temos uma abundância que não é boa, mitologia muito antiga; e, por esse motivo, a sua Filosofia da
pois, como ficou claro agora e até o nosso tempo, a nova revelação representa a tentativa de manter a nova mitologia
mitologia fez sucesso como mitologia do novo: como mito em seu estado mais antigo para apresentá-la, assim, como 32. [24] F. W. J. Schelling,
do progresso, da revolução, da mudança do mundo, do reino uma posição;32 pois a revelação cristã é a nova mitologia “Philosophie und Mythologie”
31. [23] G. Sorel, Über die Gewalt vindouro, da greve geral31, da última batalha, da última clas- mais antiga. (1820 s.), “Philosophie der
(1906), Frankfurt/M. 1969, Offenbarung” (1827 s.); espero
se, etc. Sempre se trata, nesses casos, de uma orientação total
sobretudo p. 141 s. O distanciamento de Schelling da nova mitologia mediante que a interpretação aqui esboçada
pela histórica única, da entronização de um poder único, seja compatível com W. Schulz,
a aproximação à mitologia mais antiga é representativo do in- Die Vollendung des deutschen
que é justamente aquela forma do monomito que se torna
teresse pelos mitos no mundo moderno como um todo. Esse Idealismus in der Spätphilosophie
possível e perigosa depois do cristianismo: o mito único ab- Schellings, Stuttgart 1955,
interesse é marcado pelo mal-estar no monomito. Já na época sobretudo 304-306.
soluto no singular, que, enquanto segundo fim da polimitia,
em que esse monomito moderno se formou através da cria-
proíbe a pluralidade das histórias porque só permite uma
ção do conceito singularizante “da” história, já na época logo
única história: o monomito da história revolucionária com
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33. [25] Sobre a exposição seguinte, depois de 1750, que Koselleck batizou de Sattelzeit [época de e turismo. Sua superação mais séria é a etnologia estruturalista:
cf. K. Gründer, introdução a:
J. Bernays, Grundzüge der transição], forma-se como reação – de forma exemplar em principalmente a tentativa de Lévi-Strauss de ganhar distân-
verlorenen Abhandlung des Christian Gottlob Heyne – o interesse afirmativo na polimitia cia do novo monomito do novo expondo-o à concorrência de
Aristoteles über Wirkung der
Tragödie, Hildesheim, New York
da velha e cada vez mais velha mitologia.33 Quando, depois dos mitologias polimíticas estrangeiras e relativizando-o dessa ma- 40. [27] Lévi-Strauss, Traurige
1970, p. VI s.; E. Howald (org.), preparativos do monoteísmo e da imposição do monomito da neira.40 Aqui se esconde – Henning Ritter o mostrou no caso de Tropen [Tristes Tropiques] (1955),
Der Kampf um Creuzers Symbolik. história do progresso, isto é, depois do politeísmo, a polimitia Lévi-Strauss41 – em toda a parte o interesse rousseauista pelo Köln 1970, p. 363: “Assim nós
Eine Auswahl von Dokumenten, conseguimos pelo menos os
Tübingen 1926, p. 1-28 (Introdução também ameaça desaparecer do nosso mundo, procura-se por bom selvagem. E, como se não bastasse que ele vive na pré- meios para nos soltarmos da
do organizador); A. Baeumler, ela numa virada mitológica para o exotismo, fora deste mun- -história ou nos tristes trópicos: a nostalgia o leva – via citação, nossa, não porque esta fosse a
“Bachofen, der Mythologe der única absolutamente ruim, mas
Romantik”, in: M. Schroeter
do: diacronicamente na pré-história ou sincronicamente em pois o homem é um ser vivo que cita – para a mais atual das porque é a única em relação à
(org.), Der Mythos von Orient und terras alheias, de preferência numa pré-história alheia. Tal vira- atualidades. Quando se tratava de demonstrar a ruptura com qual temos que ganhar distância.”
Occident. Eine Metaphysik der da nostálgica para a polimitia exótica se manifesta no que Carl o estabelecido através da moda, não foi por acaso que a esco-
alten Welt aus den Werken von J. 41. [28] H. Ritter, “Claude Lévi-
J. Bachofen, Munique, 2ª ed., 1956, Otlieb Müller chamou de “orientalismo” [Morgenländerei34] dos lha caiu no savage look: aquilo se movimentava e continua se Strauss como leitor de
p. XXII-CCXCIV; K. Kerényi (org.), estudos da antiguidade: os estudos dos mitos se voltam para o movimentando entre nós, peludo e barbudo, representa (na Rousseau”, em: W. Lepenies, H.
Die Eröffnung des Zugangs zum Ritter, Orte des wilden Denkens,
Mythos. Ein Lesebuch, Darmstadt tempo anterior ao classicismo grego, ou seja, suas premissas ponta da modernidade) o bon sauvage. Não é aquilo que o erro Frankfurt/M. 1970, p. 113-159.
