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MARINA HENRIQUES COUTINHO

A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O


DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

Rio de Janeiro – RJ
2010
MARINA HENRIQUES COUTINHO

A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O


DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutoramento em Artes
Cênicas.

Orientadora: Profa. Dra. Beatriz Resende


Coorientadora: Profa. Dra. Márcia Pompeo Nogueira

Rio de Janeiro – RJ
2010
Coutinho, Marina Henriques.
C871 A favela como palco e personagem e o desafio da comunidade -
sujeito / Marina Henriques Coutinho, 2010.
247f.

Orientador: Beatriz Resende.


Coorientador: Márcia Pompeo Nogueira.
Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

1. Teatro comunitário. 2. Teatro e sociedade. 3. Favelas. 4. Teatro


aplicado. 5. Globalização. 6. Inclusão social. I. Resende, Beatriz.
II. Nogueira, Márcia Pompeo. III. Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e Artes. Curso de Dou-
torado em Artes Cênicas. IV. Título.
CDD – 792.022
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Centro de Letras e Artes – CLA
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC
Mestrado e Doutorado

A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O


DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

por

Marina Henriques Coutinho

Tese de Doutorado

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Beatriz Resende (orientadora)


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Profa. Dra. Márcia Pompeo Nogueira (coorientadora)


Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Profa. Dra. Beatriz Azeredo


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof. Dr. Narciso Telles


Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Profa. Dra. Elza de Andrade


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Prof. Dr. Zeca Ligiéro


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Aprovada em 19 de Maio de 2010, Rio de Janeiro.


À minha mãe, por tudo que me ensinou. Minha eterna gratidão.

Ao David e ao meu filho Miguel,


Pela amizade, apoio incondicional e paciência ao longo desta caminhada,
todo o meu amor.

Ao meu querido irmão Bruno, que me apresentou Milton Santos,


A minha querida irmã Paula,

Ao meu pai,
Pelas boas memórias de minha infância, pela sua história de luta em
benefício da favela.
AGRADECIMENTOS

Às Profas. Dra. Beatriz Resende e Dra. Márcia Pompeo Nogueira, minhas orientadoras, o meu
agradecimento pelo incentivo, apoio e compreensão ao longo da trajetória desta pesquisa; pela
generosidade demonstrada em todas as fases de desenvolvimento do trabalho, pela
disponibilidade à construção de um rico diálogo, sem o qual teria sido impossível a realização
desta tese. Todo o meu afeto e gratidão.

Ao Professor Tim Prentki, o meu especial agradecimento pelo carinho com que me recebeu na
Universidade de Winchester, Inglaterra, durante o período que participei do curso Theatre and
Media for Development, pelo seu entusiasmo e dedicação aos nossos encontros “tutoriais”, os
quais trouxeram para este trabalho preciosa contribuição.

Aos Professores Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho, Dra. Evelyn Furquim Werneck Lima e
Dr. Zeca Ligiéro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro pelo apoio na ocasião
da avaliação de minha candidatura pelo European Union Programme AlBan of High Level
Scholarships for Latin América (Programa AlBan de bolsas de alto nível da União Européia
para a América Latina).

Ao professor David Herman, que além de companheiro na vida, é também meu grande
companheiro na arte. Meu especial agradecimento pela revisão de minhas traduções do inglês
dos textos de autores citados neste trabalho. Além de todo o incentivo e encorajamento
durante o período em que vivemos na Inglaterra.

Aos Professores Dra. Ana Tereza Jardim e Dr. Charles Feitosa, da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, pelas observações acertadas na ocasião de minha banca de
qualificação, as quais contribuíram para o aprimoramento deste trabalho.

Aos integrantes do grupo Nós do Morro, especialmente Guti Fraga, Fred Pinheiro, Maria José
da Silva, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Regina Melo; aos integrantes da Cia. Marginal e do
Grupo Código pela confiança que me dedicaram na realização da pesquisa.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão


da bolsa de estudo o que possibilitou a realização desta tese.

Ao Programa AlBan de bolsas de alto nível da União Européia para a América Latina pela
concessão da bolsa que possibilitou a minha estadia na Universidade de Winchester.

Aos meus colegas no Brasil e na Inglaterra, pela enriquecedora troca de experiências.


O problema de todas as épocas é saber como se vai dar a
ruptura. E as rupturas se deram antes que todos soubessem que
elas iam se dar, os que em épocas anteriores, pensavam na
possibilidade de mudança podiam ser tidos como otimistas ou
visionários.

Milton Santos
RESUMO

Este trabalho aborda as relações entre teatro e comunidade no âmbito dos projetos artísticos e
sociais desenvolvidos em favelas do Rio de Janeiro. Apresenta o contexto da nova ordem
global e os efeitos da globalização na realidade da favela, espaço geográfico aqui considerado
como o território da luta. O trabalho aponta indícios de que o modelo socioeconômico atual
não caminha em direção ao bem-estar das populações mais pobres do planeta, mas considera a
capacidade de luta de comunidades em busca de soluções criativas para as dificuldades
enfrentadas no seu cotidiano. A argumentação opta por uma perspectiva otimista que enxerga
a possibilidade da emersão de narrativas alternativas capazes de oferecer às comunidades o
direito de voz, indicando o teatro como um dos caminhos possíveis para a construção de um
discurso alternativo. Para refletir sobre as relações entre teatro e comunidade, o trabalho
analisa bibliografia originalmente em língua inglesa, referente ao campo do Teatro Aplicado,
terminologia que vem ganhando força no cenário internacional. O corpo teórico utilizado
permitiu a formulação do conceito de teatro pela comunidade, como resultado do respeito à
ética e a estética da comunidade-sujeito. As noções de teatro pela comunidade e
comunidade-sujeito são postas em diálogo com três estudos de caso: o grupo Nós do Morro
(Vidigal), a Cia. Marginal (Parque União, Complexo da Maré) e Grupo Código (Japeri,
Baixada Fluminense). A situação das iniciativas consideradas pelo trabalho como exemplos
de teatro pela comunidade é, entretanto, problematizada diante do desafio que se impõem aos
projetos sociais/artísticos atualmente: transitar pelas novas redes de sociabilidade,
resguardando os interesses do território da luta. Diante da intricada trama social, econômica,
política e cultural, que envolve a realidade desses projetos hoje, as iniciativas mostram o
potencial do território da luta em fazer emergir no palco comunitário um teatro que
representa a expressão de narrativas alternativas com poder para resistir ao pensamento
único.

Palavras-chave: 1 Teatro e Comunidade - 2 Favela –3 Teatro Aplicado- 4 Pedagogia.


ABSTRACT

This work deals with the relationship between theatre and community within the sphere of
social and artistic projects developed in the favelas of Rio de Janeiro. It describes the new
global order and the effects of globalization as the background to life in the favela, a
geographical space that this work considers a territory of struggle. The work points to
indications that the current socio-economic reality does not lead to an improvement in the
welfare of the poorest communities on this planet. However, it also takes into consideration
the capacity for struggle within these communities in search of creative solutions for the
difficulties of everyday life. The thesis opts for an optimistic point of view which considers
the possibility of the emergence of alternative narratives able to offer the “right to a voice”,
and points to theatre as one of the possible ways in which this alternative discourse may be
constructed.
In order to consider the relationship between theatre and community this work analyzes a
bibliography, originally in English, which refers to the field of “Applied Theatre”; a term
which has been growing in usage internationally. This theoretical basis allowed for the
formulation of the concept “theatre by the community” which results from a respect for the
ethics and aesthetics of the community as active agents. The ideas of theatre by the
community and community as active agents are discussed through three case studies: the
group Nós do Morro (Vidigal), the Cia. Marginal (Parque União, Complexo da Maré) and
Grupo Código (Japeri, Baixada Fluminense). The situation of these initiatives, considered by
their action as examples of theatre by the community is examined with regard to the challenge
which presently confronts social/artistic projects: how to find a way through the paths of the
new networks of sociability while at the same time safeguarding the interests of the territory
of struggle. Faced by the intricate social, economic, political and cultural web which
envelopes the reality of these projects today, these projects demonstrate the potential of
territories of struggle in bringing to the community stage a theatre which represents the
expression of alternative narratives with the power to resist hegemonic thought.

Key words: Theatre and Community – Favela – Slum – Applied Theatre – Pedagogy.
SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO p. 1

CAPÍTULO 2 - FAVELA – O TERRITÓRIO DA LUTA.

2.1 - Desenvolvimento e globalização – duas promessas desencantadas. p.16


2.2 - Em busca da narrativa alternativa. p.35
2.3 - O lugar da Favela. p.46
2.4 - A favela pela favela e a chance da narrativa alternativa. p.59

CAPÍTULO 3 - O TEATRO APLICADO – ABRANGÊNCIA, PERCURSO E TEORIA.

3.1 - O universo do teatro aplicado. p.76


3.2 - Transformações na cena ocidental e o percurso do teatro aplicado. p.89
3.2.1- O teatro e a alforria da sala convencional. p.89
3.2.2 - A relação entre teatro e política na trilha do teatro aplicado. p.95
3.2.3 - O impulso dos anos 60 e 70. p.100
3.3 - Pistas do teatro aplicado no Brasil. p.106
3.4 - Paulo Freire e Augusto Boal - alicerces teóricos do teatro aplicado. p.118
3.5 - As noções de diálogo e participação: desdobramentos e desafios na trajetória do teatro
aplicado. p.122
3.6 - O teatro aplicado e a dinâmica do “pela comunidade”. p.131

CAPÍTULO 4 - A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM E O DESAFIO DA


COMUNIDADE-SUJEITO. p.143

4.1- Vidigal, favela palco e personagem. A conquista da comunidade-sujeito no percurso do


Grupo Nós do Morro. p.147
4.2 - Cruza-se a fronteira, se ganha um dilema: a ameaça da comunidade-objeto. p.179
4.3 - Década de 90: sociedade civil organizada, ONGs, “responsabilidade social” e o dilema
da comunidade sujeito/ objeto. p.183
4.4 - Em outras comunidades o mesmo desafio. p.199
4.4.1 - A Nova Holanda como palco e personagem. p.201
4.4.2 - Japeri como palco e personagem. p.215
4.5 - Os três grupos e a relevância do papel do artista facilitador no desafio da comunidade-
sujeito. p.226

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS. p.231

6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. p.236


1

1 - INTRODUÇÃO

Foi o teatro que me levou até a favela. Era ainda bem menina quando meu pai, médico

ativista social da década de 80, engajado no movimento “saúde é um direito de todos”, me

pegou pela mão e disse: “Vamos ao teatro”. Para minha surpresa, não era um teatro como

aqueles que eu costumava frequentar. Guardo ainda fresca na memória a imagem de uma

encosta, a subida do morro, a entrada em um galpão lotado de gente muito vibrante, quando

chegamos a peça já havia começado. Em cena, num palco improvisado, apresentavam Flicts,

o clássico de Ziraldo.

Naquele dia, o teatro me apresentou um mundo ainda distante, o da favela. Um

encontro, cuja dimensão e importância para mim, somente hoje, consigo compreender com

mais clareza. Foi aquele convite inesperado, que permitiu que a menina, filha da classe média

carioca, começasse a formular outra percepção sobre a favela e também sobre o teatro; ambos

ganharam novos e poderosos significados. Constatei que a favela não era um território tão

distante, estava logo ali, fazia parte da cidade; descobri que o teatro podia acontecer em outros

espaços que não naquelas salas especiais; percebi que lá, naquele galpão, por algum motivo

especial, o diálogo entre palco e platéia trazia tal força e vitalidade que eu não havia sentido

nos teatros pertinho de casa, na Zona Sul do Rio.

Não lembro bem onde ficava a favela ou o porquê daquele evento. Anos mais tarde,

quando visitei o Vidigal pela primeira vez, tive a impressão de que talvez eu já tivesse subido

aquela ladeira, mas não tenho certeza. A memória da infância guarda também momentos em

que a família se reunia nos almoços de domingo e meus pais falavam sobre suas causas em

benefício das comunidades mais pobres da cidade. Foi assim que eu cresci.

Na hora de escolher uma profissão, resolvi primeiro ser atriz, depois jornalista. Nos anos

90, quando deixei a escola de teatro e a Faculdade de Comunicação, eu mesma tratei de


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arranjar um novo encontro com a favela. Ele aconteceu na Associação de Moradores do

Parque União, uma das comunidades que compõem o Complexo da Maré. Um projeto de

teatro de minha autoria foi aprovado por um programa social que naquela década, de plena

expansão do terceiro setor, financiou muitas iniciativas no Rio de Janeiro e também em outras

capitais do país.

A aprovação do projeto foi mais do que uma surpresa, um susto. Eu havia estado na

Maré apenas uma vez para conversar com o presidente da Associação, que apreciou a ideia

trazida pela moça “da Universidade”: criar um projeto de teatro para jovens. Encaminhei a

proposta à concorrência e veio a aprovação. No dia seguinte, parti do Leblon em direção ao

Parque União. A experiência de dois anos na Maré foi definitiva, descobri um novo sentido

para a minha vida no teatro. Depois dela, participei de outras iniciativas, em diferentes

comunidades do Rio, como Acari, Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Chapéu Mangueira e

Vidigal.

Esses encontros revelaram para mim as características específicas de cada um desses

espaços e também de suas pessoas, mas, sobretudo, confirmaram as histórias que meus pais

haviam me contado. A favela é o “território da luta” e da solidariedade, o lugar onde os

indivíduos sempre desenvolveram ações criativas e encontraram soluções alternativas para

enfrentar as suas dificuldades; é também o lugar de onde sempre despertaram as

manifestações mais originais da cultura do Rio de Janeiro. A oportunidade de aliar a arte que

eu havia escolhido como profissão e o trabalho comunitário foram os aspectos responsáveis

pelo entusiasmo com o qual me engajei em todos os projetos; junto com isso, bem aflorada

naquela fase de minha juventude, a sede de “mudar o mundo”.

