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AUGUSTO ABELAIRA
A C I D A D E DAS F L O R E S (romance)—• 1959; 2.' edição, 1962; 3.', 1970;
4.», 1972.
os D E S E R T O R E S (romance) —1960; 2.' edição, 1968; 3.», 1971;
4.«. 1978.
A P A L A V R A É D E O I R O (íeuiro) —1961; 2.» edição, 1973.
BOLOR
o N A R I Z D E CLEÓPATRA (íeairo) —1962.
AS BOAS INTENÇÕES (romance) —1963 (Prémio Ricardo Malheiros
da Academia das Ciências de Lisboa); 2.» edição, 1971; 3.", 1978.
E N S E A D A A M E N A (^romance) —1966 (Prémio do Romance do I V Encon-
tro da Imprensa Cultural); 2.« edição, 1971.
O D E (QUASE) M A R Í T I M A (mond/ogo)— 1968. •
B O L O R (romance) —1968; 2.» ediçSo, 1970; 3.», 1974; 4.», 1978.
Q U A T R O P A R E D E S NUAS (coníos) —1972. romance
A publicar:
SEM T E C T O , E N T R E RUÍNAS (romance)
4.A EDIÇXO
LIVRARIA BERTRAND
APARTADO 37 — AMADORA
@ Livraria Bertrand, S. A. U . L .
B O L O R
CARLOS D E OLIVEIRA
Sempre de caneta em punho: dos Remédios? U m homem que com oiro te quis
' — Para o teu relógio. Pergunto-me se te fica bem. comprar.
, —Julgas que não. Ouve-me: ao escolher um relógio redondo ele não
Um objecto standardizado, construído peça a peça te compreendeu: o ideal para ti seria a forma rectan-
por mãos alheias que nunca se apertaram umas nas gular, respeitadora da proportio áurea; e, ao marcar
outras, igual a milhares de outros neste momento os dias, esse relógio rouba à vida a continuidade fun-
cobrindo milhares de pulsos (diferentes). Como posso damental dos longos períodos de tempo, continuidade
então triunfar nesta arqueologia insensata de recons- secreta, exclusivamente tua. E o oiro... I Vai dizer-lhe
tituir quem és? Quem somos todos nós neste mundo que não vendes a tua alma!
onde nada foi feito por nós — nós, os homens vul- — Quando o compraste? — pergunto, na espe-
gares? rança de apenas te encontrar a ti.
— Saber que estou aqui sentada e que na Bolívia, Ela poisa o Eterno Marido, tira os óculos.
por exemplo... — O relógio? Foste tu...
E de súbito descubro: o teu relógio é de oiro e o Lembro-me, lembro-me também de ter dado um
oiro não é um metal, é uma simples medida de valo-, à Catarina, mas já não consigo saber se era parecido
res: se não és rica, alguém to ofereceu. E então em — se vocês as duas são parecidas para mim.
— Foi no dia...
vez de te descobrir nesse relógio, em vez de nele deci-
frar o teu nome, será outro o nome que descubro. Sherlock Holraes, procurei decifrar-te a partir de
um relógio, mas em vez de te apanhar no fim da
O nome de quem?
meada (no fim da corda metálica), ao contrário, foi
Um homem que tem de ti uma certa ideia (grande,
a mim que me encontrei, como se Sherlock Holmes
redonda): ao escolher entre dezenas de outros mode-
descobrisse ser ele o criminoso: quis comprar-te mais
los (grandes, redondos, pequenos, quadrados) esse
do que conhecer-te, Maria dos Remédios? ••j
modelo (grande, redondo) confessou sem o saber a
maneira como te via. Através dos sonhos desse homem
sem nome poderei adivinhar quem és?
Sem nome, sim, mas cujo nome terei lido se
tiver lido a lista telefónica, terei lido sem saber que
li. Homem pa.ra quem tu vales um relógio de oiro
— valerás tu mais do que um relógio de oiro, Maria
BOLOR
14 de Dezembro
1 de Janeiro
Hoje que um novo ano começa — repko con- Ouso escrever pela primeira vez: quando a Cata-
tigo— folheio estas páginas azuis e brancas sem rina morreu não senti grande pena. De repente, ao
espanto. A h , isso que tu não^ me dizes, esse silêncio, vê-la morta, estendida na cama, quando ela não fora
isso que faz parte da inviolabilidade da tua alma, isso ainda a enterrar, quando era ainda viva dez minu-
que tantas vezes me força a olhar para ti e a pergun- tos antes (quando dela se poderia dizer ter sido viva
tar a mim mesma: (cQue me escondes, Humberto?», dez minutos antes), descobri uma vida nova à minha
isso está aqui neste caderno secreto, enche todo este frente, uma vida velha acabava de acabar.
papel? Sem espanto... Não: com espanto. Ou então: não erá da Catarina que eu não tinha
Eu, abaixo assinada, tua mulher, eu, Maria dos pena, era de mim, de uma época agora irremediavel-
Remédios Varela Rodrigues, a quem às vezes (raras mente para trás, morta e sepultada. Pois ao observar
vezes) 'tratas por «querida», eu, escrevendo agora com a Catarina com mais atenção conclui ser a mim pró-
tinta preta (e não azul) para veres bem a diferença, prio que desejava ver morto. «Porque não morri em
eu, leitora diária do teu diário, leitora diária a fingir vez dela?», lembro-me de dizer — não como inúme-
que só hoje o folheei, digo de súbito: «Mas é tão ras vezes acontece pelo- (generoso) desejo de sacrifício,
pouco? Porque não me confessaste que escreves um mas por acreditar profundamente que um de nós
diário? Porque me escondes esses sessenta e dois devia morrer, mas morrer, sim, para que o outro
metros de vida que não precisam de ser escondidos?» sobrevivesse e, sobrevivendo, recuperasse a juventude.
Um de nós estava a mais, mas não necessariamente ela.
Maria dos Remédios , Estendida na cama — eu recebia os pêsames deste
e daquele e já pensava: como vou recomeçar? Sen-
36 AUGUSTO ABELAIRA
Esta noite sonhei que vivia no Porto em 1830. Não me respondes, Humberto? Ontem, enquanto
De repente, vindo de Londres, o Alexandre Her- escrevias — agora já sei o que escrevias, nem sequer
culano aparece em minha casa e diz-me: ((Vamos falavas de mim —, pensei: vou interromper-te, vou
desembarcar dentro de poucas horas, precisamos do dizer: tu escreves, eu escrevo, sabemo-lo ambos. Por-
teu apoio.» Acordei nesse instante com suores frios que não deixamos as canetas, não quebramos o silên-
e, por acaso, lembrei-me do sonho interrompido. Pen- cio, mantemos deliberadamente esta ignorância arti-
sei então, repousadamente acordado: Que responder? ficial em vez de ousarmos dizer em voz alta o que
((Não conte comigo»? Nunca mais poderia olhar para ousamos escrever em voz baixa?
ele a direito (nunca mais poderia olhar para mim Cale i-me. Receio a tua condenação: que eu não
mesmo a direito), mas como dizer-lhe: ((Conte comigo)) tinha o direito de folhear o teu caderno, que...
se o medo invadira o meu corpo e a minha alma? Porque não me respondes aqui mesmo? Juro-te,
Sem querer, sem dar por isso, surpreendi-me a racio- depois finjo que não l i , fingiremos que tudo igno-
cinar deste modo: ((Porque vieste? E u vivia em paz, ramos.
sim, vivia em paz, sabedor de que nada poderia fazer,
crente de que era por isso que nada fajcia. Porque
vieste?»