1967. orientais; trata-se, por assim dizer, da tentativa disfarçada de dos mais velhos sugeria: não são pessoas mal cuidadas que an-
34. Pelo seu sufixo, o termo alemão uma mitologia do terceiro mundo. Ela apresenta, a meu ver, dam por aí, mas citações bem cuidadas: citações de Rousseau.
tem uma conotação claramente pelo menos três estágios: primeiro, as pesquisas mitológicas do O que se passa aqui – a transformação do mais antigo no mais
pejorativa; N. T.
lado noturno da Filologia clássica de Heyne e Zoëga passan- moderno, a promoção do arcaico para a vanguarda – também
35. Deus principal da mitologia
do por Görres e Creuzer até chegar em Bachofen; segundo, pode ser observado em outros processos do gênero. Aquilo que
nórdica; N. T. a substituição do orientalismo imanentemente exótico pela a estética de Hegel, bem no contexto do orientalismo mitoló-
36. Poeta persa do séc. XIV; N. T. aproximação da mitologia germânica como, por exemplo, em gico, identificou como a arte anterior aos objetos artísticos de
Wagner; e, finalmente, depois de uma conversão, por assim reverência na ocasião da controvérsia entre os “antigos” e os
37. Líder comunista do Vietnam; N. T.
dizer, de Odin35 para Mao [Tsé-Tung], o sino-orientalismo “modernos”, anterior à forma “clássica” e “romântica”, a saber a 42. [29] G. W. F. Hegel, “Vorlesungen
38. De Goethe; N. T. über Ästhetik“ (1818 s.),
do nosso século, que continua seguindo, apesar da passagem chamada “forma simbólica de arte” (Creuzer), da “arte abstrata” in: Werke in 20 Bänden,
de Hafis36 para Ho37, o lema do Divã ocidental-oriental:38 “Fuja (Hegel),42 se transforma, no início do século XX – ou antes –, Theorie-Werkausgabe, Red. E.
39. [26] J. W. von Goethe, West- para degustar o ar dos patriarcas na pureza do Oriente”39; hoje, no lema da vanguarda. Dentro da estética das “formas de arte”, Moldenhauer e K. M. Michel, Vol.
östlicher Divan (1819), “Hegire”, 13, Frankfurt/M. 1970, p. 107 s., p.
V.3 s. esse orientalismo [Morgenländerei] se desmancha em maoísmo a primeira etapa se transforma, por assim dizer, na última; a 389 s.
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mais primitiva se transforma na mais avançada. Sem dúvida, Dirigir a atenção somente à mitologia exótica, à antiga e à
ela também só ganha esse toque vanguardista por pactuar com dos países distantes, acarreta o risco de bloquear a atenção a
o monomito do progresso, colocando-se a seu serviço como fenômenos modernos, levando a uma característica artificial-
43. A “serva” do progresso. (N.T.) ancilla progressus.43 Parece que o progresso está dominando o mente dividida da atualidade, na qual é visto apenas aquilo
terreno do presente ao ponto que, nesse terreno, só pode viver que mencionei até agora: a objetivação moderna, que significa
quem se adapta e se submete a ele. anistoricidade, e sua compensação – aparentemente irresistí-
vel – pelo novo monomito. Mas a atualidade tem mais e, pelo
Pelo visto, o destino geral desse movimento interessado no
menos em termos mitológicos, não apenas a monomitia, pois,
mito e voltado contra o monomito não está muito feliz: uma
e esta é a minha tese final sobre os mitos, existe também uma
vez que o monomito da história única do progresso domina
polimitia que pertence ao mundo especificamente moderno: nela se
o mundo de forma incômoda, as pessoas buscam a polimitia
tem que apostar para redirecionar o mal-estar no monomito
perdida na mitologia exótica da pré-história e dos países dis-
para o lado produtivo. A demitologização monoteísta não é
tantes. Como isso (ao que parece, não é suficiente), procura-
apenas a entronização indireta do novo monomito, mas ela
-se passar essas mitologias para o presente. Nessa operação,
também instaura modernamente aquilo que queria ter ani-
porém, elas deixam de ter aquilo pelo qual foram buscadas e
quilado, isto é, a polimitia. Como isso é possível? Talvez da
perdem seu caráter polimítico, submetendo-se ao monomito
seguinte maneira: o monoteísmo desencantou e negou o po-
do novo, confirmando, em última instância, o poder deste.
liteísmo e, com ele, a polimitia. Mas o mundo começa – no
O contramovimento, portanto, é superado por aquilo que o
sentido mencionado acima – com a retirada de Deus do mun-
desencadeou: pelo mal-estar no monomito. Disso, a meu ver,
do para o seu fim, ou seja, com o fim do monoteísmo. Esse
segue: o interesse pela mitologia exótica – pela antiga e a dos
fim do monoteísmo confere ao politeísmo e à polimitia uma
países distantes – é um sintoma, mas não uma solução.
nova chance, assim como a outros fenômenos que o mono-
teísmo havia aparentemente vencido – a ideia de destino, por
4. POR UMA POLIMITIA ESCLARECIDA
exemplo. Ele mantém, por assim dizer, seu desencantamento,
Por isso, para se chegar a uma solução, devem ser pon- mas nega sua negação. Em outras palavras: logo no mundo
deradas medidas alternativas. Quero fazer isso aqui apenas moderno, o politeísmo e a polimitia podem voltar – de forma
na forma de um breve esboço, sem abandonar o terreno do desencantada: a saber, como politeísmo esclarecido e como
mito, apenas ampliando o raio de ação da atenção ao mito.