Não precisou muito tempo para que, além da euforia, eu começasse também a formular

importantes perguntas: qual seria o meu papel ou contribuição ali, inserida naquela realidade,

tão diferente da minha? Haveria uma maneira especial de pessoas como eu, artista/educadora
3

“de fora”, se relacionar com as comunidades? Que fatores teriam contribuído com a

construção de uma imagem que vê a favela como um território à parte da cidade, nicho da

desordem, da carência, da violência? Imagem tão diferente da que eu enxergava no convívio

com aquele espaço e com as pessoas de lá? Quais estratégias desenvolveram essas

comunidades para sobreviver aos problemas estruturais provocados pela negligência do

Estado em garantir às suas populações os bens públicos como educação, saúde, segurança,

lazer? Quis saber por que o contexto sócio, político e econômico da década de 90 favorecia

um verdadeiro boom do chamado terceiro setor e dos projetos promovidos pelas organizações

não governamentais (ONGs), dos quais, eu mesma fazia parte; por que o discurso da

“responsabilidade social” ganhou tanta força nas propagandas das grandes empresas,

tendência que se intensificou ainda mais nos últimos anos. Mas, sobretudo, me indaguei,

muitas vezes, sobre qual deveria ser o papel do teatro ali, qual poderia ser a sua maior

contribuição; que teatro fazer, que teatro colocar em cena?

Depois de uma vivência como coordenadora e professora de teatro em um grande

“projeto” promovido em parceria por uma importante ONG da cidade, o Governo do Estado

do Rio de Janeiro, a UNESCO e a TV GLOBO, decidi que havia chegado o momento de

retornar à Universidade para tentar responder as perguntas acumuladas ao longo de vida

prática, ou pelo menos para encontrar um lugar no qual eu pudesse sobre elas refletir. Nas

instalações bem equipadas no alto do Morro do Cantagalo, o “projeto” ao qual me refiro,

“atende” crianças e jovens das comunidades próximas, ocupando o seu “tempo disponível”

com atividades esportivas e artísticas. Ele é um dos exemplos de iniciativa que justifica a sua

ação utilizando como argumento a promoção da cidadania e o fomento da “Cultura de Paz”.

Nesses “projetos”, planejados por organizações do terceiro setor, pela iniciativa privada e por

instituições governamentais, o esporte e as artes aparecem como ferramentas capazes de

conter o caos social e a violência, na medida em que oferecem a crianças e adolescentes,


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considerados em risco social, alternativas emocionantes, com as quais possam se identificar e

transformar em opção de vida. Não há como negar que essas iniciativas tragam melhorias

para a qualidade de vida dessas crianças e jovens, despertando o seu interesse para atividades

criativas e saudáveis. Mas é preciso estar atento ao fato de que alguns desses projetos, ao

divulgarem seus feitos na mídia, sublinhando o perigo da relação juventude/violência acabam

“vendendo” a idéia de que caso eles não existissem, todos os jovens favelados, se tornariam

bandidos. O slogan de projeto “salva criança da criminalidade” tem sido incorporado por

algumas dessas iniciativas. Ele, além de divulgar a ideia de que moradores de favelas são, em

grande maioria, suscetíveis à cooptação pelo tráfico de drogas, o que não corresponde à

realidade, flagra também um outro equívoco: encarar o morador da favela como alguém que

precisa “ser salvo”, e a favela como um espaço de “ausências”. Ao usar o slogan, essas ações

assumem o papel de os “salvadores”, por que evidentemente, se existem os que devem ser

salvos, existem, aqueles que podem “salvar”.

Percebi que a minha proposta como artista/educadora estava definitivamente em

desacordo com esta perspectiva. De fato, aos poucos comecei a constatar muitas contradições

entre as intenções do “projeto” e as minhas próprias intenções. Discordava do fato de, por

exemplo, em ocasiões como as idas à noite ao teatro, eventos “chiques” para os adolescentes,

nós tivéssemos que vestir uniformes, camisetas onde se estampavam as logomarcas

“benfeitoras” do “projeto”. Lembro-me do incômodo, deles e meu, da sensação de estarmos

vestidos como “outdoors ambulantes” prestando um serviço de publicidade gratuita aos

promotores da iniciativa.

Também me perturbavam as constantes visitas das celebridades da TV, que “abriam”

espaço em suas agendas para conhecer o “projeto” e acenar sorridentes às crianças da favela.

Em outras situações, crianças desapontadas com a falta da professora do CIEP, situado no

mesmo prédio do “projeto”, mas em condições precárias de funcionamento, me perguntavam


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com voz embargada se podiam passar o dia comigo, pois não haveria almoço nem na escola,

nem em casa. Passei a me perguntar sobre os motivos que teriam determinado aquelas

circunstâncias, que teriam permitido que lado a lado convivessem uma escola em estado

miserável e um “projeto” bem patrocinado, tão confortável. Percebi que, por melhores que

pudessem ser as intenções da iniciativa e de muitos indivíduos nela envolvidos, aquele

modelo de projeto, mais do que instigar a mudança, alimentava a dependência. Levou algum

tempo até que eu finalmente enxergasse que o meu lugar não era ali, e também para entender

que as perguntas que eu fazia não seriam tão fáceis de serem respondidas.

Quando ingressei no Mestrado, o grupo Nós do Morro já era uma referência entre as

práticas artísticas provenientes das comunidades populares da cidade. Na época o grupo, que

nasceu do resultado do diálogo entre alguns artistas de teatro e jovens moradores da favela do

Vidigal, estava perto de completar vinte anos em plena atividade, a maior parte deste tempo

sem contar com um apoio financeiro estável. O fato de o grupo ter surgido espontaneamente

de “dentro” da comunidade e também de ter sobrevivido durante muito tempo contando

apenas com o apoio comunitário, além da repercussão de suas produções artísticas não só

dentro do Vidigal, mas também fora dele, eram aspectos que me chamavam atenção. A

história do grupo me atraía talvez por representar um contraponto à experiência anterior no

Cantagalo, no projeto implementado de “cima para baixo”. O ponto de partida do grupo do

Vidigal foi de fato bem diferente.

Encontrei lá um grupo fortalecido por anos de muita “batalha”, que transformou, a

golpes de marretada, um buraco de pedra num pequeno teatro, que usava latas de leite em pó,

como refletores para iluminar a cena. Um grupo que em meados dos anos 80 começou

envolvendo a participação de aproximadamente vinte pessoas e àquela altura já engajava mais

de trezentas. O Nós do Morro criou cena e dramaturgia próprias, para falar à sua comunidade

transformou os temas do cotidiano da favela em matéria artística, brincou com situações


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fantásticas do imaginário “vidigalense”, reverenciou no palco a sua comunidade-mãe. A cena

do Nós do Morro, seja a que revelou o Vidigal como sua personagem protagonista, ou a que

explorou universos distantes, como os de William Shakespeare, trouxe impregnada, no corpo

e na voz dos atores, a “alma vidigalense.” Os processos de criação desenvolvidos pelo Nós do

Morro favoreceram a emersão de uma cena própria do Vidigal, parida do diálogo estabelecido

entre os artistas e a comunidade. Diálogo traduzido no palco em forma cênica materializada.

Lembro-me das vezes que fiz parte como espectadora da platéia no pequeno Teatro do

Vidigal, e no Casarão, outro espaço que abriga as atividades do grupo, momentos em que a

comunicação entre palco e platéia provocou o que Peter Brook definiu como verdadeiras

“explosões de vida”. Constatei no Vidigal a expressão de um teatro criado pela comunidade.

Naquele momento, o encontro representou para mim a satisfação de descobrir uma iniciativa

que respondia a dinâmica que eu estava à procura: a da comunidade-sujeito. Dediquei ao

grupo a minha dissertação. 1

Já no final do Mestrado, a professora Márcia Pompeo Nogueira (UDESC) me

apresentou um vasto leque de publicações em língua inglesa, dedicado aos estudos da área de

pesquisa teatro e comunidade em outras partes do mundo. A ampla literatura já vinha sendo

trazida ao nosso conhecimento por meio dos artigos de Nogueira. Eu estava concluindo a

dissertação, mas percebi que o material poderia servir como um consistente apoio teórico para

uma futura tese de doutoramento. Encorajei-me a permanecer na Universidade e encarar de

1
COUTINHO, Marina Henriques. Nós do Morro: percurso, impacto e transformação. O grupo de teatro da
favela do Vidigal. Orientador: Prof. Dr. Zeca Ligiéro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, 2005. Na primeira parte do estudo
(capítulo 1), fiz um breve histórico do grupo, avaliando os aspectos que garantiram a continuidade de sua ação
dentro de sua comunidade-mãe, a favela do Vidigal, bem como a sua projeção e reconhecimento fora dela. A
pesquisa de campo, realizada em 2003, permitiu a minha aproximação em relação aos dois campos de atuação do
Nós do Morro: o da sala de aula (ensino do teatro a crianças e adolescentes) e o da companhia profissional de
atores, através do acompanhamento dos ensaios do espetáculo Burro sem Rabo (2003). As visitas ao Nós do
Morro revelaram-se uma fonte riquíssima, tanto de informações, imprescindíveis para a pesquisa, quanto de
entusiasmo para realizar o trabalho. As entrevistas colhidas e o acompanhamento de aulas e ensaios serviram
como ponto de partida para a reflexão dos dois capítulos seguintes da dissertação, nos quais avalio o impacto da
ação do Nós do Morro na vida de alguns integrantes do grupo e investigo os procedimentos teatrais adotados por
ele no processo de montagem do espetáculo Burro sem Rabo.
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vez o desafio. A dificuldade que senti durante o Mestrado, de encontrar um suporte teórico no

qual pudesse apoiar as minhas argumentações sobre a relação entre teatro e comunidade no

Vidigal, agora parecia solucionada.

A vivência frustrada naquele “projeto” do Cantagalo, que insistia em permanecer em

minha memória, o resultado da dissertação e o encontro com a nova bibliografia trouxeram

ainda mais perguntas, que somente ao longo do Doutorado, puderam ser investigadas mais

profundamente. São elas: quais circunstâncias favorecem a comunidade/favela exercer o seu

papel como autora dos processos criativos ou a sua autonomia dentro de um “projeto”; que

tipo de política estabelecida entre “agentes externos” e comunidades é capaz de criar uma

relação que garanta à comunidade o seu verdadeiro direito de voz? Ou ainda, que

circunstâncias permitem que os projetos respirem dentro da dinâmica da comunidade-sujeito,

assegurando à favela/comunidade o seu direito de por meio do teatro nomear o mundo? Essas

perguntas, somadas as outras apontadas anteriormente, norteiam este trabalho.

O mergulho na investigação dessas questões levou-me a percorrer caminhos

inesperados. Visitei, além do Teatro e da Pedagogia, diversas áreas do conhecimento como a

Sociologia, a Economia, a Cultura, a Geografia e a Política. A experiência multidisciplinar foi

particularmente intensificada durante o período em que participei do curso Theatre and media

for development (Teatro e Mídia para o desenvolvimento), na Universidade de Winchester,

Inglaterra, sob a supervisão do Professor Tim Prentki. A chance surgiu devido a aprovação de

minha proposta de “formação complementar” ao Doutorado pelo European Union

Programme AlBan of High Level Scholarships for Latin América (Programa AlBan de bolsas

de alto nível da União Européia para a América Latina) em 2007.

Sem dúvida, os conteúdos abordados no curso tiveram um impacto direto na elaboração

desta tese. Assuntos como políticas de desenvolvimento, macroeconomia, globalização e

neoliberalismo contribuíram para ampliar a minha compreensão sobre as regras que regem o
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mundo hoje e me ajudaram a construir, especialmente, o capítulo 2 deste trabalho: Favela – O

território da luta. Nele, a partir dos conceitos de desenvolvimento e globalização procuro

apresentar o contexto da nova ordem global e as conseqüências, ou os efeitos da globalização,

que Milton Santos define como perversa, na realidade da favela, espaço geográfico que decidi

chamar de “território da luta”. O ponto de partida é a constatação de que tanto as políticas

desenvolvimentistas, que começaram a ser implementadas nos países do Sul do mundo pelos

países do Norte após a Segunda Guerra Mundial, quanto a globalização, baseada nas leis do

mercado, competente para gerar riquezas, porém negligente para cuidar das necessidades

sociais, fracassaram na tentativa de garantir à maior parte da população do planeta previsões

mais positivas para o futuro.

Ao contrário, como afirmam diversos autores aos quais recorro no capítulo, entre eles

Wolfgang Sachs, Oswaldo de Rivero, Noam Chomsky e George Soros, tudo indica que o

modelo socioeconômico global caminha na contramão da garantia a uma realidade mais digna

e humana para as pessoas mais pobres do planeta. No capítulo, o fenômeno da “favelização do

mundo”, termo utilizado por Mike Davis, é examinado como uma conseqüência da

globalização neoliberal. Mas, a partir da perspectiva mais otimista de Milton Santos em Por

uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal, e das formulações do

professor Tim Prentki em Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão procuro

argumentar em favor da possibilidade da criação de narrativas alternativas ao pensamento

único, em favor da chance de que surjam do “território da luta” ações criativas capazes de

proporcionar aos “vetores de baixo” o direito de voz.

Após apresentar um panorama global, focalizo o espaço mais localizado da favela

carioca, abordando aspectos de sua historiografia, as suas representações pelo imaginário da

cidade e a luta para se livrar dos estigmas da “ausência”, da “carência” e da violência.