14 de Janeiro • 15 de Janeiro
Felizmente, a Maria dos Remédios tinha assunto,
Pergunto:
compensando assim a minha incapacidade de fomen-
—^Já lhe beijaste os joelhos?
tar uma conversa (não por ausência cie assunto, se
Aleixo hesitou (talvez). U m jornal em cima da
estávamos ali a jantar num restaurante de Cascais era
mesa, abriu-o para completar a leitura dum título^ cor-
precisamente por èu ter assunto, mas agora faltava-me
tado a meio, voltou a fechá-lo.
a coragem, adiava sucessivamente o momento de
•—Não te disse que ela morreu? — Desdobra de
começar: ((Perguntaste-me no outro dia se eu pensava
novo o jornal à procura de outros títulos. — Não te
muito na Catarina. Foi por saberes que ela me enga-
tinha dito?
nava?»).
A Catarina, penso.
A mulher-a-dias, que vive com o marido e cinco
filhos, a mãe, a irmã, o cunhado e quatro sobrinhos,
na mesma casa, uma casa com três quartos e uma cozi-
nha. Os filhos não podem, brincar com os primos
— o marido não deixa, pois zangou-se com o cunhado.
E como eles, apesar de tudo, brincam, e como ele
acaba sempre por vir a saber, bate-lhes sem dó nem
piedade. Neles e nela.
— Vi-lhe as nódoas negras. Quando casou tinha
uma pulseira de oiro. O marido (é chauffeur de táxi),
um dia destes, foi buscar a pulseira ao prego, depois
AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 49
48
não lha devolveu. E trocou-a por um relógio, mas E com o primeiro marido também era assim. Acre-
para ele. ditas? Admirada por eu me ter admirado, pergun-
tou-me se contigo era diferente... Tive vergonha de
— Ela não protestou? — Sentia-me cada vez mais
lhe dizer a verdade. Vergonha I Seria injusto revelar-
feliz por esta conversa i r adiando o m o m e n t O ' da outra
-Ihe um mundo diferente, um outro respeito pelas
conversa.
pessoas.
— Ameaça deixá-la, se ela não encontrar outra
Brinquei:
casa; não quer viver mais com o cunhado. Mas não
— Aliada aos capitalistas, enganando os pobres...
lhe dá dinheiro, ela que o arranje. E não é só o pro-
— De súbito, sucedeu-me esta coisa incrível: olhei
blema do dinheiro. Como poderiam ir sozinhos para
para ela e pensei que não pertencíamos à mesma espé-
um quarto sem ninguém a quem deixar os filhos?
cie, éramos animais diferentes. — Fizera uma nódoa
Há outra coisa: já fez dezoito desmanchos, agora vai
de vinho na toalha, pôs uma torrada em cima a escon-
fazer outro. Perguntei-lhe: «Porque não se protege,
dê-la. — Se tivéssemos de viver naquela casa cheia
mulher?» Ele opõe-se. E nem lhe paga os desmanchos, de gente, sem nos podermos isolar.., — Perguntou:
a trezentos escudos cada. E a sangue-frio, bem enten- — T u batias-me? — Não lhe respondi e ela prosse-
dido. <(Deixa-os vir, deixa-os vir...», costuma ele dizer. guiu: — Sim, batias-me com toda a certeza. E u já teria
E embora passem o tempo zangados e ele lhe dê gran- suportado dezoito desmanchos, e a sangue-frio, teria
des tareias, isso não o impede de à noite lhe fazer cinco filhos... — E a seguir: — Que fizemos nós para
filhos. Espantoso, hem? Estarem zangados não é impe- ser tão felizes? T ã o felizes, isto é: que fizemos nós
dimento, considera ele. para não viver num quarto, para que tu não me batas,
— Não viste no outro dia o que se passou num para que eu saiba que nem todos os homens são assim?
tribunal? Um homem separado da mulher, embora
— Nada — respondi-lhe.
não judicialmente, procurou-a em casa; como ela se
Já de volta, na auto-estrada, continuou, sem que
recusasse, atou-a com uma corda e levou-a para a cama.
eu ousasse falar na Catarina:
O tribunal reconheceu-lhe esse direito, era marido...
— Nada fizemos, mas somos felizes, não é? Felizes,
A Maria dos Remédios prosseguia, sem me ouvir:
negativamente... Felizes somente porque não somos
— Acabado o prazer, o prazer dele, continuam
infelizes 1 — E perto do Liceu Francês:—O espan-
zangados.
toso é que a gente não se espantei — Guiava ela, ;
— Esse homem é um bruto.
— Nada disso. Com o cunhado passa-se o mesmo. gosta muito de guiar, guia talvez melhor do que eu.
50 AUGUSTO ABELAIRA
BOLòk:./.-v:;;::;:v:;; • • 51
— É bem verdade, é uma verdade profunda, sabes?
Conoentrar-me-ei nesta ideia: espantar-me por não me ciosamente as minhas relações com os outros (amigos
espantar, por conseguir viver sem espanto num mundo
so diálogos gozam da propriedade comutativa são
espantoso.
Abro aqui um parêntesis, Maria dos Remédios:
quantas vezes me pergunto se há razões para viver-
mos juntos, se não será somente o hábito, a dificul-
dade material de nos separarmos, que nos força a viver
na mesma casa (e visto que na mesma casa, na mesma
cama)? Mas noutros dias, é verdade, também penso
como tu acabaste de pensar, e tu pensas como eu,
neste momento: que não há razões para vivermos jun-
tos. Limitamo-nos então a uma simples troca de papéis
e cada um dos nossos diálogos, embora seja a cópi^
do diálogo anterior (de muitos diálogos anteriores),
desenvolve-se de maneira tal que eu digo hoje o que
tu disseste ontem, tu respondes-me amanhã com
a minha pergunta de hoje? Actores sem consciência
de o serem, recitando papéis mutuamente, indiferen-
temente intermutáveis?
ceptível do rio, e pensava que a Catarina estivera Sem saber que diga, respondo:
ali como eu, também encostada à janela e a ouvir — Talvez... — Vejo a Catarina, também sem saber
o Aleixo (que diria ele então?), que talvez tivesse que responda, a dizer: ((Sim, talvez seja isso, talvez
falado de mim (vejo-a a dizer: «E no entanto eu gosto seja somente o desejo de transgredir a lei, de me sen-
do Humberto»), ali a ver exactamente o que os meus tir no caos inicial, de me sentir até aviltada para...»
olhos viam: os telhados, o zimbório da Estrela, o Cas- Mas a Catarina não falaria assim.
telo, a nesga do rio. Não exactamente o que eu via, — A arte devia «er provisoriamente interdita pelos
porque as águas do rio, porque as telhas das casas, homens de boa vontade. E só quando não houvesse
os prédios novos a substituir os velhos... riqueza mal distribuída a proibição cessava. Seria um
— T u dirás: não poderá haver uma pintura que prémio oferecido aos justos, aos homens de um mundo
inquiete as almas dos bem instalados em vez de as justo, pelo menos. Mas hoje, Mozart e Cézanne são
repousar? — (Oito anos antes terá dito: «E julgas que um crime, :são a beleza concedida aos que não a me-
eu não sofro quando estou ao pé do Humberto, recem.
que não me sinto um canalha...?»)'—Provavelmente — A nós, por exemplo?
não... Ao fira e ao cabo a Guernica é bela, não
inquieta ninguém, mostra até que de ura borabar- No dia seguinte senti uma vontade invencível de
deamento horrível se f>ode extrair beleza. — («Se ao voltar ao atelier do Aleixo, bati-lhe à porta inespe-
menos te amasse», ouço á tua voz nos ouvidos da radamente. E o quadro transformara-se, as chagas da
Catarina, «mas nem isso... Alguns povos primitivos Primavera haviam sarado, o cão era o cão da princesa
invertem em certos períodos os tabos, invertem a lega- de Trebizonda, a tela começara agora a irradiar uma
lidade e praticam tudo quanto é proibido. Então mer- beleza primaveril, repousante, de mundo acabado de
gulham no caos, mas um caos renovador...») — Um nascer. .; -
desaforo autêntico! Os artistas, todos os artistas, penso Meti-me com ele; •
muitas vezes, deviam emudecer, pôr-se entre parênte- — Desististe?
