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Por

Oldemburgo Neto

A
lvos de preconceito e críticas por setores da classe médica brasileira desde a implantação
do programa no Brasil, há cinco anos, cubanos do Mais Médicos vêm conseguindo, por meio
do trabalho e dos laços afetivos com pro issionais e pacientes, sustentar o sucesso do proje-
to que é reconhecido dentro e fora do país. Nesta reportagem especial, especialistas analisam os
impactos do socialismo cubano no modo de se fazer medicina em Alagoas e no Brasil. Em entrevista
exclusiva, a cientista política da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Evelina Antunes, a irma que
o monopólio dos meios de informação é um importante aliado dos interesses conservadores no Bra-
sil, e que apenas recentemente a formação de médicos deixou de ser exclusividade das elites.
na Unidade de Saú de da Famı́ l ia
(USF) Caic Virgem dos Pobres, locali-
zada no bairro Dique Estrada, à s mar-
gens da lagoa Mundaú , periferia da
capital alagoana.
Atualmente, Yojana e Alexandry
sã o os ú nicos mé dicos cubanos que
atuam em Maceió pelo Programa
Mais Mé dicos (PMM), uma iniciativa
do governo brasileiro cuja mediaçã o
dos trâ mites legais é feita pela Orga-
nizaçã o Pan-Americana da Saú de
(Opas). Outros dois cubanos atuaram
em Maceió ao longo dos cinco anos de

Foto: Pixabay - Domínio público


existê ncia do programa, mas ambos
retornaram a Cuba apó s o cumpri-
mento dos trê s anos de contrato.
Alguns pro issionais da USF Caic
Virgem dos Pobres, que nã o quiseram
se identi icar, relataram que houve
casos de mé dicos cubanos que fugi-


ram da capital alagoana com destino a

E
Miami depois de enfrentar problemas
ntã o eu me dei conta de uma testada nos Estados Unidos, e foi o pri-
de ordem inanceira com a Prefeitura
coisa fundamental: para ser meiro paı́s do planeta a eliminar a
Municipal de Maceió , que nã o repas-
mé dico revolucioná rio, a pri- transmissã o materno-infantil de HIV,
sava aos cubanos o valor referente ao
meira coisa que é preciso ter é uma conforme atesta a OMS, també m em
auxıĺio moradia, previsto em contrato.
revoluçã o”. A frase é do mé dico e um 2015, con irmando a colocaçã o do sis-
dos principais expoentes da revolu- tema de saú de cubano na vanguarda Sobre esse assunto, a coorde-
çã o cubana, Ernesto Che Guevara, do continente americano e muito nadora do Programa Mais Mé dicos
assassinado há 50 anos, na Bolıv́ia. acima da mé dia mundial. em Alagoas, Ivana Pitta, disse que
“de fato houve atraso de um mê s no
Cuba alcançou uma posiçã o de Do ponto de vista da medicina
repasse aos cubanos por parte da
destaque em nıv́el internacional por cubana pó s-revoluçã o de 1959, que
Prefeitura, mas que ningué m foi
possuir um sistema de saú de consi- universalizou a assistê ncia mé dica
embora por conta disso”. A reporta-
derado de excelê ncia pela Organiza- gratuita para todos os cidadã os cuba-
gem tentou apurar o caso com a mé di-
çã o Mundial da Saú de (OMS), basea- nos, um mé dico nã o deve apenas tra-
ca cubana que hoje vive em Miami.
do na atençã o primá ria, na prevençã o tar de doenças, mas ser parte de um
Por e-mail, ela se recusou a falar
de doenças e no internacionalismo. processo de transformaçã o social.
sobre o assunto e se limitou a escre-
De acordo com o relató rio do Para alé m de solucionar uma dor ou
ver que “essa histó ria já deu muita
Estado Mundial da Infâ ncia da Unicef, uma doença, há de se enxergar a
dor de cabeça”.
Cuba obteve em 2015 uma taxa de saú de com um olhar mais amplo, no
A USF Caic Virgem dos Pobres
mortalidade infantil abaixo de cinco sentido de que se promova dignidade
está inserida no Programa Mais Mé di-
por 1.000 nascidos, dado que coloca à populaçã o e que o tema seja de inte-
cos e funciona com o modelo de estra-
o paıś entre as primeiras 40 naçõ es resse nacional.
té gia em saú de da famıĺia, contando
do mundo. Pouco mais de 6 mil quilô me- com diversas equipes para atender a
O paıś caribenho també m foi pio- tros de distâ ncia separam Cuba – a populaçã o na á rea cadastrada. As
neiro em diversos avanços na medici- famosa ilha caribenha – e a cidade de equipes sã o compostas por mé dicos,
na. Em 1985 desenvolveu a primeira e Maceió , no nordeste brasileiro, onde enfermeiros, té cnicos de enferma-
ú nica vacina contra a meningite B. vive o casal de mé dicos cubanos Yoja- gem, nutricionistas, agentes comuni-
Conseguiu novos tratamentos para na Flores e Alexandry Santoyo. Natu- tá rios de saú de, odontó logos e agen-
combater a hepatite B, o pé diabé tico, rais de Pinar del Rıo ́ , cidade famosa tes de saú de bucal. Conta ainda com
o vitiligo e a psorıáse. pelos mais caros e melhores charutos os tradicionais serviços de vacinaçã o,
Desenvolveu uma vacina contra do mundo, ambos chegaram ao Brasil marcaçã o de consultas e exames, cura-
o câ ncer de pulmã o, que está sendo em outubro de 2016 para trabalhar tivos, nebulizaçã o e testes rá pidos.