Apresento exemplos de um movimento acentuado recentemente que vem trazendo à tona, por
9

meio de diversos canais expressivos, como a música, a dança, a literatura, o audiovisual e

também o teatro, iniciativas que emergem do “território da luta” com o potencial de se

afirmarem como narrativas alternativas. Nas letras do rap, na poesia da literatura marginal,

na programação das rádios comunitárias ou na cena de teatro, diversas ações, encontram

brechas no discurso hegemônico para indicar a possibilidade da produção de um novo

discurso, baseado na versão daqueles que estão “de dentro.”

No Rio de Janeiro, organizações como o Grupo Nós do Morro, o Grupo Cultural

AfroReggae, a Central Única das Favelas – CUFA e o Observatório das Favelas, encabeçam

hoje o movimento que ganhou corpo a partir dos anos 90 e que disseminou projetos

sociais/artísticos em diversas comunidades da cidade. Aponto alguns aspectos de um novo

cenário de cidade, que naquele momento começa a se desenhar a partir do surgimento de uma

complexa rede social que facilitou o encontro ou o estabelecimento de “parcerias”, no

“território da luta”, entre diversos “atores sociais” como: órgãos governamentais,

organizações internacionais, universidades, empresas, fundações, associações de moradores,

organizações não governamentais (ONGs), veículos de comunicação etc. E apresento, neste

momento, o dilema que se coloca para essas iniciativas, especialmente para aquelas que

surgiram a partir da mobilização comunitária: a medida em que as ações da favela passaram,

gradualmente, a responder às vontades de seus múltiplos parceiros, incluindo aqueles que

muitas vezes refletem os interesses dos “vetores de cima”, até que ponto a negociação entre

todos os “atores”, ou entre os “vetores de baixo e de cima”, como define Milton Santos,

consegue garantir situações em que a comunidade/favela é de fato autora, de fato sujeito do

projeto? Não existiria o risco dela se tornar um mero objeto do interesse de grupos,

representantes dos vetores “de cima”? Finalizo o capítulo 2 formulando aquela que talvez

seja a questão-chave deste trabalho: Será possível aos projetos sociais/artísticos hoje, ainda

que fazendo parte da intricada trama social, política, econômica e cultural, oferecer à arte,
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especialmente ao teatro, foco desta tese, a chance de assegurar a vez e a voz dos “vetores de

baixo”, transformando o palco da favela num espaço apto a provocar mudanças?

No terceiro capítulo, O Teatro Aplicado – abrangência, percurso e teoria, apresento o

corpo teórico ao qual tive acesso durante o curso na Inglaterra, mas antes descrevo

brevemente o cenário do campo da Pedagogia do Teatro no Brasil, que nos últimos anos

viveu um período de expansão devido a grande diversidade de práticas teatrais agindo em

contextos como, o dos projetos realizados nas periferias e favelas das grandes cidades; das

ações na área da educação não formal; dos programas em defesa dos direitos humanos, da

saúde etc. O fato despertou a atenção do meio acadêmico que se antes concentrava as suas

pesquisas em experiências de teatro na escola, hoje, mais atento ao fenômeno contemporâneo,

alargou seu campo de reflexão. A variedade de iniciativas que incluem a parceria entre teatro

e educação nesses diversos contextos obrigou uma resposta da academia à nova realidade;

dilatou o foco de seus estudos teóricos, o que vem contribuindo, por exemplo, com a maior

atenção à investigação de práticas artísticas comunitárias, bastante numerosas em nosso país

hoje.

Como no Brasil, em outras partes do mundo as pesquisas acadêmicas vêm tentando

responder à emergência dessa diversidade de iniciativas. Na Inglaterra, desde os anos 90

surgiram muitas publicações dedicadas a investigar a relação entre teatro e comunidades. Com

a intenção de contribuir com os debates na área de nossa Pedagogia do Teatro e na tentativa

de encontrar respostas para as perguntas que levantei, trago neste capítulo as reflexões de

alguns autores que se debruçaram no estudo de “segmentos teatrais” como performance

comunitária, teatro para mudança social, teatro popular, teatro de intervenção, teatro para o

desenvolvimento, teatro comunidade e teatro para solução de conflitos. Entretanto, embora

cada uma dessas “modalidades” apresente na Inglaterra formulações teóricas específicas, me

detenho na tendência mais atual, evidente em recentes publicações, de concentrar essas


11

práticas num termo abrangente e inclusivo que vem ganhando repercussão internacional –

applied theatre (teatro aplicado). A escolha por um termo mais inclusivo como este indica a

intenção desses estudos em se concentrar em conceitos que regem as práticas no campo, mais

do que se dedicar às nuances entre elas. Portanto, assumo neste momento do trabalho o termo

teatro aplicado, e passo a me dedicar a sua trajetória e conceituação teórica. Parte do desafio

do capítulo foi o estudo da bibliografia em língua inglesa; bem como a tradução de trechos de

autores como Baz Kershaw, Eugene Van Erven, Helen Nicholson, Tim Prentki, Philip Taylor,

Kess Epskamp e Nugugi Wa Thiong’O, tarefa supervisionada por David Herman.

Ao longo do capítulo, apresento o percurso do teatro aplicado. Dedico boa parte dele à

discussão das transformações sofridas pela cena ocidental a partir do século XX, que teriam

colaborado com o surgimento do embrião do teatro aplicado. A ruptura com a sala italiana,

ou a explosão do espaço, me pareceu um aspecto fundamental para trilhar este caminho. A

recusa gradual à sala tradicional que levou à alforria do teatro; a iniciativa de encenadores em

recuperar o espaço urbano como um ambiente livre para o acontecimento teatral e a vontade

de reencontrar a platéia popular; desejos que iriam se acentuar ao longo daquele século de

rupturas e profundas mudanças na cena ocidental. Outro aspecto que destaco é o

fortalecimento da relação entre teatro e política, desde o teatro engajado soviético, até os

desdobramentos desta parceria no pensamento teórico, dramaturgia e cena de Bertolt Brecht,

que exerceram grande influência no movimento do teatro político manifestado em diversas

partes do mundo durante os anos 60 e 70. Décadas em que grupos teatrais inovadores,

desprezaram os espaços convencionais do “mainstream” para retomar o contato com as

platéias populares, levando o teatro aos mais variados espaços da cidade e até os de áreas não

urbanas.

Neste trecho do capítulo coube uma passagem para o Brasil e a investigação também

aqui dos movimentos de ruptura e transformação que alteraram o curso da história do Teatro
12

Brasileiro. Como a atuação de grupos que, assim como em outras partes do mundo durante as

décadas de 60 e 70, deixaram a sala tradicional em busca de recuperar a ideia do teatro como

um ato de cidadania compartilhado. Este contexto nacional me permitiu introduzir o que

chamei de “alicerces teóricos do teatro aplicado” - as obras de Paulo Freire e Augusto Boal. A

rigor, como será possível constatar, além de Brecht, as obras dos dois brasileiros são

reconhecidas pelos autores estrangeiros como pilares da teoria do teatro aplicado.

A base teórica do teatro aplicado defende que os processos criativos, que envolvem

quase sempre a colaboração entre artistas e grupos comunitários, devam permitir a emersão de

um teatro que responda à comunidade, que exerça uma comunicação e impacto específicos

para os seus participantes e platéias; que os interesses, temas, histórias, e formas estéticas da

comunidade sejam aproveitadas pela cena. Compreender a teoria do teatro aplicado, bem

como a análise de alguns exemplos no final do terceiro capítulo, ajudaram-me a identificar as

circunstâncias favoráveis à emersão de um teatro pela comunidade, ou de uma cena que reflita

a manifestação de narrativas alternativas. A fundamentação me permitiu apontar os

caminhos da construção de práticas teatrais com o potencial para responder à dinâmica da

comunidade-sujeito.

No capítulo 4, analiso os exemplos de três grupos teatrais, com ênfase no estudo de um

deles, o veterano Nós do Morro. Os outros dois representam iniciativas mais recentes, que já

nasceram inseridas no amplo leque de ações teatrais presentes em comunidades hoje: o Grupo

Código (Japeri, Baixada Fluminense), que é o resultado da extensão das ações do grupo do

Vidigal e a Cia. Marginal (Nova Holanda, Complexo da Maré), uma iniciativa que nasce no

Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), hoje Redes de Desenvolvimento da

Maré (REDES), uma organização que, assim como o Nós do Morro e o Código, surge a partir

da mobilização de moradores de sua comunidade. Durante o Mestrado, no segundo semestre

de 2003, iniciei meu trabalho de campo no Nós do Morro, acompanhei os ensaios do


13

espetáculo Burro sem Rabo, assisti aulas para crianças e adolescentes e fiz entrevistas com os

diretores do grupo, atores/multiplicadores e alunos. As visitas semanais me permitiram uma

aproximação com o grupo, a compreensão de sua trajetória e métodos de trabalho. As

informações colhidas durante aquele período estão presentes em minha dissertação e também

no presente trabalho.

Depois, ao longo do Doutorado, retomei a pesquisa em campo, acompanhando os

ensaios de Os Dois Cavalheiros de Verona (2006), espetáculo que tive o prazer de ver

encenado no Casarão do Vidigal, no Teatro Maria Clara Machado e em Londres, no

Barbican, por ocasião de minha estadia na Inglaterra. Entre agosto de 2006 e março de 2007,

a convite do Nós do Morro, atuei como colaboradora do grupo na área de coordenação de

cursos. Esta aproximação se por um lado foi muito positiva, porque passei a compreender

com olhos de quem está “de dentro” a realidade do grupo, de outro embaraçou o meu trabalho

como pesquisadora. Optei por manter uma razoável distância entre mim e o meu “objeto”.

Foi em 2006, que conheci o Grupo Código, de Japeri, que na época já representava um

orgulho para o Nós do Morro. O Código nasceu do encontro entre integrantes do grupo do

Vidigal e jovens artistas da Baixada Fluminense, história que será melhor contada no capítulo

4. As duas vezes em que estive em Japeri fui levada pela artista facilitadora do Nós do Morro,

Miwa Yanagizawa. Ela havia supervisionado os trabalhos do grupo e dirigido suas

montagens. Na primeira visita, em 2006, passei o dia em Japeri e assisti à noite a estreia do

espetáculo Censura Livre; na segunda, em 2007, assisti a montagem de Do lado de cá. Nas

ocasiões, além de conferir o impacto da iniciativa na comunidade, que já reconhecia e

frequentava o espaço cultural criado pelo grupo, também realizei entrevistas com Miwa e os

jovens atores do Código. Percebi que seria importante incluí-lo na pesquisa, primeiro por se

tratar de uma “cria” do Nós do Morro, segundo por ele estar desenvolvendo um processo

muito semelhante ao do grupo do Vidigal, baseando sua pesquisa cênica em temas


14

provenientes de sua comunidade, e terceiro porque me emocionei com a sua valentia;

constatei que naquele espaço tão atacado pelas privações estruturais, respirava o teatro.

Em 2007, após a experiência intensa no Nós do Morro, senti a necessidade de me afastar

e procurar outras iniciativas de teatro no âmbito dos projetos sociais ofertados naquele

momento. Não tinha certeza o que incluiria na pesquisa, mas comecei a investigar outras

organizações. Visitei o AfroReggae, instituição mais reconhecida por seu trabalho musical, e

conheci o seu grupo de teatro. Na época, a experiência me pareceu ainda principiante. Decidi

então retornar a Maré, agora como pesquisadora, e ver o que acontecia por lá na área teatral.

Já conhecia o projeto de pré-vestibular e o de dança promovido pelo Centro de Estudos e

Ações Solidárias da Maré (CEASM), hoje Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES),

mas tive a feliz surpresa de encontrar também por lá a Cia. Marginal, que naquele momento

ensaiava o espetáculo Qual é a nossa cara?. Visitei os ensaios do grupo uma vez por semana

entre julho e setembro de 2007, quando estreou a peça na Casa de Cultura da Maré. Durante

este período realizei entrevistas com os atores e também com a sua diretora Isabel Penoni.

O encontro com a Cia. Marginal foi curioso, eu havia acabado de assistir Do lado de cá,

em Japeri, que trazia a comunidade como protagonista da cena, e novamente na Maré, me

deparava com a mesma escolha. Em Qual é a nossa cara?, a favela de Nova Holanda, uma

das que compõem o Complexo da Maré, inspirava dramaturgia e encenação. As duas

iniciativas também tinham em comum o fato de terem surgido a partir do encontro entre

artistas “de fora” e jovens das comunidades. As situações eram bem semelhantes à vivida pelo

Nós do Morro na década de 80 e esses foram, sem dúvida, alguns dos motivos que me

levaram a incluir o Grupo Código e a Cia. Marginal neste trabalho.

A partir dos três exemplos abordo o conceito do teatro pela comunidade, como

resultado do respeito à ética e a estética da comunidade-sujeito, mas problematizo o tema, na

medida em que a realidade dos projetos sociais/artísticos hoje, como falamos antes, desafia os
15

“vetores de baixo” a transitar pelas tramas das “novas redes de sociabilidade”, resguardando

os interesses do “território da luta”.

Afinal, será possível para a favela/comunidade como palco e personagem construir

narrativas alternativas ao pensamento único, apresentando ao mundo a sua versão, com a sua

voz, tomando as rédeas de seu destino e assumindo-se como dona de sua história?

Retomo as imagens gravadas em minha memória, um espaço improvisado, repleto de

gente vibrante, na Maré, no Vidigal, ou em Japeri, uma emoção rara e arrebatadora no

encontro entre o palco e a plateia, aquela que eu havia experimentado pela primeira vez ainda

menina. Este trabalho representa mais do que o resultado do curso de Doutorado, a conclusão

de um ciclo de vida. Foi o meu afeto pelo teatro, pelas pessoas que encontrei e com as quais

trabalhei no “território da luta” que me estimularam a seguir em frente e chegar até aqui.
16

2- FAVELA – O TERRITÓRIO DA LUTA.

