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DO AUTOR

AUGUSTO ABELAIRA
A C I D A D E DAS F L O R E S (romance)—• 1959; 2.' edição, 1962; 3.', 1970;
4.», 1972.
os D E S E R T O R E S (romance) —1960; 2.' edição, 1968; 3.», 1971;
4.«. 1978.
A P A L A V R A É D E O I R O (íeuiro) —1961; 2.» edição, 1973.

BOLOR
o N A R I Z D E CLEÓPATRA (íeairo) —1962.
AS BOAS INTENÇÕES (romance) —1963 (Prémio Ricardo Malheiros
da Academia das Ciências de Lisboa); 2.» edição, 1971; 3.", 1978.
E N S E A D A A M E N A (^romance) —1966 (Prémio do Romance do I V Encon-
tro da Imprensa Cultural); 2.« edição, 1971.
O D E (QUASE) M A R Í T I M A (mond/ogo)— 1968. •
B O L O R (romance) —1968; 2.» ediçSo, 1970; 3.», 1974; 4.», 1978.
Q U A T R O P A R E D E S NUAS (coníos) —1972. romance

A publicar:
SEM T E C T O , E N T R E RUÍNAS (romance)

4.A EDIÇXO

LIVRARIA BERTRAND
APARTADO 37 — AMADORA
@ Livraria Bertrand, S. A. U . L .

Capa de Manuel Dias

B O L O R

Os versos ' ' *'*


que te digam
a pobreza que somos
o bolor
nas paredes
deste quarto deserto
os rostos a apagar-se
num frémito do espelho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.

CARLOS D E OLIVEIRA

Acabou de in>prin:ar-se em Novembio de 1978


11 de Dezembro

Olho para o papel brana> (afinal um tudo-nada


pardacento) sem a angústia de que falava Gauguin
(ou era Van Gogh?) ao ver-se em frente da tela, mas
com apreensão, apesar de tudo. Que vou eu escrever
— eu, a quem nada neste mundo obriga a escrever?
Eu, antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas
que neste momento ainda não redigi, dentro de alguns
minutos (de alguns anos) finalmente redigidas?
Não sei: folheio ao acaso a página cento e quinze
do meu caderno, ainda branca, ainda parda, e per-
guntO-me: daqui a dois, a três, a quatro meses, quando
a alcançar — se a alcançar —, terei escrito uns milha-
res de palavras. Que palavras?
E fico perturbado, muito mais perturbado por essa
página do que por esta, já em parte azulada e vazia
de surpresas. Como saber se nela, hoje e durante um
ou dois meses ainda branca, branca e situada no
futuro, embora um futuro espacial, eu não contarei
(não terei contado) coisas de cortar o coração? Sobre
10 AUGUSTO ABELAIRA
BOLOR
U
mim. Ou sobre o mundo, uma guerra, a vitória com-
taneam<ente longos e apressados que preced^em a deci-
pleta do fascismo, por exemplo.
são final de sair da cama, a conversa sobre o Aníbal
* Soares, a obrigação inadiável de o ir ver ao hospi-
tal, o...
Ignoro porquê (o Concerto para a Mão Esquerda?), Para além da porta fechada, os passos da Maria
interrompo o esforço de ir escurecendo (em verdade dos Remédios afastavam-se — aparentemente desinte-
azulando) este caderno. Quando recomeço, volvidos ressara-se de ouvir a resposta, pelo menos desinteres-
alguns minutos, ponho um sinal na página cento sara-se de uma resposta precipitada, preferia conce-
e quinze — lembrar-me-ei assim, ao chegar lá, da mi- der-me alguns momentos de reflexão.
nha inquietação, a curiosidade há-de obrigar os meus Não muitos; os passos regressavam:
dedos a voltarem aqui, os meus olhos poderão ler as — Achava-la bonita?
seguintes palavras (en^tão por completo esquecidas, Ao mesmo tempo fico espantado comigo próprio:
agora ainda por escrever): vivo contigo, Maria dos Remédios, há tantos anos,
e nunca suspeitei desse teu vício (a adritmética dos
Pouco depois de nos levantarmos e enquanto me sentimentos).
barbeava, a Maria dos Remédios disse, através da — E l a era muito bonita — digo. Acabada a barba,
porta: abrira a porta e, em vez do meu, tinha agora em frente
— Costumas pensar muitas vezes na Catarina? o rosto da Maria dos Remédios. Acrescento, receoso
Demorei a resposta. Porque diabo lhe teria pas- de uma ruga que lhe descia da testa, um pouco acima
sado hoje aquela ideia pela cabeça — hoje e não há do nariz: — Não posso dar cmtra resposta, percebes?
seis anos? Logo pela manhã, em vez de uma dessas — Sim, poderias dizer: a Catarina era feia.
frases iguais a muitas outras (de paredes sólidas e sem — Saberias que eu teria mentido.
janelas), teria eu deixado escapar algumas palavras — E também que tinhas adivinhado o meu desejo
transparentes, reveladoras de que a Catarina estava, de ouvir — adoçou levemente a voz, imitando a voz
continua a estar, no mais íntimo dos fundos, no mais que me faltara: — T u és mais bonita...
— Desejavas, de facto?
íntimo de mim?
— Não.
Com a máquina de barbear era punho, com o meu
Perguntaste: ((Costumas pensar muitas vezes na
rosto bem na minha frente, lancei-me à procura do
Catarina?» E também: ((Achava-la muito bonita?» Vou '
momento preciso em que acordei, dos minutos simul-
responder-te agora doutra maneira: ((Receia, sim, a
12 AUGUSTO ABELAIRA

concorrência das mulheres que não conheço — as que


conhecerei daqui a quatro ou cinco meses. Daqui
a quatro ou cinco ineses terás envelhecido quatro ou
cinco meses, essas mulheres não terão envelhecido um
único segundo, Daqui a quatro ou cinco meses terão
rigorosamente a idade que tiverem, a idade com que
as conhecerei daqui a quatro ou cinco meses, eu que
não as terei conhecido quatro ou cinco meses antes.»
13 de Dezembro
Digo à Maria dos Remédios (dividida entre o
Eterno Marido e o rádio, ambos abertos, ambos irre-
sistíveis, sem a certeza portanto de ser ouvido) que
preparo a defesa do Hilário de Sousa — escondo-lhe
assim que estou a observá-la, embora não com os olhos,
mas com uma esferográfica, uma esferográfica azul,
cilíndrica, macia, a observá-la e a procurar adivinhar
quem ela é (ela, mulher subitamente desconhecida,
letra a letra se esclarecendo enquanto estas páginas
se escurecem).
— O Johnson, sabias...? — Desatenta do Eterno
Marido, desatenta do rádio.
Olho-a num relance e, para além de uma tran-
quila e difusa mancha verde no meio de superfícies
claras e inquietas (mãos, pernas, rosto, cabelo), o que
descubro, o que me fala, o que vejo, é o seu relógio
de pulso', grande e redondo. •>...
— Ontem, o De GauUe... — Ouvindo, sem ouvir,
lendo sem ler.
Recuso, recuso-me a escutá-la, mulher provisória-
BOLOR 15
14 AUGUSTO ABELAIRA

a sensibilidade estética prefere as linhas curvas. Tens


mente misteriosa, recuso-me a saber tudo quanto sei
então sensibilidade estética (inútil seguir o teu gesto
(detesta o Johnson e o De Gaulle), hei-de por com-
de afastar o Eterno Marido para melhor ouvires
pleto desvendá-la nesse relógio grande e redondo, des-
o Lopes Graça, Canto de Amor e de Morte).
cobrir a sua aversão pelo Johnson e pelo De Gaulle.
Grande, quase um relógio de homem: és pouco
Porque esse relógio já foi assimilado pelo teu corpo,
feminina ou devo^ recusar tão absurda afirmação e con-
Maria dos Remédios, bate com o ritmo do teu pulso,
cluir que talvez uses óculos? Que, precisamente por-
está certo (contigo), fala involuntariamente uma lin-
que vês mal, escolheste um relógio com grandes pon-
guagem sem disfarces, como involuntariamente falam
teiros? E o calendário, esse desejo de estar a par dos
hoje, ao fim de quarenta séculos, as pirâmides do
dias certos (não somente das horas, dos minutos, dos
Egipto.
segundos)... Para ti os dias escoam-se velozmente, tão
Poderias usar em vez de um relógio redondo um
velozmente que a tua memória não consegue fixá-los,
relógio quadrado. E m vez de ura relógio enorme
adivinho bem?
a esconder-te o pulso frágil, um relógio pequeno. Em
Redondo como os teus ombros, a curva serena
vez de... Poderias. Porque não pudeste? Nem tu pró-
das tuas pernas—altas, grandes, mulher sem nome,
pria sabes. Sei eu: esse era o único relógio em que
mulher desconhecida e longínqua, de quem ainda não
te reconheceste, o relógio onde inteiramente cabias.
sei a cor dos olhos, necessariamente grandes, redondos.
Mas precisamente porque nele cabias, precisa-
Esquecendo o Dostoievski sobre os joelhos, intet-
mente porque nele te reconheceste: não já um relógio
rompendo a música do Lopes Graça:
mas uma ratoeira pronta a prender-^te, pronta a entre-
— Leste hoje as notícias? Será verdade que na
gar-te sem segredos aos meus olhos, às minhas mãos,
China...?
ao meu desejo de te conhecer e amar.
Mas se o teu corpo efectivamente assimilou esse
— Dizes...? — pergunta, sabendo-se observada.
relógio, não é já possível distingui-lo de t i — e eu
— Que... —Escondo-lhe a verdade: não sei o teu
vejo-o inteiro, grande, redondo. O teu corpo rejei-
nome, não sei quem és, mulher sem corpo, mulher
tou-o, expulsou-o com violência, é absurdo procurar-te
nunca antes vista, mulher de quem somente conheço
nele. Relógio portanto silencioso, hermético, corpo
um relógio abandonado.
estranho, relógio que não fizeste, que simplesmente
— Achas que o Hilário de Sousa se livra das medi- escolheste, obediente à moda. r
das de segurança?
— ... o Chu en-Lai. — Pausa. — Estás a olhar para
Redondo: com gravidade indesmentível, um tanto
mim?
cómica, de sábio germânico, Fechner estabeleceu que
16 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR
17
i • •

Sempre de caneta em punho: dos Remédios? U m homem que com oiro te quis
' — Para o teu relógio. Pergunto-me se te fica bem. comprar.
, —Julgas que não. Ouve-me: ao escolher um relógio redondo ele não
Um objecto standardizado, construído peça a peça te compreendeu: o ideal para ti seria a forma rectan-
por mãos alheias que nunca se apertaram umas nas gular, respeitadora da proportio áurea; e, ao marcar
outras, igual a milhares de outros neste momento os dias, esse relógio rouba à vida a continuidade fun-
cobrindo milhares de pulsos (diferentes). Como posso damental dos longos períodos de tempo, continuidade
então triunfar nesta arqueologia insensata de recons- secreta, exclusivamente tua. E o oiro... I Vai dizer-lhe
tituir quem és? Quem somos todos nós neste mundo que não vendes a tua alma!
onde nada foi feito por nós — nós, os homens vul- — Quando o compraste? — pergunto, na espe-
gares? rança de apenas te encontrar a ti.
— Saber que estou aqui sentada e que na Bolívia, Ela poisa o Eterno Marido, tira os óculos.
por exemplo... — O relógio? Foste tu...
E de súbito descubro: o teu relógio é de oiro e o Lembro-me, lembro-me também de ter dado um
oiro não é um metal, é uma simples medida de valo-, à Catarina, mas já não consigo saber se era parecido
res: se não és rica, alguém to ofereceu. E então em — se vocês as duas são parecidas para mim.
— Foi no dia...
vez de te descobrir nesse relógio, em vez de nele deci-
frar o teu nome, será outro o nome que descubro. Sherlock Holraes, procurei decifrar-te a partir de
um relógio, mas em vez de te apanhar no fim da
O nome de quem?
meada (no fim da corda metálica), ao contrário, foi
Um homem que tem de ti uma certa ideia (grande,
a mim que me encontrei, como se Sherlock Holmes
redonda): ao escolher entre dezenas de outros mode-
descobrisse ser ele o criminoso: quis comprar-te mais
los (grandes, redondos, pequenos, quadrados) esse
do que conhecer-te, Maria dos Remédios? ••j
modelo (grande, redondo) confessou sem o saber a
maneira como te via. Através dos sonhos desse homem
sem nome poderei adivinhar quem és?
Sem nome, sim, mas cujo nome terei lido se
tiver lido a lista telefónica, terei lido sem saber que
li. Homem pa.ra quem tu vales um relógio de oiro
— valerás tu mais do que um relógio de oiro, Maria
BOLOR

deixar em sossego os meus sentimentos, os meus e os


teus sentimentos até agora na sombra, sentimentos
que só a disciplina traiçoeira do papel e da caneta
serão capazes de agitar, de captar definitiva e inútil
mente para a memória?

14 de Dezembro

Se tu e a Catarina são afinal parecidas ou se eu


tenho pouca imaginação? Eis-mie de repente a contas
com perguntas que eu nunca teria feito sem uma
caneta nas mãos. Pois, verdadeiramente, foi a caneta
a criadora desta dúvida. E enquanto lês a Sonata
a Kreutzer, supondo-me a estudar o caso do Hilário
de Sousa ou outro, mais rendoso, olho subitamente
para este caderno com uma ponta de medo. No desejo
de escrever, de empurrar para a frente os aconteci-
mentos, de ir somando linhas e mais linhas para apres-
sar o tempo até a página cento e quinze, que sei onde
está mas da qual tudo ignoro, não serei levado a des-
cobrir coisas que de contrário (e muito bem) ficariam
para sempre ocultas (e esquecendo, quem sabe?, as
dificuldades verdadeiramente importantes e voltadas
para o futuro, as dificuldades que ocorrem ao pensa-
mento sem a necessidade de uma caneta)? Não estarei
a brincar com o fogo? Não será preferível desistir,
BOLOR 21

— Desejas saber se a Catari... — Mas continuo


(forçcMue a continuar) atentO' aos brincos.
Paralelamente aos brincos, ela falava:
— Não> não... Provavelmente sem a Catarina eu
nunca te teria conhecido. Mas há uma coisa dificil-
mente suportável: foà o acaso que nos uniu? Existe
entre nós uma intimidade completa, quando estás
a meu lado sou capaz de te dizer coisas que nem a-
mim própria me atrevo, muitas vezes... Se me ponho
18 de Dezembro
a pensar em ti és a absoluta, a inevitável meia-laranja,
Procurava eu ignorar tudo quanto •sabia acerca da a alma gémea, de Platão, sem a qual... — Hesitou,^
minha mulher para melhor a descobrir através dos receosa do ridículo? — Seria terrivelmente infeliz se^
brincos quando ela me disse: fosse casada com outro homem ou vivesse sozinha...!
— Porque casaste? Que o nosso encontro seja meramente fortuito, pu-
desse não ter acontecido, causa-me vertigens. Que é?
Tento não me preocupar com a pergunta (preci-
samente fazemos hoje seis anos de casados), não me — diz, de repente, levando as mãos aos brincos.
preocupar com a resposta (decerto a Maria dos Remé- — Gostas?
dios deseja ouvir ((Porque gosto de ti))), e observo- — Pergunto-me se te ficam bem.
— Achas que não?
-Ihe com mais atenção os brincos, constituídos por
Brincos feitos em série, iguais a milhões de outros
duas argolas geminadas — e como não são de oiro
— não importa que tenhas sido tu a escolhê-los.
tu não és rica, conclusão desde já inevitável (embora
Ela:
absurda), mulher desconhecida. Respondo à mulher
— Quando penso: eram mínimas as probabilida-
supostamente conhecida:
— E m primeiro lugar porque te conheci. des de te encontrar...
— A grande novidade 1 Talvez isto: tu, igual, embora eu pretenda que
Vivesse ainda a Catarina (tantos anos de separação não, embora tu pretendas que não, tu, igual a todas
teriam fatalmente renovado velhas saudades e ador- as mulheres que escolheram brincos como esses. Ou
mecido velhas queixas), eu continuaria a viver con- deveria haver tantos brincos diferentes quantas as
tigo, não desejaria voltar para ela — é esta a certeza mulheres? Tantos brincos diferentes quantos os mo-
que tu procuras, Maria dos Remédios? mentos vividos por essas mulheres?
BOLOR 23
22 AUGUSTO ABELAIRA

limitaste-te também a aceitá-las já feitas, escolhes estas


— Se penso que só um acidente insignificante
ou aquelas como escolheste os brincos, uma escolha
permitiu que nos conhecêssemos... Não sentes um
sobre coisas existentes desde sempre, mesmo quando
arrepio? tu não existias e quando ainda ninguém podia sonhar
Não, Maria dos Remédios. H á muitas mulheres contigo.» Respondo-lhe com palavras iguais às que
iguais a ti por esse mundo, as que escolheram brincos neste momento estão na boca de milhões de pessoas
iguais aos teus. Isto o que escrevo agora, pois o que que nunca trocaram entre si uma única palavra:
disse foi ligeiramente diferente: — Disse-te eu há pouco...? Ah, ia despejar um balde
— Espera — interrompi-a eu. — Não te esqueças de água fria na tua vertigem metafísica, Acabou-se
do resto. — E l a calou-se. — Que se passará em ti, em a água fria. — Pego numa toalha, começo a enxugar-
nós, em certos momentos? Vou pôr um balde de água -Ihe os cabelos, os braços, o rosto. — Também às vezes
fria nessa vertigem metafísica, mas amanhã serei o pri- me sinto perturbado...
meiro a recomeçar. Que se passa? Ainda há pouco — Sim?... Como era eu quem tu tinhas de encon-
jantámos, os pastéis estavam bons, dissemos a propó- trar, o risco de não^ nos encontrarmos foi colossal,
sito coisas tão comezinhas como: Lembras-te dos can- quase inevitável?
neloni de Pisa? Um restaurante à esquina da Praça
— De resto, nem sempre pensas dessa maneira,
dos Mistérios, ou nem era bem à esquina, um boca-
nem sempre olhas para mim como o homem exacto...
dinho antes? Falámos também... '
— Enxugava-lhe as orelhas, os ombros.
— Do Natal, podíamos aproveitá-lo e ir a qual- Tremendo ainda de frio, com os cabelos despen-
quer parte. teados, a testa molhada, ela dizia:
— E t ccetera. E , então, há um sobressalto no nosso — Nem sempre olhas para mim como a mulher
pensamento. Eis-te arrepiada por coisíssima nenhu- exacta? Sim, às vezes aborreço-me de ti, embora isso
ma... Explicas-me o mecanismo destas ideias súbitas nada tenha a ver com... Nunca deixo de pensar:
e subitamente esquecidas? Porque nem tu nem eu era-me impossível viver com outro homem, impossí-
estaremos preocupados dentro de dez minutos com vel, impossível... — Hesita. — Infantil, não é? Por-
issO' de ter sido por acaso que... — Calei-me. (cSabes»,
que seria possível...
gostaria de te responder, «entretive-me a comparar
as tuas palavras com os teus brincos, procuro pô-las
num prato, os brincos no outro. Quando te exprimes
melhor? Pois se os teus brincos não foste tu quem os
fez, o mesmo sucede com as palavras. No fim de- contas.
B O L O R 25

daremos amanhã com os olhos bem abertos? ((Casar-


mos os dois foi um erro, um erro previsível, e agora
já ninguém me poderá devolver os anos que perdi
contigo...»
Aí está, Maria dos Remédios: foste sincera, ainda
não acordaste com os olhos bem abertos, ainda repe-
tes as palavras que disseste há seis anos pela primeira
vez, ainda as julgas verdadeiras, mas qualquer dia vais
19 de Dezembro descobrir que deixaram de o ser e lançar-te-ás então
Como ter a certeza de que a Maria dos Remédios à procura do momento preciso (mas haverá um mo-
estava a ser sincera? Mas concedo: ela falou sincera- mento preciso?) em que o teu amor morreu.
mente, embora as suas palavras queiram dizer não Esta manhã resolvi dizer-lhe:
o que disseram — sejam, no voo inesperado dos sen- — Vou observar ao microscópio o desfazer do teu
timentos, um sopro difícil de alcançar. Pois a gravi- espanto; a progressiva descoberta de que o nosso
dade das palavras não está nunca na roupagem meta- encontro foi um acaso, um simples, um completo, um
física com que as cobrimos:.o pavor do acaso, a con- inútil acaso. Nesse dia futuro ou passado, nesse dia
tingência do nosso destino — simples instrumenta- que é talvez hoje, mas que só amanhã tu saberás que
ções mais ou menos ricas, consciente ou inconsciente- é hoje...
mente compostas para realçar o tema fundamental. Ela riu-se.
E esse tema fundamental pode ser cantado a solo:
((Tu és o homem certo, o único, o indiscutível...» «
Que isto venha a acontecer seis anos depois de casa-,
As linhas anteriores escrevi-as no escritório, mas
dos assusta-me. Vinte, trinta anos mais tarde: pensará
agora encontro-me num café (faltei assim ao encontro
ela ainda, pensarei eu ainda, pensaremos nós ainda
mais ou menos habitual com o Aleixo e com o Gue-
o mesmo? Sem o saber, sem o sabermos, não se dará
des). Resolvi proceder a um balanço dos aconteci-
o caso de já não pensarmos assim, de julgarmos que
mentos aqui descritos ontem — e se me despachar
pensamos, mas não? Como um peso morto (ou como
um peso vivo, embora morto), quem sabe se,não car- a tempo ainda poderei ir ter com os meus amigos
regamos essa ilusão às costas, quem sabe se não acor- (fala-se numa remodelação ministerial).
Em resumo: fui absolutamente exacto, um narra-
B o L O.R 27
AUGUSTO ABELAIRA
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hora preenchidos não somente com palavras, mas com