02 VEM DE CUBA - JUNHO - 2018


Foto: Oldemburgo Neto
Unidade de Saú de da Famıĺia Caic Virgem dos Pobres, à s margens da lagoa Mundaú , em Maceió

O processo seletivo enriquecedor. Nessas 'missõ es' longe de


“Para nós, acima de nosso paıś aprendemos novas doenças e
Para Yojana e Alexandry, o pro-
cesso seletivo se deu diretamente junto qualquer coisa, é como novas possibilidades de tratamento, o
ao governo de Cuba. Por ser um paıś de estar em uma missão, e é que consequentemente aumenta a nossa
regime socialista, os trâ mites legais muito enriquecedor. quali icaçã o pro issional”, declarou Ale-
para conseguir uma vaga no PMM nã o Nessas 'missões' longe de xandry, ao lado de Yojana, dentro de um
funcionam exatamente como em um consultó rio mé dico da USF Caic Virgem
nosso país aprendemos
paıś capitalista. dos Pobres, onde trabalham juntos.
novas doenças e novas
No Estado cubano há a preocupa- Diferenças do idioma
çã o de manter baixos os ın ́ dices de desi- possibilidades de
gualdade econô mica e social. Essa é a tratamento, o que Fluentes na lı́ngua portuguesa,
razã o que explica o fato de que nenhu- Yojana e Alexandry parecem nã o
consequentemente
ma empresa ou governo estrangeiro encontrar muitas di iculdades na com-
aumenta a nossa
contrata trabalhadores cubanos direta- preensã o do que se conversa com paci-
quali icação pro issional”. entes durante as consultas, e essa capa-
mente, dentro ou fora da ilha. Todos sã o
contratados por empresas estatais que citaçã o de dominar um idioma que nã o
recebem do contratante estrangeiro e lhe sã o de origem se deu ainda em
pagam os salá rios aos trabalhadores, Cuba, meses antes de embarcarem
sem grande discrepâ ncia em relaçã o ao Alexandry Santoyo, mé dico cubano da USF para o Brasil.
Caic Virgem dos Pobres
que recebem aqueles que trabalham em “O governo cubano nos ofertou
empresas ou ó rgã os pú blicos cubanos. um curso de lın
́ gua portuguesa com
“Muitos mé dicos cubanos que- duraçã o de dois meses. Isso nos ajudou
um programa que se assemelha ao
rem participar desse e de outros pro- muito aqui, principalmente no começo,
Mais Mé dicos no Brasil.
gramas como o Mais Mé dicos. No meu porque é sempre mais fá cil quando se é
caso, foi menos difıćil do que esperava, “Preenchıámos todos os requisi-
tos que o governo de Cuba exigia, como compreendido”, disse Yojana.
talvez por já ter participado de um pro-
grama como esse em 2007”, revelou Ale- experiê ncia mın
́ ima comprovada e cer- “O paciente precisa entender o
xandry. Ele e Yojana viveram na Vene- ti icados de desempenho laboral”, que eu digo e vice-versa. Se nã o conse-
zuela durante quatro anos, perıo ́ do em explicou Yojana. guem entender, falamos mais devagar,
que vigorou o contrato de permanê ncia “Para nó s, acima de qualquer coisa, até que entendam”, complementou
e trabalho como mé dicos por meio de é como estar em uma missã o, e é muito Alexandry.