Acho que devemos ser (cautelosamente) pessimistas em nossos


diagnósticos, mas (severamente) otimistas em nossas esperanças. 2

Zygmunt Bauman

2.1– Desenvolvimento e globalização – duas promessas desencantadas.

A descoberta de uma política socioeconômica que garanta a todos os povos e nações

uma perspectiva mais positiva para o futuro, capaz de garantir a superação do quadro de

pobreza global, é o principal desafio para o mundo contemporâneo. As previsões mais

otimistas resistem diante de um cenário que anuncia um futuro mais ameaçador do que

promissor. A “era” do desenvolvimento fracassou na ideia de erradicar a pobreza, o atual

modelo socioeconômico fracassa na promessa de que o livre comércio, a privatização e as

leis do mercado distribuiriam a riqueza internacionalmente. Tanto o desenvolvimento quanto

a globalização mais prometeram do que cumpriram. A “boa vontade” dos países ricos

continua sendo desafiada a construir um mundo que seja bom para todos. Aos mais pobres

permanece também um mesmo desafio: cultivar um estado de luta capaz de modificar o que

está estabelecido.

A primeira promessa desencantada, a do desenvolvimento, foi feita logo após o fim da

Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos ganharam o centro do mundo e

decidiram deixar clara esta posição. A posse do Presidente Truman em 1949 marcou o início

da “era do desenvolvimento”. Em 20 de janeiro daquele ano, ele anunciou ao mundo: “É

preciso que nos dediquemos a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços

científicos e o nosso progresso industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso

2
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
17

das áreas subdesenvolvidas.” 3 Pela primeira vez, a partir deste discurso histórico, o mundo

estava dividido entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos; nas décadas seguintes os

Estados Unidos e a Europa ditaram como o resto do planeta devia se organizar econômica,

política e culturalmente. A estratégia da doutrina Truman era “desenvolver” os segundos

pelos primeiros. De acordo com Gustavo Esteva:

Naquele dia, dois bilhões de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. Em


um sentido muito real, daquele momento em diante, deixaram de ser o que
eram antes, em toda a sua diversidade, e foram transformadas magicamente
em uma imagem inversa da realidade alheia: uma imagem que os diminuiu e
os enviou para o fim da fila. 4

A partir daquela data uma enorme indústria do desenvolvimento surgiu, as organizações

do mundo desenvolvido começaram a ir para os lugares subdesenvolvidos para “ajudar” a

elevar o nível daquelas áreas consideradas atrasadas, por meio das políticas do

desenvolvimento. Apostar nas forças produtivas e buscar ajuda externa em capital e

tecnologia para alimentar o parque industrial tornaram-se a tônica da economia e da política a

partir daquele momento. A industrialização seria o principal caminho para a superação do

subdesenvolvimento dos países da América Latina. No Brasil, com a chegada de Juscelino

Kubitschek ao poder em 1956, a chamada fase desenvolvimentista ganhou vapor por meio do

Plano de Metas, que se por um lado modernizou a indústria, de outro provocou um forte

endividamento externo.

Na África, as políticas desenvolvimentistas envolviam projetos em diversas áreas, desde

o controle da natalidade até projetos de desenvolvimento rural. No momento em que muitos

ganhavam a independência, outro tipo de dependência começava a se construir. As

estratégias para o desenvolvimento incluíam empréstimos do Fundo Monetário Internacional

3
ESTEVA, Gustavo. Desenvolvimento. p. 59-60 In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia
para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000.
4
Ibidem, p. 60.
18

(FMI), assim como a presença do Banco Mundial nas economias. Como afirmou Eduardo

Galeano:

Nascido nos Estados Unidos, com sede nos Estados Unidos e a serviço dos
Estados Unidos, o Fundo opera, de fato, como um inspetor internacional.
(...) O FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall
Street sobre o planeta inteiro, quando em fins da Segunda Guerra o dólar
inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. 5

Paralelo a isso, organismos filantrópicos e organizações não governamentais (ONGs),

como são hoje bem conhecidas e que têm exercido um crescente papel nas sociedades em

todo o mundo, ganharam força por meio de projetos intervencionistas em países do Sul. As

relações entre Norte e Sul passaram a ser formuladas de acordo com este modelo

desenvolvimentista, que segundo Wolfgang Sachs: “Forneceu um marco de referência

fundamental para aquela mistura de generosidade, chantagem e opressão que caracterizou as

políticas dirigidas ao Sul”. 6

Mas, embora a “era” do desenvolvimento tivesse inspirado diversas maneiras de intervir

nas situações de vida das populações dos países subdesenvolvidos, depois de quatro décadas,

como explica Sachs, ela entrou em declínio. Segundo o autor, a maioria das condições

históricas que deram origem à perspectiva desenvolvimentista deixou de existir. A “era” do

desenvolvimento afirma Sachs: “Entrou em declínio porque as premissas que lhe serviram de

5
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 29a.edição. p.
239.
6
SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis,
RJ:Vozes, 2000. p. 11. Um bom exemplo desta relação entre Norte e Sul foi a Revolução Verde, cuja proposta
era transferir pessoas da chamada “agricultura de baixa produção” para uma integração com a economia
nacional. De acordo com essas políticas os “experts” do Norte planejaram como mudar rapidamente o Sul
através da imitação das soluções da agricultura, especialmente as dos Estados Unidos. Como explica a
professora Márcia Pompeo Nogueira em Teatro para o Desenvolvimento e sua contribuição (Revista Ouvir e
Ver – no prelo), o modelo imposto não era compatível com o conhecimento e recursos existentes. O
conhecimento das sociedades tradicionais aprendido em anos de vida ligados à terra foi invalidado. Nogueira
explica que o efeito desta política em zonas rurais foi devastador, o sistema de “baixa produção” dos pequenos
produtores, que plantavam para sua família e comunidade fora substituído pela agricultura industrial. Tendo
excluído o pequeno produtor, a conseqüência deste desenvolvimento economicamente orientado foi o aumento
de pobreza. Ao anular a participação das populações ou comunidades nos processos de formulação e
implementação dos projetos, as políticas desenvolvimentistas cavaram, em muitos casos, o seu próprio fracasso.
19

base foram superadas pela história”. 7 O progresso dos países industrializados, principalmente

dos Estados Unidos, não garantiu um futuro melhor, ao contrário, já existe bastante evidência

de que essa corrida levou a um abismo. A difícil situação ecológica que vive o mundo deixa

bastante claro que as sociedades “avançadas” não são modelo que se preze. Também a

garantia aos americanos de “uma visão reconfortante de uma ordem mundial na qual eles

estariam à frente” 8 foi abalada.

De acordo com Sachs, por mais de quarenta anos o desenvolvimento foi uma arma na

competição entre sistemas políticos, com o fim do confronto Leste-Oeste, o projeto de

Truman perdeu o vapor; o mundo se tornou cada vez mais policêntrico; hoje, muito mais do

que nas sedes de governo ou nos parlamentos, o destino das economias e culturas globalizadas

é decidido nos mercados financeiros de Nova York, Chicago, Londres, Tóquio, Cingapura,

Hong-Kong, Frankfurt, Paris, e nas diretorias das empresas transnacionais.

Se houve algum avanço por parte dos países do Sul, mesmo assim os do Norte sempre

estiveram em grande vantagem. Já em 1960 os países do Norte eram 20 vezes mais ricos que

os do Sul. Em 1980 essa proporção havia aumentado para 46 vezes. De acordo com Sachs, o

fracasso das premissas do projeto do desenvolvimento teria colaborado com o seu

desmoronamento:

O ‘desenvolvimento’ foi, por várias décadas, aquela ideia que, como um


altíssimo farol orientando marinheiros até a praia, guiava as nações
emergentes sem sua viagem pela história do pós-guerra. Ao se libertarem do
jugo colonial, todos os países do sul, fossem estes democracias ou ditaduras,
proclamavam com sua aspiração primordial o desenvolvimento. Quatro
décadas se escoaram e, no entanto, tanto governos como cidadãos continuam
a manter seus olhos fixos naquela luz que apaga e acende à mesma distância
em que sempre esteve: para atingir aquela meta, todos os esforços e todos os
sacrifícios foram e são justificáveis... no entanto a luz insiste em recuar, cada
vez mais na escuridão. 9

7
SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis,
RJ:Vozes, 2000. p.13.
8
Ibidem, p.13.
9
Ibidem, p.11.
20

O autor é categórico ao afirmar que: “O conceito do desenvolvimento é como uma ruína

na paisagem intelectual. Ilusões e reveses, fracassos e crimes foram seus assíduos


10
companheiros e todos eles relatam uma mesma história: o desenvolvimento não deu certo.”

Assim como Sachs, Oswaldo de Rivero em O Mito do Desenvolvimento 11 divulga a

mensagem corajosa de que os benefícios prometidos pelo desenvolvimento nos últimos

cinquenta anos não atingiram a maior parte das nações. Segundo Rivero, muitos países e

grande parte de suas cidades estão se transformando em “entidades caóticas ingovernáveis”

sob o controle de opressores e mafiosos. O autor destaca o caso do Peru, que em 1987

permanecia preso à exportação de bens primários, endividado, cuja população dobrara e cuja

situação estratégica ficara enfraquecida ao torna-se importador de energia e de alimentos.

No início do século XXI, o Peru era considerado pelo Banco Mundial um dos países

mais pobres do mundo, com mais de 40% da população vivendo com renda menor que dois

dólares por dia. De acordo com Rivero, a falta de entrosamento na economia global não seria

uma característica exclusiva do Peru. Outros países da América Latina, Caribe, África e Ásia

têm vivido uma gradativa situação de “disfunção e marginalidade mundial”. 12 Até 2020

estima-se que a população dos países pobres terá quase dobrado e será majoritariamente

urbana. Rivero atenta para o perigo de que:

A menos que haja uma queda drástica e sem precedentes da taxa de


natalidade, e um aumento também sem precedentes na disponibilidade de
alimentos energia, água e empregos, grande parte da população do mundo
subdesenvolvido viverá em megalópoles caóticas com milhões de pobres
desempregados, subnutridos, cercados de poluição e violência.13

10
SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis,
RJ:Vozes, 2000. p. 12.
11
RIVERO, Oswaldo de. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes,
2001.
12
Ibidem, p.10.
13
RIVERO, Oswaldo de. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes,
2001.p. 186.
21

Na América Latina, países como Bolívia, Haiti, Honduras, Guatemala, Nicarágua e Peru

já são os mais afetados pela falta de segurança alimentar. Esses países, onde o abastecimento

de alimentos é ameaçado por altas taxas de expansão da população urbana, explica Rivero:

“Não conseguirão importar cada vez mais alimentos com as reduzidas receitas obtidas com

suas exportações primárias e de manufaturas pouco intensivas em tecnologia.” 14 O grande

poder de penetração das empresas transnacionais produtoras de alimentos no comércio

agrícola mundial deixaram de fora os agricultores do países pobres. De acordo com Rivero:

“Esta situação os levará a depender ainda mais da ajuda alimentar externa.” 15 O destino

dessas nações será o da “indigência”.

Em algumas partes do globo, como no Haiti, o presságio, infelizmente, já se confirmou.

A ilha é o cenário perfeito para o quadro descrito por Oswaldo de Rivero. A situação do Haiti,

que permanecia esquecida ou silenciada há muitos anos, veio à tona em janeiro deste ano

devido ao terremoto que atingiu a sua capital, Porto Príncipe, despertando os olhares do

mundo inteiro para uma conjuntura que Fidel Castro definiu como: “Uma vergonha da nossa

época, de um mundo onde prevalecem a exploração e o roubo das riquezas da imensa maioria

dos habitantes do planeta.” 16 O Haiti foi a “menina dos olhos” da colonização francesa, teve

o seu território devastado pela monocultura da cana de acúcar; entre 1915 e 1934 foi invadido

por tropas norteamericanas; foi vítima de ditaduras sangrentas durante 30 anos, acumulou

dívida com o FMI, viveu anos de instabilidade social e política; hoje figura em 146º lugar

entre os 177 medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. Mais da

metade da população vive com menos de US$ 1 por dia, e 78% com menos de US$ 2.

Desmatadas, apenas 2% das florestas do país estão de pé; com as terras afetadas por anos de

queimas e desmatamento, o país importa a maior parte dos alimentos que consome. A ajuda

14
Ibidem, p.190.
15
Ibidem, p.190.
16
Mesmo afastado da política o líder cubano escreveu carta à imprensa onde consta a declaração. Fonte: Cuba
abre seu espaço aéreo aos EUA. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 16/01/2010. Mundo. P. 28.
22

humanitária que agora trabalha nos escombros de uma tragédia provocada pelo desastre

natural acabou atraindo a atenção também para outro desastre, o provocado por séculos de

produção de pobreza, repressão, opressão e racismo.