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49. >>> De um modo geral, tem-se 147
a impressão como se a música e
a literatura tivessem dividido entre
si a herança do mito. A música,
que se tornou moderna com
Frescobaldi e depois com Bach, mediante a divisão também daqueles poderes representados Mas a gente já imagina os gritos de horror da classe <dos
se serviu de sua forma, enquanto pelas histórias. filósofos> e suas advertências indignadas: que isso significa
o romance, que surgiu mais ou
relativismo – com as conhecidas consequências de contras-
menos na mesma época, se Pode ser que, se me permitem a observação final, tudo isso
serviu dos restos desformalizados senso e falácias51 – e que isso acaba mal ou até no ceticismo. 51. Fallacy, no original. (N.T.)
do mito e, emancipado das tenha consequências também para a filosofia. Também está
Era uma vez um cético que, ao ouvir isso, não o considerou
imposições da simetria, encontrou na hora que ela ponha fim à sua colaboração com o mono-
o meio para se apresentar como como objeção: o que será que eles pensam? – ele murmurou
mito e que se distancie de tudo aquilo que a dispõe para essa
narrativa livre. Dessa maneira, quando percebeu que essa advertência estava dirigida a ele;
poderíamos entender melhor o colaboração. Isso diz respeito principalmente ao conceito
mas, por cautela, ele apenas murmurou: por que será que 52. I like fallacy, no original. (N.T.)
caráter complementar da música da filosofia como mono-logos ortológico, como empreendi-
e do romance dos séculos XVII e eles pensam que sou um cético? Amo a falácia.52 Aqui estou
XVIII até hoje.” De um modo geral, mento de singularização da entronização de uma razão úni- 53. Alusão às palavras de Lutero
e sempre posso fazer diferente:53 narro – como uma espécie quando foi interrogado e quando
“quando o mito morre, a música ca por meio de proibições de discordância, no qual, de an-
se torna tão mítica quanto as obras de Xerazade, que, agora, tem que narrar claro para evitar a os representantes do Vaticano
temão, as histórias, enquanto perturbadoras incorrigíveis, exigiram que se retratasse:
de arte; quando a religião morre, própria mortalidade da narrativa – narro, logo ainda existo.
[as obras de arte] deixam de ser não são admitidas porque narram ao invés de procurar um “Aqui estou e não posso fazer
simplesmente bonitas para se E assim, exatamente assim, eu continuo narrando: histórias diferente” (segundo http://
consenso. Me parece que seria bom recuperar aquela relação www.e-cristianismo.com.br/
tornarem sagradas.” (p. 765 s.): isso e curtas histórias especulativas e outras histórias da filosofia
se tornou claro no caso de Wagner frouxa com essa ortologia [sic] que Mark Twain encomen- biografias/ 188-vida-e-obra-de-
e filosofia na forma de histórias e outras histórias e, quando martinho-lutero).
(p. 767); “pelo menos para esse dou a respeito da ortografia, quando disse: fico com pena
período da civilização ocidental se trata do mito, histórias sobre histórias; e se não morri,
[vale que] a música desempenha à de cada um que não tem a fantasia de escrever uma palavra 54. Jogo com a fórmula de
vivo ainda hoje.54 finalização dos contos de fada em
sua maneira um papel comparável ora de uma maneira, ora de outra. Qualquer filosofia que alemão, literalmente: “E se não
à mitologia”, enquanto “mito que
é codificado em tons ao invés de
não é capaz de pensar sobre o mesmo assunto ora isto, ora Revisão da tradução: Bianka de Andrade Silva morreram, vivem ainda hoje.”
palavras.” (p. 774) aquilo e de deixar que aquele pense isto e este pense aquilo é
uma ciência triste. Nesse sentido, até o insight [Einfall] é algo
50. Einfall, literalmente algo que
“entra caindo” (na cabeça de uma suspeito: viva o polisight [Vielfall50]. Temos que voltar a ad-
pessoa) – daí a nossa tradução mitir as histórias: bem pensado é semi-narrado; quem quiser
por insight. O autor, entretanto,
joga com o prefixo Ein-, que, em pensar melhor ainda, talvez devesse narrar por completo: a
outros contextos, significa “um”, filosofia deve poder voltar a narrar, pagando, evidentemen-
para estabelecer uma oposição
com Viel-, que significa “muito”,
te, o preço de reconhecer e suportar a própria contingência.
sendo que a palavra Vielfall não
existe em alemão – daí o nosso
neologismo polisight. (N.T.)
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