JUNHO - 2018 03
Semelhanças e diferenças Dentre as vá rias etapas da forma- durante nossa permanê ncia no Brasil.
“Quando cheguei para trabalhar, çã o mé dica em Cuba, os estudantes Com o repasse, o governo cubano paga
o que mais chamou a minha atençã o foi assistem a aulas de medicina geral inte- todas as nossas despesas de moradia,
perceber a demora entre o momento gral, gené tica mé dica, semiologia, ana- passagens aé reas nas fé rias e fora
da prescriçã o de um exame e a obten- tomia, microbiologia, informá tica e delas quando necessá rio em todo o ter-
çã o do resultado para conseguir, por outras disciplinas. Já no primeiro ano ritó rio brasileiro ou cubano, alé m dos
im, avaliar um paciente”, revelou Yoja- do curso os alunos estã o dentro de hos- investimentos que sã o revertidos para
na. Segundo ela, custou até que a adap- pitais e postos de saú de, em contato o sistema de saú de em Cuba”, comen-
taçã o ao modus operandi do sistema de direto com pacientes. Eles se formam tou Alexandry.
saú de brasileiro se desse por completa, clıń icos gerais, assim como no Brasil, Ainda que pertinente, esse dis-
e sobraram crıt́icas à s burocracias e poré m com conhecimentos em pedia- curso nã o é uma unanimidade entre os
ingerê ncias dos ó rgã os pú blicos de tria, obstetrıćia, ginecologia e peque- mé dicos cubanos que atuam no Brasil.
saú de alagoanos, que em muito se dife- nas cirurgias. De acordo com o Ministé rio da Saú de,
rem do que se pratica na ilha caribenha. O repasse do salário mais de 150 açõ es já foram movidas na
“Em Cuba, os resultados dos exames justiça brasileira por mé dicos cubanos
Ainda em Havana, no ato da assi-
mais complexos demoram menos que pedem para receber o valor inte-
natura do contrato irmado entre os
tempo para sair do que procedimentos gral do salá rio, mesmo todos tendo
cubanos Yojana e Alexandry e o gover-
simples no Brasil”, pontuou. assinado o acordo pré -estabelecido do
no de Cuba, há a clá usula onde as partes
programa.
Os indicadores de saú de em Cuba devem icar acordadas de que um mon-
sã o os melhores da Amé rica Latina e Estas reivindicaçõ es na justiça
tante do salá rio recebido por estes pro-
estã o à frente dos ı́ndices de muitos paı-́ sã o movidas contra o Estado de Cuba e
issionais no Brasil é transferido para
a Organizaçã o Panamericana de Saú de
ses considerados desenvolvidos. A as contas do governo cubano.
(Opas), intermediá ria do convê nio. Do
mortalidade infantil, por exemplo, é Sem qualquer indıćio de descon- t o t a l d o s a l á r i o m e n s a l d e R $
menor do que a dos Estados Unidos. A tentamento quando questionados 11.520,00, vigente desde janeiro de
expectativa de vida dos cubanos tam- sobre este detalhe em particular, Yoja- 2018, os mé dicos cubanos recebem o
bé m é elevada: 79,5 anos contra 74,6 na e Alexandry elencaram algumas con- correspondente a 30% deste valor (R$
anos no Brasil. trapartidas pelas quais se justi icaria o 3.456,00) mais um auxıĺio moradia de
A graduaçã o no curso de medici- repasse, que na visã o de ambos, nã o é R$ 2.500,00. O valor restante é transfe-
na em Cuba tem duraçã o de seis anos, abusivo ou injusto. rido pelo governo brasileiro à Opas,
incluindo dois anos de residê ncia ou “Isso é misti icado por muita gen- que repassa para o governo cubano,
especializaçã o. Yojana e Alexandry sã o te. Quando assinamos o contrato em conforme contrato, retendo esta enti-
pó s-graduados em gastroenterologia, Havana, estamos de acordo e cientes de dade um percentual sobre o valor a tıt́u-
á rea mé dica que estuda doenças do apa- todas as condiçõ es do programa lo de intermediaçã o.
relho digestivo.
Há 25 faculdades pú blicas de medi-
cina em Cuba, alé m da Escola Latino-
Americana de Medicina (Elam), onde
estudam estrangeiros de mais de 100
paıśes, incluindo brasileiros. De acordo
com o Ministé rio da Educaçã o de Cuba,
somente os alunos com notas conside-
radas altas ao longo do ensino secundá -
rio sã o aceitos nos cursos de medicina.

“Em Cuba, os resultados


dos exames mais
complexos demoram
Foto: Oldemburgo Neto

menos tempo para sair do


que procedimentos
simples no Brasil”.