A verdade é que enquanto em menos de cem anos a Europa e os Estados Unidos quase

acabaram com a sua pobreza, em vários países ela se tornou hereditária. Contudo, a situação

de atraso tecnológico e pobreza da América Latina ainda é boa se comparada com a de muitos

países da África, Ásia e Oriente Médio. Hoje, alerta o economista Joseph Stiglitz, diante da

variedade de estatísticas e histórias que descrevem os países “em desenvolvimento”, algumas

menos promissoras, outras mais esperançosas, é importante não esquecer que: “Sucesso

significa desenvolvimento sustentável, equitativo e democrático que tenha seu foco na

melhoria dos padrões de vida e não apenas no PIB medido.” 17 O autor nos lembra que nem

sempre crescimento econômico significa desenvolvimento social. Ao contrário, em muitos

lugares, o crescimento tem sido frequentemente acompanhado pelo aumento da pobreza. Na

América Latina, de 1981 a 1993, enquanto o PIB aumentou 25%, a parte da população que

vivia com menos de 2,15 dólares por dia aumentou de 26,9% para 29,5%. O economista

adverte: “Se o crescimento econômico não é compartilhado por toda a sociedade, então o

desenvolvimento fracassou.” 18

O Brasil, que vem sendo considerado por muitos como a caminho de se tornar uma

potência econômica mundial, amarga números preocupantes em relação à distribuição de

renda. Em 2007, os mais ricos do país, 1% da população (cerca de 560 mil domicílios)

detinham 12,5% da renda familiar; já os 50% mais pobres, que representam 28 milhões de

17
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 117. O
produto interno bruto (PIB) representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais
produzidos numa determinada região, que pode ser um país, durante um período determinado (mês, trimestre,
ano, etc). O PIB é um dos indicadores mais utilizados na macroeconomia com o objetivo de mensurar a atividade
econômica de uma região.
18
Ibidem. p. 118.
23

domicílios, ficavam com apenas um pouco mais: 14,7% do bolo. 19 Recentemente um relatório

apresentado na abertura do 5o. Fórum Urbano Mundial da Organização das Nações Unidas

(ONU), no Rio de Janeiro, revela que cinco cidades brasileiras estão entre as mais desiguais

do mundo, demonstrando as maiores diferenças de renda entre ricos e pobres do país. 20 O

documento intitulado O Estado das Cidades do Mundo 2010/2011: Unindo o Urbano

Dividido também mostra que o Brasil é o país com a maior distância social na América

Latina.

Outra recente pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) também não revela dados muito positivos. O levantamento intitulado Síntese dos

Indicadores Sociais mostra que quase a metade das crianças e jovens de até 17 anos estava em

situação de pobreza em 2008, 44,7%, o equivalente a cerca de 11 milhões de pessoas. 21 No

início de 2010, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura

(UNESCO) divulgou resultados de uma pesquisa que mostrou que, embora programas

governamentais como o Bolsa Família, o Fome Zero e o Brasil Alfabetizado tenham ajudado

a melhorar os índices na área da educação, ainda assim, estes avanços não foram suficientes

para tirar o país de uma posição intermediária no continente. O relatório Educação para

Todos, divulgado pela UNESCO mostra que a baixa qualidade do ensino nas escolas

19
Fonte: ALMEIDA, Cássia; LINS Letícia. Menos pobre, porém tão desigual. Jornal O Globo, Rio de Janeiro
23/08/2009, Economia. P. 29-30. A informações trazidas pela reportagem estão apoiadas no estudo da
pesquisadora, economista Sonia Rocha (Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade) com dados dos censos
demográficos de 1970, 1980 e Pnads ( Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) nos anos seguintes;
pesquisas do IBGE e o estudo do pesquisador Marcelo Néri, no Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio
Vargas, com dados do Censo, Pnad e Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.
20
As cinco cidades são: Goiânia (10a.), Belo Horizonte (13a.), Fortaleza (13a.), Brasília(16a.) e Curitiba (17a.)
consideradas pela ONU cidades também com alto índice de desigualdade, o Rio de Janeiro aparece na 28a.
posição e São Paulo na 39a. posição. Na pesquisa nove municípios da África do Sul lideram o ranking. As
capitais da Nigéria, Etiópia, Colômbia, Quênia e Lesoto estão também entre as mais desiguais. No total foram
analisadas 138 cidades de 63 países em desenvolvimento. Fonte: Cidades brasileiras integram a lista das mais
desiguais. Disponível em: <http//www.estadao.com.br> São Paulo, 19 de marco de 2010. Acesso em:
20/03/2010.
21
Pelos critérios da pesquisa, um pobre tem um rendimento domiciliar per capita de até meio salário mínimo por
mês, ao passo que o extremo pobre tem uma renda de até um quarto do mínimo. O salário mínimo em 2008 era
de R$ 415,00. O levantamento apontou que 18,5% dos jovens de até 17 anos residiam em uma casa com renda
per capita de até um quarto do salário mínimo e, 26,2% tinham uma renda por pessoa de até meio salário mínimo
ao mês. Fonte: Quase metade dos jovens do país esta em situação de pobreza, Mostra IBGE. Disponível em:
<http//www.globoonline> Publicada em 09/10/2009. País – indicadores sociais. Acesso em: 10/10/2009.
24

brasileiras ainda deixa milhares de crianças para trás e é diretamente responsável por manter o

país na 88ª posição no Índice de Desenvolvimento Educacional (IDE), atrás de países mais

pobres como Paraguai, Equador e Bolívia. 22

Também em 2010, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou dados

preocupantes em relação à área da Educação. De acordo com os resultados da pesquisa

Juventude e Políticas Sociais no Brasil 23, mais da metade dos jovens entre 15 e 17 anos não

está cursando o ensino médio, etapa de ensino adequada para esta faixa etária, e apenas 13%

dos jovens de 18 a 24 anos freqüentavam o ensino superior em 2007. Os fatores que mais

interferem nas oportunidades de acesso à Educação são o local de moradia, a cor da pele e o

nível de renda.

Mesmo assim, a última lista divulgada pelo Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD) mostrou que o país melhorou suas condições socioeconômicas em

2007, frente a 2006, tendo conquistado mais pontos no Índice de Desenvolvimento Humano
24
(IDH) . Com o índice de 0, 813, ocupando a 75a. posição, o Brasil se manteve na categoria

de “desenvolvimento humano elevado”, mas permanece atrás de países como Chile,

Argentina, Uruguai, Cuba, México, Venezuela e Panamá.

22
Fonte: Unesco: Brasil avança na educação, mas segue em posição intermediária. Disponível em:
<http//www.globoonline> Publicada em 20/01/2010. Educação. Acesso em: 20/01/2010. A reportagem revela
que em 2000, mais de 160 países assinaram o compromisso Educação para Todos, que previa o cumprimento de
seis metas incluindo a universalização do ensino fundamental, a redução da taxa de analfabetismo e a melhoria
da qualidade do ensino a serem cumpridas até o ano de 2015. Ao analisar o cumprimento das quatro principais
metas estabelecidas pela UNESCO, constata-se que o Brasil tem um bom desempenho no que se refere à
alfabetização, ao acesso ao ensino fundamental e à igualdade de gênero. Mas tem um baixo desempenho quando
se analisa o percentual de alunos que conseguem passar do 5° ano do ensino fundamental. O relatório aponta que
o Brasil apresenta alta repetência e baixos índices de conclusão da educação básica. Na região da América Latina
e Caribe, a taxa de repetência média para todas as séries do ensino fundamental é de 4,4%. Mas no Brasil, o
índice é de 18,7% - o maior de todos os países da região.
23
Fonte: Mais da metade dos jovens de 15 a 17 anos não esta cursando o ensino médio. Disponível em:
<http//www.globoonline> Publicada em 19/01/2010. Educação. Acesso em: 20/01/2010. A pesquisa traz uma
análise profunda das políticas públicas voltadas para os jovens no Brasil. Foi publicada em livro pelo IPEA em
19/01/2010.
24
O Índice que serve como indicador para o bem-estar humano é calculado anualmente pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O PNUD, instituição da ONU voltada para o
desenvolvimento, calcula o IDH a partir do Produto Interno Bruto per capita, longevidade (expectativa de vida),
e educação (índice de analfabetismo e taxa de matrícula dos estudantes).
25

Uma contagem planetária da pobreza realizada pelo Banco Mundial em 2000 revelava

que o número total de seres humanos vivendo com menos de dois dólares por dia chegava a

2,8 bilhões. Isto sem contar com aqueles que viviam com três ou quatro dólares por dia, o que

somaria um total de cerca de quatro bilhões de pessoas, ou seja, a maioria da humanidade. 25

São estatísticas que não aparecem com muita freqüência nos veículos da mídia, mais

interessados em promover massivamente o espírito do consumo e da competitividade.

Em setembro de 2008, quando a economia norteamericana entrou em colapso após a

quebra do Banco Lehman Brothers, e o mundo viu desmoronar, assim como havia

testemunhado a queda das torres gêmeas, a estabilidade da maior economia do planeta,

discutir as leis que regem a macroeconomia tornou-se pauta de todo o dia. O abalo nos

Estados Unidos trouxe consequências para todas as economias, uma onda de instabilidade

tomou conta do mundo. Até hoje, o assunto domina diversas esferas, como a das lideranças

políticas, dos fóruns econômicos ou nas manchetes das organizações de comunicação. A

crise, como ficou mais popularmente conhecida, ganhou também lugar no vocabulário do dia

a dia das pessoas, na fala da dona de casa, na roda de bar, entre os jovens estudantes. De

repente, começamos a entender que o que acontecia lá, no hemisfério norte, entre os países

desenvolvidos, de alguma forma também nos afetaria.

Em algum instante do 15 de setembro de 2008, ou dos dias que se seguiram, ampliamos

a nossa percepção sobre outra face da globalização, não aquela que se refere à circulação de

informação e cultura, da Internet e outras formas de difusão de ideias, mas a outra, em relação

às leis que regem a economia global, e que, naquela data, revelaram às pessoas “comuns” o

seu potencial de interferir nas simples relações de trabalho/emprego, na mesa das famílias, no

cotidiano de todos nós.

25
Dados do Relatório de desenvolvimento do Banco Mundial 2000/2001 apud Oswaldo de Rivero. O Mito do
desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 75. Este mesmo relatório
revelava que o Brasil, atualmente considerado uma das economias mais promissoras do mundo, possuía 28% de
sua população vivendo com menos de dois dólares por dia.
26

Todas as noites nos noticiários, manchetes destacavam os números da bolsa de valores

das principais capitais mundiais, o valor das moedas, o desafio daquele que iria comandar a

maior economia do mundo, as declarações e os semblantes preocupados dos governantes.

Nós, espectadores, nos perguntávamos quando e de que forma a “crise” chegaria em nosso

país, se estávamos ou não “preparados” para enfrentá-la; quase sem sentir questões, até então

submersas sobre o difícil assunto da economia, começaram a emergir no vocabulário leigo de

todos nós. Perguntas até então não formuladas passaram a despertar interesse: Como a quebra

de um banco americano pode nos afetar? Qual o controle que exerce a ordem econômica

mundial sobre as nossas vidas? Qual a relação que existe entre o “mercado financeiro

desregulado”, entre os acordos das corporações multinacionais e as estatísticas assustadoras

sobre a pobreza calculadas pelos cientistas especializados? Ou ainda, qual a relação entre o

simples toque no teclado de um especulador da bolsa e os quatro milhões de habitantes,

moradores das três maiores favelas da Cidade do México?

A globalização, a segunda promessa desencantada, é considerada a culminância de um

processo de internacionalização do mundo capitalista. No fim da Segunda Guerra Mundial, a

maioria dos países mantinha um controle rigoroso sobre as transações internacionais de

capital. Instituições como o Bretton Woods, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o

Banco Mundial foram criadas para facilitar o livre comércio e os investimentos

internacionais. Já com o final da Primeira Guerra Mundial cresceu a interdependência global,

o mundo aprendeu a criar instituições internacionais. A primeira delas foi criada após do

grande primeiro conflito, a Liga das Nações, que fracassou na sua missão de preservar a paz.

Veio a Segunda Guerra e criou-se a Organização das Nações Unidas. As conferências de

Bretton Woods, definindo o Sistema Bretton Woods de gerenciamento econômico

internacional, estabeleceram em 1944 as regras para as relações comerciais e financeiras

entre os países mais industrializados do mundo. O sistema foi o primeiro exemplo, na história
27

mundial, de uma ordem monetária totalmente negociada, tendo como objetivo governar as

relações monetárias entre Nações-Estado independentes. Preparando-se para reconstruir o

capitalismo mundial delegados de todas as 44 nações aliadas encontraram-se em Bretton

Woods, New Hampshire, para a Conferência monetária e financeira das Nações Unidas. Os

delegados assinaram o Acordo de Bretton Woods (Bretton Woods Agreement) definindo um

sistema de regras, instituições e procedimentos para regular a política econômica

internacional; também estabeleceram o Banco Internacional para a Reconstrução e

Desenvolvimento (International Bank for Reconstruction and Development, ou BIRD) (mais

tarde dividido entre o Banco Mundial e o "Banco para investimentos internacionais") e o

Fundo Monetário Internacional (FMI). Essas organizações tornaram-se operacionais em 1946,

depois que um número suficiente de países ratificou o acordo. Segundo o economista Joseph

Stiglitz, na época, boa parte do mundo em desenvolvimento ainda estava colonizada: “Essas

instituições eram clubes dos países ricos, e sua governança refletia esta posição. Eles

estabeleceram regras da ‘velha turma’ para aumentar o seu controle.” 26

O novo sistema passou a facilitar a livre movimentação do capital. Como conseqüência

da crise do petróleo de 1973, cresce a necessidade de se criar um “ajuste estrutural” (ou um

ajuste neoliberal), que favoreça a internacionalização das empresas e dos meios de produção;

ocorre uma rápida expansão dos mercados financeiros. Na década de oitenta, com o incentivo

das lideranças de Ronald Reagan e Margaret Thatcher a livre movimentação do capital se

tornou um processo irreversível. A queda do bloco comunista e o fim da Guerra Fria também

abriram oportunidades para o movimento. A morte do comunismo significava que os

governos podiam deixar de lado as batalhas ideológicas para se voltar aos interesses do

capital.