dor exemplar do que se passou? Para já — e sem gran-
olhares, gestos, a própria mobília, a maneira de nos sen-
des aprofundamentos —, de acordo com a minha nar-
tarmos, os fatos que vestíamos, os penteados... Paro.
rativa, a Maria dos Remédios teve somente nove
O rádio estava aber.to e algumas vezes nos calámos
intervenções, numa das quais (constituída por dez para ouvir uma frase mais bela da Sonata opus 108
linhas) está o essencial do nosso diálogo. E ainda: de Brahms (Oistrakh e Yampolsky). E a seguir ao
a conversa demorou pelo menos três quartos de hora Brahms resolvi pôr no pick-up um disco de Carissimi,
e eu transcrevo-a (mesmo com os apartes da minha algumas árias cantadas pela Schwarzkopf e pela Irm-
lavra) em menos de três minutos. gard Seefried.
Tudo isto não tem grande importância. Quem ler
Ora o Carissimi tem para nós uma história muito
essas páginas (o único leitor sou eu, é certo) concluirá
rica, muito pessoal, ouvimo-lo' pela primeira vez numa
que a Maria dos Remédios esteve sempre sentada com
igreja de Pisa — e até, além do mais, o disco ofere-
um livro nos joelhos, deturpação perfeita de tudo
cera-mo ela momentos antes, a celebrar o aniversário
quanto se passou, pois a Maria dos Remédios levan-
do nosso casamento (o Brahms dera-lho eu há um
tou-se inúmeras vezes — quatro, salvo erro. Ora igno-
ano). Falar aqui do Carissimi não seria muito mais
rar tais movimentos é ignorar um aspecto fundamen- significativo acerca dos nossos verdadeiros sentimen-
tal não somente da nossa conversa, mas da própria tos do que toda aquela verborreia por mim inexacta-
personalidade da Maria dos Remédios: ela não é capaz mente transcrita numa condensação semelhante às do
de permanecer sentada cinco minutos seguidos. Por Reader's Digest, com palavras e ritmos jamais utili-
exemplo: enquanto falávamos, viu um livro tombado zados por qualquer de nós?
numa estante. Nesse momento (lembro-me agora) nem
estava sentada, tinha-se estendido no sofá. Levantou-se
de propósito, endireitou o livro. Doutra vez (ainda
sentada) foi mudar a posição de uma jarra; mas não
ficou satisfeita, daí a pouco voltou a levantar-se, deu-
-Ihe um novo jeito. Etc. E tudo, claro, sem deixar
que se perdesse a continuidade da conversa.
Pergunta: '
Isto e muitas coisas mais (poderia sem esforço fazer
aqui um inventário quase completo dos gestos dela)
será essencial para a compreensão daqueles quartos de
BOLOR 29

tes — e só porque se sabem perto uma da outra e por-


que de vez em quando podem olhar-se, sorrir, dizer
meias palavras sem importância. Sabem-se juntas e é
tudo.
— Porque não ficámos em casa, porque saímos?
Ela dizia: ((Porque saímos?», mas: ((Porque saíste,
porque desejaste sair?» era certamente a pergunta
22 de Dezembro verdadeira. E acrescentou, um pouco mais tarde (o
pianista iniciara não sei já que música açucarada,
Aqui há um dois ou três dias telefonei à minha muito em voga): ((Talvez a nossa casa esteja gasta, já
mulher a convidá-la para jantar fora — sentia-me não saibamos encontrar-lhe nenhum prazer, nenhum
muito cansado e, subitamente, ao imaginar o serão estímulo, de tal modo nos habituámos a ela...» E na-
que me aguardava em casa (a Maria dos Remédios quele restaurante ao qual íamos tão poucas vezes (era
a ler a Saragana, a levantar-se para compor melhor caro) a novidade impelia-nos a observá-lo, a descobrir
um ramo de flores ou endireitar um livro na estante, pormenores novos, cores, cadeiras, pessoas, música,
a infalível abertura do Tannhãuser lançada contra sabores, cheiros, o mar ali debaixo da janela, e essas
nós pelo' rádio, os vinte livros que eu havia de come- coisas envolviam-nos e, envolvendo-nos, despertavam-
çar, as palavras cruzadas entre nós), senti medo. -nos um para o outro.
Ir sozinho a qualquer parte? J á não sei estar sozinho Objectei:
(eis talvez o segredo deste diário: a tentativa de encher — Passaste o jantar quase sempre em silêncio.
os momentos em que sou obrigado a estar sozinho). Ela protestou:
Como se adivinhasse, num dado momento a Maria — Ou será que tu só te sentes preso a alguém
dos Remédios disse-me, poisando o garfo no prato: quando conversas? Só tens palavras, não tens olhos,
— Viemos jantar fora com medo de ficar sozinhos não tens nariz, não ouves, as palavras serão os teus
porque não temos mais nada que dizer um ao outro? únicos sentidos?
E u observava o pianista — acabara de beber não Não lhe respondi: alguns dias antes deixara pro-
sei o quê e preparava-se para tocar. E respondi-lhe positadamente este caderno em cima da secretária,
que nem sempre as palavras são necessárias, duas pes- entregue à curiosidade da Maria dos Remédios. Pus-
soas podem mergulhar numa mesma felicidade, numa -me de atalaia, atento a todos os gestos, a todas as
felicidade comum, embora entregues a coisas diferen- frases — nalgum desses gestos, nalguma dessas frases
30 AUGUSTO ABELAIRA

estaria reflectido este diário? Ao' ouvi-la, mais do que


interessado pelo que ela dizia, eu procurava uma
prova...
— Muitas vezes reparei •— continuou a Maria dos
Remédios —, és capaz de conversar longamente com
uma pessoa sem olhar para ela. E u preciso de lhe ver
os olhos, de saber comO' reage... Para ti só as palavras
unem as pessoas, só elas permitem a comtinicação.
Já tinhas pensado?
Escrever é usar as palavras e não os olhos — sabe- 28 de Dezembro
rás tu que eu escrevo? E ao mesmo tempo pus-me
a observar-lhe os cabelos: são teus esses cabelos, foste Ontem (voltávamos do cinema) a Maria dos Remé-
tu a escolher esse penteado? dios lembrou-se:.
Ela continuava: — Nunca chegaste a responder-me se pensavas
— Aprende a olhar, pois as palavras são cegas, são muito na Catarina.
surdas, não têm sabor, nem tacto... Pergtmta que se repete quinze dias depois e que
Por que razão esta música melada (em casa eu seria me perturba: eis-nos casados há seis anos, e só nestes
incapaz de a ouvir) me sabe bem aqui?, pensava eu, últimos tempos a Maria dos Remédios se mostrou
assim preocupada.
entregue ao pianista, mais do que às palavras da
Maria dos Remédios, e desmentindo-lhe assim a teo- — Que entendes por pensar?
ria. Mas depois também me soube bem ficar definido Nesse momento (ela ia ao volante) foi obrigada
por aquela teoria absurda e respondi-lhe: a uma travagem brusca — um automóvel, quando
— Se estou na cama com uma mulher, e não há o ultrapassávamos, guinou inesperadamente para a
palavras, é como se os sentidos estivessem rombos, só esquerda, as nossas exclamações indignadas (cada vez
as palavras lhes dão a posse absoluta, aguçam-nos, ilu- se guia piori, isto é que são uns imbecisI) rompe-
minam-nos. Se olho uma paisagem ou um quadro, se ram o clima necessário à precedente conversa. Ou foi
não acoiripanho esse olhar com alguns comentários, a Maria dos Remédios que não insistiu, desejosa de
embora silenciosos, os sentidos serão cegos... Não: as uma resposta amadurecida?
palavras é que dão olhos aos sentidos.
— São cegas, são cegas...
BOLOR gj

A andar! Mas os meus olhos (e eu que pensava o . . . . .


con-
tránol) são mais lentos do que os meus passos, demo-
ram quase uma hora a percorrê-los.
A que velocidade os terei escrito? Quantos metros
por hora?

1 de Janeiro

Hoje que um novo ano começa folheio estas pági-


nas com espanto — e de algumas delas estava esque-
cido, valeria a pena tê-las escrito só para as não ter
esquecido? Folheio não apenas as páginas azuladas,
folheio também as brancas, as páginas que aguar-
dam ainda a tinta azul. Faço contas, eu, uma autên-
tica negação para a aritmética: quantos quilómetros
somam as linhas escritas até hoje? A duzentos e oito
centímetros por página, trinta páginas: sessenta e dois
metros. Fico espantado com estes números tão peque-
nos! Depois de escrever tanto — pensava eu — teria
deixado para trás muitos quilómetros de tinta. Ses-
senta e dois metros!
Como é possível? Caber tudo quanto escrevi em
sessenta e dois metros! Caber quase um mês de vida
numa extensão equivalente a oitenta passos dos meus.
E debruço-me sobre este caderno, folheio-o: quanto
tempo levam a ler estes sessenta e dois metros?
A andar percorrem-se em dois minutos e meio.
2-Bolor
1 de Janeiro 3 de Janeiro

Hoje que um novo ano começa — repko con- Ouso escrever pela primeira vez: quando a Cata-
tigo— folheio estas páginas azuis e brancas sem rina morreu não senti grande pena. De repente, ao
espanto. A h , isso que tu não^ me dizes, esse silêncio, vê-la morta, estendida na cama, quando ela não fora
isso que faz parte da inviolabilidade da tua alma, isso ainda a enterrar, quando era ainda viva dez minu-
que tantas vezes me força a olhar para ti e a pergun- tos antes (quando dela se poderia dizer ter sido viva
tar a mim mesma: (cQue me escondes, Humberto?», dez minutos antes), descobri uma vida nova à minha
isso está aqui neste caderno secreto, enche todo este frente, uma vida velha acabava de acabar.
papel? Sem espanto... Não: com espanto. Ou então: não erá da Catarina que eu não tinha
Eu, abaixo assinada, tua mulher, eu, Maria dos pena, era de mim, de uma época agora irremediavel-
Remédios Varela Rodrigues, a quem às vezes (raras mente para trás, morta e sepultada. Pois ao observar
vezes) 'tratas por «querida», eu, escrevendo agora com a Catarina com mais atenção conclui ser a mim pró-
tinta preta (e não azul) para veres bem a diferença, prio que desejava ver morto. «Porque não morri em
eu, leitora diária do teu diário, leitora diária a fingir vez dela?», lembro-me de dizer — não como inúme-
que só hoje o folheei, digo de súbito: «Mas é tão ras vezes acontece pelo- (generoso) desejo de sacrifício,
pouco? Porque não me confessaste que escreves um mas por acreditar profundamente que um de nós
diário? Porque me escondes esses sessenta e dois devia morrer, mas morrer, sim, para que o outro
metros de vida que não precisam de ser escondidos?» sobrevivesse e, sobrevivendo, recuperasse a juventude.
Um de nós estava a mais, mas não necessariamente ela.
Maria dos Remédios , Estendida na cama — eu recebia os pêsames deste
e daquele e já pensava: como vou recomeçar? Sen-
36 AUGUSTO ABELAIRA

tia-me tainbém morto, ali ao lado da Catarina, mas


prestes a renascer.
Percebi: o meu pequeno mundo ficava vazio e de-
pendia de mim nesses dias mais próximos decidir
em que espécie de outro homem deveria eu trans-
formar-me para que os anos seguintes não fossem
a simples continuação dos anos anteriores. Sentia-me
apreensivo, será preciso dizer? Pois não era essa a pri-
meira vez que morria e sempre ao ressuscitar ressus-
5 de Janeiro
citara igual ao que fora. Aí estava: tinha casado com
a Catarina para quê?
Ê evidente, não redijo este diário para a minha
Lembro-me perfeitamente do dia do nosso casa-
mulher, não permitirei que ela o veja. E escrevo
mento, vejo-nos aos dois a entrar em casa enquanto
(a mão treme, sinto vergonha, mas escrevo): se a Maria
eu lhe digo com o gosto teatral que sempre me carac-
dos Remédios morresse? Porque não morre? — eu até
terizou e num eco de antigas leituras de carácter
teria um desgosto profundo, porque gosto dela pro-
etnológico: fundamente. No passado eu nunca soube renascer,
— Estamos no centro do mundo! faltava-me a maturidade para tanto; mas hoje posso
Quando abri a porta (da nova casa) com a Maria suprimir o tempo, regressar ao princípio, nascer ver-
dos Remédios, repeti, sem querer: dadeiramente num mundo novo.
— Estamos no centro do mundo!
Apenas: a Maria dos Remédios não deixa. E só
Continuei de ambas as vezes: porque vive.
— Aqui o tempo parou. Não: aqui o fluir do
tempo rompeu-se, regressámos ao momento da cria-
ção, Marduk acaba de vencer Tiamat, imitamos
a aurora do mundo, estamos verdadeiramente na
aurora do mundo, purificados, tudo vai começar, aca-
bamos de nascer... - ::,
9 de Janeiro
8 de Janeiro E m nome de q u ê tenho eu seleccionado o que
Porque não me disseste, Humberto, a verdade, escrevo? — como se não trabalhasse todos os dias, não
quando ontem quis saber o que escrevias? Prepa- convivesse (quatro ou cincO' amigos com quem me
ravas um julgamento... E u sabia que não, reco- encontro sempre depois do almoço, uma ou outra
nheci o caderno, sabia que não (e sabia que tu mulher com quem vou para a cama de vez em quando,
sabias que eu sabia que não). Lancei-te uma ponte muita gente mais). É bem certo: a Maria dos Remé-
(lanço-te uma nova ponte ao servir-me do teu diário), dios foi, se me descontar a mim (eu sou talvez o resto,
quis com toda a doçura obrigar-te a ser feliz (feliz não a soma), a heroína um tanto difusa, o centro de
por ter havido alguém que soube entrar na tua alma preocupações, destas páginas. E semelhante falsifica-
— e se a tua alma é a tal vida íntima cuja existência ção da minha vida (um todo e não uma ou outra
parte) significa decerto qualquer coisa, até porque não
se deseja ignorada pelos outros, então este caderno
tenho procedido assim com perfeita consciência (só
é a tua alma, uma alma susceptível de ser vista, sólida,
hoje ao fazer o inventário deste caderno dou por isso).
azul, azul num corpo branco).
Talvez eu também escreva um diário, talvez eu Atenção: no meu dia-a-dia, o tempo dedicado à
Maria dos Remédios é quase nulo ao compará-lo com
também deseje às vezes a tua morte para renascer.
o tempo absorvido pelo meu trabalho, pelos meus
Porque não procuras esse meu diário? — vou deixá-lo
amigos (conversas quase sempre sobre política), peia
aberto sobre a tua secretária.
leitura, etc. Avaliada em tempo, a minha vida con-
centra-se, portanto, bem longe da Maria dos Remé-
dios (e até de mim, pensando bem; enquanto con-
verso, enquanto trabalho, estou longe de mim). Mas
40 AUGUSTO ABELAIRA

este diário começa a akerar a situação — escrever


ocupa muitas horas (e essas horas deverão ser enten-
didas como pertencentes à Maria dos Remédios?).
Aí está: quantos minutos destino eu por dia à
Maria dos Remédios? Se este diário soma quase todo
o tempo que lhe ofereci, quantas horas dediquei eu
à Maria dos Remédios durante o último mês? Mas
não, não era isto que eu queria dizer, pressinto uma
coisa mais importante: com os meus amigos e com 10 de Janeiro
o meu trabalho sou (descubro hoje) perfeitamente
feliz: acho-me inteiramente satisfeito depois de uma Verdadeiramente a conversa só começou lá por
hora de conversa com o Aleixo, o Guilherme, o Gue- volta da uma hora da noite, depois de lhe bebermos
des, o R u i (mesmo quando nada dizemos, como obvia- uns copos bem medidos de aguardente. Política por-
mente sucede quase sempre), acho-me inteiramente tuguesa (boatos exprimindo mais os nossos desejos
satisfeito depois de uma hora de trabalho. Nesses do que as realidades), política estrangeira (a China,
momentos (sinto que) não falhei •— amigos e trabalho o Vietname, Cuba, o neocapitalismo), alguns livros,
dão-me tudo quanto dos amigos, tudo quanto do tra- tudo ficara para trás, agora falávamos de mulheres
balho é exigível. Essa parte da minha vida é — como (nada melhor para conhecer bem um homem do que
direi? — perfeita, está completa em si mesma, não ouvi-lo falar de mulheres). *
precisa nem de comentários escritos, nem de pergun- De mulheres: pessoas educadas, omitíamos-lhes os
tas e, nesse sentido, há uma parte da minha vida com- nomes, mas entrávamos-lhes nos quartos, e deitávamo-
pletamente realizada, completamente feliz. Nenhuns -nos com elas.
amigos me poderiam dar mais do que eles me dão, Contou-me então a sua história com a mulher dum
nenhum outro trabalho me poderia dar mais do que amigo: ao fim de um mês decidiram acabar, cons-
ele me dá. cientes de que não deviam.
Se falo aqui da Maria dos Remédios e da minha — Foi a única coisa grandiosa da minha vida. Não
vida com ela é porque algo em nós ficou incompleto, porque me sentisse apaixonado, ela também não se
é porque não achamos em nós esse absoluto, essa per- apaixonara por mim. Mas era bom, aquilo poderia
feição que a si mesma se basta. Se escrevo, pois, sobre ter prosseguido por muito tempo. E foi somente por
ela é porque preciso não sei de quê, é porque dever que renunciámos. Bonito, heróico, hem? — Pre-
42 AUGUSTO ABELAIRA
BOLOR
• • 43.
tendia falar com um certo cinismo. — Ainda hoje me
parece espantoso, um indivíduo como eu! Mas é ver- Nao e espantoso?-Olhava para mim, muito sério
como se quisesse dar-me a entender que desistira, que
dade! E o mais incrível é que nenhum de nós se
estava disposto a, morrer sem lhe beijar os joelhos
sentia em pecado, compreendes? — E u achava graça
Que com esse gesto demonstrava por mim uma amí-
à palavra pecado na boca de um ateu. — Não enga-
zade profunda.
návamos o marido, eu era sinceramente amigo dele.
No entanto... Isto: sabíamos que ele viria a sofrer
se soubesse o que se passava. Pronto.
— Cansaram-se um do outro, foi o que foi.
— Não, pelo contrário. E ficaram muitas coisas
incompletas. Por exemplo, só ontem me lembrei:
nunca cheguei a beijar-lhe os joelhos. Se soubesses
como este pequeno pormenor, este pequeno nada que
não cheguei a fazer, me dói... As vezes penso que vou
quebrar todas as minhas decisões só para lhe beijar
os joelhos, que depois talvez fique enfim repousado...
Mas não... Deitámo-nos duas vezes, compreendes?
Não conseguimos, apesar de tudo, vencer uma certa
timidez, há dezenas de coisas que não fizemos, e que
me queimam a existência só porque as não fiz.
— Tirara o anel do dedo, brincava com ele em cima
do tampo da mesa. — Seja como for, não voltamos
a trás, acabou-se.
Não sei porquê, senti-me subitamente esse marido
e perguntei-lhe com ar natural, como se de nada sus-
peitasse:
— Conheço-o?
Hesitou (ou pareceu-me hesitar?), disse;
— Não. — Insistiu: — Que milagre fará com que
um bicho como nós suspenda um prazer só porque...?
12 de Janeiro 13 de Janeiro