Yojana Flores , mé dica cubana da USF Caic


Virgem dos Pobres O casal de mé dicos cubanos Alexandry Santoyo e Yojana Flores (os dois primeiros, da esq. para a dir.) junto com
outros pro issionais que formam a equipe de Saú de da Famıĺia do Caic Virgem dos Pobres. Os cubanos somente
aceitaram posar para a foto com a condiçã o de que toda a equipe també m fosse fotografada

04 JUNHO - 2018
GOVERNO AMPLIA O ORÇAMENTO E GARANTE
PROGRAMA MAIS MÉDICOS ATÉ 2019
Orçamento do governo brasileiro destinado ao Mais Médicos subiu de R$ 2,5 bilhões em 2014 para
R$ 3,3 bilhões em 2018. Longe dos holofotes, cubanos ainda representam a principal força do pro-
grama que leva assistência médica em áreas com carência de pro issionais brasileiros. Com 95% de
aprovação pelos próprios usuários, sucesso do projeto é praticamente incontestável

E
municıp
ssencialmente, o Programa Mais Mé dicos foi criado
em 2013 para preencher uma carê ncia que é realida-
de no Brasil: falta assistê ncia mé dica em locais dis-
tantes e de difıćil acesso, como periferias de grandes cidades,
́ ios sertanejos, assentamentos rurais e comunida-
ANO
2018
2017
2016
ORÇAMENTO
R$ 3,3 bilhõ es
R$ 3,2 bilhõ es
R$ 2,7 bilhõ es
2015 R$ 2,4 bilhõ es
des quilombolas.
2014 R$ 2,5 bilhõ es
De acordo com o Ministé rio da Saú de, em 1100 muni-
cı́pios brasileiros o PMM é responsá vel por 100% da 2013 R$ 534 mil
Orçamento do Governo Federal destinado ao Programa Mais Mé dicos cresceu signi-
cobertura de Atençã o Bá sica, com atendimentos regulares icativamente desde o ano da implantaçã o do programa até hoje (Informaçõ es:
nas Unidades Bá sicas de Saú de e adesã o à s equipes do Pro- Assessoria de Imprensa do Ministé rio da Saú de)

grama Saú de na Famı́lia. A Atençã o Bá sica é a porta de


entrada preferencial do Sistema Unico de Saú de (SUS), O Programa em Alagoas
que está presente em todos os municı́pios e pró xima de
muitas comunidades.
Esta reportagem apurou, junto à assessoria de
Médicos ativos Municípios atendidos
imprensa do Ministé rio da Saú de, um levantamento feito 232 68
e divulgado pelo ó rgã o, apontando que em 2013 a relaçã o (Informaçõ es: Assessoria de Imprensa da Secretaria
de Estado da Saú de de Alagoas – Sesau)
mé dico/habitante era de 1,8 mé dicos para cada mil habi-
tantes. O estudo mais atualizado disponı́vel é de 2015, do “Em nosso estado o PMM atingiu uma populaçã o muito
Conselho Federal de Medicina (CFM), que mostra que vulnerá vel, que vive em locais de difıćil acesso e onde os
houve um aumento no nú mero de mé dicos em atuaçã o, mé dicos nã o se ixavam. Observamos melhorias nã o só nos
elevando a relaçã o para 2,1 mé dicos para cada mil habi- indicadores, mas sobretudo na qualidade dos atendimen-
tantes no Brasil. tos”, disse o secretá rio de Estado da Saú de de Alagoas, Chris-
tian Teixeira.
A avaliaçã o da populaçã o sobre o Programa també m é
Buscando aumentar a adesã o de mé dicos e, consequen-
positiva. Uma recente pesquisa divulgada pela Universidade
temente, ampliar a cobertura de saú de nos municıp ́ ios ainda
Federal de Minas Gerais (UFMG) identi icou que 95% dos nã o assistidos, a Secretaria de Estado da Saú de (Sesau) tem
usuá rios disseram estar satisfeitos ou muito satisfeitos com apostado no sucesso do Programa para tentar equalizar os
a atuaçã o do mé dico do Programa Mais Mé dicos. Entre as problemas da pasta em Alagoas.
razõ es dessa avaliaçã o extremamente positiva, 85% a irma-
ram que a qualidade do atendimento melhorou, 87% que o
mé dico é mais atencioso, e 82% que a consulta agora resolve
melhor seus problemas de saú de. “Em nosso estado o PMM atingiu uma
Atualmente, o PMM conta com 17.583 mé dicos ativos população muito vulnerável, que vive
(dados obtidos em 20 de fevereiro de 2018), compostos por em locais de di ícil acesso e onde os
8.493 cubanos, 5.842 oriundos dos Conselhos Regionais de
médicos não se ixavam. Observamos
Medicina (CRM Brasil), 2.767 intercambistas individuais bra-
sileiros e 481 intercambistas individuais estrangeiros. melhorias não só nos indicadores, mas
Desde a sua implantaçã o, há cinco anos, o orçamento sobretudo na qualidade dos
do Governo Federal destinado ao programa vem crescendo,
atendimentos”.
mesmo com a mudança de governo apó s o impeachment da
ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. Em setembro deste
mesmo ano, o entã o presidente interino Michel Temer sanci-
onou a lei que prorroga por mais trê s anos a vigê ncia do Pro- Christian Teixeira, secretá rio de Estado da Saú de de Alagoas
grama Mais Mé dicos no Brasil.