26
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.81.
28

Em 1989, a reunião que ficou conhecida como o Consenso de Washington serviu para

orientar o processo de globalização econômica e instituir de vez o “fundamentalismo de

mercado.” O famoso consenso, que Noam Chomsky chama de “Consenso [neoliberal] de

Washington”, traçou um conjunto de princípios orientados para o mercado, traçados pelo

governo americano e pelas principais instituições financeiras internacionais. As regras ditadas

por ele, e que posteriormente viriam a influenciar decisões inclusive do governo brasileiro 27,

incluíam: a liberalização do mercado e do sistema financeiro, fixação de preços pelo mercado

(“ajuste de preços”), fim da inflação (“estabilidade macroeconômica”) e privatização. Para

Noam Chomsky crítico radical do neoliberalismo, o evento teria defendido a ideia de que os

“governos devem ficar fora do caminho.” 28

No início da década de 90, os mercados financeiros tornaram-se, de fato, globais. A

globalização trouxe transformações definitivas para os mecanismos econômicos e sociais em

todos os cantos do mundo. De acordo com George Soros:

A capacidade do capital de movimentar-se para outros lugares solapou a


capacidade do Estado de exercer controle sobre a economia. (...) Os
objetivos dos governos Reagan, nos EUA e Thatcher, no Reino Unido,
consistiam em reduzir a capacidade do Estado de interferir na economia, e a
globalização foi muito útil para este propósito. 29

Um dos mais importantes conflitos que se coloca em discussão quando o assunto é

globalização é a relação entre o papel do Estado (governos) e o dos mercados. Soros, embora

defenda que a globalização é um processo desejável sobre vários aspectos, como a maior

eficiência da empresas privadas do que do Estado na criação de riquezas, é critico quando

destaca o fato de que muitos países menos desenvolvidos foram atropelados pela globalização

27
No Brasil, o governo Fernando Henrique Cardoso iniciou reformas com base nas decisões do Consenso. As
medidas favoreceram a passagem do controle do Estado para o controle da livre concorrência (livre-mercado).
Foi um período marcado por privatizações de empresas estatais; a desvalorização da moeda nacional, redução da
renda per capita, com o aumento da concentração de renda na mão de poucos.
28
CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006. p. 22.
29
SOROS, George. Globalização. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 45.
29

sem o amparo de redes sociais de segurança. Segundo o autor a globalização provocou uma

má distribuição entre bens privados e públicos:

Os mercados são eficazes na criação de riquezas, mas não servem para


cuidar de outras necessidades sociais. (...) Os mercados servem para facilitar
a livre troca de bens e serviços entre os participantes voluntários, mas não
são capazes, sozinhos, de cuidar de necessidades coletivas, como lei e
ordem, e da própria manutenção dos mecanismos de mercado em si.
Tampouco são competentes para garantir a justiça social. Esses bens
públicos dependem, por sua natureza, de processos políticos. 30

De acordo com George Soros os bens públicos representam aspectos como a

preservação da paz, o alívio da pobreza, garantia à educação e saúde, a proteção ao meio

ambiente, a melhoria das condições de trabalho ou a defesa dos direitos humanos. Aspectos

que, não apenas segundo Soros, mas de acordo também com outros autores, estão sendo

negligenciados pela ordem econômica global. A distorção está no fato de que o

desenvolvimento econômico, que favoreceu a produção de bens privados, assumiu uma

posição à frente do desenvolvimento social, isto é, o fornecimento de bens públicos. Embora

seja um defensor da livre circulação de capitais Soros admite que as regras do jogo da

economia global lançaram para o escanteio as preocupações sociais e demonstraram a sua

incapacidade para atender as necessidades essenciais das populações. O sistema neoliberal

expandiu suas relações monetárias para todas as áreas da esfera pública: educação, saúde e

serviços sociais.

Para Noam Chomsky as novas regras ditadas pelos “arquitetos do Consenso de

Washington”, teriam levado à “diminuição do Estado”, ou seja, “a transferência do poder

decisor da arena pública para outros lugares: para as pessoas na retórica do poder; para as

tiranias privadas, no mundo real.” 31 Segundo Chomsky, a dinâmica do neoliberalismo atende

aos interesses da tirania privada e promove o enfraquecimento do papel do Estado. As

30
Ibidem, p. 47.
31
CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006. pg. 144
30

doutrinas neoliberais, afirma ele: “Debilitam a educação e a saúde, aumentam a desigualdade

social e reduzem a parcela do trabalho na distribuição da renda.” 32

Joseph Stiglitz, ex-diretor do Conselho de Assessoria econômica do presidente Clinton

e ex-vice-presidente do Banco Mundial, reconhece que a globalização não beneficiou tanta

gente como poderia e deveria. Em A globalização e seus malefícios 33 e em Globalização

como dar certo 34, Stiglitz propõe uma série de reformas que poderiam garantir à humanidade

um planeta mais democrático, menos desigual e saudável. O autor afirma que a globalização

poderia ter funcionado para os países mais pobres, se os mais ricos tivessem construído um

sistema econômico e político internacional baseado em princípios e valores destinados a

promover o desenvolvimento nos países pobres, ao contrário de terem criado um regime “de

comércio global que ajudou seus interesses especiais empresariais e financeiros.” 35 Stiglitz,

embora otimista sobre a possibilidade da criação de um outro mundo, é categórico ao afirmar

que: “A globalização tem o potencial de trazer enormes benefícios para as populações tanto

do mundo desenvolvido, quanto para o mundo em desenvolvimento. Mas há provas

avassaladoras de que ela não tem estado à altura desse potencial.” 36

Entre as principais preocupações dos fóruns antiglobalizantes estão: as regras do jogo

são projetadas para beneficiar os países industrializados avançados; a globalização promove

valores materiais acima de outros valores, tais como a preocupação com o meio ambiente e a

própria vida; o modo como a globalização foi administrada tirou grande parte da soberania

dos países em desenvolvimento e de sua capacidade de tomar decisões em áreas essenciais

que afetam o bem estar de seus cidadãos.

32
Ibidem. p.. 36.
33
STIGLITZ, Joseph E. A globalização e seus malefícios. A promessa não cumprida de benefícios globais. São
Paulo: Futura, 2002.
34
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
35
Ibidem, p. 43.
36
Ibidem. p.. 63.
31

O fato que ganha maior destaque nas discussões entre os críticos da globalização é o

número crescente de pessoas vivendo na pobreza. Um estudo chamado Vozes dos pobres 37,

realizado pelo Banco Mundial, enquanto Stiglitz ainda era seu economista-chefe, entrevistou

60 mil pobres em sessenta países diferentes a fim de obter informações sobre como eles

percebiam a sua situação de vida. Os depoimentos enfatizaram a renda inadequada, os

sentimentos de insegurança e impotência. Stiglitz explica que a globalização expôs os países

em desenvolvimento a riscos maiores, mas, diferente do que acontece nos países

desenvolvidos as garantias dos mercados contra esses riscos são ausentes porque os governos

não conseguem oferecer os direitos básicos do cidadão.

Por isso, argumenta Stiglitz, o papel central dos governos na promoção do

desenvolvimento é fundamental. O economista explica, que mesmo no caso dos Estados

Unidos, cujo desenvolvimento é muitas vezes considerado o resultado de um capitalismo

desenfreado, os governos sempre assumiram um papel central nas finanças: “O sucesso dos

Estados Unidos se deveu, em parte, ao papel que se governo desempenhou na promoção do

desenvolvimento, na regulamentação dos mercados e na oferta de serviços sociais básicos.”38

A grande questão que se põe em jogo no caso dos países em desenvolvimento é se eles

possuem poder comparável aos dos governos dos países desenvolvidos. Se eles são fortes o

suficiente diante da agressividade do mercado. Stiglitz exemplifica:

Os governos que tentam controlar os fluxos de capital podem se ver


impotentes de fazê-lo, na medida em que os indivíduos encontram formas de
driblar as regulamentações. Um país talvez queira elevar o salário mínimo,
mas descobre que não pode porque as empresas estrangeiras que nele
operam decidirão mudar-se para um país com salários mais baixos. A
incapacidade dos governos de controlar as ações de indivíduos e empresas é

37
De acordo com Stiglitz, o projeto Vozes dos pobres foi realizado enquanto ele era economista-chefe do Banco
Mundial, como parte da preparação para o relatório decenal sobre pobreza (World Development Report
2000/20001: Attacking Poverty). Ele implicava num esforço de compreender a pobreza do ponto de vista dos
próprios pobres. Os resultados foram publicados em três volumes: Can anyone hear us? (v.1); Crying out for
change (v.2) e From many lands (v.3). (Washington, DC:World bank,2002).
38
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 84.
32

cada vez mais limitada também pelos acordos internacionais que interferem
no direito dos Estados soberanos de tomar decisões. 39

Segundo Stiglitz, o Estado-nação que foi o centro do poder político econômico ao longo

dos últimos 150 anos está sendo espremido hoje; de um lado pelas forças da economia global

e, de outro pelas exigências políticas de devolução do poder: “A globalização – a integração

estreita dos países do mundo – resultou na necessidade de ação mais coletiva, da ação

conjunta de povos e países para resolverem seus problemas comuns.” 40 De fato, a

globalização integrou o mundo, mas ainda não criou instituições globais democráticas o

suficiente para tirar, sobretudo os países mais pobres, das armadilhas que ela mesma

preparou.

A crise econômica mundial deflagrada em 2008 e as medidas de intervenção adotadas

pelos governos dos Estados Unidos e pelos países europeus são a prova da necessidade da

mão visível do Estado-nação. 41 Curiosamente, naquele momento em que o feitiço virava

contra o feiticeiro, e o modelo econômico patrocinado principalmente pelos EUA desafiava a

sua estabilidade econômica, apelou-se não só para a mão forte do Estado, como também para

a solidariedade entre os governos dos países que mandam no mundo. A crise estremeceu a

dominância econômica dos EUA; em anos que ainda estão por vir, eles terão que lidar com os

desafios que se impuseram à sua realidade.

O momento de abalo é também o de reavaliação. Especialistas no assunto, como

Stiglitz, antes mesmo do colapso americano já anunciavam a necessidade de mudanças no

sistema financeiro global. A reforma sugerida pelo economista resolveria, segundo ele, um

39
Ibidem, p. 84.
40
Ibidem, p. 85.
41
A crise atual, precipitada por uma bolha no mercado de imóveis, é considerada por George Soros como o
clímax de uma superexpansão (super-boom) ocorrido nos últimos 60 anos. Segundo Soros, os processos de
expansão-contração (boom-bust ) giram ao redor do crédito, e envolvem uma concepção erronea, que consiste na
incapacidade de se reconhecer a conexão circular reflexiva entre o desejo de emprestar e o valor das garantias
colaterais. Crédito fácil cria uma demanda que aumenta o valor das propriedades, o que por sua vez aumenta o
valor do crédito disponível para financiá-las. As bolhas começam quando as pessoas passam a comprar casas na
expectativa de que sua valorização permitirá a elas refinanciar suas hipotecas, com lucros. Isso foi o que
aconteceu nessa última crise.
33

dos maiores problemas do mundo: “A falta de fundos para promover o desenvolvimento,

combater a pobreza e propiciar educação e saúde para todos.” 42 Hoje cerca de 80% da

população do planeta vive em países em desenvolvimento, marcados por renda baixa e alta

pobreza, alto desemprego e baixa educação. A abertura das portas ao capital estrangeiro e o

crescimento do PIB não quer necessariamente dizer melhoria na vida da maioria dos

habitantes de um país.

Em desacordo com o Consenso de Washington, cuja política minimizou o papel do

governo, enfatizou a privatização, a liberalização do comércio e do mercado de capitais,

Stiglitz defende como alternativa a retomada do poder mais ativo do Estado, tanto na

promoção do desenvolvimento, como na proteção dos pobres:

Na prática, os partidários dessa visão alternativa também enfatizam mais o


emprego, a justiça social e valores não materialistas, como a preservação
do meio ambiente, do que aqueles que defendem um papel mínimo para o
governo. 43

Assim como Stiglitz, George Soros também defende maior participação dos governos

como, por exemplo, através da intervenção de organismos públicos no financiamento de

políticas públicas para corrigir as deformações que a globalização vem provocando.

Enquanto aguardamos que venham à tona perspectivas mais humanistas e ações que

correspondam mais aos interesses da maioria da população do mundo, o cenário que

descrevemos não é muito promissor. Em 2002, John Pilger escreveu:

Hoje o Banco Mundial reconhece que são poucos os países mais pobres que
conseguirão atingir suas metas de redução da pobreza até 2015. Em outras
palavras, os programas de “ajuste estrutural”, consistindo em privatizações,
endividamento e desmontagem dos serviços públicos, empobreceram e
descontentaram uma porcentagem ainda maior da população mundial. Num
mundo pobre e menos desenvolvido, as pessoas percebem que existe um

42
Ibidem, p. 380. Entre as medidas propostas pelo economista estão: perdão da divida externa dos países
miseráveis ate a cobrança de um imposto mundial sobre emissões de carbono e uso de combustíveis fósseis (para
combater o aquecimento global), a limitação do sigilo bancário, e a criação de uma nova moeda internacional de
reserva.
43
Ibidem, p.95.
34

sistema de triagem determinando se elas e suas famílias devem morrer ou


continuar vivendo. 44

A perspectiva de Pilger tira o fôlego de previsões mais otimistas. Para ele, por baixo da

“camada de verniz” das trocas financeiras, dos telefones celulares e lanchonetes do

McDonald`s, esconde-se outra globalização – a da pobreza: “Um mundo em que a maioria

dos seres humanos nunca telefona e vive com menos de dois dólares por dia, no qual 6.000

crianças morrem diariamente de diarréia por não terem acesso à água potável.” 45 Tudo indica

que o atual modelo socioeconômico global pode estar caminhando, como afirmou Cristóvão

Buarque, para uma “catástrofe ética e social”. 46 As duas promessas já foram desencantadas,

nem as políticas desenvolvimentistas, nem os “ajustes estruturais”, baseados na mais-valia

universal e no encolhimento das funções sociais e políticas dos Estados, conseguiram garantir

aos cidadãos mais desfavorecidos do mundo uma realidade mais digna e humana.