Esta noite sonhei que vivia no Porto em 1830. Não me respondes, Humberto? Ontem, enquanto
De repente, vindo de Londres, o Alexandre Her- escrevias — agora já sei o que escrevias, nem sequer
culano aparece em minha casa e diz-me: ((Vamos falavas de mim —, pensei: vou interromper-te, vou
desembarcar dentro de poucas horas, precisamos do dizer: tu escreves, eu escrevo, sabemo-lo ambos. Por-
teu apoio.» Acordei nesse instante com suores frios que não deixamos as canetas, não quebramos o silên-
e, por acaso, lembrei-me do sonho interrompido. Pen- cio, mantemos deliberadamente esta ignorância arti-
sei então, repousadamente acordado: Que responder? ficial em vez de ousarmos dizer em voz alta o que
((Não conte comigo»? Nunca mais poderia olhar para ousamos escrever em voz baixa?
ele a direito (nunca mais poderia olhar para mim Cale i-me. Receio a tua condenação: que eu não
mesmo a direito), mas como dizer-lhe: ((Conte comigo)) tinha o direito de folhear o teu caderno, que...
se o medo invadira o meu corpo e a minha alma? Porque não me respondes aqui mesmo? Juro-te,
Sem querer, sem dar por isso, surpreendi-me a racio- depois finjo que não l i , fingiremos que tudo igno-
cinar deste modo: ((Porque vieste? E u vivia em paz, ramos.
sim, vivia em paz, sabedor de que nada poderia fazer,
crente de que era por isso que nada fajcia. Porque
vieste?»
14 de Janeiro • 15 de Janeiro
Felizmente, a Maria dos Remédios tinha assunto,
Pergunto:
compensando assim a minha incapacidade de fomen-
—^Já lhe beijaste os joelhos?
tar uma conversa (não por ausência cie assunto, se
Aleixo hesitou (talvez). U m jornal em cima da
estávamos ali a jantar num restaurante de Cascais era
mesa, abriu-o para completar a leitura dum título^ cor-
precisamente por èu ter assunto, mas agora faltava-me
tado a meio, voltou a fechá-lo.
a coragem, adiava sucessivamente o momento de
•—Não te disse que ela morreu? — Desdobra de
começar: ((Perguntaste-me no outro dia se eu pensava
novo o jornal à procura de outros títulos. — Não te
muito na Catarina. Foi por saberes que ela me enga-
tinha dito?
nava?»).
A Catarina, penso.
A mulher-a-dias, que vive com o marido e cinco
filhos, a mãe, a irmã, o cunhado e quatro sobrinhos,
na mesma casa, uma casa com três quartos e uma cozi-
nha. Os filhos não podem, brincar com os primos
— o marido não deixa, pois zangou-se com o cunhado.
E como eles, apesar de tudo, brincam, e como ele
acaba sempre por vir a saber, bate-lhes sem dó nem
piedade. Neles e nela.
— Vi-lhe as nódoas negras. Quando casou tinha
uma pulseira de oiro. O marido (é chauffeur de táxi),
um dia destes, foi buscar a pulseira ao prego, depois
AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 49
48
não lha devolveu. E trocou-a por um relógio, mas E com o primeiro marido também era assim. Acre-
para ele. ditas? Admirada por eu me ter admirado, pergun-
tou-me se contigo era diferente... Tive vergonha de
— Ela não protestou? — Sentia-me cada vez mais
lhe dizer a verdade. Vergonha I Seria injusto revelar-
feliz por esta conversa i r adiando o m o m e n t O ' da outra
-Ihe um mundo diferente, um outro respeito pelas
conversa.
pessoas.
— Ameaça deixá-la, se ela não encontrar outra
Brinquei:
casa; não quer viver mais com o cunhado. Mas não
— Aliada aos capitalistas, enganando os pobres...
lhe dá dinheiro, ela que o arranje. E não é só o pro-
— De súbito, sucedeu-me esta coisa incrível: olhei
blema do dinheiro. Como poderiam ir sozinhos para
para ela e pensei que não pertencíamos à mesma espé-
um quarto sem ninguém a quem deixar os filhos?
cie, éramos animais diferentes. — Fizera uma nódoa
Há outra coisa: já fez dezoito desmanchos, agora vai
de vinho na toalha, pôs uma torrada em cima a escon-
fazer outro. Perguntei-lhe: «Porque não se protege,
dê-la. — Se tivéssemos de viver naquela casa cheia
mulher?» Ele opõe-se. E nem lhe paga os desmanchos, de gente, sem nos podermos isolar.., — Perguntou:
a trezentos escudos cada. E a sangue-frio, bem enten- — T u batias-me? — Não lhe respondi e ela prosse-
dido. <(Deixa-os vir, deixa-os vir...», costuma ele dizer. guiu: — Sim, batias-me com toda a certeza. E u já teria
E embora passem o tempo zangados e ele lhe dê gran- suportado dezoito desmanchos, e a sangue-frio, teria
des tareias, isso não o impede de à noite lhe fazer cinco filhos... — E a seguir: — Que fizemos nós para
filhos. Espantoso, hem? Estarem zangados não é impe- ser tão felizes? T ã o felizes, isto é: que fizemos nós
dimento, considera ele. para não viver num quarto, para que tu não me batas,
— Não viste no outro dia o que se passou num para que eu saiba que nem todos os homens são assim?
tribunal? Um homem separado da mulher, embora
— Nada — respondi-lhe.
não judicialmente, procurou-a em casa; como ela se
Já de volta, na auto-estrada, continuou, sem que
recusasse, atou-a com uma corda e levou-a para a cama.
eu ousasse falar na Catarina:
O tribunal reconheceu-lhe esse direito, era marido...
— Nada fizemos, mas somos felizes, não é? Felizes,
A Maria dos Remédios prosseguia, sem me ouvir:
negativamente... Felizes somente porque não somos
— Acabado o prazer, o prazer dele, continuam
infelizes 1 — E perto do Liceu Francês:—O espan-
zangados.
toso é que a gente não se espantei — Guiava ela, ;
— Esse homem é um bruto.
— Nada disso. Com o cunhado passa-se o mesmo. gosta muito de guiar, guia talvez melhor do que eu.
50 AUGUSTO ABELAIRA
BOLòk:./.-v:;;::;:v:;; • • 51
— É bem verdade, é uma verdade profunda, sabes?
Conoentrar-me-ei nesta ideia: espantar-me por não me ciosamente as minhas relações com os outros (amigos
espantar, por conseguir viver sem espanto num mundo
so diálogos gozam da propriedade comutativa são
espantoso.
Abro aqui um parêntesis, Maria dos Remédios:
quantas vezes me pergunto se há razões para viver-
mos juntos, se não será somente o hábito, a dificul-
dade material de nos separarmos, que nos força a viver
na mesma casa (e visto que na mesma casa, na mesma
cama)? Mas noutros dias, é verdade, também penso
como tu acabaste de pensar, e tu pensas como eu,
neste momento: que não há razões para vivermos jun-
tos. Limitamo-nos então a uma simples troca de papéis
e cada um dos nossos diálogos, embora seja a cópi^
do diálogo anterior (de muitos diálogos anteriores),
desenvolve-se de maneira tal que eu digo hoje o que
tu disseste ontem, tu respondes-me amanhã com
a minha pergunta de hoje? Actores sem consciência
de o serem, recitando papéis mutuamente, indiferen-
temente intermutáveis?

E isto, Maria dos Remédios, sucede apenas quando


converso contigo ou sucede também quando converso
com os amigos, também com eles alternando os papéis
mais ou menos dia sim ^ dia não? Se só nos acontece
a nós, se só acontece entre nós, será então que somos
uma e a mesma pessoa — uma só carne, um só espí-
rito— e que nos amamos.
Eis um objectivo para este diário: observar minu-
BOLOR 63

metros (o da rainha Matilde e o de Penélope eram


menos longos), contando sempre a mesma história
(exteriormente a história da mulher-a-dias, realmente
uma variante, a nossa): — E não se sinta imediata-
mente feliz só por saber que não é aquela mulher?
Que não diga, a propósito de tudo, abençoado sol que
me iluminas, aí>ençoado fogo que me aqueces...?
Poderia ser uma pedra, ou ter nascido gato, mas não:
16 de Janeiro Saiu-me na rifa ser um dos três mil milhões de habi-
tantes que povoam a Terra. Com uma pequena e feliz
Fecho o parêntesis, recomeço, mas desta vez na particularidade: contorne entre os quinhentos mi-
cama (a viver, não a escrever — escrever escrevo no lhões que não conhecem a miséria...
dia seguinte, que é hoje, enquanto a Maria dos Remé- T i r e i então do meu saco um jogo de agulhas e com
dios lê a Memória dum Pintor Desconhecido). Por- uma lã quase igual enxertei no tapete da Maria dos
que entretanto o automóvel galgou a finita infinidade Remédios o meu bordado (o meu não é bem, o meu
de pontos que separavam Carcavelos da nossa rua relacionava-se com a traição da Catarina e este agora
(Zenon! Cruel Zenon! Zenon d'Élée! j M'as-tu percé limitava-se a continuar o da Maria dos Remédios):
de cette flèche ailée / Qui vibre, vole, et qui ne vole — Podes até criar uma espécie de religião. Quan-
pas!) e deitámo-nos (poderíamos nós estabelecer uma tas vezes pensei: as religiões estão certas. Depois da
correspondência biunívoca entre as palavras pronun- morte, uns vãO' para o paraíso e outros para o inferno.
ciadas durante a viagem e os pontos da estrada?). Mas estamos enganados acerca do que é a vida e do
Estávamos ambos deitados de costas, a Maria dos que é a morte. Como distingui-las? Como saber onde
Remédios apertava a minha mão na sua e dizia; acaba uma e começa outra? Eis a verdade, tantas vezes
— Como explicar? Quase ninguém é capaz de suspeitada: já estamos mortos e dominados por um
aprender a felicidade de que dispõel — E u pensava: deus implacável. É erro supor que o céu e o inferno
enquanto o meu espírito soubera romper a teia de ficam longe um do outro. Sobrepõem-se, interfe-
palavras que de Cascais até a nossa porta fora sendo rem-se. Eis-nos portanto mortos, uns no inferno,
tecida (e com as mesmas palavras criava outro tapete), outros no céu. A distinção é de grau. Porque não
ela mantinha suspenso da boca o mesmo fio. Olhei fundaremos uma religião ou, pelo menos, uma seita
então para o tapete, longo de vinte e cinco quiló^ mais ou menos pitagórica?
54 AUGUSTO ABELAIRA

— Achas que teríamos seguidores?


Continuei a bordar o meu bordado:
— Porque não? Seria a única maneira lógica de
explicar as presentes injustiças. Antes de morrer, antes
de virmos para aqui, estávamos efectivamente vivos.
Nessa vida éramos todos iguais, majs alguns pratica-
ram a virtude, outros não...
— Nós que depois de mortos nos temos revelado
tão egoístas... Acreditas que em vida tivéssemos sido 16 de Janeiro
bons, tivéssemos merecido este paraíso? T ã o egoístas,
tão indiferentes ao mundo, tão interessados somente Escrevo propositadamente diante de ti (enquanto
no que mais de perto nos toca... relês Patterns of Culture) no caderno que sabes teu
— Ora, não compreendes? Chama-se a isso um — e sem que me perguntes nada.
mistério e sempre assim foi: resolvem-se os mistérios Não voltarei a escrever-te, Humberto. Não volta-
com um novo mistério. rei a ler o teu diário, mesmo se tu o deixares em cima
•— Mortos e no paraíso... Ah, essa religião dis- da secretária. E já avaliaste bem o significado gravís-
pensa-nos dos problemas de consciência: se a minha simo de jurar que nunca mais lerei o teu diário, que
mulher-a-dias sofre, é porque na outra vida...? — disse nunca mais te direi (oralmente ou por escrito) que
ela a rir, inserindo uma,lã amarela (o amarelo é a cor li e escrevi no teu diário? Nunca mais perguntarei
porque não respondeste ao que escrevi, porque fin-
da ironia) no nosso tapete, longo de muitos quiló-
giste ignorar que escrevi.
metros.
Com a farpa da minha agulha roubei-lhe a lã Sim, Humberto: se é mais difícil pronunciar as
amarela: palavras do que escrevê-las, porque não tentaste refa-
— Decerto. É uma religião... zer tudo a partir destas páginas?
BOLOR 57

Há duas horas, no melhor do meu fôlego meta-


físico, o Aleixo veio sentar-se à minha mesa (num
café). Fechei o caderno, mas ele mostrou-se curioso:
— Que escrevias tu? U m diário?
Envergonhei-me, nem sei bem porquê, e respondi
ao acaso:
3/4 de Fevereiro — Tenho um julgamento amanhã, procuro pôr
uma certa arrumação nas ideias.
Como quem enfia as pedras dum colar, junto Vergonha de escrever um diário. Vergonha por-
umas às outras as palavras, elas vão ficando unidas, quê? Vergonha de sugerir uma vida íntima que escapa
não caem no chão, representam uma ordem. Mas se (que escapou até hoje) aos olhos dos outros? Â pri-
as pérolas não se separam e ficam alinhadas segundo meira vista, 'talvez. Mas então esta caneta (e não eu)
uma certa lei é porque, embora invisível, as percorre apressa-se a escrever: «Se um homem esconde que
um fio perdurável. De súbito pergunto-me: que fio tem vida íntima sobre a qual se debruça, sobre a qual
perdurável, embora invisível, sustém as minhas pala- pensa e volta a pensar, nãO' será pelo receio de que
vras? O papel deste caderno? E folheio de novo as os outros, sabendo-o assim detentor de intimidade,
páginas brancas, fio ainda sem pérolas, ainda à mostra procurem reconstituí-la?»
mas vazio, instalado no futuro, aguardando a minha Imagino a situação inversa: encontrava o Aleixo
caneta. A tentação impele-me a reler as folhas já escri- debruçado sobre um diário. Imediatamente havia de
tas e de repente suspendo o gesto, lembrando-me me perguntar: «Que escreve ele, que terríveis segre-
do que a mim próprio prometi: só quando chegar dos agitam a sua alma para lançá-los ao papel em
à página cento e quinze regressarei ao que ficou para vez de os contar a um amigo ou à sua amantíssima
trás, à procura então dum fio que não seja somente esposa?» E esta pergunta, sobretudo se eu estivesse
de papel. E esse passado surge-me tão desconhecido de caneta em punho, como agora, levar-me-ia a obser-
como o futuro e eu vá-lo com mais atenção. De pista em pista, acabaria
por adivinhar-lhe as preocupações mais profundas,
aquelas que ele mais deseja esconder — talvez a trai-
ção da mulher amada.
AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 5S
58

— Recomecei um dia destes. — Mas parecia desi-


Mas O Aleixo pusera três escudos em cima da mesa, ludido com a minha reacção, desejava talvez que eu
a pagar também a minha bica, convidara-me a dar me mostrasse horrorizado e em vez disso perguntava-
um salto ao seu atelier. -Ihe se decidira recomeçar 1 Procurei ajudá-lo:'—É o
Acreditei então que ia mostrar-me uma carta ou teu diário íntimo?
um lenço que a Catarina lá teria deixado, ou um Encolheu os ombros com um. reconhecimento me-
casaco de lã, que sei eu? Para mais, durante o trajecto lancólico.
(apanháramos um táxi) ele não abriu a boca. Talvez — Talvez... — Mas acrescentou: — Serias capaz
outra coisa, pensei. Num dado momento tiraria de de jantar, de te reunir com amigos em alegre convi-
dentro de um armário uma tela antiga, um retrato vência diante deste horror?
da Catarina. E eu em silêncio, ou dizendo somente Hesitei porque desejava sinceramente ajudá-lo,
«Eu sei...» — «Sabias? T i n h a a certeza de que sabias, dizer-lhe o que ele queria que eu dissesse — que não,
lia nos teus olhos que sabias, senti durante todos estes que aquilo era extremamente belo; ou que sim, que
anos a tua dúvida, quantas vezes desejei que cortasses seria incapaz de ser feliz ao olhar para o quadro.
relações comigo, que...» — «Quem foi o culpado?- Defendo-me com uma frase vaga:
T u ou ela?» Subitamente agarrava-me à esperança de — Parece-me muito bom, a matéria...
que houvesse um culpado — um só — e que o cul- Ele começou, desistindo de ouvir as palavras dese-
pado fosse ela, não aquele homem ali na minha frente, jadas, recitando talvez um discurso previamente estu-
aquele meu amigo, amigo já antes de eu conhecer dado;
a Catarina, meu amigo tantos anos passados.. — Que têm feito até hoje os pintores? Vendem
Mas não, Ainda no cavalete, já aparentemente quadros a quem os pode comprar. Quadros belos, em
concluída, uma mulher nua (não era a Catarina, não princípio. E aí tens: a arte reduzida a dar beleza aos
era ninguém), nua, extremamente bela no rosto, a Pri- bem instalados na vida. Depois de um dia inteiro de
mavera, quem sabe?, com um corpo repelente, cha- egoísmo, sem um único sentimento generoso, ei-los
gado— e um. cãO', também apodrecido, a lamber-lhe que ao chegar a casa podem encher os olhos de felici-
as feridas. dade, enriquecer a alma, aperfeiçoá-la graças à con-
— Julguei que nunca mais..., que tinhas desis- templação da beleza.
tido definitivamente..., ainda bem que recomeçaste... Era irónica a sua voz. E u tinha-me levantado,
— Olhei em volta os cartazes publicitários que resu- encostara-me à janela, via os telhados de Lisboa, o zim-
miam os últimos anos da vida do Aleixo. bório da Estrela, o Castelo, uma nesga quase imper-
60 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 61

ceptível do rio, e pensava que a Catarina estivera Sem saber que diga, respondo:
ali como eu, também encostada à janela e a ouvir — Talvez... — Vejo a Catarina, também sem saber
o Aleixo (que diria ele então?), que talvez tivesse que responda, a dizer: ((Sim, talvez seja isso, talvez
falado de mim (vejo-a a dizer: «E no entanto eu gosto seja somente o desejo de transgredir a lei, de me sen-
do Humberto»), ali a ver exactamente o que os meus tir no caos inicial, de me sentir até aviltada para...»
olhos viam: os telhados, o zimbório da Estrela, o Cas- Mas a Catarina não falaria assim.
telo, a nesga do rio. Não exactamente o que eu via, — A arte devia «er provisoriamente interdita pelos
porque as águas do rio, porque as telhas das casas, homens de boa vontade. E só quando não houvesse
os prédios novos a substituir os velhos... riqueza mal distribuída a proibição cessava. Seria um
— T u dirás: não poderá haver uma pintura que prémio oferecido aos justos, aos homens de um mundo
inquiete as almas dos bem instalados em vez de as justo, pelo menos. Mas hoje, Mozart e Cézanne são
repousar? — (Oito anos antes terá dito: «E julgas que um crime, :são a beleza concedida aos que não a me-
eu não sofro quando estou ao pé do Humberto, recem.
que não me sinto um canalha...?»)'—Provavelmente — A nós, por exemplo?
não... Ao fira e ao cabo a Guernica é bela, não
inquieta ninguém, mostra até que de ura borabar- No dia seguinte senti uma vontade invencível de
deamento horrível se f>ode extrair beleza. — («Se ao voltar ao atelier do Aleixo, bati-lhe à porta inespe-
menos te amasse», ouço á tua voz nos ouvidos da radamente. E o quadro transformara-se, as chagas da
Catarina, «mas nem isso... Alguns povos primitivos Primavera haviam sarado, o cão era o cão da princesa
invertem em certos períodos os tabos, invertem a lega- de Trebizonda, a tela começara agora a irradiar uma
lidade e praticam tudo quanto é proibido. Então mer- beleza primaveril, repousante, de mundo acabado de
gulham no caos, mas um caos renovador...») — Um nascer. .; -
desaforo autêntico! Os artistas, todos os artistas, penso Meti-me com ele; •
muitas vezes, deviam emudecer, pôr-se entre parênte- — Desististe?
sis até que o mundo se transforme. Com vontade ou — Uma camada de tinta especial... — Não sei se
sem ela, dão satisfação às necessidades vitais de beleza, havia ironia naquele seu tom de voz. — Acabará por,
não de todos os homens, mas somente de alguns: e os cair dentro de dois ou três anos, decomposta pela res-
piores! E m vez de ajudar os homens a libertarem-se, piração e pelo calor... Vês o efeito? Ao fim de algum
a arte ajuda esses piores, essa burguesia endinheirada, tempo, o bom do burguês, comprador de uma gentil
a usufruir uma beleza imerecida. Não concordas? Vénus para seu repouso, para embelezamento da sua
62 AUGUSTO ABELAIRA

sala de estar, verá aparecer uma imagem repugnante.