JUNHO - 2018 05
“A Sesau abraçou o Mais Mé dicos. Estamos procurando
parcerias no intuito de atrair mais pro issionais para aderi-
rem ao Programa. A nossa recomendaçã o é que os municıp ́ ios
també m procurem a Sesau para conseguir a adesã o, já que o
Mais Mé dicos demonstrou grande e icá cia nesse perıo
́ do de
atuaçã o”, pontuou o secretá rio.

A comunidade
O Conjunto Virgem dos Pobres, encravado à s mar-
gens da lagoa Mundaú , está situado numa porçã o de terra

Foto: Michelle Farias


que corresponde ao bairro Trapiche da Barra, um dos
mais antigos de Maceió . O bairro tem sua origem ligada à
atividade de um antigo porto de onde partiam e chegavam
embarcaçõ es transportando mercadorias e passageiros
entre Marechal Deodoro e Maceió .
Surto de bicho-de-pé atingiu crianças em Maceió
Esta regiã o que margeia a lagoa destoa signi icativa-
mente de outras regiõ es do mesmo bairro no tocante à pre- O surto ocorreu em janeiro de 2017 e chamou a aten-
carizaçã o da gestã o administrativa por parte do poder pú bli- çã o de vá rios setores da sociedade civil organizada no sen-
co para resolver problemas de habitaçã o, segurança e falta tido de arrecadar doaçõ es de remé dios, pomadas, calçados
de saneamento bá sico. Essa realidade faz parte do cotidiano e produtos de higiene para as inú meras pessoas contami-
da comunidade há vá rias dé cadas e acaba colaborando para nadas, principalmente crianças, alé m da mobilizaçã o de
que se alimente uma imagem negativa, na percepçã o de mui- pro issionais da á rea de saú de na visita e atendimento a
tos maceioenses, da orla lagunar. esses pacientes.

E comum observar tubulaçõ es de esgoto a cé u aberto Embate ideológico


e lixo acumulado nas ruas e vielas da comunidade, um Saber que o Brasil é um paıś de origem colonial cuja
ambiente ideal para a proliferaçã o de doenças e pragas, sociedade foi escravocrata durante quase 400 anos nos
rodeado por casas e barracos que, na maioria dos casos, ajuda a entender que o preconceito e o racismo de alguns
servem de moradia para dois ou mais nú cleos familiares. encontra morada na saudade da casa grande e da senzala.
Dependê ncia quı́ m ica, violê ncia, prostituiçã o e gravidez Demonstraçõ es de intolerâ ncia e xenofobia para com mé di-
cos cubanos ocorreram em vá rios aeroportos brasileiros
na adolescê ncia sã o, entre outros problemas, fatos corri-
durante a chegada destes pro issionais no Brasil à é poca da
queiros para a populaçã o que nã o faz parte da agenda das
implantaçã o do Programa Mais Mé dicos.
autoridades competentes.
Per ilados ao melhor estilo “corredor polonê s”, mé di-
Cenas de violê ncia foram incorporadas ao cotidiano cos brasileiros usando nariz de palhaço recepcionaram os
dessa gente de maioria negra e pobre, que resiste sem voz, cubanos aos gritos de “escravos”, “incompetentes”, “volta pra
sem representatividade polıt́ica, econô mica e social. A estes Cuba” e outros insultos.
é destinada a “vala comum” e o silê ncio do poder pú blico. O episó dio revelou que, mesmo diante de pro issionais
que vieram de longe prestar assistê ncia mé dica e lidar com a
Surto de bicho-de-pé
missã o de prevenir e salvar vidas, o que prevaleceu foi a igno-
A falta de saneamento bá sico somada à livre circula- râ ncia de quem deixou transparecer resquıćios de desuma-
çã o de alguns animais e à situaçã o de miserabilidade social nidade sem se darem conta de que, longe de onde os cubanos
da populaçã o, que muitas vezes nã o tem condiçõ es sequer em missã o vieram atuar, nunca tiveram sujos de terra os
de calçar os pé s, colaborou para a ocorrê ncia de um surto seus jalecos ao im de um expediente num sertã o, numa caa-
de tungı́ase, popularmente conhecida como “bicho-de-pé ”, tinga ou em qualquer periferia brasileira.
na favela Sururu de Capote, que ica no bairro vizinho ao Tra- O mé dico alagoano Wellington Galvã o, que é presiden-
piche da Barra, o Vergel do Lago. te do Sindicato dos Mé dicos de Alagoas (Sinmed/AL), consi-
dera pertinentes as reivindicaçõ es da classe mé dica brasilei-
A tungı́ a se é uma dermatozoonose pró pria de ra sob a justi icativa de que os cubanos deveriam passar por
regiõ es subdesenvolvidas e se dá quando a fê mea do para- uma revalidaçã o do diploma no Brasil. “Nã o somos contra a
sita Tunga penetrans produz ovos que, posteriormente, vinda de cubanos. Somos contra a falta de revalidaçã o do
sã o eliminados no solo. A transmissã o ocorre quando há diploma, procedimento que é comum a qualquer mé dico bra-
contato direto com o solo contaminado. O parasita penetra sileiro que vai atuar fora do paıś”, disse.
na pele e surgem feridas escuras e in lamadas, que nos Outra justi icativa apontada pelo mé dico foi a “qualida-
casos mais delicados podem levar até à amputaçã o de de questioná vel” da formaçã o mé dica dos cubanos e uma
parte dos dedos dos pé s, alé m de dores e, consequente- polıt́ica ideoló gica alinhada à esquerda no Brasil que permi-
mente, di iculdade para caminhar. tiu a implantaçã o do programa.