É esse o mundo que não deve ficar fora do alcance de nossa visão. A queda do banco

americano e os desdobramentos da crise que nos trouxe mais insegurança, incerteza e

desamparo, podem ter servido para nos despertar para outra realidade: a de que mesmo que a

maioria de nós viva localmente em nossas comunidades, estados ou países, fazemos parte, ao

mesmo tempo, de outra comunidade, a global. Aprender a pensar sobre essa existência é

indispensável para compreender as regras que regem o mundo, de que maneira elas afetam o

nosso dia a dia e até que ponto somos capazes de interferir nelas. Esta tentativa de

compreensão nos deixa mais próximos de possíveis respostas para a pergunta que já fizemos:

afinal que relação pode existir entre o toque no teclado de um investidor da bolsa e a

realidade das favelas da Cidade do México, de Luanda, de Mumbai, Porto Príncipe, Bagdá ou

Rio de Janeiro?

44
PILGER, John. Os novos senhores do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 144.
45
Ibidem, p.12. Dados extraídos pelo autor do Relatório sobre Desenvolvimento das Nações Unidas, publicado
em The Guardian. (22/10/2001).
46
BUARQUE, Cristóvão. Prefácio à edição brasileira. In: SOROS, George. Globalização. Rio de Janeiro:
Campus, 2003.
35

Adquirir uma consciência crítica global é também um passo fundamental na busca por

alternativas capazes de, alguma forma, alterar o rumo de um processo que parece irreversível.

2.2 – Em busca da narrativa alternativa.

Uma grande cidade de algum país em desenvolvimento é o palco para um cenário no

qual as deformações e contradições do mundo capitalista globalizado ficam ainda mais

evidentes. Desde 1950, grandes capitais absorveram quase dois terços da explosão

populacional global, a força de trabalho urbana do mundo mais que dobrou desde 1980, e a

população urbana atual, de 3,2 bilhões de pessoas, é maior do que a população total do

mundo em 1960. Na maior parte dessas cidades, o tamanho de suas economias tem pouca

relação com o tamanho de sua população; isto quer dizer, o crescimento do número de

pessoas é muito superior ao dos meios de produção e emprego.

O processo de crescimento e empobrecimento das grandes cidades é assunto do estudo

de Mike Davis em Planeta Favela. 47 Nele, o autor faz um diagnóstico mundial sobre o

fenômeno da favelização, acentuada pela globalização neoliberal. De acordo com Davis, em

países da África, América Latina, no Oriente Médio e em parte do sul da Ásia, o fenômeno da

urbanização acelerada e da ausência do crescimento do emprego representa:

Uma herança da conjuntura política global – a crise mundial da dívida


externa do final da década de setenta e a subsequente reestruturação das
economias do Terceiro Mundo sob a liderança do FMI nos anos 80. (...)
Além disso, a urbanização do Terceiro Mundo continuou em seu passo
aceleradíssimo (3,8% ao ano entre 1969 e 1993) durante os difíceis anos da
década de oitenta e no início dos anos 1990, apesar da queda do salário real,
da alta dos preços e da disparada do desemprego urbano. 48

47
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006.
48
Ibidem, p. 24.
36

Apesar da estagnação do emprego urbano e da paralisia da produtividade agrícola, a

África, por exemplo, manteve durante as últimas décadas uma taxa de urbanização anual de

3,5% a 4%. Por trás desses dados, argumenta Davis:

Existem as políticas de desregulamentação agrícola e de disciplina


financeiras impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial, que continuaram a
promover o êxodo da mão de obra rural excedente para as favelas urbanas,
ainda que as cidades deixassem de ser máquinas de empregos. 49

Os governos africanos endividados, condicionados às políticas do FMI, submeteram-se

a planos que desmantelaram a produção dos camponeses de médio e pequeno porte. A

redução de investimentos na infraestrutura na área rural e a desregulamentação do mercado

nacional arremessaram esses produtores para um mercado global, no qual eles tinham

pouquíssimas chances de competir. Ao mesmo tempo, as guerras civis crônicas, lideranças

gananciosas e a desorganização econômica provocada pelos “ajustes estruturais”,

colaboraram com o esfacelamento do campo.

Em consequência, embora as cidades não contassem com o investimento necessário em

“bens públicos”, como infraestrutura, saneamento, saúde e educação, começaram a receber as

populações do campo, “colhendo o produto da crise agrária mundial.” 50 Como afirma Mike

Davis: “A superurbanização, em outras palavras, é impulsionada pela reprodução da pobreza,

não pela oferta de empregos. Essa é apenas uma das várias descidas inesperadas para as quais

a ordem mundial neoliberal vem direcionando o futuro.” 51 Assim como na África, em muitas

partes do mundo em desenvolvimento, as forças globais empurraram a população do campo

para a cidade, que desprotegida pelo Estado “diminuído”, produziu como receita inevitável a

produção em massa das favelas. Segundo Davis, desde 1970 o crescimento das favelas em

todo o hemisfério sul ultrapassou a urbanização propriamente dita.

49
Ibidem, p. 25.
50
Ibidem, p. 26.
51
Ibidem, p. 26.
37

O relatório The Challenge of Slums (O desafio das favelas) publicado em outubro de

2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat) é

destacado por Davis como a “primeira auditoria verdadeiramente global da pobreza

urbana”. 52 Davis, que utilizou o relatório como fonte para seu estudo, afirma que atualmente

mais de um bilhão de pessoas vivem em favelas espalhadas pelas cidades do “sul do

mundo”. 53 O estudo descreve os mecanismos da produção em grande escala dessas moradias

precárias e delineia a sua trajetória global desde a década de sessenta até as “megafavelas”

que marcam as cidades contemporâneas. Segundo Davis: “Os favelados, embora sejam

apenas 6% da população urbana dos países desenvolvidos, constituem espantosos 78,2% dos

habitantes urbanos dos países menos desenvolvidos, isto corresponde a pelo menos um terço

da população urbana global.” 54

De acordo com o UN-Habitat, os maiores percentuais de favelados do mundo estão na

Etiópia (99,4% da população urbana), no Afeganistão (98,5%) e no Nepal (92%). Em

Mumbai, 12 milhões de pessoas moram em favelas, a cidade é considerada a capital dos

favelados; em Cidade do México e Daca, 9 a 10 milhões cada. As conclusões de Mike Davis

sobre a realidade da favela no Brasil são contestadas por Ermínia Maricato no posfácio do

livro do autor. Segundo ela, Davis teria cometido um erro ao ter atribuído ao país a proporção

de 36,6 % da população urbana (51,7 milhões de pessoas) morando em favelas. Para chegar a

este número o autor teria somado na conta das favelas, locatários informais, cortiços,

loteamentos ilegais e moradores de rua.

De acordo com Maricato, há diferenças fundamentais no interior das diversas formas de

moradia classificadas como favelas. A autora corrige Davis utilizando dados do trabalho

52
Ibidem, p. 31.
53
O autor observa que no relatório da UN-Habitat prevalece a definição clássica da favela, adotada oficialmente
numa reunião da ONU em Nairobi, em outubro de 2002. Segundo ela, a favela é caracterizada por: “excesso de
população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e
insegurança de posse na moradia.” p. 33.
54
Ibidem, p. 34.
38

Déficit Habitacional do Brasil, elaborado pela Fundação João Pinheiro a pedido do

Ministério das Cidades, baseado em dados do Censo IBGE e da Pesquisa Nacional por

Amostra de Domicílios. Segundo este estudo, a soma dos domicílios improvisados, rústicos,

que se reduzem a cômodos ou que apresentam coabitação familiar perfaz 13,2% do total dos

domicílios brasileiros ou 11,2% dos domicílios urbanos. Apesar da controvérsia, Maricato

não tira o mérito do livro, mas afirma que a sua revisão pretende avançar “A leitura a partir

do enfoque da produção do espaço na periferia do capitalismo.” 55 Davis, entretanto, é

taxativo quando afirma que:

As cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto


por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de
tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de
madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do
mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição,
excrementos e deteriorização. 56

As informações colhidas pelo autor são de tirar o fôlego, e deixam, a princípio, uma

sensação amarga de impotência. Mas, ainda que os números sejam, de fato, assustadores, há

quem acredite que existam possibilidades de mudança. O geógrafo brasileiro Milton Santos é

um deles. Em Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal 57,

ele propõe uma tripla leitura do mundo, segundo a qual precisaríamos observá-lo por meio de

55
Mesmo assim, afirma a autora, há uma classificação de domicílios inadequados em áreas urbanas que exigem
melhorias e que apresentamos seguintes percentuais em relação aos domicílios urbanos: inadequação fundiária,
5,8%; adensamento excessivo, 7,5%; domicilio sem banheiro, 8,6%; e domicilio carente de infra-estrutura (água
de rede publica e/ou rede de esgoto ou fossa e/ou energia elétrica e/ou coleta de lixo), 32,4%.A discussão é
ampla. Para mais informações: MARICATO, Ermínia. Posfácio. In: DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução:
Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 221.
56
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 29.
O autor acrescenta ainda dados sobre o crescimento das favelas na Rússia, principalmente nas antigas “cidades
de empresas socialistas” que dependiam de uma única fábrica, fechada atualmente. Em 1993, dados do
Programa de indicadores urbanos da ONU citou taxas de pobreza de 80% no Azerbaijão e na Armênia. Davis
observa, no entanto, que a população urbana mais pobre talvez esteja em Luanda, em Maputo (Moçambique),
Kinshasa e Cochabamba (Bolivia), onde dois terços ou mais dos moradores ganham menos que o custo da
nutrição mínima necessária por dia. Em Luanda, a mortalidade infantil (crianças com menos de 5 anos) foi de
320 a cada 1000 em 1993, a mais alta do mundo. Esta taxa é quatrocentas vezes maior que a menor taxa de
mortalidade infantil do mundo, em Rennes, na França. p. 35.
57
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2007.
39

três diferentes perspectivas: a da globalização como fábula, como perversidade e por uma

outra globalização. As perspectivas que Santos nomeia de “três diferentes mundos” a rigor

compreendem três maneiras de se enxergar o mundo contemporâneo. A primeira, mais

fantasiosa, apresentaria o “mundo tal como nos fazem vê-lo”; a segunda, mais realista, o

“mundo como ele é”; e a terceira mais esperançosa – “por uma outra globalização”.

Na perspectiva da globalização como fábula, percepções enganosas estariam nos

fazendo crer, por exemplo, em ideias como: “aldeia global” e “uniformidade”; uma

empenhada em nos fazer acreditar que a difusão instantânea de notícias realmente nos

informa, como se o mundo se “houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão”; a outra, nos

fazendo crer que o mercado global homogeneizou, realizou o “sonho de um mundo só”, uniu

o planeta, quando sabemos que na verdade ele está mais dividido do que nunca.

Na perspectiva que vê o mundo como ele é, a globalização perversa, Santos, assim

como os demais autores, utiliza um discurso duro, baseado em dados que mais uma vez

assustam: “Seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as situações características do

período atual, a realidade pode ser vista como uma fábrica de perversidade.” 58 O autor

destaca que a fome atinge 800 milhões de pessoas em todos os continentes e que os avanços

na medicina não impedem que 14 milhões de pessoas morram todos os dias, antes do quinto

ano de vida:

Ser pobre é participar de uma situação estrutural, com uma posição relativa
inferior dentro da sociedade como um todo. (...) Vivemos num mundo de
exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo
neoliberal, que é, também, criador de insegurança.” 59

De acordo com Milton Santos entre os fatores constitutivos da globalização perversa

encontra-se uma dupla tirania: a do dinheiro e a da informação:

58
Ibidem, p.59.
59
Ibidem, p. 59.
40

São duas violências centrais, alicerces do sistema ideológico que justifica as


ações hegemônicas e leva ao império das fabulações, as percepções
fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos totalitarismos –
isto é dos globaritalismos, a que estamos assistindo.60

Para o geógrafo, a combinação nefasta entre a tirania da informação, condicionada

pelos interesses apenas de certo grupo de atores globais, alguns Estados e empresas, somada a
61
violência do dinheiro ou ao “fetichismo do dinheiro” representam as bases do pensamento

que ele chamou de “único” e, uma ameaça a nossa existência cotidiana.

Mesmo assim, a terceira perspectiva que Santos nos oferece como possibilidade para

uma leitura contemporânea do mundo – por uma outra globalização - é bastante otimista.

Segundo ele, algumas pistas estariam apontando para os limites da evolução da globalização

tal como ela é, perversa, e anunciando um novo período, de uma outra globalização:

A promessa de que as técnicas contemporâneas poderiam melhorar a


existência de todos caem por terra e o que se observa é a expansão acelerada
do reino da escassez, atingindo as classes médias e criando mais pobres. As
populações envolvidas no processo de exclusão assim fortalecido acabam
por relacionar suas carências e vicissitudes ao conjunto de novidades que as
atingem. Uma tomada de consciência torna-se possível ali mesmo onde o
fenômeno da escassez é mais sensível. Por isso, a compreensão do que está
se passando chega com clareza crescente aos pobres e aos países pobres cada
vez mais numerosos e carentes. (...) Os fenômenos a que muitos chamam de
globalização e outros de pós-modernidade na verdade constituem, juntos, um
momento bem demarcado do processo histórico. Preferimos considerá-lo um
período. 62

Santos destaca a participação dos pobres como fundamental na passagem entre esses

dois períodos. Segundo ele, aos pobres, atores vivos do drama, cuja sobrevivência depende de

uma luta diária, cabe um papel determinante na produção do presente e do futuro: “A pobreza

60
Ibidem, p. 38.
61
Além do termo “fetichismo do dinheiro”, Milton Santos (em trecho que merece ser transcrito) para falar sobre
o papel central do dinheiro na realidade, não só das economias globais como na vida de cada indivíduo, utiliza o
conceito do “dinheiro em estado puro”. Segundo ele, não só as economias, como a vida de cada um de nós são
chamadas a se adaptar a onipresença do dinheiro: “Fundado numa ideologia, esse dinheiro sem medida se torna a
medida geral, reforçando a vocação para considerar a acumulação como uma meta em si mesma. Na realidade, o
resultado dessa busca tanto pode levar à acumulação (para alguns) como ao endividamento (para a maioria).
Nessas condições, firma-se um círculo vicioso dentro do qual o medo e o desamparo se criam mutuamente e a
busca desenfreada do dinheiro tanto é uma causa como uma conseqüência do desamparo e do medo.” p. 56.
62
Ibidem, p.118.
41

é uma situação de carência, mas também de luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a
63
tomada de consciência é possível.” Embora as grandes cidades sejam os espaços nos quais

o capitalismo globalizado propicia o contágio da pobreza, é nelas também onde podem se

construir alternativas.