E,. pelo menos como artista, eu deixarei de contribuir
para o sossego dele.
— Tens a certeza de que a tinta cairá?
— Não... — Olhava para mim, muito sério, eu
continuava sem saber o que ele pretendia.
— Essa tal aventura...? Tenho pensado muitas
vezes... Foi a tua consciência, foste tu que tiveste cora-
9 de Fevereiro
gem de pôr um ponto final? Ou foÍ ela?^—acabei
por perguntar, metendo finalmente os meus interes- Não sei como isso foi, mas às duas por três falá-
ses, metendo-me a mim e à Catarina, numa pausa mais vamos de viagens, nós que nunca havíamos viajado.
longa, desejoso de ouvi-lo dizer: «Não. Isso da cons- E os nossos gostos eram muito semelhantes, tínhamos
ciência é uma desculpa inventada pela minha vaidade, ambos um plano muito parecido — mas eu propu-
Foi a Catarina que me fechou a porta na cara.» nha-me realizá-lo nas férias grandes e, quanto a ela,
— Beijei-lhe os joelhos, um dia destes,.. os pais opunham-se a que viajasse sozinha. Apesar
.— Julguei que tinha morrido... •— Subitamente, disso sonhava: metia-se no comboio e saía em Pisa.
e embora morta há muitos anos, a Catarina deixava E u viajava mais lentamente, decidira fazer algumas
de me ter sido infiel, as pedras do meu colar torna- paragens antes de chegar à cidade prometida: uns dias
vam-se verdadeiras precisamente por serem falsas. na Riviera di Levante a apanhar sol, estendido na
areia.
Mas insensivelmente — no preciso instante em
que ela desceu do comboio em Rapallo (por influên-
cia minha, tanto mais que tinha bilhete para Pisa?) •—•
começámos a viajar juntos (embora eu só iniciasse
a viagem daí a três meses e ela daí a três meses mais
um. ano). E como- nenhum de nós sabia que em Porto-
fino não há praia com areia, deitámo-nos na areia
branca e fina de Portofino a apanhar sol (mediterrâ-
neo, chamávamos a esse sol), mergulhámos naquelas
águas para nós necessariamente quentes.
64 AUGUSTO ABELAIRA B O L O R 65

E u ou ela? Um de nós. Um de nós sentiu a exces- pisano. Mas é românica. Amei o românico pisano, as
siva proximidade do outro — o sol e a areia morna suas colunas, amei o Nicolo Pisano e até o Pisanello,
e o mar azul e as verdes colinas amoleciam nos nossos em quem o sangue de Pisa corre no nome bem mais
corpos certa cerimónia convencional que, apesar de do que nas veias. Sei que perto da torre há um café,
tudo, deveria ainda circular-nos nas veias (conversá- um café a uma esquina, e amei o café desse café. Amei
vamos pela primeira vez) e então, bruscamente, levan- o Masaccio do museu de Pisa, embora nunca tenha
támo-nos — ela sacudiu a areia, o sol, a água crista- visto nenhuma reprodução.
lizada na penugem transparente que lhe cobria as — Amou o Triunfo da Morte no Campo Santo?
pernas. Subiu para o comboio, subimos para o com- Viajávamos agora não já com aquela intimidade
boio, chegámos ambos a Pisa (ambos, nem sempre; repousada e solar que nasce de dois corpos deitados
às vezes ela falava como se viajasse sozinha). Vestia ombro a ombro nas areias finas e brancas de Porto-
uma saia azul, uma camisola amarela — um lenço fino, mas, pelo menos, não éramos dois desconhecidos
branco nos cabelos. que se cruzam num museu e por instantes trocam
Dizia: olhares, perguntam a si mesmos se não seria bom
— Desejar ver a Torre de Pisa é um pouco vulgar . conhecerem-se, mas passam adiante, separados pelo
e o meu amor por Pisa começou assim vulgarmente. acanhamento e pelo acaso que os fez nascer longe um
Depois foi-se completando com o baptistério e a cate- do outro. Lado a lado, desconhecidos embora, olhando
dral. E como ambos eram de mármore branco apai- todavia as mesmas coisas, uma acumulação de homens,
xonei-me pelo branco. Ou talvez as fotografias enga- de mulheres, de cavalos, de cães, de amigos, de ini-
nem, o tempo roubou-lhes a brancura... Mas assim migos, de Morte (com uma grande foice).
vejo Pisa: uma grande praça com relva muito verde Junto de mim, sem ouvir a minha voz, mas falan-
e alagada onde sem querer hei-de molhar os pés do-me, conhecendo-me portanto, ela dizia:
— (mas seria eu, Humberto, que havia de molhar os — Também amei o Triunfo da Morte antes de
pés, mais tarde, não em Pisa, mas no Pátio de los ver a reprodução num álbum sobre a Toscana que
Naranjos em Sevilha) — e os três edifícios muito só muito mais tarde ofereceram ao riieu pai. Não seria
brancos e alinhados... tal qual eu o imaginara porque eu não imaginara
Encostara-se a uma das colunas do Cais das Colu- nada, amava-o simplesmente, pois tudo em Pisa era
nas. Por instantes olhou em volta, como a procurar para mim a felicidade completa, o absoluto, a bran-
o mármore branco de Pisa, e continuou: cura ideal...
—^ Se a catedral fosse gótica eu teria amado o gótico
3 - Bolor
B O L O R 67

umas às outras as minhas palavras, nesse caso eu posso


mover-me em todas as direcções do tempo, Voluntaria-
mente? Que talvez nessa futura página cento e quinze
um passado terrível, desconhecido, aguarde a minha
caneta.

10 de Fevereiro

Olho, volto a olhar para este papel ainda inteira-


mente branco, falto ao meu compromisso de nao reler
tão cedo o que aqui foi há muito escrito, regresso
duas páginas atrás, vejo-me um mês antes debruçado
sobre essas folhas então ainda por escrever, olho-as
como então as veria, papel branco destinado a acolher
o futuro, o meu futuro, e de súbito espanto-me por
saber hoje que tais páginas, um mês antes destinadas
ao meu futuro, acabaram por acolher um passado de
quase vinte amos, o meu primeiro encontro com
Julieta (um nome falso, vim depois a sabê-lo, falso
e inventado não sei se pela Catarina se pela Maria
dos Remédios). Folheio de novo (quantas vezes folhea-
rei de novo?) a página cento e quinze, agora sem
a certeza de que nela, só porque no espaço vem depois
desta, seja o futuro que me espera — descubro que,
se estas folhas são o tempo vazio, o fio visível (que
os acontecimentos hão-de tomar invisível) a prender
11 de Fevereiro 12 de Fevereiro
Falto à minha promessa, Humberto, recomeço: :— Quem fala? — Uma voz feminina.
vejo-te, não sei (como poderia saber?) se torturado ou Não gosto de me confessar a desconhecidos e res-
não, mas, de qualquer maneira, apreensivo — e ignoro pondi com o número do meu telefone (meu, quero
porque não te abres com a tua mulher, porque não dizer, do meu pai — eu andava pelos dezanove anos).
lhe perguntas a verdade: eu dir-te-ia a verdade. Tal-, Houve uma hesitação, um sussurro (suspeitei — sus-
vez nos separássemos, talvez não. Mas uma sombra peitei bem — que havia mais de uma pessoa no outro
desapareceria dos nossos sonhos e ao menos uma vez lado da linha). E depois:
na vida teríamos sido absolutamente sinceros, eu sen- — É de casa do Daniel Marques?
tir-me-ia finalmente liberta. E não te digo a verdade Não sei porquê, respondi:
— eu que te amo, Humberto —, pois não tenho a cer- — Sou eu — sabendo bem que ela (elas?) sabia
teza de que desejes sabê-la, talvez prefiras a mentira. bem que eu não era o Daniel Marques (sabendo- bem
Ou não: talvez prefiras a suspeita, talvez seja a sus- que o Daniel Marques não existia).
peita que dá sabor à tua vida. — T u ? — Passaram-se alguns segundos, as vozes
abafadas repetiram-se. — Ah, sim, reconheço a voz...
— A hesitação de quem não reconhecia a minha voz.
Vinte anos depois que devo pensar? Nesse ins-
tante decidia-se toda a minha vida^—e como pude
eu vivê-lo sem dar verdadeiramente por ele? Um
acaso... Como veio o telefonema dela (delas) bater
à minha porta?
; 70. :; AUGUSTO ABELAIRA

_ Sou a Julieta —• disse, hesitante. E combinámos


um encontro para o dia seguinte.
Um acaso? Posso acreditar numa ideia tão absurda
como a do acaso em vez de pensar que não há acaso,
tudo pode ser matematicamente previsto, só a nossa
ignorância nos impede de tudo prever? E antes desse
telefonema já a minha vida estaria inscrita na totali-
dade dos átomos do universo, a ligação telefónica
errada foi apenas o ponto conhècível do cruzamento 13 de Fevereiro
dessa vida com as vidas da Catarina e da Maria dos
Remédios, muito antes de havermos nascido, muito Pergunta-me, Humberto, o que faço neste mo-
antes de Bell ter inventado o telefone, quando o mun- mento e responder-te-ei — mas tu, mergulhado na lei-
do ainda emergia do caos, mas...? tura, não terás levantado entretanto os olhos para
mim, não terás percebido q u e estou a escrever no teu
diário? Adias para amanhã a curiosidade (a curiosi-
dade que não tens), fechar-te-ás depois em silêncio
mais uma vez. Ouve, serás obrigado a ler, mesmo
que não queiras: por q u e razão eu, amorosa de ti,
desejaria — desejo — confessar: enganei-te, mas enga-
nar-^te não tem aqui o sentido habitual da palavra
(provavelmente esse sentido habitual da palavra é sem-
pre excepcional). Embora os jneus encontros com
o Guilherme signifiquem para mim uma coisa im-
portante, essa importância não é a que serias levado
a atribuir-lhes se viesses a descobri-los, Representam
somente: tu, o centro, o fim da minha vida, não és
tudo — mas poderás, poderá alguém ter a pretensão
de ser tudo?
Não és tudo: além de ti há muitas coisas, como
sabes (música, livros, jornais, convivência, solidão).
72: AUGUSTO ABELAIRA

O Guilherme faz parte dessas coisas sem as quais eu


não poderia viver. E vivo somente com meia coragem,
desejosa há muito tempo de falar-te assim (mas hesi-
tando: sofrerias, não o ignoro).
Terás coragem de aceitar que não és tudo — tu,
fatalmente sabedor de que não podes ser tudo?

14 de Fevereiro

Nesse primeiro telefonema, um telefonema de


acaso, um telefonema entre desconhecidos, combiná-
mos um encontro. E u levaria um volume de Proust
debaixo do braço e assim foi, assim nos conhecemos,
assim falámos da nossa viagem a Pisa. Mas nesse dia
ela não quis combinar novo encontro (desiludida
comigo, eu que tanto procurara deslumbrá-la?) e pro-
meteu telefonar-me. Com que impaciência esperei
durante quinze dias essa chamada, ignorando se tal
demora significava interesse ou desinteresse. Mas o
telefonema acabou por vir, ficou decidido que nos
veríamos no dia seguinte, à esquina de Alexandre
Herculano.
Lembro-me,. vejo-me,como se estivesse fora de
mim próprio e de fora de mim próprio pudesse obser-
var-me sentado e impaciente numa esplanada, atento
à paragem do carrO' eléctrico. E insensivelmente já não
me vejo de fora de mim próprio, insensivelmente
estou agora a ver com os meus olhos de" então uma
rapariga que descia de um táxi •— uma saia travada.
74 AUGUSTO ABELAIRA

uma camisola vermelha, Olhou em volta c o m O se pro-


curasse alguém, consultou o relógio, e ficou à espera.
Um cabelo escuro, escorrido para trás, preso depois
por um lacinho. Esguia. Um nariz pequeno, os lábios
por pintar. Impaciente como eu — à espera de quem?
Volta-se para mim e vê-me, isto é: sinto-me visto,
a sensação de que, ao olhar-me, ela me encontrou
de facto, pois o seu espírito já estava anteriormente
virado para a minha pessoa — e eu não era observado 15 de Fevereiro
por acaso, como um dos dois mil objectos ali presen-
tes. Desvia os olhos (tem um nariz pequeno, está de Ela tinha dito:
perfil e eu penso na princesa de Trebizonda do Pisa- — Como tens passado desde o outro dia?
nello), mas instantes depois volta a observar-me —• sou E eu respondi (não olhei para ela enquanto res-
eu, não posso ter dúvidas, que os seus olhos pro- pondia, observava uma rapariga vestida de azul e com
curam. Quase sem pensar levanto-me, aproximo-me um avental branco debruçada numa varanda a bater
dela — aparentemente à minha espera. Avança tam- um tapete):
bém na minha direcção, a mão estendida: — Da última vez tu eras um tudo-nada mais
— Daniel? baixa...
— Daniel— repito, eu que não me chamo Daniel. — Mudo de corpo como quem muda de ideias,
— Não te tinha visto. - , mudo de ideias como quem muda de corpo. •— Receou
— Esperava-te há mais de meia hora. •— Não és talvez o tom pretensioso da frase, emendou-a. — Hoje
a mesma do outro dia, não é a ti que eu espero, penso agrado-te mais?
.sem compreender. — Não sei — réspondo-lhe com prudência. — No
-—Como tens passado desde o outro dia? outro dia... Onde ficou já a nossa conversa?'—Não
é uma pergunta policial para saber se ela está no
segredo, aceito que não há ali mistério, entrego-me
sem espanto aos acontecimentos (amanhã talvez o sol
nasça a ocidente, talvez os corpos, deixando de cair,
subam). A minha pergunta tem unicamente a inten-
ção de continuar a conversa interrompida.
B O L O R
79
sobre a mesa, o rodopiar do anel: — Também escre-
ves um diário, não escreves?
Se escrevo I Mas não lhe respondo.
E m frente de nós um grupo de raparigas: vinte
anos por fazer, frescas, saias muito curtas, meias colo-
ridas deixando os joelhos a descoberto, falavam em
voz alta—preparavam-se para um exercício de lite-
ratura alemã, se bem percebi.
25 de Fevereiro — Provavelmente são todas virgens e se pudésse-
mos coser uns aos outros os hímenes delas, depois de
Surpreendo o Aleixo a escrever nujn caderno habilmente os retirarmos, obtínhamos uma superfí-
muito parecido com este (ou deixar-se-ia surpreender cie de quantos centímetros quadrados?-—Estava de
de propósito?).
humor sombrio, procurava brincar, esconder esse
— Um diário íntimo... — digo, vagamente recor- humor. — Um centímetro quadrado por hímen? O u
dado de que já uma vez lhe ouvi uma frase seme- dois, ou três, ou quatro? Tenho de perguntar a um
lhante (vagamente desejoso, agora, ao cobrir o papel
médico, não faço a mais pequena ideia. Elas são cinco:
com palavras azuis, de fugir, ao menos, eu, a escrever
um tecido de quantos centímetros? E eis a grande
um diário íntimo, de transformar este caderno num
descoberta: a virgindade de um grupo de raparigas
meio de me libertar de mim mesmo, de falar interes-
é quantificável, susceptível de tratamento científico...
sadamente dos outros).
Admitindo que em,Lisboa há quinhentas mil mulhe-
— Porque não?
res e que, dessas quinhentas mil, trinta mil são vir-
— Ah, tens vida íntima—acrescento. — Supus
gens, as trinta mil virgens, pode medir-'se o grau de
que não tivesses, só tivesses fofa,
virgindade das mulheres de Lisboa em metros qua-
O Aleixo riu-se •— tirara o anel do dedo e fizera
drados,—Continuava sombrio. — Porque não criar
dele um pião, obrigandcK> a rodopiar sobre o tampo
uma nova indústria de curtumes? Que delicados e
da mesa.
caros sapatinhos não se poderiam fazer?
— Descobri que tinha dentro, precisamente ao
escrever este diário. Se quiseres: sempre suspeitei que Afino a minha voz pela dele:
não tinha somente fora... Mas dentro..., bom, não — Ou flores artificiais de laranjeira.
tinha a certeza. — Parando, com uma pancada seca Não é verdade que são estupidamente antieccv-
80 AUGUSTO ABELAIRA B O L O R 81

nómicos e antiquados os actuais processos de desflo- não fazermos nada... Para dizermos que é difícil hoje
ramento? saber o que se passa... E nós a esfregarmos as mãos com
a crise, porque ela nos pÕe entre parêntesis, nos dis-
* .... ,

pensa de fazer seja o que for, nos obriga a aguardar...


O Aleixo continuou no mesmo tom, mas eu, rela- Viva a crise!
tor fiel desta conversa, fui obrigado a suspender a nar- Precisamente porque não me contra-atacou, per-
rativa, chamado pela Maria dos Remédios (a hora cebi que estava profundamente amargurado (uma
do jantar e, por sinal, um assombroso cozido à por- amargura que nada teria a ver com a política) e não
tuguesa). insisti. Pego-lbe no caderno, aperto-o nas mãos, ava-
— De que falamos nós quando nos encontramos? lio-lhe o peso, interrogo-me sobre o mistério de cento
— disse ele também. . e trinta gramas de papel e de tinta poderem conter
— Sobretudo de política — respondi. uma parte da minha própria vida (e não apenas
— Precisamente. Aliás só dei por isso ao escre- a dele). Continuo:
ver o diário... Estamos quase todos os dias um com — Escrevo há dois meses... Não, não falo de polí-
o outro e pelo menos metade das nossas conversas são
tica, e só agora dou por isso.
dedicadas à política; metade dos meus pensamentos
O anel escapara-lhe dos dedos, parecia uma bala,
também.
o Aleixo acocorava-se nesse instante (mas seria rigo-
— O teu diário é um diário político.
rosamente nesse instante, a memória não me trairá?)
—^De maneira nenhuma! É um diário íntimo,
debaixo da mesa. Quando regressou, disse:
mas grande parte do que nele escrevo é sobre política.
Os boatos, por exemplo. Não sucede o mesmo con- — Escreves um romance...
tigo? — Recomeçara a brincar com o anel, mas nem — Que disparate!
sempre era feliz, muitas vezes tinha de o agarrar já — Qualquer coisa que possas publicar,.. Não
perto da borda da mesa, quase a cair. •— Não falas sonharás com a glória? — continuava a rir-se, o anel
de política no teu diário? enfiado no dedo. — Um diário sem política é um diá-
— Que queres que escreva? Que não faço o que rio falso, pelo menos se for escrito por ti.
devia, que não luto por aquilo em que acredito, que Defendo a veracidade do meu diário:
assim é vergonhoso acreditar e dizer que acredito? — Sabes muito bem, não sou um político, A polí-
Para mais aquilo em que acreditamos está em crise tica interessa-me porque, em última análise, a minha
de aburguesamento, nao é? Argumento precioso para vida depende dela, a política entra-me em casa mesmo
82 AUGUSTO ABELAIRA B O L O R 83

sem eu querer. Mas os meus interesses espontâneos bou de pronunciar a palavra político? No instante em
são outros. que a subida de voz a traduzir uma frase interroga-
— De que natureza? — perguntou, como se eu tiva atingia o ponto mais alto? Num desses momentos
fosse um desconhecido. as cinco virgens levantaram-se. •— Mas como desejo
— Outros! — digo irritado, com vergonha de res- dar expressão a essas minhas débeis virtualidades,
ponder: interessam-me as artes, as ciências humanas... sinto-me frustrado. — «Frustrado também, eu pelo
Mas este diário ignora também as artes e as ciências menos, porque já tenho trinta e oito anos e aquelas
humanas, não é? Pergunto-lhe:—Descobriste, ao raparigas têm dezoito.» — O mundo faz-se sem mim,
escrever, que és um político... sem o meu voto, nem sequer contra o meu voto. Cor-
— Não é bem. Descobri a razão por que a minha tado da vida social, se por vida social entendermos
vida está vazia. a construção de uma sociedade nova, Isso destrói-me,
— Tens ambições políticas e, dadas as tuas ideias, torna-me céptico, céptico até em relação às coisas
sentes-te sem futuro... em que acredito, pessimista. — Os olhos brilhavam-
— Não tenho ambições políticas, apesar de men- -Ihe: —- Vais escrever isto no teu diário? —• Mas não
talmente dedicar muitas horas à política. Nisso estou me deixou responder: — Escreve... •— Parecia ditar:
de acordo contigo, a política é para mim um inte- Através da comparticipação na coisa pública o homem
resse 'Secundário. •— Tirara novamente o anel do dedo integra-se na sociedade, domina a solidão. E essa soli-
(mas insisto; poderei garantir que foi nesse preciso dão não se vence a escfever diários ou livros, ou a pin-
momento?), novamente fazia dele um pião. — Há em tar quadros, compreendes? Não se vence também
mim uma certa energia política, digamos assim. Sinto a conversar no café com os amigos. — Bruscamente:
necessidade, através do voto, através de um ou outro — Não, não escrevo ura diário íntimo. T u é que
artigo escrito para o jornal, sei lá que mais!, de dar escreves.
a minha contribuição à marcha do mundo, isto é,
sinto necessidade de pesar, por pouco que seja, nos
actos governativos, nas grandes decisões... E que
sucede? Não voto, não posso escrever esses artigos...
Se eu fosse verdadeiramente um político ou um revo-
lucionário a sério ainda poderia tentar essa influência
por outra maneira. Mas não. Efectivamente não sou
um político, percebes? — Exactamente quando aca-
BOLOR 85

*
A recusa de Paulo V I , eis o grande tema que
ocupou depois do almoço as nossas conversas (nossas:
não entre mim e a Maria dos Remédios; nossas: entre
mim e o Aleixo e o Ernesto e o Guedes e o R u i ) .
À noite, deliberadamente, falei no papa à minha mu-
lher, mas esse tema, que preenchera hora e meia de
amizade com eles, de perfeito equilíbrio, quase de
2 de Março alegria de viver, morreu à terceira réplica («Ele'aca-
bará por ir a Fátima, não tenhas ilusões)), disseste tu),
O Aleixo disse bem, todos os dias leio o jornal e entregámo-nos ambos às nossas leituras. Por que
com atenção, ouço notícias, converso- acerca de polí- razão as conversas morrem entre nós, por que razão
tica. Se dentro de dez anos voltar a ler estas páginas o convívio com os meus amigos me dá uma plenitude
não encontrarei nelas grande parte do que mais me que tu não me dás, por que razão ao conviver cora
preocupa, não encontrarei nelas o que verdadeira- eles me sinto feliz — e quando olho para ti, quando
mente tem importância, o que me ultrapassa. estou ao pé de ti, imediatamente sinto incompleta
Por exemplo: segundo os jornais, Paulo V I acaba a minha vida?
de nomear o cardeal Costa Nunes seu legado às come- Bem sei: estaria incompleta mesmo sem ti, não
morações do cinquentenário de Fátima •— e isto, ape- és tu a causa do fracasso, mas com os meus amigos
sar dos títulos em contrário, é um balde de água fria não dou por ele, contigo sinto-lhe constantemente
em certos meios, que contavam com a vinda do pró- a presença,
prio papa. Visita que teria um significado muito espe- E eu nunca te pedi que fosses a consciência do
cial para a situação política portuguesa, visita que meu fracasso, Maria dos Remédios!
seria assim, indiscutivelmente, o beneplácito do papa
à orientação do estado novo. Mas agora a nomeação
de um representante é a prova provada de que não
virá — com tudo o que uma tal atitude implica.
BOLOR 87

— Depois de te separares da Catarina fugiste ao


casamento durante cinco anos. Não sabes porque vol-
taste a casar? — Emergia do fundo baço dos móveis
e das pessoas, sobrepondo-se, mancha azul, a todas as
coisas, e apeteceu-me afagá-la. — Casámos porque gos-
távamos um do outro..,
— Gostávamos, pretérito imperfeito?
— A minha frase descrevia um acontecimento pav
7 de Março sado, não se referia ao presente.
— E és capaz de conjugar o verbo gostar no pre-
— Nasceste de novo quando casaste comigo? —
sente do indicativo? — Mas não quis saber da res-
Decidira jantar num restaurante, na companhia da
posta e continuou: — Gostamos um do outro... E que
Maria dos Remédios, com a intenção de melhor a ver,
é gostar um do outro?
de melhor a conhecer, sabedor de que em casa ela
— Que é gostar um do outro? De resto, o meu
' se dissolvia no meio da mobília, era um móvel a jun- •
caso talvez não seja inteiramente igual ao teu. Casaste
tar aos outros móveis, um objecto indistinto, um
uma vez, eu duas... E quem sabe se eu não teria medo
objecto de todos os dias. Aqui, mesmo fisicamente,
de envelhecer sozinho? Não é isso... Casei contigo
a Maria dos Remédios avultava entre as outras coisas,
para nascer de novo. Mas qualquer coisa fracassou
precisamente porque as outras coisas, ainda não ven-
e não sei onde está a causa, A culpa não é tua, não
cidas pelo hábito, também se tomavam visíveis, cheias
é minha. Ou é minha. Porque desejava eu nasceir de
de pormenores. Impossível não dar pela Maria dos
Remédios. novo? Não me sentia satisfeito. Ouve: sabes, o meu
primeiro casamento foi uma catástrofe. Não, não inte-
—• Se nasci de novo? — Os longos cabelos caindo
ressa. .. Deixa-me repetir: casei contigo porque não
sobre os ombros azuis do vestido.
— Porque casámos? — Nem era a primeira nem estava satisfeito com a minha vida e pensava poder
seria decerto a última vez que lhe fazia esta pergunta. renová-la, poder renovar-me. Ou renovar o tempo,
— Não falo do nosso caso, do meu e do teu, falo do voltar ao dia da criação. São muitos os povos primi-
casamento em geral. — Voltei a trás: — Não, não falo tivos que fogem uma vez por ano ao viver quoti-
do casamento em geral. Falo do nosso caso. diano para voltarem ao tempo da criação. Nós, civi-
AUGUSTO ABELAIRA
88

lizados, sabemos somente caminhar a direito, isto é,


envelhecer.
• E l a interrompeu-me:
— Desejas nascer de novo ou desejas morrer? —
Sorria, brincava sem brincar, nítida e azul no fundo
esfumado da sala. — Porque queres morrer?