sis até que o mundo se transforme. Com vontade ou — Uma camada de tinta especial... — Não sei se
sem ela, dão satisfação às necessidades vitais de beleza, havia ironia naquele seu tom de voz. — Acabará por,
não de todos os homens, mas somente de alguns: e os cair dentro de dois ou três anos, decomposta pela res-
piores! E m vez de ajudar os homens a libertarem-se, piração e pelo calor... Vês o efeito? Ao fim de algum
a arte ajuda esses piores, essa burguesia endinheirada, tempo, o bom do burguês, comprador de uma gentil
a usufruir uma beleza imerecida. Não concordas? Vénus para seu repouso, para embelezamento da sua
62 AUGUSTO ABELAIRA
E u ou ela? Um de nós. Um de nós sentiu a exces- pisano. Mas é românica. Amei o românico pisano, as
siva proximidade do outro — o sol e a areia morna suas colunas, amei o Nicolo Pisano e até o Pisanello,
e o mar azul e as verdes colinas amoleciam nos nossos em quem o sangue de Pisa corre no nome bem mais
corpos certa cerimónia convencional que, apesar de do que nas veias. Sei que perto da torre há um café,
tudo, deveria ainda circular-nos nas veias (conversá- um café a uma esquina, e amei o café desse café. Amei
vamos pela primeira vez) e então, bruscamente, levan- o Masaccio do museu de Pisa, embora nunca tenha
támo-nos — ela sacudiu a areia, o sol, a água crista- visto nenhuma reprodução.
lizada na penugem transparente que lhe cobria as — Amou o Triunfo da Morte no Campo Santo?
pernas. Subiu para o comboio, subimos para o com- Viajávamos agora não já com aquela intimidade
boio, chegámos ambos a Pisa (ambos, nem sempre; repousada e solar que nasce de dois corpos deitados
às vezes ela falava como se viajasse sozinha). Vestia ombro a ombro nas areias finas e brancas de Porto-
uma saia azul, uma camisola amarela — um lenço fino, mas, pelo menos, não éramos dois desconhecidos
branco nos cabelos. que se cruzam num museu e por instantes trocam
Dizia: olhares, perguntam a si mesmos se não seria bom
— Desejar ver a Torre de Pisa é um pouco vulgar . conhecerem-se, mas passam adiante, separados pelo
e o meu amor por Pisa começou assim vulgarmente. acanhamento e pelo acaso que os fez nascer longe um
Depois foi-se completando com o baptistério e a cate- do outro. Lado a lado, desconhecidos embora, olhando
dral. E como ambos eram de mármore branco apai- todavia as mesmas coisas, uma acumulação de homens,
xonei-me pelo branco. Ou talvez as fotografias enga- de mulheres, de cavalos, de cães, de amigos, de ini-
nem, o tempo roubou-lhes a brancura... Mas assim migos, de Morte (com uma grande foice).
vejo Pisa: uma grande praça com relva muito verde Junto de mim, sem ouvir a minha voz, mas falan-
e alagada onde sem querer hei-de molhar os pés do-me, conhecendo-me portanto, ela dizia:
— (mas seria eu, Humberto, que havia de molhar os — Também amei o Triunfo da Morte antes de
pés, mais tarde, não em Pisa, mas no Pátio de los ver a reprodução num álbum sobre a Toscana que
Naranjos em Sevilha) — e os três edifícios muito só muito mais tarde ofereceram ao riieu pai. Não seria
brancos e alinhados... tal qual eu o imaginara porque eu não imaginara
Encostara-se a uma das colunas do Cais das Colu- nada, amava-o simplesmente, pois tudo em Pisa era
nas. Por instantes olhou em volta, como a procurar para mim a felicidade completa, o absoluto, a bran-
o mármore branco de Pisa, e continuou: cura ideal...
—^ Se a catedral fosse gótica eu teria amado o gótico
3 - Bolor
B O L O R 67
10 de Fevereiro
14 de Fevereiro
nómicos e antiquados os actuais processos de desflo- não fazermos nada... Para dizermos que é difícil hoje
ramento? saber o que se passa... E nós a esfregarmos as mãos com
a crise, porque ela nos pÕe entre parêntesis, nos dis-
* .... ,
sem eu querer. Mas os meus interesses espontâneos bou de pronunciar a palavra político? No instante em
são outros. que a subida de voz a traduzir uma frase interroga-
— De que natureza? — perguntou, como se eu tiva atingia o ponto mais alto? Num desses momentos
fosse um desconhecido. as cinco virgens levantaram-se. •— Mas como desejo
— Outros! — digo irritado, com vergonha de res- dar expressão a essas minhas débeis virtualidades,
ponder: interessam-me as artes, as ciências humanas... sinto-me frustrado. — «Frustrado também, eu pelo
Mas este diário ignora também as artes e as ciências menos, porque já tenho trinta e oito anos e aquelas
humanas, não é? Pergunto-lhe:—Descobriste, ao raparigas têm dezoito.» — O mundo faz-se sem mim,
escrever, que és um político... sem o meu voto, nem sequer contra o meu voto. Cor-
— Não é bem. Descobri a razão por que a minha tado da vida social, se por vida social entendermos
vida está vazia. a construção de uma sociedade nova, Isso destrói-me,
— Tens ambições políticas e, dadas as tuas ideias, torna-me céptico, céptico até em relação às coisas
sentes-te sem futuro... em que acredito, pessimista. — Os olhos brilhavam-
— Não tenho ambições políticas, apesar de men- -Ihe: —- Vais escrever isto no teu diário? —• Mas não
talmente dedicar muitas horas à política. Nisso estou me deixou responder: — Escreve... •— Parecia ditar:
de acordo contigo, a política é para mim um inte- Através da comparticipação na coisa pública o homem
resse 'Secundário. •— Tirara novamente o anel do dedo integra-se na sociedade, domina a solidão. E essa soli-
(mas insisto; poderei garantir que foi nesse preciso dão não se vence a escfever diários ou livros, ou a pin-
momento?), novamente fazia dele um pião. — Há em tar quadros, compreendes? Não se vence também
mim uma certa energia política, digamos assim. Sinto a conversar no café com os amigos. — Bruscamente:
necessidade, através do voto, através de um ou outro — Não, não escrevo ura diário íntimo. T u é que
artigo escrito para o jornal, sei lá que mais!, de dar escreves.
a minha contribuição à marcha do mundo, isto é,
sinto necessidade de pesar, por pouco que seja, nos
actos governativos, nas grandes decisões... E que
sucede? Não voto, não posso escrever esses artigos...
Se eu fosse verdadeiramente um político ou um revo-
lucionário a sério ainda poderia tentar essa influência
por outra maneira. Mas não. Efectivamente não sou
um político, percebes? — Exactamente quando aca-
BOLOR 85
*
A recusa de Paulo V I , eis o grande tema que
ocupou depois do almoço as nossas conversas (nossas:
não entre mim e a Maria dos Remédios; nossas: entre
mim e o Aleixo e o Ernesto e o Guedes e o R u i ) .