06 JUNHO - 2018
“Nosso Conselho foi a Cuba a im de conhecer a forma-
çã o de mé dicos cubanos e o que se viu foi que nã o havia uma “Durante todo o século 20 e até agora,
medicina de qualidade como no Brasil. Nã o é possıv́el um em muitos lugares do mundo, há
paıś tã o pequeno como Cuba exportar esse nú mero inimagi- hostilidade ideológica e repúdio
ná vel de mé dicos para o mundo. O governo Dilma Rousseff, econômico e social a qualquer
do PT, impô s essa polıt́ica aos brasileiros, com malversaçã o experiência do que se convencionou
do dinheiro pú blico para inanciar a ditadura de Fidel Castro. chamar de bloco socialista. Inicialmente,
Eu considero um verdadeiro crime contra a nossa populaçã o como uma ação estratégica da guerra
pobre enviar pessoas vestidas de branco, com um estetoscó - fria e depois como luta política. O medo
pio pendurado no pescoço, sem qualquer quali icaçã o mé di- de que ideias socialistas possam se
ca”, comentou Galvã o.
espalhar pelo país é, desde o
Nem mesmo o pró prio Programa Saú de da Famıĺia Integralismo dos anos 30, uma bandeira
(PSF) foi poupado de crıt́icas pelo presidente do Sinmed/AL. de luta dos diversos tipos de poder
Para o Sindicato, o salá rio de R$ 11.520,00 mais o auxıĺio político conservador com os quais
moradia de R$ 2.500,00 oferecidos pelo Governo Federal
convivemos. Quando prevalecem os
nã o sã o o bastante para a categoria, que defende a existê ncia
interesses de grupo, os interesses
de um plano de carreira para mé dicos brasileiros nessa á rea
de atuaçã o, bem como melhores condiçõ es de trabalho.
populares são deixados de lado”.
“Nã o se faz interiorizaçã o de assistê ncia mé dica envi-
ando mé dicos com estetoscó pio no pescoço. Só se promove Evelina Antunes, cientista polı́tica e professora do Instituto de
Ciê ncias Sociais da Universidade Federal de Alagoas
saú de com condiçõ es de trabalho para que se faça medicina
de qualidade. Nó s queremos que o mé dico vá trabalhar na
á rea de atuaçã o do Mais Mé dicos sabendo que vai subir de e social a qualquer experiê ncia do que se convencionou cha-
categoria, que com o tempo ele pode ser transferido para a mar de bloco socialista. Inicialmente, como uma açã o estra-
capital ou outras localidades, como ocorre com juıźes e mili- té gica da guerra fria e depois como luta polıt́ica. O medo de
tares. O que se faz com esse programa é um grande 'auê ', com que ideias socialistas possam se espalhar pelo paıś é , desde o
muitos gastos em publicidade, mas na prá tica nã o mudou Integralismo dos anos 30, uma bandeira de luta dos diversos
nada”, pontuou o mé dico. tipos de poder polıt́ico conservador com os quais convive-
mos. Quando prevalecem os interesses de grupo, os interes-
ses populares sã o deixados de lado”, avaliou a cientista.
Os atendimentos mé dicos feitos pelos cubanos no Bra-
sil sã o tidos pelos pró prios usuá rios como mais humaniza-
dos. O repasse de parte do salá rio destes pro issionais direto
ao Governo de Cuba, na prá tica, parece nã o in luenciar na
qualidade dos atendimentos. Há , de fato, um jeito diferente
de se fazer e pensar a medicina. As consultas sã o mais lon-
gas, pergunta-se mais, conversa-se mais e previne-se mais.
Um relató rio da Opas divulgado em 2016 sobre o pro-
Foto: Valter Campanato