15 de Março
Não me dás tudo — e é normal que assim .seja
(ninguém dá tudo, neste mundo não há absolutos).
Mas que devo entender pela palavra tudo} Para
a nossa mulher-a-dias (penso com vergonha) não h á )
quase nada.
Mas então que é que tu não me dás e que o Gui- •
lherme (já depois de ser casada contigo) provisoria-
mente me deu? Será uma certa sensação de risco, uma
certa necessidade de quebrar uma vida mais ou menos
equilibrada, mais ou menos sem perigos — eu que
não me atrevo a fazer alpinismo ou a guiar automóvel
a mais de noventa à hora?
Ao que tu não me dás chamarei X .
Ao que tu me dás, Y .
E então: X -t-Y = T U D O .
E então: T U D O - Y = X .
Que é esse X que tu não me dás?
17 de Março 19 de Março

Mas X não é uma coisa só. X é decomponível em Ontem não te disse: aquela conversa com o Aleixo
a, em b, em c, em d... (porque lhe tenho chamado Guilherme?) passou-se
Por exemplo, a: no atelier dele. E se escrevi nestes últimos dias (se vou
O Aleixo, o teu amigo Aleixo, disse-me ontem: escrever hoje) o- que escrevi (o que vou escrever)
— Porque não estudas, porque não recomeças a . é porque tu estás na Madeira e só regressas dentro
cantar, se verdadeiramente gostas mais de cantar que de uma semana. Nem ontem, nem hoje, nem amanhã,
do laboratório? pudeste, podes ou poderás, ler-me — e este adiamento
Não importa se ele acreditava no que dizia ou dá-me coragem, como se uma semana fosse a eter-
não: encheu-me de felicidade. nidade.
. Esqueceste-te, afinal, de que eu gostava de cantar, Fizemos MIOS de casados em 18 de Dezembro, lem-
Humberto? Que cfieguei a estudar em Itália e em bras-fte? E perguntei ao Aleixo o que havia de ofere-
Paris, que cantei duas vezes na Sonata'—embora nao cer-te, embora seja grave uma esposa ignorar (e essa
fosse eu que inventei o estilo do meu penteado, em- esposa sou eul) o que há-de oferecer ao homem
bora a minha saia, o meu casaco, já tenham vindo amado. Pois quê? Sou incapaz de adivinhar os teus
numa revista de modas? desejos?
Pensando bem eu talvez soubesse de numerosas
coisas que te dariam prazer (um álbum com porme-
nores do S, Jorge e a Princesa do Pisanello ou com
os frescos do Palácio Schifanoia ou com o Orfeu de
Monteverdi), mas, além do resto (que é esse resto?).
92 AUGUSTO ABELAIRA

eu estava efectivamente sem dinheiro, não me convi-


nha gastar mais do que uns cem ou duzentos escudos.
O Aleixo disse-me:
— Oferece-lhe o teu retrato.
A traição do Aleixo começou nesse instante? E l a
germinava-lhe já no espírito e exprimiu-se nesse mo-
mento ou terá sido uma explosão brusca?
E u própria... Porque procurei entrar discreta-
mente no atelier do Aleixo? 20 de Março
Ele disse-me: -
— Talvez descubra de novo, ao retratar-te, a mi- Embrulhávamo-nos em palavras grandiosas, sabia-
nha vocação de pintor e abandone a publicidade. mente filosóficas, sociológicas, morais, fingíamos achar
Da segunda vez que lá fui, .perguntou-me: naturalidade naqueles encontros (afinal secretos) e ao
— Disseste ao Humberto? mesmo tempo saboreávamos com prazer a certeza de
Pergunta gravíssima, a levantar um problema ao os saber equívocos.
qual fugi desta maneira: Em casa, Humberto, eu conversava contigo — já
— Deixaria de ser uma surpresa. •— Folheava al- então decidira não te oferecer o retrato, consciente
guns esboços para o cartaz de um novo detergente. de que estava em andamento uma máquina impos-
Eram nove horas, era tarde, e ele insistiu: sível de travar. Uma tarde (a terceira ou a quarta),
, — Que vais dizer hoje? o Aleixo disse — disse-o de forma abstracta, até aí
nada houvera entre nós, além de palavras (mas as
palavras serão nada?):
— Como duvidar? No fim de tudo, ao cabo de
tudo—(<(E que é tudoh) poderia eu ter pergun-
tado) — aguarda-nos a ambos o sofrimento. Mas desta
ou daquela maneira, fazendo ou não fazendo, tudo
o que se faça ou não faça tomar-nos-á também infe-
lizes. Passaremos por momentos bons, descontínuos,
ra:ros, mas acabaremos sempre na infelicidade, a infe-
licidade é o substrato fundamental dos sentimentos.
AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 95
94

Não encontrei palavras para responder, limitei-me pecadoras — (ah, a noção de pecado I) — do que os
a esboçar um sorriso, um sorriso pode fingir grandes gestos, os afagos? Não acredites... Não são inocentes,
coisas — e eu queria dar-lhe a entender que tinha e se há crime nos gestos também o há nas palavras:
uma opinião segura, embora ele não pudesse adivi- elas são o substituto dos gestos. Mesmo quando neu-
nhar qual. tras, mesmo quando falamos da guerra do Vietname
O Aleixo continuava: ou da revolução cultural chinesa ou duma fita ou
— Neste instante sou feliz, se o não fosse não esta- dum livro, as palavras estão carregadas da intensidade
ria contigo. Evidentemente, quando se inicia uma dos gestos. — Encostara-se à janela, de costas voltadas
viagem é porque, apesar de tudo, apesar de teorica- tanto para o meu retrato como para mim. — EscOn-
mente pessimistas, pensamos vir a alcançar a felici- demo-nos atrás delas supondo que assim cobrimos
dade. A felicidade total. a nossa nudez. Mas quando nos escondemos mentimos.
Encostado a uma parede, o desenho de um cavalo Falava friamente como se não fosse de nós que
vitorioso, cheio de força — mas ainda sem letras. falasse e quando eu lhe respondi que nem sempre
— Que representa este cavalo? — perguntei. as palavras substituem os gestos, disse-me:
. —Aspirina, vinho do Porto, uma nova fibra sin- — Neste caso substituem. — Continuava afastado
tética, não me recordo já. de mim, encostado à janela, continuava a falar como
E no dia seguinte, dubiamente: se nós não existíssemos.
— Continuas a esconder do Humberto o teu Atrevi-me:
retrato? . ; — Gostas de mim? — Sentia-me segura, com a sen-
— A esconder? . , sação de ter vencido a crise, convencida de poder desa-
— Sim. fiá-lo sem perigo (depois vou-me embora, pensava).
— E tu? Não és amigo dele? Ainda uma vez ele recuou — não se atrevia a men-
— Às vezes sinto-me um canalha. — Era uma de- tir inteiramente (é um tímido, embora utilize a timi-
claração de amor. i . dez como a sua melhor arma ofensiva).
— Não — respondi. —Gostamos de conversar um — Tenho-me feito essa pergunta muitas vezes.
com o outro e nada mais — recusava-lhe a declaração — E a resposta? — Este jogo fascinava-me, Hum-
de amor. — Se não digo nada ao Humberto é porque berto.
ele seria capaz de imaginar o que não existe. — Ei-la: pensando bem ainda não gosto de ti.
Apertou o cerco: j E provavelmente nunca gostarei... — Insistia em refe-
— As palavras, as. trocas de palavras, são menos rir-se a nós os dois como se lhe fôssemos indiferentes.
96 AUGUSTO ABELAIRA

— Aliás, gostaria de gostar... Mas se gostasse, o amor


não duraria muito tempo, Conheço o meu passado,
conheço-me bem.
— Quanto tempo? — Extremamente calma, como
se este diálogo também não tivesse nada a ver comigo.
T ã o calma que pude observar de novo o tal cavalo
vitorioso. Já tinha letras, o Aleixo pudera portanto
trabalhar desde que eu o deixara (ao contrário de
mim, que fora incapaz de fazer fosse o que fosse). 23 de Março
— Três meses? — Virara-me as costas, voltara-se
para o meu retrato, falava com ele e não comigo (tal- Muito bonita, algo teatral, encostada ao rádio
vez por isso eu me sentia tranquila). — Nunca o disse (Quinteto para Clarinete e Cordas de Mozart). Num
a nenhuma mulher: prometo-lhes sempre um amor gesto cujo significado nem sei bem se mediste (possi-
eterno. Engano-as... velmente não) fechaste o rádio, fechaste o Mozart
Levantei-me e fui buscar a mala. O Aleixo enca- (também não sei porquê pusera-me a desejar furiosa-
rou-me, finalmente: mente aquela mulher tão bonita e de lábios verme-
— Vais-te embora? lhos, mas logo me senti envergonhado ^—de quem?
— Vou. de quê?). Não ousei aproximar-me de ti, sentia estu-
— E se eu tivesse mentido, se.., pidamente a mais o prazer que me darias (eu próprio
— Mas tu dizes a verdade para mentires melhor, me sentia a mais neste mundo). E ficámos os dois em
não é? — Já na porta: — Vou dizer ao Humberto que silêncio, recomecei a trabalhar, e agora, vinte minu-
me estás a retratar. tos depois, escrevo estas linhas. Mas não continuo, vou
poisar a caneta quando terminar de escrever a frase
em que tenciono dizer que vou poisar a caneta.

í — Bolor
BOLOR 99

de mais profundo, de mais verdadeiro, de mais puro,


nas nossas almas. E não nos envergonhamos de sofrer,
não nos envergonhamos de ferir assim aqueles que
verdadeiramente sofrem na própria carne! Passo
a vida a sentir-me desgraçada, eu que só porque não
tenho os cinco filhos da nossa mulher-a-dias, nem
o marido dela, nem fiz dezassete desmanchos a frio,
deveria sentir-me um ser privilegiado! Juro de hoje
em diante acolher tudo quanto me suceda como a feli-
24 de Março > ? cidade completa, felicidade se a comparo com a vida
Ontem à noite segui com atenção todos os teus daquela mulher, com a vida dos camponeses da Bolí-
gestos, Humberto. Folheaste cuidadosamente este via, com...
caderno de diante para trás, à procura da primeira — Espera!—disseste tu.—Antes de mais nada
página em branco, de modo a que os teus olhos não os olhos, deixa-me ver bem os teus cabelos. E talvez
fossem obrigados a ler as minhas palavras. E depois eu nunca os tenha visto com toda a atenção e não só
escreveste —que estarias a escrever? Mas agora já sei com atenção: retirando desse olhar toda a felicidade
(sei até que me tratavas umas vezes por tu outras por possível. Deveria olhá-los um a um e demoradamente
ela): «Não ousei aproximar-me.» Porque escreveste saborear a felicidade de poder contemplá-los. Que-
esta frase, uma frase mentirosa? res?... Nenhum deles é igual, são todos diferentes.
Preferias que tivesse sido esse o desenvolvimento Saberei vê-los, apreciá-los, cabelo por cabelo? Não me
da cena que nos colocou frente a frente (tu sentado cansarei?
à secretária, eu encostada ao rádio)? Esse, e não o que Ousaste, foi bom que ousasses.
veio a ser?
Na realidade não fechei o Mozart que já deixara
de se ouvir há muito tempo. E u dizia (volto a trás
e repito por palavras novas o que dizia):
— Sofremos por não ter uma casa fora de Lisboa,
um Jaguar, uma máquina fotográfica com célula
fotoeléctrica acoplada, e sei lá quantas máquinas mais
que fatalmente não podem corresponder ao que há
BOLOR 101

seguinte, escreves num caderno igual a este (este é que


é igual ao teu). E eu — sabes? — reconstituo o teu
diário, procuro meter-me na tua pele para imaginar
o que escreves. Se o faço, se procuro transformar-me
em ti de modo a adivinhar o que em mim, tua mulher,
me escapa, é afinal porque te... Suspendo a caneta,
não deixo escorrer sobre o papel a palavra que dela
ia a desprender-se, substituo-a (ouves-me, tu de quem
escondo religiosamente este caderno?) por estoutra,
Sem data
também verdadeira:
Levantas os olhos desse fascículo (Os Descobri-
mentos e a Economia Mundial), perguntas-me:
— Que estás a escrever?
Não a substituo, E nem te direi •— continuas a ler
Respondi-te com a primeira ideia que me veio o Magalhães Godinho que neste momento o rádio
à cabeça: transmite o Concerto para a Mão Esquerda. Ouvi-lo-ei
— Tomo notas para tima história do bel-canto em sozinha e dois minutos antes de o concerto terminar
Portugal. chamarei a tua atenção para o que perdeste.
Ficaste espantado (mas não sabes que tenho o curso
do Ck>nservatório, que cheguei a estudar um ano em
Itália, que cantei na Sonata, que não era inteiramente
má em Faure, Debussy, Duparc, Chausson?). Espan-
tado, pois não acreditas em mim, achasse incapaz.
E com razão, nunca saberia escrever sobre o bel-canto.
Mas tenho escrito sobre ti •— acreditas? —, já enchi
cento e quinze páginas como se eu fosse tu, cento
e quinze páginas à procura de saber o que tu não
me dizes—a tua vida íntima, o fundo inviolável da
tua pessoa.
Explico-me .melhor: tens um diário, não tens?
Muitas vezes à noite não estudas os processos do dia
Sem data 27 de Março
As duas páginas anteriores, e também esta, não Logo à noite vou deixar este caderno em cima da
foram, escritas dej>ois da cento e catorze, como seria tua secretária. Não, vou pô-lo dentro da tua pasta.
lógico, mas em dez de Dezembro. E quando amanhã Queres dizer-me depois se ele é igual ao que tu escre-
(onze de Dezembro) começar este diário cheio de preo- ves? E desigual somente num ponto: terias respon-
cupações pelo destino que me aguarda na página dido aos meus apelos.
cento e quinze, então ainda branca — como- hei-de Teiias verdadeiramente?
escrever —, mentirei escandalosamente. Porque essa
página já não será pertença do futuro, não aguardará
um destino impi^visível (coisas de cortar o meu cora-
ção e o coração do mundo), estará escrita há vinte
e quatro horas, será o passado;— foi a primeira deste
diário a ser escrita, e esta é a terceira.
BOLOR lOS

Maria dos Remédios..., que és assim e assado)), mas


não sei. A segunda pessoa que sempre me ocorre é a
tua: ((Sabes, Humberto, que eu sou assim e assado?»
E pelo próprio facto de me dirigir a ti, já não sou
bem eu.
De súbito, à falta de saber o que faça, sinto outra
vez vontade de me trocar por ti, de procurar na tua
primeira pessoa o segredo verdadeiro. De escrever, em
28 de Março busca de não sei o quê: ((Eu, o Humberto, que por
momentos fingi ser a Maria dos Remédios, escrevo
Mas à custa de querer pensar como tu pensas, de aqui enquanto ela se debruça sobre Os Dias íntimos,
querer escrever o que tu escreves, acabei por per- escrevo sem ,-coragem de dizer em voz alta o que
der-me de vista. Por descobrir que quase não tenho escrevo: sofro- ou não por ela se ter deitado com
vida própria — a minha vida própria transformou-se o Aleixo? Com sinceridade, e para além do hábito de
em adivinhar quem és, a minha vida própria, mesmo viver contigo, gosto verdadeiramente de ti? Indepen-
quando me limito a pensar, mesmo quando não dentemente de gostar ou não de ti: gostar de ti signi-
escrevo, deixou de estar conjugada na minha primeira fica necessariamente que sofro por te deitares com
pessoa ou até na terceira pessoa referida a ti — mas outro homem? Deitar-me com outras mulheres signi-
numa primeira pessoa que é a tua. fica que não goste de ti?»
E afinal se desisti de escrever em teu nome foi Concluo então: é mais fácil escrever em teu nome,
porque não ia até o fundo, lá esse fundo que tu pró- falar por ti — e para mim, como se efectivamente te
prio desconheces, foi porque permanecia à tua super- dirigisses a essa mulher que eu sou. " '
fície— embora não ignore que nesse sentido sou
perfeitamente realista: tu próprio, ao escrever, não
passarás também da tua própria superfície.
Agora, porém, desejaria conjugar-me na minha
primeira pessoa e não na tua, desejo recuperar-me,
ser eu, independentemente daquilo que tu és — e a
caneta emperra, já não sei escrever. Desejo dirigir-me
a mim mesma, fazer de mim a segunda pessoa: «Tu,
29 de Março 30 de Março
Eu, o Humberto, depois de por meia hora me mas- Digo à Maria dos Remédios:
carar de Maria dos Remédios e de inventar datas fal- — Falámos durante meia hora e liunca dissemos
sas, amo-te profundamente, profundamente até o mais a palavra nós. Nem tu nem eu soubemos ser nós uma
íntimo dos meus desejos? Que bvisco- em ti •— em ti, única vez. • ^
que não representas (e repito as palavras que pus na
Ela hesita, responde (solene):
tua boca, as palavras que imaginei para ti, mas tu
— Esta noite vai chover..., pensamos nós que esta
nunca disseste), que não representas, nem nunca
noite vai chover, mas talvez não chova, Nós sabe-
representaste, tudo para mim? E se não representas
mos que a matéria atrai a matéria na razão directa
tudo: que parte desse tudo representas? Posso cortar-te
das... Ah, Mozart, pensamos nós, que grande músico!
da minha vida e viver exactamente, sem tirar nem
pôr, como tenho vivido até hoje? E Wagner, o prólogo do Crepúsculo dos Deuses,
a entrada da Primavera na Valquíria, as trompas
És insubstituível? Mais: precisaria de te substituir
que marcam o afastamento e depois o regresso do rei
caso te perdesse ou, bem vistas as coisas, nem sequer
precisaria de te substituir porque posso passar muito • Marke, no segundo acto, o come inglês do terceiro...
bem sem aquilo que representas? Nós que somos portugueses, europeus, terrestres, nós
que somos nós...
Suspendes o discurso, olhas para mim, desejosa de
que eu continue este diálogo ao qual propositada-
mente deste um sabor dramático, tão do teu gosto,
tão do meu gosto, e diga: «Continuas a não saber dizer
108 AUGUSTO ABELAIRA

nós e tens prazer nisso», mas fico em silêncio e a


pensar: (cVai-te embora, Maria dos Remédios, vai-te
embora com quem quiseres, deixa-me só [já que eu.
não tenho forças para te deixar], deixa-me só para
que eu recomece uma vida nova.»