À noite, deliberadamente, falei no papa à minha mu-
lher, mas esse tema, que preenchera hora e meia de
amizade com eles, de perfeito equilíbrio, quase de
2 de Março alegria de viver, morreu à terceira réplica («Ele'aca-
bará por ir a Fátima, não tenhas ilusões)), disseste tu),
O Aleixo disse bem, todos os dias leio o jornal e entregámo-nos ambos às nossas leituras. Por que
com atenção, ouço notícias, converso- acerca de polí- razão as conversas morrem entre nós, por que razão
tica. Se dentro de dez anos voltar a ler estas páginas o convívio com os meus amigos me dá uma plenitude
não encontrarei nelas grande parte do que mais me que tu não me dás, por que razão ao conviver cora
preocupa, não encontrarei nelas o que verdadeira- eles me sinto feliz — e quando olho para ti, quando
mente tem importância, o que me ultrapassa. estou ao pé de ti, imediatamente sinto incompleta
Por exemplo: segundo os jornais, Paulo V I acaba a minha vida?
de nomear o cardeal Costa Nunes seu legado às come- Bem sei: estaria incompleta mesmo sem ti, não
morações do cinquentenário de Fátima •— e isto, ape- és tu a causa do fracasso, mas com os meus amigos
sar dos títulos em contrário, é um balde de água fria não dou por ele, contigo sinto-lhe constantemente
em certos meios, que contavam com a vinda do pró- a presença,
prio papa. Visita que teria um significado muito espe- E eu nunca te pedi que fosses a consciência do
cial para a situação política portuguesa, visita que meu fracasso, Maria dos Remédios!
seria assim, indiscutivelmente, o beneplácito do papa
à orientação do estado novo. Mas agora a nomeação
de um representante é a prova provada de que não
virá — com tudo o que uma tal atitude implica.
BOLOR 87
15 de Março
Não me dás tudo — e é normal que assim .seja
(ninguém dá tudo, neste mundo não há absolutos).
Mas que devo entender pela palavra tudo} Para
a nossa mulher-a-dias (penso com vergonha) não h á )
quase nada.
Mas então que é que tu não me dás e que o Gui- •
lherme (já depois de ser casada contigo) provisoria-
mente me deu? Será uma certa sensação de risco, uma
certa necessidade de quebrar uma vida mais ou menos
equilibrada, mais ou menos sem perigos — eu que
não me atrevo a fazer alpinismo ou a guiar automóvel
a mais de noventa à hora?
Ao que tu não me dás chamarei X .
Ao que tu me dás, Y .
E então: X -t-Y = T U D O .
E então: T U D O - Y = X .
Que é esse X que tu não me dás?
17 de Março 19 de Março
Mas X não é uma coisa só. X é decomponível em Ontem não te disse: aquela conversa com o Aleixo
a, em b, em c, em d... (porque lhe tenho chamado Guilherme?) passou-se
Por exemplo, a: no atelier dele. E se escrevi nestes últimos dias (se vou
O Aleixo, o teu amigo Aleixo, disse-me ontem: escrever hoje) o- que escrevi (o que vou escrever)
— Porque não estudas, porque não recomeças a . é porque tu estás na Madeira e só regressas dentro
cantar, se verdadeiramente gostas mais de cantar que de uma semana. Nem ontem, nem hoje, nem amanhã,
do laboratório? pudeste, podes ou poderás, ler-me — e este adiamento
Não importa se ele acreditava no que dizia ou dá-me coragem, como se uma semana fosse a eter-
não: encheu-me de felicidade. nidade.
. Esqueceste-te, afinal, de que eu gostava de cantar, Fizemos MIOS de casados em 18 de Dezembro, lem-
Humberto? Que cfieguei a estudar em Itália e em bras-fte? E perguntei ao Aleixo o que havia de ofere-
Paris, que cantei duas vezes na Sonata'—embora nao cer-te, embora seja grave uma esposa ignorar (e essa
fosse eu que inventei o estilo do meu penteado, em- esposa sou eul) o que há-de oferecer ao homem
bora a minha saia, o meu casaco, já tenham vindo amado. Pois quê? Sou incapaz de adivinhar os teus
numa revista de modas? desejos?
Pensando bem eu talvez soubesse de numerosas
coisas que te dariam prazer (um álbum com porme-
nores do S, Jorge e a Princesa do Pisanello ou com
os frescos do Palácio Schifanoia ou com o Orfeu de
Monteverdi), mas, além do resto (que é esse resto?).
92 AUGUSTO ABELAIRA
Não encontrei palavras para responder, limitei-me pecadoras — (ah, a noção de pecado I) — do que os
a esboçar um sorriso, um sorriso pode fingir grandes gestos, os afagos? Não acredites... Não são inocentes,
coisas — e eu queria dar-lhe a entender que tinha e se há crime nos gestos também o há nas palavras:
uma opinião segura, embora ele não pudesse adivi- elas são o substituto dos gestos. Mesmo quando neu-
nhar qual. tras, mesmo quando falamos da guerra do Vietname
O Aleixo continuava: ou da revolução cultural chinesa ou duma fita ou
— Neste instante sou feliz, se o não fosse não esta- dum livro, as palavras estão carregadas da intensidade
ria contigo. Evidentemente, quando se inicia uma dos gestos. — Encostara-se à janela, de costas voltadas
viagem é porque, apesar de tudo, apesar de teorica- tanto para o meu retrato como para mim. — EscOn-
mente pessimistas, pensamos vir a alcançar a felici- demo-nos atrás delas supondo que assim cobrimos
dade. A felicidade total. a nossa nudez. Mas quando nos escondemos mentimos.
Encostado a uma parede, o desenho de um cavalo Falava friamente como se não fosse de nós que
vitorioso, cheio de força — mas ainda sem letras. falasse e quando eu lhe respondi que nem sempre
— Que representa este cavalo? — perguntei. as palavras substituem os gestos, disse-me:
. —Aspirina, vinho do Porto, uma nova fibra sin- — Neste caso substituem. — Continuava afastado
tética, não me recordo já. de mim, encostado à janela, continuava a falar como
E no dia seguinte, dubiamente: se nós não existíssemos.
— Continuas a esconder do Humberto o teu Atrevi-me:
retrato? . ; — Gostas de mim? — Sentia-me segura, com a sen-
— A esconder? . , sação de ter vencido a crise, convencida de poder desa-
— Sim. fiá-lo sem perigo (depois vou-me embora, pensava).
— E tu? Não és amigo dele? Ainda uma vez ele recuou — não se atrevia a men-
— Às vezes sinto-me um canalha. — Era uma de- tir inteiramente (é um tímido, embora utilize a timi-
claração de amor. i . dez como a sua melhor arma ofensiva).
— Não — respondi. —Gostamos de conversar um — Tenho-me feito essa pergunta muitas vezes.
com o outro e nada mais — recusava-lhe a declaração — E a resposta? — Este jogo fascinava-me, Hum-
de amor. — Se não digo nada ao Humberto é porque berto.
ele seria capaz de imaginar o que não existe. — Ei-la: pensando bem ainda não gosto de ti.
Apertou o cerco: j E provavelmente nunca gostarei... — Insistia em refe-
— As palavras, as. trocas de palavras, são menos rir-se a nós os dois como se lhe fôssemos indiferentes.
96 AUGUSTO ABELAIRA
í — Bolor
BOLOR 99
31 de Março
blusa de seda crua com botões de madrepérola, os — Crês que os casais nao devem viver juntos. Más
braços cruzados no peito): podíamos viver juntos esses três meses, separávamo-
— Como poderei gastar o que não existe? — Olha- -nos depois.
va-me perturbada, para ela a minha frase não fora Subitamente surpreendi-me a decorar, mais do que
ridícula, a saia castanha cortava-lhe as pernas um tudo- a compreender, estas frases, a decorá-las para depois
-nada acima dos joelhos. — Isso queria eu saber: se as pôr aqui. Talvez (só agora penso nisso) fosse ape-
estou aqui por amor. nas o desejo de se entregar à situação dramática, ao
— E u não queria dizer amor. Teremos gasto o gosto de pronunciar frases (de simultaneamente as
gosto de estarmos juntos. viver), que movia a Maria dos Remédios.