grama Mais Mé dicos no Brasil identi icou, no compromisso


dos cubanos, um dos maiores destaques de sua atuaçã o e
existê ncia.
“Nota-se um comportamento singular, de estar focado
em sua tarefa sem que qualquer outro interesse ou objetivo
Utilizando nariz de palhaço, mé dicos brasileiros protestaram, em 2013, contra a o distraiam dessa atividade, considerada uma missã o. As
chegada de mé dicos cubanos em vá rias cidades do paıś habilidades e competê ncias dos mé dicos para a abordagem
comunitá ria, dimensã o essencial para o exercı́cio da medi-
Para Evelina Antunes, cientista polı́tica e professora cina de famı́lia e comunidade, contrasta com a prá tica de
do Instituto de Ciê ncias Sociais da Universidade Federal de muitos pro issionais brasileiros, que mantê m uma centrali-
Alagoas (Ufal), as manifestaçõ es de repú dio ao que vem de dade excessiva de sua prá tica na abordagem individual”, des-
Cuba – e tudo aquilo que esta naçã o carrega consigo dada a taca o relató rio.
sua importâ ncia histó rica e polı́tica – nã o sã o uma exclusivi-
dade brasileira, e os interesses corporativos de parte da Na prática
classe mé dica brasileira agem de forma sistemá tica numa Em uma das residê ncias do Conjunto Virgem dos
espé cie de salvaguarda da categoria pro issional em terri- Pobres mora Ione Lima, de 22 anos, mã e de Danilo, um bebê
tó rio brasileiro. de sete meses. O primeiro contato dela com os mé dicos cuba-
“Durante todo o sé culo 20 e até agora, em muitos luga- nos ocorreu há aproximadamente dois anos, quando iniciou
res do mundo, há hostilidade ideoló gica e repú dio econô mico o pré -natal com Yojana Flores.