31 de Março

Como se o carro estivesse desequilibrado — uma


força que me puxava o volante para a esquerda.
— Uma vida nova!—dizia a Maria dos Remé-
dios, continuando a tecer o seu (meu também) longo
tapete, maior que o da rainha Matilde, subitamente
rico de tons amarelos: — Para que queres nascer de
novo, ser outro homem?
E u seguia devagar, sempre com o volante a des-
cair para a esquerda (chovia, ainda por cima), mas
pensava noutra coisa: terias lido o meu diário, Maria
dos Remédios? Impossível; nunca me esqueci dele
em casa.
— Ouves? — digo, carregando levemente no tra-
vão, ouvindo um barulho leve, não identificável.
— Apesar de tudo, a mortalidade infantil é hoje
menor, vive-se mais, pelo menos na Europa e até na
África. Vive-se mais e foram homens, certos homens,
que fizeram com que se vivesse mais. — A lã amarela,
inesgotável: — Queres ser um novo homem para te
110 AUGUSTO ABELAIRA

juntares a esses homens, é isso? — Inesgotáveh — Que


espécie 3e outro homem desejas ser?
— Não ouves? — Um desequilíbrio que a força
das minhas mãos no volante não pode já remediar,
um ruído que me parece vir lá de trás. E paro, ~ Que
interessa 'transformar-me num outro homem se é para
ficar igual aos anteriores? É isto que queres dizer?
— Tenho a mão no fecho da porta.
— Sim. Desejas simplesmente voltar a viver mo- 1 de Abril
mentos iguais aos momentos que já viveste, brincar
com mulheres bonitas, viajar pela Áustria ou pela Penso em Tchuang-Tseu que não sabia se era um
Escócia? — Falava com uma voz doce (azul mediter- filósofo que sonhava ser borboleta ou uma borboleta
râneo), 'segurava-me pelo braço, eu já tinha entrea- que sonhava ser filósofo. Divirto-me: neste momento
berto a porta. ~ Que farias tu de ti, desse homem sou o Humberto que sonha 'ser o Aleixo ou o Aleixo
novo? Para que serviria ele? que sonha ser o Humberto? Ou o Humberto que
sonha ser a Maria dos Remédios que por sua vez sonha
ser o Aleixo que por sua vez sonha ser o Humberto
que por sua vez sonha... Ou o Aleixo que sonha ser
a Maria dos Remédios que por sua vez sonha ser
o Humberto que por sua vez... Ou a Maria dos Remé-
dios que sonha ser o... Paro e escrevo ao acaso:

«Indiferente aO' ridículo da frase, desejoso de pro-


vocar uma situação dramática, disse-lhe:
— Dentro de 'três meses teremos gasto o amor. —
Senti um arrepio porque me lembrei de que nesse
mesmo momento, numa das suas sessenta surtidas diá-
rias, os aviões americanos queimavam uma aldeia do
Vietname.
Ela respondeu-me (tirara o casaco, vestia uma
112 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 1Í3

blusa de seda crua com botões de madrepérola, os — Crês que os casais nao devem viver juntos. Más
braços cruzados no peito): podíamos viver juntos esses três meses, separávamo-
— Como poderei gastar o que não existe? — Olha- -nos depois.
va-me perturbada, para ela a minha frase não fora Subitamente surpreendi-me a decorar, mais do que
ridícula, a saia castanha cortava-lhe as pernas um tudo- a compreender, estas frases, a decorá-las para depois
-nada acima dos joelhos. — Isso queria eu saber: se as pôr aqui. Talvez (só agora penso nisso) fosse ape-
estou aqui por amor. nas o desejo de se entregar à situação dramática, ao
— E u não queria dizer amor. Teremos gasto o gosto de pronunciar frases (de simultaneamente as
gosto de estarmos juntos. viver), que movia a Maria dos Remédios.
— Não sei. Às vezes penso; se venho aqui por — Não, não há amor entre nós — acrescentou.
amor estou perdoada. Mas se não é? — Sentara-se, eu Pressenti que desejava um desmentido.
sentia-me fascinado pelos botões de madrepérola (e — Não... — disse-lhe, receoso de que a Maria dos
talvez não fossem de madrepérola), desejoso de lhos Remédios gostasse de mim — Nunca amei uma mu-
desapertar, mas não me atrevia, naquela sala ilumi- lher, sou incapaz. Qua,ndO' me encontro contigo ponho
nada pelo sol. — Outras vezes penso o contrário: só uma máscara. Como os primitivos que nos grandes
serei perdoada se não te amar, se estiver aqui sem ritos anuais às duas por três acabam por acreditar no
amor, apenas para encher a vida. Porque nesse caso poder da máscara... sinto-me outro, com outros pode-
não engano o meu marido, como não o engano se for res, já não sou eu... ou sou verdadeiramente eu. Afasto
ao cinema, se der um passeio... — Ficou um instante assim a vida quotidiana, abro um parêntesis na rotina
calada. Depois levantou-se, deu em silêncio duas vol- diária e familiar e esse parêntesis tem, como entre os
tas à sala, arranjou as flores de uma jarra. — Sempre primitivos que se mascaram, qualquer coisa de secreto.
que subo estas escadas 1 — Passara-lhe pela cabeça uma De misterioso. E represento um papel, um papel bem
ideia louca. — Amanhã vamos passar o dia à praia! mais rico do que o meu, bem mais dramático. Porque
E não olharemos para o relógio. — Insistiu: — Quem com a minha mulher, a mulher com quem vivo há
me dera á certeza de que não estamos a brincar, em- tantos anos, de quem tenho dóis filhos, não é fácil
bora estejamos a brincar! Devíamos talvez viver jun- revelar-me tal qual sou ou imagino ser. E l a julga que
tos..; ' me conhece, eu julgo que a conheço. E muitas vezes
— Se nos amamos, cansar-nos-emos dentro de três eu próprio me sinto ser o que ela pensa que sou.
meses. Se não nos amamos seria tolice... Quando estou com ela, mesmo sem querer, faço sem-
Riu-se: "-^ pre, digo sempre, as coisas que ela espera, as coisas
116. AUGUSTO A B E L A I R A BOLOR 117

com as minhas mãos, com os meus lábios, com todo Não me ouviu, eu talvez não tenha chegado a falar,
o meu corpo? E continuou:
O Humberto: — Faz hoje oito dias que comecei. Resolvi diver-
— Não, não tenho vida íntima. tir-me. Abri este caderno a meio, comecei a escrevê-lo
Que também escrevo como se fosses tu a escrever, com a data certa e depois fui escrevendo em direcção
que gostaria ,de comparar o que .ambos escrevemos. à primeira página, em direcção a Fevereiro, a Janeiro,
Que gostaria de te mostrar que sou profundamente a Dezembro. Agora já não tenho mais folhas para. trás,
teu amigo. Profundamente. não posso chegar a Novembro ou a Outubro, agora
— Não tenho vida íntima. Rir-^te-ias se eu te dis- só tenhO' folhas para a frente: Maio, Junho, Julho...
sesse. .. — Olhava-me com ironia. — O meu diário é Quando' chegar ao fim do caderno termino a brin-
uma brincadeira, não o escrevo na minha primeira cadeira.
pessoa, mas na primeira pessoa dos outros. Por exem- — Tamanha complicação, para quê?
plo, na tua. — Talvez esteja a mentir — respondeu.
— Porquê? — Poderei dizer-te que sou profunda- Adivinho: para além dos teus olhos, atrás deles,
mente teu amigo, que amar a tua mulher não lá onde os teus olhos não são vistos, mas vêem, lá onde
é trair-te? '-^''"^ ' tu estás (onde eu não estou), lá onde eu sou objecto
— Divirto-me. De resto é um diário recente. Foste e não' sujeito, estas palavras (mas não sob a forma de
tu que no outro dia me deste a ideia de o escrever palavras) nascem dolorosamente: «Pergunto-me se no
quando me perguntaste se eu tinha um diário, lem- teu diário, Aleixo, escreveste alguma vez o nome da
bras-te? Dessa vez eu preparava o relatório para um Maria dos Remédios, sofro com uma coisa tão simples
cliente. como esta: terás escrito o verdadeiro nome dela ou,
Que pensas de mim? Imagino-^te a dizer-me: «Gos- por prudência e até por delicadeza, preferiste escon-
tas da minha mulher e.,.» Não. Imagino-me a dizer-te: dê-lo — tal como eu faço? Aflijo-me só de pensar que
«Eu e a tua mulher... Mas não= te traímos, pois... o teu caderno possa cair nas mãos de outra pessoa
E posso dizer-te, garantir-te, se duvidas dela: ela gosta e que um desconhecido venha a conhecer a minha
niuito de ti, gosta mais de ti do que de mim. Podes vida através da tua.»
acreditar, é a verdade.» T u dirias: «Enganas-me, é —^Talvez esteja a mentir — repetiu.
certo, mas sofres porque me enganas, e se sofres é por- Se tu morresses eu poderia ir viver com a Maria
que és meu amigo.» dos Remédios? Por um instante, enquanto olho para.
, . — Que pensamos nós um do outro? ti (continuas a falar), não, enquanto penso em ti (estou
AUGUSTO ABELAIKA

a escrever), saboreio essa possibilidade, mas logo me


aflijo: «Viver com a Maria dos Remédios... Desejo-o
verdadeiramente?» Ouço-me em silêncio através desta
caneta e deste papel, ao cabo de nao sei quantos cen-
tímetros de palavras: ((Não morras, não morras.»

3 de Abril
Diz-me num intervalo da política (ela ocupa milha-
res de quil(5metro5 nestas nossas conversas em que só
alguns metros destinamos a nós próprios):
— Hoje pensei: vou abandonar a advocacia.
— Para...?
Não responde. ((Sabes de tudo)), penso, ((estás
a armar-me uma ratoeira, desejas que a tua mulher
se comprometa definitivamente comigo de modo a ten-
tares uma vida nova, finalmente livre e de consciên-
cia descansada. Mas não contes com o meu auxílio,
ouviste? Não' te darei essa liberdade, também quero
uma vida nova, mas sei bera que a Maria dos Remé-
dios — tua mulher não me poderia dar essa vida
nova.»
tico, o tal mundo diferente do mundo esvaziado pelo
hábito... E por isso aqui venho.
Deitados, substituindo por palavras os gestos que
uma hora antes e durante tanto tempo as haviam afas-
tado dos nossos pensamentos. Mas quem falava eras
tu e até me dizias: «Porque te calas?)) Porque me calo?
Murmurava para mim próprio: (cQue procuro eu em
4 de Abril ti, Maria dos Remédios, quando te trago para o meu
atelier} Encher o tempo vazio da minha vida de pin-
A Maria dos Remédios disse-me hoje, e eu senti-me tor falhado que se dedica à publicidade, enchê-lo
verdadeiramente a máscara dela; fecundamente, dar a esta vida um pouco de beleza
— Espantoso que seja muito mais cómodo ser infe- através do amor — ainda que fantasiado — de uma
liz do que feliz. Porque se eu e o Humberto quisés- mulher bonita e inteligente que simultaneamente me
semos... Uma simples questão de esforço, de esforço oferece conversa, conversa envolvente, rica, palavras
persistente, de combate sem tréguas! Sempre que eu que brincam, que se matizam graças a mil subtilezas,
e o Humberto nos dispomos a tal esforço, a ir à busca e me oferecem gestos que se colam ao meu corpo.
de certas palavras sepultadas, perras, difíceis de trazer Encher o tempo: diálogos não somente através dos
à vida por falta de uso...! Sim, quando vamos desen- vasos comunicantes das palavras, mas também dos afa-
cantar ao passado, ao presente, ou até ao futuro, den- gos, da nudez dos corpos a falarem no silêncio das
tro ou fora de nós, palavras que nos permitem parti- palavras, transformados subitamente em linguagem
cipar um do outro, então somos felizes. E aí tens o jogo (de pergunta, de resposta, de entendimento) que vai
bem mais fácil; procuro em ti uma parte da felicidade até o êxtase. Mas ao procurar em ti o êxtase, esta
que não encontro com ele, sabes porquê? Porque estar forma de achar o repouso, de sentir do tempo não
nos teus braços é, de certo modo, mergulhar no tal a abolição mas a presença, a densidade, o peso vio-
mundo imaginário e difícil que dá a felicidade, mas lento sobre os ombros, violarei alguma lei profunda?»
de uma maneira mais simples; não precisamos de — Se eu — dizia ela por cima dos meus pensa-
achar palavras novas, gestos novos; as palavras que mentos — me dispusesse a um esforço, não precisaria
entre mim e ele se; tomaram gastas, ainda são novas, de me encontrar contigo, diria agora ao Humberto
ainda são cristalinas se eu e tu as dissermos um ao em vez destas palavras tão fáceis, outras.,. Quais? Mas
122 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 123

depois de te dizer tudo quanto posso dizer sem esforço, te esforças, porque inventas para mim palavras que
tudo quanto já lhe disse a ele, afinal, que ficará para ainda não gastaste com ele? Será que, afinal, tu...
te contar? Nada... — Voltou a repetir-se; — Sim, com Será que afinal gostas de mim?»
ele e com esforço, vencida a inércia, a preguiça, pode- Poderia dizer^e: não quero, não desejo que gostes
ríamos imaginar milhares de coisas, nascer muitas de mim.
vezes de novo, eu conseguiria impedi-lo de ver em
mim a mulher já conhecida, de ver nele o homem
já conhecido...
— Todos somos desconhecidos uns para os outros
— interrompo-a com um lugar-comum, reconhecendo
naquela linguagem a própria linguagem do Hum-
berto.
— Mas é como se o não fôssemos. Não exploramos
esse desconhecimento, pois é mais fácil fingir que nos
conhecemos. — Beijo-lhe o sinalzinho preto, desejoso,
de lhe dizer: «Como eu gosto de til», mas continuo
a ouvi-la. — Eis-me contigo porque te conheço mal,
porque ainda és um mistério, ainda és imprevisível...
— Conhecemo-nos há quase vinte anos — murmu-
rei, sem levantar os lábios do sinalzinho preto.
— NãO'...— Afastou-me o rosto com brandura.
— Mas se eu quiser, se eu O' observar a fundo, ele
também é imprevisível, é previsível apenas quando
estou desatenta. — E pouco depois: — Tenho ou não
suficiente imaginação, suficiente poder de observação
para prescindir de ti, para fazer da minha vida com
ele um constante recomeço?
Respondo:
—'É verdade, meu amor. — E m vez de: «Isso que
me dizes, porque não o dizes ao Humberto, porque
B O L O R 126

penso. Tranquilo no corpo (contra a minha vontade?),


pus-me a fabricar frases: «Se não sentes remorsos,
então estás morto, és um ser perdido.)) Contra a tran-
quilidade que continua a invadir o meu corpo (e se
misturava nas minhas pernas com a doçura do sol
a entrar pela janela), fui dizendo: «Este diário, estes
traços roxos sobre o papel branco, são a procura do
remorso que não tens.» , t,
5 de Abril Um remorso que vem de longe, que deveria impe-
dir-te há muito tempo de olhar a direito para o Hum-
Distraído, contemplando os telhados de Lisboa e o berto. Um peso antigo (que não tens). Porque traíste
zimbório da Estrela, vendo lá mais para trás uma a confiança do Humberto há quase vinte anos.
nesga do rio — e de súbito pensei: «Sentes-te tran- Ele tinha-me falado do telefonema, da Catarina
quilo?» E r a uma pergunta puramente retórica, a res- e da Maria dos Remédios, dos encontros alternados
posta só poderia ser; «Nãol» Mas a resposta autêntica, com elas — elas que se encontravarn com ele como se
uma resposta que nem precisava de ser verbal para fossem uma só. E então, sem lhe dizer nada, segui-o
se infiltrar em todo o meu corpo, era outra: olhando uma vez, fiquei a saber quem elas çram. Dias depois
os telhados de Lisboa e o zimbório da Estrela, insta- apresentei^ne à Catarina e disse, pegando-lhe no
lado comodamente na minha cadeira, eu sentia-me braço:
perfeitamente feliz, perfeitamente tranquilo. — Nunca cheguei a saber se o Pisanello nasceu
Ontem a Maria dos Remédios disse-me: «Enga- em pisa, ele chama-se Antonio di Puccio di Cerreto.
namos o Humberto, não porque seja mal, indigno, Mas o que me espanta é o seu fracasso em dar aos ele-
o que fazemos, mas somente porque ele não sabe, por- mentos do fresco de Verona uma ordem lógica. No
que sofreria se soubesse, e nós sabemos.que sofreria fundo o São Jorge e a Princesa é uma acumulação
se soubesse. E se mentimos, se em nós não pode haver inorganizada de coisas, o quarto mal arrumado de
confiança, isso é grave, pois não somos piores do que quem tinha muito que dizer mas era incapaz de o dizer
os outros. Se não pode haver confiança em nós, em com princípio, meio e fim. E o que daí resultou!
quem poderá haver confiança? E m ninguém? É ter- Dessa incapacidade nasceu a poesia do todo! Pode
rível...)) perguntar-se, claro: tamanha beleza provém de o seu
«Devias sentir remorsos, pois enganas um amigO)), autor ser um homem ingénuo, sensível, nada intelec-
126 AUGUSTO ABELAIRA

tualizado? Mas não: pelo contrário, a obra revela um


temperamento intelectualizado, um desses espíritos
ique buscam a ordem, o lugar exacto de todas as coisas.
Estranho! Vivendo num mundo que se organizava
racionalmente e desejoso de aceder a esse mundo,
como não teria sofrido o Pisanello, que sem dúvida
nascera com uma sensibilidade atrasada em relaçãO' ao
seu tempo e a Florença? — E u f alava-lhe do Pisanello,
dava-lhe a entender que o Pisanello era eu.
8 de Abril
A Catarina (ou era a Maria dos Remédios?) tinha-
-me ouvido sem uma palavra, sem uma pergunta
Adivinho os desejos da Maria dos Remédios,
— a minha mão a apertar-lhe o braço. Quando me
digo-lhe:
calei, respondeu:
— Quero ouvir-te cantar... -.
— Está bem, Daniel.
Com um breve sorriso (de satisfação? de tris-
Dias depois aproximei-me da Maria dos Remédios
teza?) consultou o relógio. E u também. Dispúnhamos
(ou da Catarina?). Eu, ignorava se a outra lhe teria
de meia hora, mas, precisamente porque o tempo era
dito alguma coisa, ignorava até se, teria dito alguma
coisa ao Humberto. Decidira introduzir um novo pouco, havia já vinte minutos que não sabíamos que
dado naquela máquina de jogar às escondidas (ape- fazer. Conversar sobre quê? Uma certa moleza impe-
tece-^me dizer: naquela combinatória ou naquela má- dia^me de extrair do jornal da manhã um tema
quina de calcular que os três constituíam): fazer-me interessante e a única coisa possível — l e v á - l a para
passar por ele, assim como elas se faziam passar por ela. a cama — poderia magoá-la, dando-lhe a entender que
— No último dia — comecei por dizer (à Maria esse era o meu único objectivo naqueles encontros.
dos Remédios? à Catarina?) — não sei se cheguei Ao menos e n q u a n t O ' cantasse.,.
a confessar-te que nunca vi o Pisanello. Mas afinal n ã o lhe apetecia cantar. Folheava uma
— E u sei, Daniel — respondeu ela. — E u sei que revista em silêncio e eu perguntava a mim próprio:
nunca foste a Itália. em q u e página estarás neste momento? Na vinte e três?
Na vinte e oito?
Mas continuo sem remorsos. — Houve alguma coisa entre ti e a Catarina?
— Alguma coisa c o m o ?
128 AUGUSTO ABELAIRA

— Uma vez disseste: «Ontem deitei-me contigo...