— Não sei. Às vezes penso; se venho aqui por — Não, não há amor entre nós — acrescentou.
amor estou perdoada. Mas se não é? — Sentara-se, eu Pressenti que desejava um desmentido.
sentia-me fascinado pelos botões de madrepérola (e — Não... — disse-lhe, receoso de que a Maria dos
talvez não fossem de madrepérola), desejoso de lhos Remédios gostasse de mim — Nunca amei uma mu-
desapertar, mas não me atrevia, naquela sala ilumi- lher, sou incapaz. Qua,ndO' me encontro contigo ponho
nada pelo sol. — Outras vezes penso o contrário: só uma máscara. Como os primitivos que nos grandes
serei perdoada se não te amar, se estiver aqui sem ritos anuais às duas por três acabam por acreditar no
amor, apenas para encher a vida. Porque nesse caso poder da máscara... sinto-me outro, com outros pode-
não engano o meu marido, como não o engano se for res, já não sou eu... ou sou verdadeiramente eu. Afasto
ao cinema, se der um passeio... — Ficou um instante assim a vida quotidiana, abro um parêntesis na rotina
calada. Depois levantou-se, deu em silêncio duas vol- diária e familiar e esse parêntesis tem, como entre os
tas à sala, arranjou as flores de uma jarra. — Sempre primitivos que se mascaram, qualquer coisa de secreto.
que subo estas escadas 1 — Passara-lhe pela cabeça uma De misterioso. E represento um papel, um papel bem
ideia louca. — Amanhã vamos passar o dia à praia! mais rico do que o meu, bem mais dramático. Porque
E não olharemos para o relógio. — Insistiu: — Quem com a minha mulher, a mulher com quem vivo há
me dera á certeza de que não estamos a brincar, em- tantos anos, de quem tenho dóis filhos, não é fácil
bora estejamos a brincar! Devíamos talvez viver jun- revelar-me tal qual sou ou imagino ser. E l a julga que
tos..; ' me conhece, eu julgo que a conheço. E muitas vezes
— Se nos amamos, cansar-nos-emos dentro de três eu próprio me sinto ser o que ela pensa que sou.
meses. Se não nos amamos seria tolice... Quando estou com ela, mesmo sem querer, faço sem-
Riu-se: "-^ pre, digo sempre, as coisas que ela espera, as coisas
116. AUGUSTO A B E L A I R A BOLOR 117
com as minhas mãos, com os meus lábios, com todo Não me ouviu, eu talvez não tenha chegado a falar,
o meu corpo? E continuou:
O Humberto: — Faz hoje oito dias que comecei. Resolvi diver-
— Não, não tenho vida íntima. tir-me. Abri este caderno a meio, comecei a escrevê-lo
Que também escrevo como se fosses tu a escrever, com a data certa e depois fui escrevendo em direcção
que gostaria ,de comparar o que .ambos escrevemos. à primeira página, em direcção a Fevereiro, a Janeiro,
Que gostaria de te mostrar que sou profundamente a Dezembro. Agora já não tenho mais folhas para. trás,
teu amigo. Profundamente. não posso chegar a Novembro ou a Outubro, agora
— Não tenho vida íntima. Rir-^te-ias se eu te dis- só tenhO' folhas para a frente: Maio, Junho, Julho...
sesse. .. — Olhava-me com ironia. — O meu diário é Quando' chegar ao fim do caderno termino a brin-
uma brincadeira, não o escrevo na minha primeira cadeira.
pessoa, mas na primeira pessoa dos outros. Por exem- — Tamanha complicação, para quê?
plo, na tua. — Talvez esteja a mentir — respondeu.
— Porquê? — Poderei dizer-te que sou profunda- Adivinho: para além dos teus olhos, atrás deles,
mente teu amigo, que amar a tua mulher não lá onde os teus olhos não são vistos, mas vêem, lá onde
é trair-te? '-^''"^ ' tu estás (onde eu não estou), lá onde eu sou objecto
— Divirto-me. De resto é um diário recente. Foste e não' sujeito, estas palavras (mas não sob a forma de
tu que no outro dia me deste a ideia de o escrever palavras) nascem dolorosamente: «Pergunto-me se no
quando me perguntaste se eu tinha um diário, lem- teu diário, Aleixo, escreveste alguma vez o nome da
bras-te? Dessa vez eu preparava o relatório para um Maria dos Remédios, sofro com uma coisa tão simples
cliente. como esta: terás escrito o verdadeiro nome dela ou,
Que pensas de mim? Imagino-^te a dizer-me: «Gos- por prudência e até por delicadeza, preferiste escon-
tas da minha mulher e.,.» Não. Imagino-me a dizer-te: dê-lo — tal como eu faço? Aflijo-me só de pensar que
«Eu e a tua mulher... Mas não= te traímos, pois... o teu caderno possa cair nas mãos de outra pessoa
E posso dizer-te, garantir-te, se duvidas dela: ela gosta e que um desconhecido venha a conhecer a minha
niuito de ti, gosta mais de ti do que de mim. Podes vida através da tua.»
acreditar, é a verdade.» T u dirias: «Enganas-me, é —^Talvez esteja a mentir — repetiu.
certo, mas sofres porque me enganas, e se sofres é por- Se tu morresses eu poderia ir viver com a Maria
que és meu amigo.» dos Remédios? Por um instante, enquanto olho para.
, . — Que pensamos nós um do outro? ti (continuas a falar), não, enquanto penso em ti (estou
AUGUSTO ABELAIKA
3 de Abril
Diz-me num intervalo da política (ela ocupa milha-
res de quil(5metro5 nestas nossas conversas em que só
alguns metros destinamos a nós próprios):
— Hoje pensei: vou abandonar a advocacia.
— Para...?
Não responde. ((Sabes de tudo)), penso, ((estás
a armar-me uma ratoeira, desejas que a tua mulher
se comprometa definitivamente comigo de modo a ten-
tares uma vida nova, finalmente livre e de consciên-
cia descansada. Mas não contes com o meu auxílio,
ouviste? Não' te darei essa liberdade, também quero
uma vida nova, mas sei bera que a Maria dos Remé-
dios — tua mulher não me poderia dar essa vida
nova.»
tico, o tal mundo diferente do mundo esvaziado pelo
hábito... E por isso aqui venho.
Deitados, substituindo por palavras os gestos que
uma hora antes e durante tanto tempo as haviam afas-
tado dos nossos pensamentos. Mas quem falava eras
tu e até me dizias: «Porque te calas?)) Porque me calo?
Murmurava para mim próprio: (cQue procuro eu em
4 de Abril ti, Maria dos Remédios, quando te trago para o meu
atelier} Encher o tempo vazio da minha vida de pin-
A Maria dos Remédios disse-me hoje, e eu senti-me tor falhado que se dedica à publicidade, enchê-lo
verdadeiramente a máscara dela; fecundamente, dar a esta vida um pouco de beleza
— Espantoso que seja muito mais cómodo ser infe- através do amor — ainda que fantasiado — de uma
liz do que feliz. Porque se eu e o Humberto quisés- mulher bonita e inteligente que simultaneamente me
semos... Uma simples questão de esforço, de esforço oferece conversa, conversa envolvente, rica, palavras
persistente, de combate sem tréguas! Sempre que eu que brincam, que se matizam graças a mil subtilezas,
e o Humberto nos dispomos a tal esforço, a ir à busca e me oferecem gestos que se colam ao meu corpo.
de certas palavras sepultadas, perras, difíceis de trazer Encher o tempo: diálogos não somente através dos
à vida por falta de uso...! Sim, quando vamos desen- vasos comunicantes das palavras, mas também dos afa-
cantar ao passado, ao presente, ou até ao futuro, den- gos, da nudez dos corpos a falarem no silêncio das
tro ou fora de nós, palavras que nos permitem parti- palavras, transformados subitamente em linguagem
cipar um do outro, então somos felizes. E aí tens o jogo (de pergunta, de resposta, de entendimento) que vai
bem mais fácil; procuro em ti uma parte da felicidade até o êxtase. Mas ao procurar em ti o êxtase, esta
que não encontro com ele, sabes porquê? Porque estar forma de achar o repouso, de sentir do tempo não
nos teus braços é, de certo modo, mergulhar no tal a abolição mas a presença, a densidade, o peso vio-
mundo imaginário e difícil que dá a felicidade, mas lento sobre os ombros, violarei alguma lei profunda?»