JUNHO - 2018 07
“Ela sempre foi muito atenciosa. Eu já vinha de outras
consultas em clın ́ icas e até mesmo no HGE [Hospital Geral do “É oportuno que se faça uma re lexão de
Estado] e os mé dicos sequer olhavam na minha cara. Com ela que não se deve romantizar sobre as
é diferente, inclusive é bem concorrido para conseguir o aten- experiências históricas socialistas. O que
dimento com ela, falta até icha, porque todo mundo gosta de
tem caráter determinante é o fato de que
ser bem tratado”, comentou Ione.
os pro issionais de saúde em Cuba são
Recentemente, Ione sofreu com seu ilho que apresen-
formados numa perspectiva mais
tava sintomas como febre alta, tosses com secreçã o e di icul-
dade para respirar. Ela contou que internou o ilho em duas humana, numa compreensão mais ampla
Unidades de Saú de diferentes – Hospital Geral do Estado e do que seja a saúde pública enquanto
Clın
́ ica Infantil Daisy Brê da – em busca de diagnó sticos e tra- coisa pública”.
tamento, mas as coisas nã o aconteceram como ela esperava.
“Um mé dico deu alta para o Danilo apó s 10 dias de
internaçã o, mas os sintomas voltaram a aparecer e com mais Evelina Antunes, cientista polı́tica e professora do Instituto de
intensidade. Desesperada, fui com ele até o posto para aten- Ciê ncias Sociais da Universidade Federal de Alagoas
dimento com a doutora Yojana e só de olhar ela disse que
meu ilho estava iniciando um quadro de pneumonia”, conta.
Danilo foi encaminhado para a realizaçã o dos exames “Vai pra Cuba!”
pedidos por Yojana e deu-se inıćio ao tratamento medica- Surfando na onda conservadora e preconceituosa das
mentoso. Passada a agonia, o estado de saú de de Danilo é con- manifestaçõ es que repudiaram a chegada dos cubanos no
siderado está vel e uma vez por semana Ione o acompanha Brasil, o coro “Vai pra Cuba” ganhou força e até hoje é vocife-
em consultas regulares com Yojana para ins de monitora- rado ou escrito nos mais variados ambientes de discussã o
mento do tratamento e do desenvolvimento do bebê . polıt́ica do paıś. Seja nos debates das ruas ou das redes socia-
“Eles solicitam retorno pra saber se estamos bem e se os is, a expressã o é comumente utilizada por grupos da chama-
remé dios estã o surtindo efeito. Criaram uma rotina de atendi- da direita e extrema direita do Brasil.
mentos semanais. O trabalho é tã o bom que muitas vezes pare- “Há uma questã o que nã o podemos deixar de lado, que
ce até que estou pagando Unimed”, resume Ione, que é usuá ria é a importâ ncia da internet como meio e lugar de se fazer
do Sistema Unico de Saú de e atualmente está desempregada. polıt́ica de uns tempos pra cá . Se de um lado temos uma velo-
Mé dicos brasileiros també m izeram atendimentos na cidade nunca imaginada da circulaçã o de informaçã o de qual-
comunidade ao longo do tempo, mas a permanê ncia destes quer espé cie, de outro, a desquali icaçã o das instituiçõ es
pro issionais nessas á reas, na maioria das vezes, nã o dura polıt́icas, que é anterior à internet, nã o favorece o discurso
muito tempo. “Muitos mé dicos brasileiros passaram por aqui, polıt́ico”, avaliou Evelina Antunes.
tanto no posto como nas visitas, mas logo a gente icava saben- “O 'Vai pra Cuba' virou slogan, uma frase de efeito que
do que o mé dico nã o vinha mais e o posto voltava a ter carê ncia pretende carregar embutida algumas ideias e interesses de
de mé dicos. Foi quando surgiu esse programa [Mais Mé dicos] quem a criou – grupos organizados de direita e extrema dire-
e os cubanos chegaram. Com eles nã o tem cara feia. Quando ita. Se seus adeptos ou seguidores sã o conscientes ou aliena-
forem embora, vamos sentir muita falta”, pontuou Ione Lima. dos, e em que grau o sã o, tem sido objeto de muitas pesqui-
sas e rende um bom debate. Ainda hoje encontramos pesso-
Socialismo
as que nã o tê m a menor ideia do que seja o socialismo, mas
Na tentativa de compreender esse modo diferente de se tê m muito medo de perder seus bens ou patrimô nios porque
fazer medicina, se percebe o quã o determinante sã o, na prá - acreditam que os comunistas – outra palavra muito desco-
tica, as conquistas do povo cubano no que diz respeito à uni- nhecida – irã o roubá -los. Essa compreensã o infantilizada é
versalizaçã o do acesso à saú de e educaçã o na ilha. Isso escan- bastante ú til a qualquer campanha que defenda interesses
cara notó rias diferenças entre a ló gica corporativista por antidemocrá ticos”, resumiu Evelina.
parte da classe mé dica brasileira e o comunitarismo cubano.
A contrataçã o de mé dicos cubanos ao longo dos ú lti-
“E inegá vel que um certo comunitarismo está presente mos anos continua gerando muita contrové rsia por parte de
na ideia de socialismo ao redor do mundo ao longo da histó - alguns setores da classe mé dica e de uma signi icativa por-
ria. Lá operam outras prá ticas que poderıámos chamar de cri- çã o da sociedade civil organizada brasileira. O paıś, por sua
adoras de vın ́ culos societá rios diferentes dos nossos. Quan- vez, segue mergulhado em uma crise institucional que revela
do identidades e direitos sã o mais respeitados pelo Estado, a caos e insegurança jurıd ́ ica à s vé speras de uma eleiçã o presi-
tendê ncia é que a cidadania, entendida como acesso à parti- dencial cujo lıd
́ er das intençõ es de voto em todas as pesqui-
cipaçã o na sociedade, seja mais vigorosa, mesmo que nunca sas até o momento está condenado e preso.
tenha sido plena, e possa estimular valores e comportamen-
Em meio a esse cená rio de instabilidade polıt́ica e
tos mais humanos”, explicou Evelina Antunes.
incertezas quanto ao futuro da saú de pú blica no Brasil, que
“E oportuno que se faça uma re lexã o de que nã o se segue precarizada, estã o os mé dicos cubanos e uma enorme
deve romantizar sobre as experiê ncias histó ricas socialistas. populaçã o desassistida pelo Estado. Para essa populaçã o
O que tem cará ter determinante é o fato de que os pro issio- carente, que aprova com veemê ncia os resultados da atua-
nais de saú de em Cuba sã o formados numa perspectiva mais çã o destes pro issionais, vale muito mais a má xima de um
humana, numa compreensã o mais ampla do que seja a saú de famoso prové rbio chinê s: “Nã o importa se o gato é preto ou
pú blica enquanto coisa pú blica”, pontuou a cientista polıt́ica. branco, mas, sim, se ele mata o rato”.

08 JUNHO - 2018

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