Queres deitar-te hoje outra vez comigo?» — Perguntaste-lhe alguma vez?
— Respondeste: «Hoje não...» — Não... Essa pergunta tem-me perseguido desde
— Tinhas-<te deitado com ela no dia anterior? que casámos. Pergunto-te a ti... — Olhou de novo
A Catarina nunca me disse nada, eu nunca lhe disse para o relógio, poisara a revista, apertava os joelhos
nada. Às vezes sorríamos uma para a outra como se com as mãos.
soubéssemos tudo. Mas que era tudo? Acerca do Hum- — Porque me perguntas a mim o que não te atre-
berto falávamos muitas vezes; o que fazíamos, o que ves a perguntar ao teu marido?
não fazíamos. De ti, nunca. Más a verdade é que tu Continuava com os joelhos apertados entre âs
eras ele. De resto, muitas das coisas que a Catarina mãos, o olhar na ponta dos sapatos.
me dizia passavam-se com qual de vocês? Além do •— Talvez porque ele me respeita, perante ele sou
mais não éramos absolutamente sinceras, embora tivés- obrigada a representar um papel muito diferente do
semos jurado tuna sinceridade absoluta. Ele também que estou a representar diante de ti. Se lhe revelasse
me disse uma vez qualquer coisa como ((ontem dei- certas dúvidas saía, até certo ponto, do pedestal onde,
tei-me contigo». Tinha-se deitado com ela ou estava como marido, se viu obrigado a colocar-me: o pedestal
a mentir para se deitar comigo, já que fazia parte do de uma mulher incapaz de descer a certas perguntas,
jogo continuarmos no dia seguinte o que fora come- uma mulher orgulhosa...—Olhando para mim, as
çado no dia anterior? Decerto ele também disse à Cata- mãos a apertar os joelhos, e transformada numa
rina que se deitara comigo. A Catarina acreditou, dei- mulher pequena, ela que era alta. — Contigo, não.
tou-se com ele? Mesmo contra a tua vontade, no fundo não me res-
Apeteceu-me responder-lhe: ((Porque não nos dei- peitas, não me colocaste num pedestal, sou uma mu-
tamos (nós e agora) era vez de perder tempo com esta lher sem palavra e sem pudor que transgride uma
conversa inútil?», mas perguntei-lhe: regra, uma obrigação moral, e pouco te importa se
— Nunca te deitaste com ele, há vinte anos? — a regra é estúpida, se em si mesma nem é boa nem
Sempre me convenci de que o Humberto conseguira é má. Além do mais, tens a cabeça cheia de ideias
com ambas o que eu não conseguira com nenhuma, acerca das mulheres que enganam os maridos, embora,
e nesse sentido sempre me senti ciumento... Quem por outro lado... — Continuava a olhar para mim,
sabe se eles não brincavam comigo e longe de ser eu mas de pé; encostara-se a uma cadeira, apoiando os
a ditar o jogo estava a ser jogado? cotovelos no espaldar. — Mesmo sem querer, muitas
A Maria dos. Remédios: vezes sem querer, consideras-me uma putain. — Não

5 - Bolor
BOLOR 131

roesse, não lhe tinha tocado para impedi-la — absur-


moralista à velha maneira, embora finjas que não... damente— de pensar que eu não pensava noutra
Para ti, isso até dá um oerto sabor à história: sou coisa), aproximou-se da saída.
simultaneamente séria e não séria, respeitável e per- — Para ti não estou num pedestal — continuou —,
versa. .. — E m vão eu procurava na tua voz ma sinal posso fazer-te perguntas de mulher vulgar: houve
de amargura, embora ela existisse, tenho a certeza. alguma coisa entre ti e a Catarina? — Hesitava, a mão
— Que- lugar ocupo na tua vida? — disse de repente. no fecho da porta, eu encostado à janela. — O Hum-
— Canta um bocadinho. Uma voz tão bonita... berto deu-me a entender que sim... Será porque des-
Faure, Chausson... confia de nós e procura sugerir-me, disfarçadamente,
Cantou: que tu és um sedutor profissional das mulheres dos
— Votre âme est un paysage choisi... — Mas inter- amigos? Será para te desacreditar?
rompeu o fio da melodia: — Para ti não estou num — Tens a certeza de que ele desconfia? Não vejo
pedestal, para ti não estou num pedestal... nenhuma razão para que desconfie...
E u continuava a procurar na tua voz a amargura Apoiara a testa à porta fechada, disse de repente:
(escondida na dobra de uma frase, numa sílaba, numa — Imagina que do lado de lá desta porta, com
entoação), mas não a achava. o ouvido encostado- ao- sítio onde tenho a cabeça, está
— Para ti não estou num pedestal —: continuou —, o Humberto... — Voltou-se para mim a sorrir: — Que
engano o marido, falto à palavra, sou uma mulher sem vai entrar, que tem uma pistola na mão...
coragem para assumir responsabilidades. — Recome-
çou baixinho: — Votre âme est un paysage choisi
I Que vont charmant masques et bergamasques, j
Jouant du luth, et...
— Engano um velho camarada, sempre o enganei,
não posso dar-me ao luxo de te julgar.
— Apanhei-tel Também não te colocas num pe-
destal, no fundo dos fundos consideras-te um canalha,
não é? — Voltando ao Debussy:—Jouant du luih,
et dansant, et quasi / Tristes sous...
Pegou na mala (havíamos conversado durante duas
horas, eu nãO' lhe tinha tocado, embora o desejo me
134 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 135

ainda nada (talvez nunca ache nada) —, segue um. do nosso casamento. Não nos vemos, é isso? Já não
caminho pessoal, alheio ao meu, só tem a ver alguma damos, um pelo outro. — Acrescento literariamente;
coisa comigo porque somos legalmente casados, se — Às vezes nem dou por mim.
o não fôssemos h á muito nos teríamos separado, não — És então feliz, não sofres.
por causa de outros amores, mas porque entre nós — Sim, não sofro-, não- sou feliz.
se perdera (se perdeu) o contacto profundo que tor- Ele;
naria inútil este diário (escrevo em vez de conversar). — Conclusão: muda de penteado, deixarei crescer
A Maria dos Remédios, pressinto-o, observa-me, o bigode.
por entre a leitura da Imitação dos Dias — talvez se — Talvez continuássemos cegos, talvez tu passas-
pergunte a si mesma que estarei a escrever. Poisei nela ses a ser para mim somente um bigode, u-m bigode
os olhos. num. corpo invisível. Devia ser engraçado..., deixa-me
— Vês-me —diz. E perante o meu espanto: ~ Não imaginar-te.
sinto o peso da camisola nos ombros, das saias sobre — Com bigode?
as pernas. Percebes o que quero dizer? Sentes-me? — Não. O bigode apenas e tu invisível. Que fazer
Vês-me? Ou sou transparente, um móvel que o hábito para sermos opacos aos olhos um do outro? -— Con-
já não deixa ver e que só se dá por ele quando está tinuo com o diário dele na mão e recomeço a leitura:
cheiO' de pó ou desarrumado?»
<cPergun-to-lhe:
Interrompo a leitura, repito o que não sei se algum — E tu vês-me? Ou devo deixar crescer a barba?
dia disse: — E eu mudo -de penteado? — Poisa um livro e
— Vês-me de facto? vai ajeitar umas rosas. — Já não nos vemos, é isso?
Ele devolve-me a pergunta (passamos o tempo- a Já não damos um pelo outro.»
devolver perguntas um ao outro, quase nunca nos
oferecemos respostas); Salto meia dúzia de linhas à procura de certa pala-
—^E tu? Ou devo deixar crescer a barba para dares vra (((nada)) dita por mim) e recorheço a leitura.
por mim?
— E eu mudo de penteado? Pinto os cabelos de «Pergunto-lhe depois:
verde, por exemplo? — O restaurante ficara para trás, — Porque não- nos separamos?
estamos em casa., levanto-me para arranjar as rosas — Gostas de outra mulher?
duma jarra que ele me deu há três anos no aniversário — De nenhuma.
136 AUGUSTO ABELAIRA

— Então qual seria a vantagem? Apesar de trans-


parentes, de vez em quando pões um fato novo, eu
um vestido novo... E às vezes conversamos de certa
maneira,.., talvez como agora. Não digo que fiquemos
absolutamente visíveis, homem invisível, mas a trans-
parência deixa de ser absoluta, toma-se translúcida...
E é bom tropeçar numa coisa inesperada,..
Lembro-me de lhe perguntar, talvez sem lógica: 30 de Janeiro
— Gostas de outro homem ?>>
Ao menos por instantes, Maria dos Remédios,
Desvio os olhos do caderno, respondo-lhe: posso deixar de ser transparente a teus olhos, basta
— Gosto, gosto de outro homem, julgo... —Con- dizer-te que escrevo muitas vezes em teu nome (e no
tinuo a leitura: do Aleixo). Basta dizer-te que as datas são falsas: ainda
ontem escrevi nove de Abril quando hoje são trinta
«A Maria dos Remédios olha para mim fixamente,, de Janeiro.
opaca, visível, ressuscitada. Porquê?
— Porque não me deixas então?» Basta dizer-te que procuro avançar como se estas
páginas fossem uma máquina de ver o futuro que me
Fecho o caderno, respondo: aguarda dentro de três ou quatro meses se eu não ten-
— Se calhar ele não me quer... — Reabro o ca- tar qualquer coisa, um gesto, uma palavra •—ler-te
derno, leio em voz baixa: este caderno, por exemplo. Mas valerá a pena tama-
nho esforço, posso eu ter a certeza de que este futuro
«— Ele também acabaria por se tomar transpa- . provável é pior do que qualquer outro?
rente.» E no entanto, antes de ontem, resolvi salvar o nosso
casamento, convidei-te a jantar fora (somente meio
bife, hum café, este mês não ando muito desafogado,
tive mesmo de pedir dinheiro). Mas fui adiando a con-
versa e a dada altura (estávamos no queijo, um queijo
que parecia feito de borracha) tu disseste:
— H á quanto tempo casámos?
138 AUGUSTO ABELAIRA B oLo R 139

Uma pergunta puramtente retórica, sabias que há — Não era bem esse o sentido da minha pergunta.
seis anos, mas por isso mesmo acrescentei: — Num gesto infeliz deixara cair o garfo no regaço
r — Há seis anos: dois mil e nâo sei quantos dias. e examinava agora o vestido. Enfim sossegada (des-
— Menos... — E eis a resposta que de diante para feito o receio da nódoa) e pondo o guardanapo sujo
trás provocara a pergunta: — Grande parte desses dias em cima da mesa, acrescentou: — Continuas a gostar
não estivemos casados, metade deles dormimos. Casá- de mim?
mos portanto há pouco mais de três anos. — Passei o dia a interrogar-me: que é gostar de
— Ainda não tens vinte anos? uma mulher?
Ela, sem responder: — Não achaste a resposta.
• —Arrependeste-te. — Descansa, acabei por concluir que não me arre-
— Não... — Mas o casamento (disse de mim para pendi. Mas os homens (os homens, quero dizer, os
comigo ou escrevo agora), a vida em comum com uma homens e as mulheres) casam-se por amor ou porque
mulher, corresponde a uma necessidade íntima pro- é costume? Em suma: nós amamo-nos, Maria dos
funda, radicada no meu peito, ou é uma simples imi- Remédios, porque nos amamos do fundo da alma ou
tação dos outros, o desejo de f>ertencer, não à mulher. porque amar é um costume na nossa civilização? Isto
mas ao rebanho, à civilização que eles construíram, de é importante e não encontro resposta. Amo-te, sofre-
não ser um bicho de duas cabeças no meio de bichos ria muito se não gostasses de mim, mas... Sofria por-
com uma só cabeça? • • que sim ou porque é hábitoi sofrer? Eis o problema:
Ontem, durante o jantar (mas em nossa casa), falo português porque à minha volta se fala portu-
disse-lhe: guês, falaria a língua dos bororós se tivesse nascido
— Passei o dia — exagerava, mas o exagero é a arte entre os bororós. Andaria de gatas se tivesse sido
de nos fazermos entender uns aos outros — a pensar recolhido por uma loba.
na tua pergunta... — NãO' te rales. Preocupas-te por falar português
— Se costumas pensar muitas vezes na Catarina? e por não andar de gatas?
— Não. Se me teria arrependido de... — Nunca me teria passado pela cabeça casar se...,
— Ah, e arrependeste-te? se esse não fosse o costume. Mas quer me tivessem
— Não é isso. Tudo depende do que eu procurava ensinado, quer não, eu teria sede, teria fome, teria
ao casar-me. Por exemplo: se procurava a fortuna, sono... Estas coisas são minhas, a sede, a fome, o sono,
a possibilidade de nunca mais trabalhar, então arre- o desejo de entrar dentro duma mulher. O resto,
pendi-me. o amor, o casamento... Percebes? No meu nome, na
AUGUSTO ABELAIRA

minha pessoa, o amor e o casamento não estão con-


tidos, são acidentais, não me reconheço neles. T a l
como o ciúme, o sofrimento... Mas não sei viver sozi-
nho, sinto-me bem por viver contigo — acrescentei
depois de uma pausa, E não me atrevi a dizer-lhe:
há uma outra resposta possível e que mergulha as
raízes no íntimo de mim próprio e entre as pernas:
o casamento é uma forma cómoda e respeitável de
poder dormir com uma mulher, seja ela quem for; 10 de Fevereiro
evita, além do mais, o esforço da procura, sempre que
o desejo te rói, a estopada de teres de representar uma Uma noite destas voltámos à Linha. A Maria dos
comédia, fingir amar quem não amas. Remédios estava particularmente bonita (porque mu-
dara, de bâton ou de penteado?'—não consigo, assim
de memória, saber porquê). Antes, ao chegar a casa,
quando abri a porta, ouvi-a cantar:

Et peu à peu, il m'a semblé) tant nos


membres étaient confondusj que je devenais
toi-méme ou que tu entrais em moi comme
mon songe.

Não a interrompi (ela não dera pela minha che-


gada) e deixei aberta a porta do escritório para melhor
a ouvir. A Maria dos Remédios tinha com toda a cer-
teza a partitura diante dos olhos e, mais tarde, já na
sobremesa, quando lhe perguntei se só costumava can-
tar na minha ausência, respondeu:
— De certo modo, tu representas para mim a razão
do meu fracasso. — Sorria. — Sem ti, quem sabe?,
teria sido uma grande cantora. — Continuava a sor-
BOLOR 143
143. AUGUSTO ABELAIRA

rir. — Sem ti também não teria sido uma grande can- sociedade, cheio de paixão? Tens a certeza de que não
tora, pois não? Adiante. És o meu álibi. — Sorrindo és um caso perdido e irremediável? E que, ao fim
sempre: — Aí está mais uma razão para te amar: des- e ao cabo, cheio de individualismo, não acabarias por
culpo-me contigo, não realizei a minha vocação por te desgostar de Cuba? •
causa de t i — S e g u í a m o s a pé, estávamos sós na — Queres dizer: por invejar a vida burguesmente
noite que a L u a iluminava. E l a tinha despido o casaco fácil num país reaccionário?
de lã, ;segurava-o pelas mangas, fez dele uma corda — Não são poucos os exemplos dados pelas gran-
de saltar. E saltou. — És o meu álibi, és o meu álibi... des revoluções: insensivelmente, os homens como tu
:— Saltou mais uma vez, menina de seis anos. acabam por se comportar como contra-revolucioná-
E eu: rios, preocupam-se com questões que nao são efectiva-
— Porque não havias de ser também o meu álibi? mente as mais importantes, acabam por trair as revo-
Sem ti, sem a necessidade de ganhar dinheiro, sem luções, mesmo- que de boa-fé...
a necessidade de jantarmos fora de vez em quando... Fiz coro com ela, continuei no mesmo tom:
Não advogava I Talvez me dedicasse a uma tarefa cria- — Somos reaccionários irremediáveis, somos con-
dora, verdadeiramente humana. — Um luar morno, tra-revolucionários incorrigíveis, regimes como o nosso
sem uma ponta de vento, o mar lá em baixo. — Esta- são- os regimes ideais. Dao-nos álibis, permitem-nos
mos segregados da vida da cidade, sabemos que ela
a boa consciência, a preciosa ilusão de nos supormos
se constrói sem nós, e como não temos força para
revolucionários... — Pensei nas palavras dela, dias
reagir, para tentar impor os nossos ideais, como não
antes: ((Que farias tu de ti, desse novo homem? Para
somos revolucionários verdadeiros, homens de acção,
que te serviria ele?»
sentimo-nos batidos, desenganados, mortos, infelizes...
Porquê? De súbito a Maria dos Remédios pôs-se
Em Cuba, ao ajudar a erguer uma nova sociedade,
seria de facto um homem de acção, umas vezes feliz a fazer contravapor, a negar o tom da conversa que
outras infeliz, mas, no conjunto, considerar-me-ia satis- ela própria iniciara:
feito, amplamente realizado... — Defendes os presos políticos...—Falava-me
Ela deu outro salto à corda. Pegou-me no braço, com ternura, -desta vez sem ironia, procurando dar-me
falou-me com ternura, uma ternura irónica: confiança.
— Então não sou suficientemente importante para — Mas envergonhado, com a consciência de que
que te baste como álibi? Tens a certeza de que em estou a representar uma comédia, de que nada faço,
Cuba ou na Comuna de Paris agirias ao serviço da salvo contracenar na comédia.
144 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 145

Inesperadamente: já de volta a casa. — Tantos anos depois... Cheguei-te


— Sabes que estive uma vez para te deixarr a dizer que suspeito da Catarina?
— H á muito tempo? — Está morta, porque te preocupas?
— Não interessa... E tu? Observo-a atentamente, procuro surpreender um
— E u quê? sinal, por pequeno que seja, de perturbação.
— Se também alguma vez... — Uma questão de princípio. Apenas isto: é não
me ter dito nada, não o facto em si mesmo. I r para
— Nunca — respondo. Digo a verdade. Das vezes
a cama com outro é sem importância, mas o silêncio...
que me interessei por outras mulheres nunca estive
Compreendes? E outra coisa: haver um outro homem
para deixar a Maria dos Remédios. — Porque não te
a rir-se de mim.
foste embora?
— Porque havia ele de se rir de ti? — E como
— Nem sei. E m parte, talvez, porque ele não se
eu não respondesse: — Como terias reagido se ela te
interessava suficientemente por mim. E m parte por-
dissesse a verdade?
que já morri, porque teria então de iniciar uma vida
— Não sei... Talvez me fosse embora, talvez não...
nova, cheia de perigos. É certo que viver contigo não — Hesito um momento. — Sim, teria ficado feliz,
dá a felicidade e comporta também certos riscos. Mas la-me embora, ia recomeçar uma vida nova. E tinha
são riscos mensuráveis, sei bem quais são... Iniciar um bom argumento, compreendes? Não, não sei...
vida noval E sobretudo quando já não se acredita
muito nessa vida nova, até porque se tem trinta e tal
anos, quando se pensa que nada há a fazer, que, faça-se
o que se fizer, não há salvação possível... Mas apesar
de tudo tenho sorte, tu és a melhor das hipóteses que
me poderia ter saído na rifa...
— Preciso de ti. Sem ti, como acreditar que sem
ti poderia começar uma vida nova? Acreditar que sem
ti poderia renascer, que só tu impedes que eu possa
renascer é muito importante para mim..., és o meu
fascismo 1
— Estive uma vez para te deixar — repete.
— Há uma ideia que me rói — digo, mais tarde.
B O L O R 147

incluíam-te a ti e ao Humberto, o Giap e o Johnson...


Incluiriam o dobro se contasse também com os mor-
tos, todos os mortos desde que o mundo é mundo.
— Os mortos foram, já não são mortais.
— Três mil milhões... Mas depois pensei: «Nós,
os naturais de Lisboa,..» Este nós tinha encolhido,
não chegava a um milhão. O nós é elástico, percebes?,
como um balão,' pode ganhar a amplitude que qui-
12 de Abril sermos, que lhe soubermos dar, ser cheio de vento
ou cheio de sentido, de riqueza concreta, efectiva,
— Peguei na caneta, escrevi eu..., mas depois humana... É a medida da nossa generosidade, afinal.
decidi que o sujeito da frase, de todas as frases, deve- Ou do nosso egoísmo. Um nós em que cabem todos
ria ser nós. os deserdados da Terra é um nós onde eu não caibo,
~ - E u e tu? já reparaste?
— Não tenhas pressa, Escrevi nós, vi a linha que
Estava ali na minha frente, vestida, distante, mu-
se seguia, branca, hostil, aguardando as novas pala- '
lher alheia em quem eu não podia tocar (sentados
vras, e hesitei. Compreendes? Nós é uma palavra
num café, esperávamos pelo Humberto), a outra face
fluida, acabei por descobrir. Não, isso foi depois. de uma outra mulher que eu sabia nua, próxima, cujo
Pus-me a pensar: que atributos vou escrever agora, corpo eu já sentira de encontro ao meu, que já sou-
de quais predicados vai este nós ser o sujeito? F u i bera ser, longe daquelas palavras serenas, um animal
mais longe, sempre com a linha em branco: qual primitivo, espontâneo, ignorante de palavras serenas,
a natureza, qual a extensão desse nós, então ainda articuladas, mulher capaz de gemer, não de discursos,
sujeitO' de coisíssima nenhuma? Comecei por mim: mulher com um sinalzinho no peito.
quanto tempo, quantos minutos durante o dia, caibo
— Quando escrevi nós sabia já que não ia incluir
dentro do nós, transbordo do eu? Pus-me a recitar, todos os mortais ou os habitantes de Lisboa ou as
não escrevia ainda; «Nós, os mortais...» Contei o nú- mulheres do Vietname... Que mais sabia eu? E r a um
mero de mortais que cabiam dentro desse nós, que nós ainda sem corpo, ainda isolado. Seria possível dar-
se empilhavam a meu lado... Sabes qiianto somavam? -Ihe vida, procurar-lhe o corpo que nunca chegara
— Não esperou pela resposta. — Três mil milhões, a ter? Ou que chegara a ter, pois sei muito bem
e incluíam a minha mulher-a-dias, o marido dela. que quando escrevi nós esse nós já fazia parte de
148 AUGUSTO ABEUVIRA

uma frase completa (talvez sem eu dar por isso)


e era um nós constituído apenas por duas pessoas.
Não por três mil milhões ou pelas mulheres do
Vietname, mas por duas {>essoas. Metade desse nós
era meu, era eu. Mas a metade restante? Quem
enchia o resto que faltava? Mentalmente imaginei
esta igualdade — escreveu-a na margem do jornal —:
N ó s = X . Substituindo: N ó s - E u = X . Quem era o X ?
Tu? O Humberto? Um sonho?
16 de Abril
— Diz-me qual foi a frase que escreveste, dir-te-ei
o valor que satisfaz a X . — Querido I — Inesperadamente, no meio dos nos-
— Ei-la: ((Nós somos absolutamente necessários sos movimentos, na crista mais. alta duma onda, no
um ao outro?» X é igual a ti ou ao Humberto? brusco deslizar depois para o abismo, mergulhando
— Não sabes escrever nós. O que quiseste escrever num mar líquido e quente, esta palavra fere-nos a
foi: ((Qual deles os dois, se algum for, me é absoluta- ambos, olhamos um para o outro perplexos, os gestos
mente necessário?» Ou então: ((Eu serei absoluta- suspensos, o prazer suspenso, como se tivéssemos trans-
mente necessária a qual deles?» Nós, mesmo um gredido uma lei, uma convenção que a todo o custo
pequeno nós, é diferente... deveria ser mantida.
— QueridaI —• digo, revoltado contra aquela espé-
cie de auto-ironia corrosiva, paralisadora dos puros
movimentos do prazer.
— Estas palavras: gosto de ti, querido, muitas
outras... Estranha coisa! Não gosto de ti, não és que-
rido, porque as dizemos?
Via-lhe o sinalzinho preto no peito e embora me
apetecesse beijá-lo achava-me tolhido, como se entre
nós a convenção agora recordada fosse a de tirarmos
prazer um do outro, de só sentirmos haver pureza nos
nossos gestos e de só assim eles serem legítimos, se nos
abstivéssemos de palavras temas e gastas (necessária-
160 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 151