de uma maneira mais simples; não precisamos de — Se eu — dizia ela por cima dos meus pensa-
achar palavras novas, gestos novos; as palavras que mentos — me dispusesse a um esforço, não precisaria
entre mim e ele se; tomaram gastas, ainda são novas, de me encontrar contigo, diria agora ao Humberto
ainda são cristalinas se eu e tu as dissermos um ao em vez destas palavras tão fáceis, outras.,. Quais? Mas
122 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 123
depois de te dizer tudo quanto posso dizer sem esforço, te esforças, porque inventas para mim palavras que
tudo quanto já lhe disse a ele, afinal, que ficará para ainda não gastaste com ele? Será que, afinal, tu...
te contar? Nada... — Voltou a repetir-se; — Sim, com Será que afinal gostas de mim?»
ele e com esforço, vencida a inércia, a preguiça, pode- Poderia dizer^e: não quero, não desejo que gostes
ríamos imaginar milhares de coisas, nascer muitas de mim.
vezes de novo, eu conseguiria impedi-lo de ver em
mim a mulher já conhecida, de ver nele o homem
já conhecido...
— Todos somos desconhecidos uns para os outros
— interrompo-a com um lugar-comum, reconhecendo
naquela linguagem a própria linguagem do Hum-
berto.
— Mas é como se o não fôssemos. Não exploramos
esse desconhecimento, pois é mais fácil fingir que nos
conhecemos. — Beijo-lhe o sinalzinho preto, desejoso,
de lhe dizer: «Como eu gosto de til», mas continuo
a ouvi-la. — Eis-me contigo porque te conheço mal,
porque ainda és um mistério, ainda és imprevisível...
— Conhecemo-nos há quase vinte anos — murmu-
rei, sem levantar os lábios do sinalzinho preto.
— NãO'...— Afastou-me o rosto com brandura.
— Mas se eu quiser, se eu O' observar a fundo, ele
também é imprevisível, é previsível apenas quando
estou desatenta. — E pouco depois: — Tenho ou não
suficiente imaginação, suficiente poder de observação
para prescindir de ti, para fazer da minha vida com
ele um constante recomeço?
Respondo:
—'É verdade, meu amor. — E m vez de: «Isso que
me dizes, porque não o dizes ao Humberto, porque
B O L O R 126
5 - Bolor
BOLOR 131
ainda nada (talvez nunca ache nada) —, segue um. do nosso casamento. Não nos vemos, é isso? Já não
caminho pessoal, alheio ao meu, só tem a ver alguma damos, um pelo outro. — Acrescento literariamente;
coisa comigo porque somos legalmente casados, se — Às vezes nem dou por mim.
o não fôssemos h á muito nos teríamos separado, não — És então feliz, não sofres.
por causa de outros amores, mas porque entre nós — Sim, não sofro-, não- sou feliz.
se perdera (se perdeu) o contacto profundo que tor- Ele;
naria inútil este diário (escrevo em vez de conversar). — Conclusão: muda de penteado, deixarei crescer
A Maria dos Remédios, pressinto-o, observa-me, o bigode.
por entre a leitura da Imitação dos Dias — talvez se — Talvez continuássemos cegos, talvez tu passas-
pergunte a si mesma que estarei a escrever. Poisei nela ses a ser para mim somente um bigode, u-m bigode
os olhos. num. corpo invisível. Devia ser engraçado..., deixa-me
— Vês-me —diz. E perante o meu espanto: ~ Não imaginar-te.
sinto o peso da camisola nos ombros, das saias sobre — Com bigode?
as pernas. Percebes o que quero dizer? Sentes-me? — Não. O bigode apenas e tu invisível. Que fazer
Vês-me? Ou sou transparente, um móvel que o hábito para sermos opacos aos olhos um do outro? -— Con-
já não deixa ver e que só se dá por ele quando está tinuo com o diário dele na mão e recomeço a leitura:
cheiO' de pó ou desarrumado?»
<cPergun-to-lhe:
Interrompo a leitura, repito o que não sei se algum — E tu vês-me? Ou devo deixar crescer a barba?
dia disse: — E eu mudo -de penteado? — Poisa um livro e
— Vês-me de facto? vai ajeitar umas rosas. — Já não nos vemos, é isso?
Ele devolve-me a pergunta (passamos o tempo- a Já não damos um pelo outro.»
devolver perguntas um ao outro, quase nunca nos
oferecemos respostas); Salto meia dúzia de linhas à procura de certa pala-
—^E tu? Ou devo deixar crescer a barba para dares vra (((nada)) dita por mim) e recorheço a leitura.
por mim?
— E eu mudo de penteado? Pinto os cabelos de «Pergunto-lhe depois:
verde, por exemplo? — O restaurante ficara para trás, — Porque não- nos separamos?
estamos em casa., levanto-me para arranjar as rosas — Gostas de outra mulher?
duma jarra que ele me deu há três anos no aniversário — De nenhuma.
136 AUGUSTO ABELAIRA
Uma pergunta puramtente retórica, sabias que há — Não era bem esse o sentido da minha pergunta.
seis anos, mas por isso mesmo acrescentei: — Num gesto infeliz deixara cair o garfo no regaço
r — Há seis anos: dois mil e nâo sei quantos dias. e examinava agora o vestido. Enfim sossegada (des-
— Menos... — E eis a resposta que de diante para feito o receio da nódoa) e pondo o guardanapo sujo
trás provocara a pergunta: — Grande parte desses dias em cima da mesa, acrescentou: — Continuas a gostar
não estivemos casados, metade deles dormimos. Casá- de mim?
mos portanto há pouco mais de três anos. — Passei o dia a interrogar-me: que é gostar de
— Ainda não tens vinte anos? uma mulher?
Ela, sem responder: — Não achaste a resposta.
• —Arrependeste-te. — Descansa, acabei por concluir que não me arre-
— Não... — Mas o casamento (disse de mim para pendi. Mas os homens (os homens, quero dizer, os
comigo ou escrevo agora), a vida em comum com uma homens e as mulheres) casam-se por amor ou porque
mulher, corresponde a uma necessidade íntima pro- é costume? Em suma: nós amamo-nos, Maria dos
funda, radicada no meu peito, ou é uma simples imi- Remédios, porque nos amamos do fundo da alma ou
tação dos outros, o desejo de f>ertencer, não à mulher. porque amar é um costume na nossa civilização? Isto
mas ao rebanho, à civilização que eles construíram, de é importante e não encontro resposta. Amo-te, sofre-
não ser um bicho de duas cabeças no meio de bichos ria muito se não gostasses de mim, mas... Sofria por-
com uma só cabeça? • • que sim ou porque é hábitoi sofrer? Eis o problema:
Ontem, durante o jantar (mas em nossa casa), falo português porque à minha volta se fala portu-
disse-lhe: guês, falaria a língua dos bororós se tivesse nascido
— Passei o dia — exagerava, mas o exagero é a arte entre os bororós. Andaria de gatas se tivesse sido
de nos fazermos entender uns aos outros — a pensar recolhido por uma loba.
na tua pergunta... — NãO' te rales. Preocupas-te por falar português
— Se costumas pensar muitas vezes na Catarina? e por não andar de gatas?
