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ESCRAVIDAO, CIDADANIA E HISTORIA DO TRABALHO NO BRASIL* Silvia Hunold Lara” Resumo Este artigo discute alguns aspectos da exclusio dos negros (escravos ou ex-escravos) da hist6ria social do trabalho no Brasil, que passou a ser identificada com a hist6ria do trabalho livre, assalariado (para no dizer operdrio). Analisando as implicagdes historiogréficas ¢ politicas deste procedimento, a autora critica a historiografia da “transiggo” e a “teoria da substituigao” do escravo pelo imigrante. Recorrendo & recente produgdo sobre a experiéncia escrava e sobre 0 periodo pés-aboli¢o, 0 artigo sugere outros caminhos de investigagao, que possam revelar como as experiéncias acumuladas durante a escravidio por escravos e libertos foram compartilhadas com 0s trabalhadores livres, antes e depois da aboligao. Palavras-chave Escravidao; abolig4o; histéria do trabalho; historiografia. Abstract This article discusses some aspects of the exclusion of the blacks (slaves and ex-slaves) from the social history of labor in Brazil, which for a long time was equated with the history of the free or wage-earning working class. Analyzing the political and historiographical implications of this oversight, the author criticizes the historiography on the “transition” to the free labor and the theory of the “replacement” of the slave by the immigrant. Turning to the recent studies on slave experience and on the post-emancipation period, the article suggests other paths of research * Uma versio inicial deste texto foi apresentada na mesa-redonda “Memsria, escravidio ¢ cidadania no Brasil”, durante 0 XIX Simpésio Nacional da ANPUH, em Belo Horizonte, 24 de julho de 1997. Trata-se de um trabalho ainda em andamento, que faz. parte de uma pesquisa mais ampla, sobre os nexos entra raga e classe na histéria e na historiografia brasileiras, e que conta com financiamento do CNPq. ** Professora do Departamento de Histéria da UNICAMP. Proj. Histéria, Sao Paulo, (16), fev. 1998 25 which might reveal how the cumulative experiences of slaves and freed persons were shared with free workers, before and afier abolition Key-words Slavery; abolition; history of labor; historiography. O drama mais espetacular dos tiltimos mil anos da historia humana é a deportacdo de dez milhdes de seres humanos da beleza morena de sua terra natal para o recém-descoberto Eldorado do Oeste. Eles desceram ao Inferno e, no terceiro século, ressuscitaram da morte, no maior esforco de conquista da democracia para milhoes de trabalhadores que este mundo jamais viu. Foi uma tragédia que amesquinhou a da Grécia; uma convulsdéo na humanidade como a da Reforma e a da Revolugéo Francesa. Todavia somos cegos e liderados por cegos. Nao percebemos nisto uma parte do nosso movimento operdrio, de nosso triunfo industrial, de nossa experiéncia religiosa.' Estas frases, escritas em 1934 por W. E. B. Du Bois, fazem parte dos tltimos pardgrafos de seu livro sobre o perfodo imediatamente posterior ao final da Guerra Civil nos Estados Unidos — obra que se tornou marcante para a recente produgo sobre a hist6ria da experiéncia negra norte-americana. A adverténcia que elas contém, no en- tanto, parece nunca ter tido qualquer eco na historiografia brasileira. Aqui, apesar de a aboligdo ndo ter ocorrido no bojo de uma guerra civil, 1888 foi quase sempre consi- derado um marco temporal separador de “dois Brasis”.2 A maior parte dos autores que tratam da histéria do trabalho no Brasil costuma iniciar sua andlise no final do século XIX ou mesmo nas primeiras décadas do século XX. Identificada com a histéria do trabalho livre (assalariado), a histéria social do trabalho no Brasil contém, em si mesma, um processo de exclusio: nela nao figura o trabalhador escravo. Milhares de trabalha- dores que, durante séculos, tocaram a produgao e geraram a riqueza no Brasil ficam ocultos, desaparecem num piscar de olhos. A oposigao irreconcilidvel entre escravidao e liberdade cristalizou-se como um pos- tulado quase sempre inquestionado, ¢ o final do século XIX passou a configurar o assim 1 Du Bois, W. E. B. Black reconstruction in America, 1860-1880. Nova York, Atheneum, 1969, p. 727. 2. Este marco cronolégico pode estar, evidentemente, associado a outros elementos € possuir diversos sig- nificados. E, contudo, um elemento comum a obras com perspectivas tdo diversas quanto, por exemplo, as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ¢ Caio Prado Siinior. 26 Proj. Historia, Sdo Paulo, (16), fev. 1998 chamado perfodo da substituigdo do escravo (negro) pelo trabalho livre (branco e imi- grante), o “perfodo da transigdo”, da “formagda do mercado de trabalho livre” no Brasil. Abordadas nos capitulos finais das obras sobre escravidéo (quando nao sao te- matizadas em si mesmas, em obras especificas sobre a aboligdo) ou em capitulos in- trodutérios sobre a histéria dos trabalhadores em geral ou dos operarios em particular, as ultimas décadas do século XIX constituem 0 marco cronoldégico que separa o conjunto de obras sobre a escravidio daquele sobre o “trabalho livre”: entre os dois hé um hiato, quase um abismo — e a hist6ria dos trabalhadores no Brasil tomna-se cativa de uma ruptura radical. Assim, a abundante historiografia sobre a “transigao”, apesar de sua diversidade, efetua um procedimento comui pretende estabelecer uma teoria explicativa para a “passagem” do mundo da escravidao (aquele no qual o trabalho foi realizado por seres coisificados, destituidos de tradigdes pelo mecanismo do tréfico, seres aniquilados pela compulsdo violenta da escraviddo, para os quais s6 resta a fuga ou a morte) para 0 universo do trabalho livre, assalariado (no qual, finalmente, poderfamos encontrar su- jeitos hist6ricos). Em sua modalidade mais radical, a historiografia da transig4o postula a tese da “substituigao” do escravo pelo trabalho livre; com 0 negro escravo desapare- cendo da histéria, sendo substitufdo pelo imigrante europeu. O préprio termo “substi- tuigdo” chegou a ganhar contornos cada vez mais fortes. Se em Caio Prado e Florestan Fernandes ele aparecia ainda como um recurso quase retrico,’ em Martins ele chegou a ser assumido literal e explicitamente: (...) a questdo abolicionista foi conduzida em termos da substituigdo do trabalhador escravo pelo livre, isto é no caso das fazendas paulistas, em termos de substituigdo {fisica do negro pelo imigrante. O resultado no foi apenas a transformagao do trabalho, mas também a substituigdo do trabalhador.* 3 Caio Prado Junior, por exemplo, afirma que a lavoura cafeeira baseou-se em “a grande propriedade monocultural trabalhada por escravos negros, substituidos mais tarde (...) por trabalhadores assala- riados” (Caio Prado Jinior, Histria econdmica do Brasil. 6 ed, Sio Paulo, Brasiliense, 1961, pp.169- 70, grifo meu). Florestan Fernandes, por sua vez, assinala que, a partir de 1888, “as tendéncias de reintegragdo da ordem social e econdmica expeliram, de modo mais ou menos intenso, o negro eo mulato do sistema capitalista de relagdes de produgdo no campo” (A integragdo do negro na socie- dade de classes. 2 ed, Sao Paulo, Atica, 1978, yol. 1, p. 38, grifo meu). 4 Martins, J. de S, O cativeiro da terra, So Paulo, Liv. Ed. Ciéncias Humanas, 1979, p. 18, grifos meus. Proj. Historia, Sao Paulo, (16), fev. 1998 27

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