, mente vazias), ternas e gastas tanto por nós próprios —Querido'!—A mesma palavra que ela disse
como pelos outros. momentos antes, mas completamente desbotada. Beijo-
A Maria dos Remédios: -Ihe então o sinalzinho preto, procuro colorir na boca
— Disseste alguma vez a uma mulher palavras dela (na voz dela) a palavra que desejo repetida. E a
como estas e que gostavas dela sem gostar? Maria dos Remédios agita-se sob o meu beijo, mas
— Já. — Mas continuava a não me atrever a beijar- em silêncio.
-Ihe o sinalzinho preto (como tirar prazer desse beijo Desisto então, viro-me, deito-me de costas, digo
sem as tais palavras gastas?). Que se impunha uma sem lhe tocar:
outra convenção. Que embora não houvesse amor (no — Não és querida, mas se te abraço tenho de dizer
sentido de aquela mulher ser para mim insubstituível, querida, tenho de te dizer meu amor, tenho de te
no sentido de eu sofrer profundamente se ela me fal- ouvir dizer querido, dizer meu amor... Porque as pala-
tasse), faziam parte dos afagos, mesmo do puro prazer, vras fazem parte, porque
palavras como querida e meu amor. Que qualquer
coisa me prenderia os gestos (vergonha talvez) se eu Poderia concluir a frase que deixei em suspenso
não os acompanhasse da miisica das palavras (que no papel (somente no papel; na realidade, continuei-a,
importa se mentirosas?). o nosso diálogo prolongou-se por muito tempo, regresr
•— Querida! — insisto, apertando-lhe com força os sei de novo àquele mar ondulante onde a minha ener-
braços, ancorado e tranquilo naquele mar sem ondas. gia se tomou líquida e finalmente repousada). Pode-
— Porque mentes, Aleixo? — Uma voz branda ria concluí-la, escrevê-la aqui... Mas para quê? Ah,
(azul) a ignorar a dor dos braços, um imperceptível o entusiasmo com que no primeiro dia peguei na
movimento das ancas. caneta, passaram^e quase dois meses, quando estas
— As palavras não são verdadeiras nem falsas. •— linhas não mediam ainda trezentos e cinquenta metros,
(São como as árvores, escrevo agora, são como as ó Leonor!
pedras, são como todas as outras coisas.) Continuo
debruçado sobre o sinalzinho preto sem ousar beijá-lo.
Não sei se lhe disse, se pensei, se é este caderno que
me convida a escrever:, as palavras são para as dizer-
mos e por isso é que existem, a verdade e a falsidade
não têm nada a ver com elas, fazem parte doutro
mundo.
14 de Fevereiro 20 de Abril
Lembro-me de uma antiga conversa que nunca Procuro perceber, Humberto: porque casaste pri-
chegámos a ter, olho para ti, Maria dos kemédios: meiro com ela? Brincávamos contigo, éramos a mesma
talvez um de nós esteja morto, o mundo tenha sido — contigo, pelo menos na tua presença, eu não era
feito de tal maneira que os mortos e os vivos se cru- somente eu, era mais, muito mais... Éramos a mesma,
zem uns com os outros e se tornem amigos (ou inimi- tínhamos até o mesmo nome (Julieta) —, mas quando
gos ou indiferentes), os mortos não saibam que já nos dividiste em duas (e uma em relação à outra,
morreram, julguem que estão vivos, os vivos não sai- e cada uma para si própria, éramos na verdade duas,
bam que são irmãos dos mortos. Qual de nós estará quando não estavas presente) foi a ela, à Catarina, que
morto, Maria dos Remédios? E esse colar que trazes escolheste, com ela casaste. Nunca nos reunimos os
ao pescoço diz-me somente que viveste há quatro mil três, afinal não sei bem se a Catarina me dizia tudo
e quinhentos anos — ou que vives hoje, mas és igual quanto vocês diziam, se não esconderia certas coisas.
a milhares de mulheres que viveram há quatro mil Mas eu também fazia batota, não lhe revelava tudo.
e quinhentos anos? Que nada tens de teu? Que nunca E tu certamente fizeste batota, todos fizemos batota.
chegaste a nascer? Um dia, foi logo no princípio:
— Ontem beijei-te pela primeira vez, vou beijai--te
pela segunda.
A Catarina nada me tinha dito e portanto um dos
dois mentiu. Deixei que me beijasses (se eras tu a men-
tir, certamente disseste à Catarina: ((Ontem beijei-te
pela primeira vez, vou beijar-te pela segunda»). Dei-
1S4 AUGUSTO ABELAIRA

xei-rae beijar e não disse nada à Catarina (não lhe


perguntei nada, não a preveni de nada).
Porque casaste primeiro com ela?
Disseste-me um dia:
— Vou atirar uma moeda ao ar hoje à noite.
E no dia seguinte:
— Calhou ela...
Fazias batota? Tive forças para dizer (eu, que fora
a única responsável; eu, que numa tarde inútil de 30 de Abril
domingo propusera à Catarina que telefonássemos ao
acaso a um desconhecido', antes de, logo depois, atirar- Pedi para sair mais cedo e corri até o atelier do
mos ao ar uma moeda, para saber qual de nós iria ter Aleixo (o que eu sofro ao entrar nesse prédio, O' por-
contigo): teiro quis saber uma vez quem eu procurava, presen-
— Não há ela..,, ela sou eu. temente limita-se a cumprimentar-me com ironia).
— Porque estou aqui? Verdadeiramente não te
tenho amor...
Mas encontrei o que procurava; o Aleixo abrira
a porta, abraçara-me, dissera-rae certas palavras. Coi-
sas que tu nunca fazes, Humberto. E depois pediu-me
(também nunca me pedes, Humberto) que cantasse
(cantei La.Chevelure). Cantei baixinho — a casa é mal
construída, ouvir-se-ia no andar de cima (ouvimos
os vizinhos quando eles falam mais alto). Mas sen-
tia-me tão feliz por haver alguém desejoso de me ouvir
cantar!
De novo*:
— Porque estou aqui?
Subitamente, o Aleixo- disse-me:
— Não é verdade que para ti não sou nada, que
se escrevesses um diário seria para o Humberto que
166 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 157

escreverias? Que é em tomo do Humberto que a tua ? L E V 1 U T I T S B U S N I SÈ


vida gira e não em tomo de mim?
Mas agora não me interessa recordar o que se pas- É ?
sou de tarde e olho para ti, Humberto. E penso: «Que s L
és tu para mim? És insubstituível?» Olho esta frase, E
assim esa-ita, e de repente descubro nela o meu pen- V
samento. Posso vê-lo, afinal, como vejo aquelas cadei- N I
ras, a caixa de fósforos, os cigarros, o álbum do Man- S u
tegna (a Camera Picta de Mantova) — tão sólido e visí- u
vel como todas estas coisas, e até colorido (uso tinta B
preta, mas poderia usar tinha vermelha ou verde •— S T
poderia escrever cada palavra, cada letra, com uma cor T • S
diferente). I B
((És insubstituível? Mais: precisaria de te substi- T U
tuir — a ti, que não és tudo, mas és muito — caso te U s
perdesse?» Observo esta frase inúmeras vezes, leio-a. í N
e volto a lê-la, examino-a por todos os lados, por cima V I
e por baixo, à direita e à esquerda, como se estivesse E
a observar uma caixa de fósforos: L S
? . É

(iiaAjnxixsaasNi S3
Por todos os lados. E quando estava a observá-la,
a pensar que devia escrevê-la em relevo para poder
apalpá-la, com cheiro para poder cheirá-la, com sabor
para poder prová-la, descobri: a forma exacta, a forma
objectiva, acessível a todos os observadores, é outra.
A frase-coisa que existe, independentemente de eu
a pensar ou até de a dizer, é esta (e pronunciada com
158 AUGUSTO ABELAIRA

a tua voz, Akixo): ((Que representas tu para miiri,


Maria dos Remédios? És insubstituível? Mais: preci-
saria de te substituir, caso te perdesse?»

E no entanto, a razão por que passei pelo teu ate-


lier, esta tarde, foi diferente. Um telefonema da tua
mulher: ((Ouve, Maria dos Remédios, sei que há qual-
quer coisa entre ti e o Aleixo.» Não me atrevi a negar,
não consegui perceber se era uma ameaça, se havia
13 de Maio
até alguma compreensão naquela voz.
Mas, perante ti, acabei por guardar silêncio. Encontrámos facilmente um lugar no cafezinho de
bairro: as ruas estavam vazias, a cidade tinha ficado
em casa, atenta à chegada de Paulo V I a Fátima.
Meia dúzia de pessoas, alguns estudantes que se
preparavam para os exames. Um homem sentado
e '5Ó, sem um livro, sem um jornal. Fumando um
cigarro, enquanto olhava, aparentemente sem ver,
a rua deserta.
— Porque não ficou ele em casa a ver televisão?
— pergunto, com a vaga ideia de que conheço aquela
cara.
E a Leon<>r, sem me responder:
— Tenho estado a pensar se não deverei dizer
tudo ao teu marido. — E pouco depois, até porque
seria incapaz de me denunciar ao Humberto: — Não
sentes remorsos? Não falo por ele, falo por mim. —
Tirando o lenço da cabeça, um. lenço com selos estam-
pados.
Quase lhe disse: ((Sabes que o Aleixo procura esses
remorsos, mas não os encontra?» Encaro-a em silêncio
160 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 161-

com os meus olhos actuais (não os olhos com que sem- — E tu? Olhas para ele como a segurança última?
pre a tenho visto), eles mostram-me uma Leonor quase — Talvez não — respondo (e é a primeira vez que
quarentona, perdido o viço da juventude, pergunto- ouso dizer — que ouso escrever — semelhante coisa).
-me se estará a ver-me da mesma maneira, pergunto- O tal homem sem um livro, sem uma revista,
-me como me verá hoje quem nunca me viu mais a olhar simplesmente para a rua vazia. Donde o conhe-
nova, quem não pode portanto ver-me com os olhos ço? Uma dessas caras que fora do sítio habitual se
do passado, quem não poderá saber que envelheci, tornam duvidosas, não se sabe se conhecidas se des-
quem saberá somente que sou velha (como se sempre conhecidas, que nos parecera inacabadas como se lhes
o tivesse sido). faltasse o nariz ou as orelhas, que só se tomam per-
— Não pretendo conservar o Aleixo — respondo. feitas quando finalmente as localizamos: o porteiro
— Ele também não pensa era trocar-te por mim, de um restaurante onde costumo ir com o Humberto,
Se não fosse comigo seria com outra, — A Leonor não mais incompleto ainda porque visto sem a farda. Com-
reagia, o ombro encostado à parede, o rosto apoiado pleto agora poi-que o situei.
na mão. E atrevi-me a fazer-lhe uma pergunta difícil:
A Leonor dizia:
— Nunca enganaste o Aleixo? — Não tenhO' coragem.
Endireitou-se, subitamente agitada.
— De quê? — Esquecera-me de que lhe fizera uma
— Perdi a confiança em ti. — Encostara-se de novo
pergunta.
á parede, — Mesmo que o tivesse enganado não pode-
— De ter uma aventura.
ria falar... Apesar de tudo és uma rival. — Dobrava
— Antes de continuar, diz-me outra coisa: o Aleixo
cuidadosamente o lenço de seda. — Talvez decidas um
é para ti a segurança última sem a qual não poderias
dia lutar contra mim, nunca se sabe! E revelar-lhe
a minha confissão... Terias todas as vantagens... viver, sem a qual todo o teu futuro seria uma porta
fechada?
— Nem todas... — O sorriso, um sorriso lumi-
noso, encoraja-me a continuar. — De resto, se não — Não sei — respondeu, endireitando-se de novo.
fosse eu, se não fossem as outras, quem sabe se o Aleixo — Talvez outro homem pudesse sê4o... — Meteu-se
não te teria já deixado? Representas para o Aleixo em seguida por um atalho, não compreendi muito bem
a estabilidade, a rocha indestrutível a que se pode aonde queria chegar: — Às vezes olho para o mundo
agarrar, alguém cujo amor ou amizade é insubstituí- como se o mundo permanecesse imóvel, não te sucede
vel. O Humberto também olha para mim como a segu- o mesmo? Sei que não... Sei que na minha adoles-
rança última. cência escrevia com caneta de tinta permanente e não

d — Bolor
162 AUGUSTO ABELAIRA B O L O R 163

com esferográfica, lembro-me até do dia em que pela rido ideal. Não posso, não me interessa uma aventura
primeira vez vi uma esferográfica. qualquer.
.— Não tenho ideia nenhuma. — Procuras um marido ou simplesmente sonhar
— Ainda me lembro da minha mãe a coser as alguns momentos? O marido já tens...
meias antes do nylon. Depois começou-se a falar nas — Não se pode sonhar com um homem qualquer.
meias de vidro... A expressão não pegou, mas ainda Um marido é fácil, relativamente fácil, apesar de difí-
há uma loja com esse nome. E muito para trás, muito cil. Mas um homem para sonhar, um homem para
para trás, é quase uma das minhas primeiras recor- sonhar e que veja em mim somente uma mulher para
dações... O primeiro aparelho de rádio... E até me sonhar e que não exija mais de mim...
lembro da marca, nunca mais ouvi falar dessa marca, — Que entendes por não exigir mais de ti? Que
mas dantes ela andava anunciada em todas as revistas: não te leve para a cama? — Vejo-a retrair-se, chocada
com esta linguagem.
Pilot, Pilot Radio. E r a uma novidade em mil nove-
— Não é isso — diz, recuperando a calma, recome-
centos e trinta e poucos. íamos todos a casa do senhor
çando a dobrar e a desdobrar (quer obra perfeita)
Felgueiras para ouvir, sabes o quê? E com que infi-
o lenço. — Gostaria de ir com ele para a cama — hesi-
nita religiosidade! O Big Ben, Lx>ndres à meia-noite!
tou, pronunciou a última palavra num tom mais
Toda a gente se calava então, ficávamos a ouvir as
baixo — mas... Na cama pode-se sonhar, não é? —
badaladas de Londres, nós que estávamos em Bra-
Inesperadamente: —^ Sei o que digo; l i o diário do
gança! Mas tudo isto sei, não o sinto... O mundo
Aleixo, um diário em que ele nauitas vezes se faz pas-
parece-me imóvel, tenho a impressão de que continuo
sar por ti.
com a mesma idade, de que nada se passou, de que
— Ah, sempre é verdade? Que me obriga ele a
não me casei, de que não estive no liceu, de que não
pensar?
tive dois filhos, de que tudo- é um pesadelo, de que
— Talvez o que lhe costumas dizer.
talvez acorde dentro de momentos... Espantada, des-
—^Que lhe costumo dizer?
cobrirei então que tenho dezoito anos, que ainda não
Não está interessada em mim, mas nela própria,
me casei, que o futuro está à minha frente e não
e ignora a p>ergunta.
atrás... —Pôs-se a brincar: dava beliscões nos braços
— Gostava de saber — acrescenta — porque foi
e dizia: — Acordo ou não acordo? Não tenho cora-
que ele me deixou ler o diário.
gem—repetiu.— Acho-me na situação da rapariga
— Escreveste nele alguma vez?
romântica que deseja casar-se, nlas não encontra o ma-
— Escrevi.
164 AUGUSTO ABELAIRA
B O L O R , 165

— Qualquer coisa como «porque não sonhas — Sou assim tão velha? — quase não ouço o que
comigo?» diz.
— É impossível sonhar com a própria mulher, ela — Se achas que não vale a pena, és. .
está demasiado próxima, é demasiado real, é até a rea- — Não tenho coragem, não tenho coragem — re-
lidade... De resto... Não é verdade que eu não sou pete.
a primeira mulher do Aleixo e que ele começou a
.soniiar comigo quando ainda vivia com a outra?
Perto de nós, um homem de cabelo grisalho •— não
o v i entrar —, um transístor em cima da mesa, o ou-
vido ligado ao transístor por um cordão umbilical.
Que poderia ouvir no uníssono de todas as emissoras?
L i a ao mesmo tempo O Século, a página desportiva.
O Homem a caminho da ubiquidade, a caminho de
coisíssima nenhuma.
Insisto:
— Que escreveste afinal? — O lenço desdobrado,
selos coloridos: flores, pássaros, um rinoceronte de
perfil.
— Que havia de ser? Qualquer coisa como «por-
que não sonhas comigo, Aleixo?))
— Respondeu-te?
— Não.
í)igo-lhe na rua, quase à despedida:
— É uma questão de coragem ou descobriste que
tens quase quarenta anos e que já não vale a pena...?
— Ela tenta disfarçar a perturbação, ajeitando o lenço
na cabeça e eu prossigo: — Que dez anos mais cedo
teria valido a pena, mas hoje não...?
BOLOR

E setn querer te respondi:


— Não.
T u , que decerto sabes alguma coisa; tu, que desta
vez me ofereceste a oportunidade de dizer tudo sem
receio; tu, que a partir de agora, e definitivamente,
perderás a confiança em mim — em mim, em cujos
brincos, em cujo relógio, descobriste uma mulher
igual a milhares de outras mulheres.
18 de Maio
Mas hoje, tantos anos passados, e casada contigo
depois de teres sido casado com ela, casada contigo
apenas porque ela morreu e porque de súbito te viste
só, porque te encheste de pânico, porque eu te fiz
um cerco, porque representei um papel a mostrar-me
mais interessante do que realmente era (do que real-
mente sou), porque fingi uma solidez de ânimo à qual
a tua fraqueza se poderia amparar (eu, que estava
absolutamente aterrorizada por um futuro de solidão;
eu, que já tinha trinta anos e duas histórias de amor
com homens que nunca me falaram em casar comigo;
eu, que também te amava mas que desejava o teu
amparo mais do que amparar-te), olho para ti, escrevo
quase ao mesmo tempo que olho para ti, dezoito dias
depois do telefonema da Leonor, olho — escrevo •—
quase paralisada pelo medo sem me atrever a falar-te,
sem me atrever também a falar ao Aleixo.
E agora... Será que a Leonor te telefonou? Ater-
rorizada, pois acabas de perguntar:
— Já alguma vez me enganaste?
BOLOR .-• 169 .

r i o — . . , — ) ] . — Estiveste a pensar que...?—(Escre- •


vo; «Estiveste a pensar que... ?)))
^ Esqueci-me. Só sei falar depressa.
— Espera um instante. — Escrevo: (cEsqueci^e.
Só sei falar depressa. Espera um instante.))

Sem data

— Quantos são hoje? — pergunto-te. Olhas para


mim espantada, encolhes os ombros, afastas lenta-
mente as mãos, ergues a cabeça, abres-te num leve
sorriso a dizer que não sabes. — Devagarinho — digo.
— Gesticula devagarinho para eu ter tempo de escre-
ver aqui todos os teus gestos e, se falares, fala também
devagarinho para eu ter tempo de escrever todas as
tuas palavras.
— Estive a pensar que...
— Devagarinho, devagarinho. Deixa-me escrever:
«Estive a pensar que...» Pensar é com s ou com f?
«Estive a pensar que...)) Podes continuar agora, já
escrevi. — Eja olha para mim em silêncio, escrevo
que ela olha para mim em silêncio-, e aguardo as pala-
vras restantes a fim de as congelar neste diário [escrevo
que aguardo as palavras restantes a fim de as conge-
lar neste diário (e escrevo que escrevo que aguardo
as palavras restantes a fim de as congelar neste diá-
Sem data
•—Porque casaste comigo em vez de casar com
outra? Porque me escolheste a mim como imagem da
vida quotidiana, ponto- de referência em relação ao
qual uma diferente vida é possível — vida, parêntesis,
na realidade inútil de todos os dias? Porque me sacri-
ficaste ao casares comigo em vez de casares com outra?
— outra, portanto, o ponto de referência em relação
ao qual eu sei^ia agora o parêntesis, o sonho.., ? •—
Pausa. — Porque casei contigo? Porque te sacrifiquei
ao casar-me contigo, tu, que se eu não tivesse casado
contigo serias o parêntesis, o sonho, a imagerh da
beleza nesta vida? — Pausa. — Embora, bem sei, nada
disso tivesse importância, embora tudo continuasse
igualmente errado?
. ~ T \

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