— Não. Se me teria arrependido de... — Nunca me teria passado pela cabeça casar se...,
— Ah, e arrependeste-te? se esse não fosse o costume. Mas quer me tivessem
— Não é isso. Tudo depende do que eu procurava ensinado, quer não, eu teria sede, teria fome, teria
ao casar-me. Por exemplo: se procurava a fortuna, sono... Estas coisas são minhas, a sede, a fome, o sono,
a possibilidade de nunca mais trabalhar, então arre- o desejo de entrar dentro duma mulher. O resto,
pendi-me. o amor, o casamento... Percebes? No meu nome, na
AUGUSTO ABELAIRA
rir. — Sem ti também não teria sido uma grande can- sociedade, cheio de paixão? Tens a certeza de que não
tora, pois não? Adiante. És o meu álibi. — Sorrindo és um caso perdido e irremediável? E que, ao fim
sempre: — Aí está mais uma razão para te amar: des- e ao cabo, cheio de individualismo, não acabarias por
culpo-me contigo, não realizei a minha vocação por te desgostar de Cuba? •
causa de t i — S e g u í a m o s a pé, estávamos sós na — Queres dizer: por invejar a vida burguesmente
noite que a L u a iluminava. E l a tinha despido o casaco fácil num país reaccionário?
de lã, ;segurava-o pelas mangas, fez dele uma corda — Não são poucos os exemplos dados pelas gran-
de saltar. E saltou. — És o meu álibi, és o meu álibi... des revoluções: insensivelmente, os homens como tu
:— Saltou mais uma vez, menina de seis anos. acabam por se comportar como contra-revolucioná-
E eu: rios, preocupam-se com questões que nao são efectiva-
— Porque não havias de ser também o meu álibi? mente as mais importantes, acabam por trair as revo-
Sem ti, sem a necessidade de ganhar dinheiro, sem luções, mesmo- que de boa-fé...
a necessidade de jantarmos fora de vez em quando... Fiz coro com ela, continuei no mesmo tom:
Não advogava I Talvez me dedicasse a uma tarefa cria- — Somos reaccionários irremediáveis, somos con-
dora, verdadeiramente humana. — Um luar morno, tra-revolucionários incorrigíveis, regimes como o nosso
sem uma ponta de vento, o mar lá em baixo. — Esta- são- os regimes ideais. Dao-nos álibis, permitem-nos
mos segregados da vida da cidade, sabemos que ela
a boa consciência, a preciosa ilusão de nos supormos
se constrói sem nós, e como não temos força para
revolucionários... — Pensei nas palavras dela, dias
reagir, para tentar impor os nossos ideais, como não
antes: ((Que farias tu de ti, desse novo homem? Para
somos revolucionários verdadeiros, homens de acção,
que te serviria ele?»
sentimo-nos batidos, desenganados, mortos, infelizes...
Porquê? De súbito a Maria dos Remédios pôs-se
Em Cuba, ao ajudar a erguer uma nova sociedade,
seria de facto um homem de acção, umas vezes feliz a fazer contravapor, a negar o tom da conversa que
outras infeliz, mas, no conjunto, considerar-me-ia satis- ela própria iniciara:
feito, amplamente realizado... — Defendes os presos políticos...—Falava-me
Ela deu outro salto à corda. Pegou-me no braço, com ternura, -desta vez sem ironia, procurando dar-me
falou-me com ternura, uma ternura irónica: confiança.
— Então não sou suficientemente importante para — Mas envergonhado, com a consciência de que
que te baste como álibi? Tens a certeza de que em estou a representar uma comédia, de que nada faço,
Cuba ou na Comuna de Paris agirias ao serviço da salvo contracenar na comédia.
144 AUGUSTO ABELAIRA BOLOR 145
, mente vazias), ternas e gastas tanto por nós próprios —Querido'!—A mesma palavra que ela disse
como pelos outros. momentos antes, mas completamente desbotada. Beijo-
A Maria dos Remédios: -Ihe então o sinalzinho preto, procuro colorir na boca
— Disseste alguma vez a uma mulher palavras dela (na voz dela) a palavra que desejo repetida. E a
como estas e que gostavas dela sem gostar? Maria dos Remédios agita-se sob o meu beijo, mas
— Já. — Mas continuava a não me atrever a beijar- em silêncio.
-Ihe o sinalzinho preto (como tirar prazer desse beijo Desisto então, viro-me, deito-me de costas, digo
sem as tais palavras gastas?). Que se impunha uma sem lhe tocar:
outra convenção. Que embora não houvesse amor (no — Não és querida, mas se te abraço tenho de dizer
sentido de aquela mulher ser para mim insubstituível, querida, tenho de te dizer meu amor, tenho de te
no sentido de eu sofrer profundamente se ela me fal- ouvir dizer querido, dizer meu amor... Porque as pala-
tasse), faziam parte dos afagos, mesmo do puro prazer, vras fazem parte, porque
palavras como querida e meu amor. Que qualquer
coisa me prenderia os gestos (vergonha talvez) se eu Poderia concluir a frase que deixei em suspenso
não os acompanhasse da miisica das palavras (que no papel (somente no papel; na realidade, continuei-a,
importa se mentirosas?). o nosso diálogo prolongou-se por muito tempo, regresr
•— Querida! — insisto, apertando-lhe com força os sei de novo àquele mar ondulante onde a minha ener-
braços, ancorado e tranquilo naquele mar sem ondas. gia se tomou líquida e finalmente repousada). Pode-
— Porque mentes, Aleixo? — Uma voz branda ria concluí-la, escrevê-la aqui... Mas para quê? Ah,
(azul) a ignorar a dor dos braços, um imperceptível o entusiasmo com que no primeiro dia peguei na
movimento das ancas. caneta, passaram^e quase dois meses, quando estas
— As palavras não são verdadeiras nem falsas. •— linhas não mediam ainda trezentos e cinquenta metros,
(São como as árvores, escrevo agora, são como as ó Leonor!
pedras, são como todas as outras coisas.) Continuo
debruçado sobre o sinalzinho preto sem ousar beijá-lo.
Não sei se lhe disse, se pensei, se é este caderno que
me convida a escrever:, as palavras são para as dizer-
mos e por isso é que existem, a verdade e a falsidade
não têm nada a ver com elas, fazem parte doutro
mundo.
14 de Fevereiro 20 de Abril
Lembro-me de uma antiga conversa que nunca Procuro perceber, Humberto: porque casaste pri-
chegámos a ter, olho para ti, Maria dos kemédios: meiro com ela? Brincávamos contigo, éramos a mesma
talvez um de nós esteja morto, o mundo tenha sido — contigo, pelo menos na tua presença, eu não era
feito de tal maneira que os mortos e os vivos se cru- somente eu, era mais, muito mais... Éramos a mesma,
zem uns com os outros e se tornem amigos (ou inimi- tínhamos até o mesmo nome (Julieta) —, mas quando
gos ou indiferentes), os mortos não saibam que já nos dividiste em duas (e uma em relação à outra,
morreram, julguem que estão vivos, os vivos não sai- e cada uma para si própria, éramos na verdade duas,
bam que são irmãos dos mortos. Qual de nós estará quando não estavas presente) foi a ela, à Catarina, que
morto, Maria dos Remédios? E esse colar que trazes escolheste, com ela casaste. Nunca nos reunimos os
ao pescoço diz-me somente que viveste há quatro mil três, afinal não sei bem se a Catarina me dizia tudo
e quinhentos anos — ou que vives hoje, mas és igual quanto vocês diziam, se não esconderia certas coisas.
a milhares de mulheres que viveram há quatro mil Mas eu também fazia batota, não lhe revelava tudo.
e quinhentos anos? Que nada tens de teu? Que nunca E tu certamente fizeste batota, todos fizemos batota.
chegaste a nascer? Um dia, foi logo no princípio:
— Ontem beijei-te pela primeira vez, vou beijai--te
pela segunda.
A Catarina nada me tinha dito e portanto um dos
dois mentiu. Deixei que me beijasses (se eras tu a men-
tir, certamente disseste à Catarina: ((Ontem beijei-te
pela primeira vez, vou beijar-te pela segunda»). Dei-
1S4 AUGUSTO ABELAIRA
(iiaAjnxixsaasNi S3
Por todos os lados. E quando estava a observá-la,
a pensar que devia escrevê-la em relevo para poder
apalpá-la, com cheiro para poder cheirá-la, com sabor
para poder prová-la, descobri: a forma exacta, a forma
objectiva, acessível a todos os observadores, é outra.
A frase-coisa que existe, independentemente de eu
a pensar ou até de a dizer, é esta (e pronunciada com
158 AUGUSTO ABELAIRA
com os meus olhos actuais (não os olhos com que sem- — E tu? Olhas para ele como a segurança última?
pre a tenho visto), eles mostram-me uma Leonor quase — Talvez não — respondo (e é a primeira vez que
quarentona, perdido o viço da juventude, pergunto- ouso dizer — que ouso escrever — semelhante coisa).
-me se estará a ver-me da mesma maneira, pergunto- O tal homem sem um livro, sem uma revista,
-me como me verá hoje quem nunca me viu mais a olhar simplesmente para a rua vazia. Donde o conhe-
nova, quem não pode portanto ver-me com os olhos ço? Uma dessas caras que fora do sítio habitual se
do passado, quem não poderá saber que envelheci, tornam duvidosas, não se sabe se conhecidas se des-
quem saberá somente que sou velha (como se sempre conhecidas, que nos parecera inacabadas como se lhes
o tivesse sido). faltasse o nariz ou as orelhas, que só se tomam per-
— Não pretendo conservar o Aleixo — respondo. feitas quando finalmente as localizamos: o porteiro
— Ele também não pensa era trocar-te por mim, de um restaurante onde costumo ir com o Humberto,
Se não fosse comigo seria com outra, — A Leonor não mais incompleto ainda porque visto sem a farda. Com-
reagia, o ombro encostado à parede, o rosto apoiado pleto agora poi-que o situei.
na mão. E atrevi-me a fazer-lhe uma pergunta difícil:
A Leonor dizia:
— Nunca enganaste o Aleixo? — Não tenhO' coragem.
Endireitou-se, subitamente agitada.
— De quê? — Esquecera-me de que lhe fizera uma
— Perdi a confiança em ti. — Encostara-se de novo
pergunta.
á parede, — Mesmo que o tivesse enganado não pode-
— De ter uma aventura.
ria falar... Apesar de tudo és uma rival. — Dobrava
— Antes de continuar, diz-me outra coisa: o Aleixo
cuidadosamente o lenço de seda. — Talvez decidas um
é para ti a segurança última sem a qual não poderias
dia lutar contra mim, nunca se sabe! E revelar-lhe
a minha confissão... Terias todas as vantagens... viver, sem a qual todo o teu futuro seria uma porta
fechada?
— Nem todas... — O sorriso, um sorriso lumi-
noso, encoraja-me a continuar. — De resto, se não — Não sei — respondeu, endireitando-se de novo.
fosse eu, se não fossem as outras, quem sabe se o Aleixo — Talvez outro homem pudesse sê4o... — Meteu-se
não te teria já deixado? Representas para o Aleixo em seguida por um atalho, não compreendi muito bem
a estabilidade, a rocha indestrutível a que se pode aonde queria chegar: — Às vezes olho para o mundo
agarrar, alguém cujo amor ou amizade é insubstituí- como se o mundo permanecesse imóvel, não te sucede
vel. O Humberto também olha para mim como a segu- o mesmo? Sei que não... Sei que na minha adoles-
rança última. cência escrevia com caneta de tinta permanente e não
d — Bolor
162 AUGUSTO ABELAIRA B O L O R 163
com esferográfica, lembro-me até do dia em que pela rido ideal. Não posso, não me interessa uma aventura
primeira vez vi uma esferográfica. qualquer.
.— Não tenho ideia nenhuma. — Procuras um marido ou simplesmente sonhar
— Ainda me lembro da minha mãe a coser as alguns momentos? O marido já tens...
meias antes do nylon. Depois começou-se a falar nas — Não se pode sonhar com um homem qualquer.
meias de vidro... A expressão não pegou, mas ainda Um marido é fácil, relativamente fácil, apesar de difí-
há uma loja com esse nome. E muito para trás, muito cil. Mas um homem para sonhar, um homem para
para trás, é quase uma das minhas primeiras recor- sonhar e que veja em mim somente uma mulher para
dações... O primeiro aparelho de rádio... E até me sonhar e que não exija mais de mim...
lembro da marca, nunca mais ouvi falar dessa marca, — Que entendes por não exigir mais de ti? Que
mas dantes ela andava anunciada em todas as revistas: não te leve para a cama? — Vejo-a retrair-se, chocada
com esta linguagem.
Pilot, Pilot Radio. E r a uma novidade em mil nove-
— Não é isso — diz, recuperando a calma, recome-
centos e trinta e poucos. íamos todos a casa do senhor
çando a dobrar e a desdobrar (quer obra perfeita)
Felgueiras para ouvir, sabes o quê? E com que infi-
o lenço. — Gostaria de ir com ele para a cama — hesi-
nita religiosidade! O Big Ben, Lx>ndres à meia-noite!
tou, pronunciou a última palavra num tom mais
Toda a gente se calava então, ficávamos a ouvir as
baixo — mas... Na cama pode-se sonhar, não é? —
badaladas de Londres, nós que estávamos em Bra-
Inesperadamente: —^ Sei o que digo; l i o diário do
gança! Mas tudo isto sei, não o sinto... O mundo
Aleixo, um diário em que ele nauitas vezes se faz pas-
parece-me imóvel, tenho a impressão de que continuo
sar por ti.
com a mesma idade, de que nada se passou, de que
— Ah, sempre é verdade? Que me obriga ele a
não me casei, de que não estive no liceu, de que não
pensar?
tive dois filhos, de que tudo- é um pesadelo, de que
— Talvez o que lhe costumas dizer.
talvez acorde dentro de momentos... Espantada, des-
—^Que lhe costumo dizer?
cobrirei então que tenho dezoito anos, que ainda não
Não está interessada em mim, mas nela própria,
me casei, que o futuro está à minha frente e não
e ignora a p>ergunta.
atrás... —Pôs-se a brincar: dava beliscões nos braços
— Gostava de saber — acrescenta — porque foi
e dizia: — Acordo ou não acordo? Não tenho cora-
que ele me deixou ler o diário.
gem—repetiu.— Acho-me na situação da rapariga
— Escreveste nele alguma vez?
romântica que deseja casar-se, nlas não encontra o ma-
— Escrevi.
164 AUGUSTO ABELAIRA
B O L O R , 165
— Qualquer coisa como «porque não sonhas — Sou assim tão velha? — quase não ouço o que
comigo?» diz.
— É impossível sonhar com a própria mulher, ela — Se achas que não vale a pena, és. .
está demasiado próxima, é demasiado real, é até a rea- — Não tenho coragem, não tenho coragem — re-
lidade... De resto... Não é verdade que eu não sou pete.
a primeira mulher do Aleixo e que ele começou a
.soniiar comigo quando ainda vivia com a outra?
Perto de nós, um homem de cabelo grisalho •— não
o v i entrar —, um transístor em cima da mesa, o ou-
vido ligado ao transístor por um cordão umbilical.
Que poderia ouvir no uníssono de todas as emissoras?
L i a ao mesmo tempo O Século, a página desportiva.
O Homem a caminho da ubiquidade, a caminho de
coisíssima nenhuma.
Insisto:
— Que escreveste afinal? — O lenço desdobrado,
selos coloridos: flores, pássaros, um rinoceronte de
perfil.
— Que havia de ser? Qualquer coisa como «por-
que não sonhas comigo, Aleixo?))
— Respondeu-te?
— Não.
í)igo-lhe na rua, quase à despedida:
— É uma questão de coragem ou descobriste que
tens quase quarenta anos e que já não vale a pena...?
— Ela tenta disfarçar a perturbação, ajeitando o lenço
na cabeça e eu prossigo: — Que dez anos mais cedo
teria valido a pena, mas hoje não...?
BOLOR
Sem data