A cidade é um território propício à comunicação. A sociabilidade urbana cria um

ambiente que favorece o estado de luta, a criação de uma política que pertence aos pobres,

que é o resultado da convivência com a necessidade e com outro. Esta nova política, que

Milton Santos chama de “política dos de baixo”, nada tem a ver com a política institucional,

fundada na ideologia do crescimento e da globalização, mas está baseada no “cotidiano vivido

por todos, pobres e não pobres, e é alimentada pela simples necessidade de continuar

existindo.”64 A situação de convivência e vizinhança, própria das grandes cidades, obriga as

pessoas a se compararem e a se perguntarem sobre o porquê de suas diferenças, esta

indagação já é de ordem política, e mesmo que nem sempre seja possível para elas um

entendimento dos sistemas que regem o seu lugar e também o mundo, existe uma vontade de

ultrapassar a própria situação.

Na cidade – sobretudo na grande cidade – os efeitos de vizinhança parecem


impor uma possibilidade maior de identificação das situações. (...) Dessa
maneira torna-se possível a identificação, na vida material como na ordem
intelectual, do desamparo a que as populações são relegadas, levando
paralelamente, a um maior reconhecimento da condição de escassez e a
novas possibilidades da ampliação da consciência.65

Desta forma, embora seja o espaço vivido da cidade aquele no qual as forças

socioeconômicas hegemônicas operem com grande intensidade, é nele também o lugar onde

se instala a possibilidade do surgimento de uma nova ordem. Para Santos o papel do lugar é

63
Santos diferencia pobres de miseráveis. Segundo ele: “O exame do papel atual dos pobres na produção do
presente e do futuro exige, em primeiro lugar, distinguir entre pobreza e miséria. A miséria acaba por ser a
privação total, com o aniquilamento, ou quase, da pessoa. A pobreza é uma situação de carência, mas também de
luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível. Miseráveis são os que se
confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam.” p. 132.
64
Ibidem, p. 133.
65
Ibidem, p.166.
42

determinante: “Ele não é um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência

sempre renovada, o que permite ao mesmo tempo a reavaliação das heranças e a indagação

sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o

mundo.” 66

O cotidiano da cidade, contraditório e desigual, é propício ao surgimento de atitudes de

rebeldia e inconformidade violenta, mas também aberto a ações criativas, ao surgimento de

movimentos alternativos capazes de modificar o presente estado das coisas. Mas, para

alcançar o que Santos define como “sistema alternativo de idéias e de vida” 67 faz-se

necessária a passagem do estágio de descoberta da diferença para o da consciência da

diferença, a compreensão crítica dos indivíduos sobre a sua relação com o lugar e o mundo.

O otimismo com que Milton Santos se lança em defesa da possibilidade da produção de

um novo discurso ou de um “novo grande relato” baseado, como destaca Maria da Conceição

Tavares, numa “nova horizontalidade na luta dos oprimidos” 68, irritaria aqueles que acreditam

na irreversibilidade da narrativa única, promovida pela ordem econômica e pela

superestrutura ideológica que se alastraram após o consenso neoliberal; desafiaria aqueles

que, conformados ou coniventes com este pensamento único, taxam a fala dos mais otimistas

como socialista ultrapassada.

Se hoje a história se realiza a partir da dominação dos vetores “de cima”, a perspectiva

esperançosa de Milton Santos enxerga a possibilidade da produção de outra história, na qual a

vez será dos vetores “de baixo”. As reflexões do geógrafo podem ser vistas por uns como

utópicas, mas por outros como eventos de uma realidade que já pode ter começado a se

desenhar. A aglomeração de pessoas nos espaços das favelas, fenômeno da urbanização

concentrada, pode estar produzindo uma dinâmica na qual nem sempre a busca pelo consumo,

66
Ibidem, p. 114.
67
Ibidem, p. 116.
68
TAVARES. Maria da Conceição. Contracapa In: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do
pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007.
43

“visão limitada e unidirecionada” prevalecerá, mas que poderá ser substituída pela busca da

cidadania, “elaboração de visões abrangentes e sistêmicas” 69; que a falta de emprego e os

baixos salários poderão inspirar soluções inventivas no mundo do trabalho; anunciando

também um tempo em que a cultura popular ganhará mais força e que a mídia deixará de

representar apenas o senso comum imposto pelo pensamento único. É neste momento, que

verificamos a possibilidade da produção de um novo discurso, de “um novo grande relato”. 70

No artigo, Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão 71, as reflexões do

professor Tim Prentki caminham na mesma direção que as de Milton Santos. Nele, Prentki

discorda da perspectiva pós-moderna de que as grandes narrativas foram dissolvidas nos

conflitos globais do século XX, para argumentar que, ao contrário, esses conflitos deram

lugar: “A dominância de uma única e totalizante supernarrativa do capitalismo em sua forma

corrente: o modelo neoliberal de globalização.” 72 Mesmo que este modelo já esteja dando

sinais de mudança, uma vez que a dominância econômica e a influência política dos EUA, seu

principal patrocinador, estejam abaladas, ainda assim é válido nos referir ao modelo

neoliberal como “a narrativa que controla nossas vidas.” 73 Este controle não está evidente

apenas nos mercados financeiros, mas se manifesta também nas operações das mídias globais,

por meio das quais um pequeno número de atores diz à maioria o que acontece no mundo,

decide o que devemos saber e pensar, como nos comportar, o que devemos consumir ou até

mesmo, sentir. Prentki recorre a Paulo Freire para afirmar que o que está em jogo é a nossa

impossibilidade de “dar nome ao mundo”, uma vez que outros estão fazendo isto por nós.

69
Ibidem. p. 166.
70
Ibidem, p. 21.
71
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.) Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades. Florianópolis: UDESC, 2009.
72
Ibidem, p.1.
73
Ibidem, p.1.
44

De acordo com o professor, a retomada da capacidade de nomear o mundo 74 não estaria

condicionada a criação de contra-narrativas, mas sim à produção de narrativas alternativas,

essas sim capazes de perturbar a supernarrativa em vigência. Tim Prentki questiona a noção

de contra-narrativa que, segundo ele, seria um resultado direto da ação da narrativa

dominante, “como uma imagem no espelho da resistência” 75, e cuja motivação, assim como a

daquela que lhe deu origem, seria o desejo pelo poder ou a tomada do “poder sobre”. Assim,

os bombardeios de Clinton ao Sudão e ao Afeganistão em 1998 criaram efetivamente a Al

Qaeda, ou ainda, a emergência do fundamentalismo islâmico violento, surge como imagem no

espelho do fundamentalismo Cristão patrocinando o terrorismo de Estado do governo Bush.

Prentki argumenta que: “A presença da contra-força é um ingrediente chave no processo de

justificativa do uso da violência para a manutenção da dominância econômica através do

controle de recursos.” 76 Segundo o raciocínio, a contra-narrativa dos terroristas de Bin

Laden, responsável pelo ataque aos EUA no 11 de setembro, teria oferecido grande impulso

ao discurso e prática da “guerra contra o terror”, autorizando ações igualmente violentas,

convenientes e interesseiras ao discurso dominante 77; narrativa e contra-narrativas

representam noções de “poder sobre”.

De acordo com o autor, nas narrativas alternativas, as relações são construídas na base

da dignidade e não do dinheiro, a noção de poder ganha outro significado, o de “poder para”.

Prentki aproveita os argumentos de John Holloway quando este afirma que:

O que está em questão na transformação revolucionária do mundo não é de


quem é o poder, mas a existência do poder. O que está em questão não é
quem exerce o poder, mas como criar um mundo baseado no reconhecimento

74
Ao se remeter ao pensamento de Paulo Freire, Prentki retoma a noção maior da “educação como prática da
liberdade” que é devolver ao homem a sua responsabilidade histórica - o homem como sujeito que elabora o
mundo, que emerge do lugar de mero objeto para assumir o papel de autor crítico e consciente da história.
75
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009..P. 16.
76
Ibidem, p.16.
77
Está claro, por exemplo, que Bin Laden é um produto desta narrativa dominante, das necessidades do modelo
capitalista neoliberal de ter uma contra-narrativa.
45

mútuo da dignidade humana, na formação de relações sociais que não são


relações de poder. 78

Ao contrário de apostar na lógica do “poder sobre”, as narrativas alternativas estão

empenhadas em, por meio de ações sociais criativas e da “autodeterminação de agrupamentos

formados por relações horizontais e não verticais” 79, construírem novos poderes, permitirem

que se manifeste a voz dos vetores “de baixo”, citando as palavras de Milton Santos. Assim, a

despeito do mundo tal como ele é – perverso - outras narrativas estariam revelando, ainda que

em doses discretas, o poder para provocar mudanças.

É verdade que as transformações sofridas pelo mundo nas últimas décadas do século XX

e também mais recentemente trouxeram para as pessoas uma onda de conformismo ou mesmo

uma espécie de anestesia que caracteriza o nosso tempo. De acordo com Milton Santos: “É

muito difundida a ideia segundo a qual o processo e forma atuais da globalização seriam

irreversíveis (...) levando a pensar que não há alternativas para o presente estado das

coisas.” 80 Entretanto, ele desafia o pensamento único afirmando que possibilidades de

mudança, ainda que não realizadas, já se apresentam como tendências ou como promessa de

realização.

Uma das evidências da eminência do novo período previsto por Milton Santos é a

maneira como se vê revigorada a cultura popular. A vida cultural não escapa da influência que

exerce a globalização sobre a nossa existência. Se por um lado observa-se a ação da cultura de

massas, buscando impor-se sobre a cultura popular, de outro é notório também a reação da
78
HOLLOWAY, John. Como mudar o mundo sem tomar o poder. O significado da revolução hoje. São Paulo:
Viramundo, 2003. Apud PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. p.19. In:
NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.) Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades.
Florianópolis: UDESC, 2009.
79
Na opinião de Prentki, o movimento dos zapatistas representaria um exemplo de narrativa alternativa. O
levante, que começou aos olhos do mundo como a última de uma “longa linha de movimentos revolucionários
românticos e perdedores”, logo deixou claro que não era uma contra-narrativa: “eles estavam no processo
contínuo de criar alternativas de narrativa na luta pela autodeterminação das populações dos Chiapas.” Nascida
de um movimento de resistência às forcas corporativas liberadas pela implantação do Tratado de Livre Comércio
da América do Norte, Exército de Libertação Nacional Zapatista (ELNZ) evitou o roubo de terras indígenas pelo
exército mexicano.
80
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2007. p.160.
46

cultura popular. Essa reação, que Milton Santos chama de “revanche” é evidente, por

exemplo, nas manifestações expressivas próprias das comunidades populares que reinventam

a música, o corpo, a fala. Essas manifestações exercem a sua qualidade de narrativas locais, e

tem colocado em relevo, como observa Santos: “O cotidiano dos pobres, das minorias, dos

excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias.” 81 As deformações do mundo atual

favorecem nos lugares onde elas são mais visíveis, a possibilidade da produção de uma outra

história, cujos narradores não serão os mesmos da super-ideologia. São desses locais, como as

favelas, de onde podem surgir as narrativas alternativas; a cultura e a arte têm se revelado

cada vez mais um caminho pelo qual elas emergem; por meio delas cidadãos artistas cultivam

um estado de luta com a certeza de que, como afirmou Milton Santos:

O futuro são muitos; e resultarão de arranjos diferentes, segundo nosso grau


de consciência, entre o reino das possibilidades e o reino da vontade. É assim
que iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados, permitindo
contrariar a força das estruturas dominantes, sejam elas presentes ou
herdadas. 82

2.3 – O lugar da Favela.

São fotografias de uma gente simples que vi crescer neste chão árido e
escuro da senzala moderna chamada periferia (...) A beleza fica por conta
de quem vê, não tive tempo para amenidades, a poesia só registrou a
verdade. 83
Sérgio Vaz

Na língua inglesa slum é a palavra que significa favela. 84 Tanto o Português, quanto o

Inglês, não absolvem o sentido de suas palavras de uma imagem, a maior parte das vezes,

muito negativa. Mike Davis nos lembra que a primeira definição para slum de que se tem
81
Ibidem, p. 144.
82
Ibidem, p.161.
83
VAZ, Sérgio. A poesia dos deuses inferiores – a biografia poética da periferia. Taboa da Serra, Edição
Independente, 1988. Apud NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2009. p. 182. Sérgio Vaz é poeta do movimento da Literatura Marginal.
84
O termo favela também pode ser traduzido para o inglês como shantytown, definido como parte pobre de uma
cidade cujas casas são construídas precariamente e sem infraestrutura.
47

conhecimento foi publicada no Vocabulary of the Flash Language, (Vocabulário da

linguagem vulgar) de 1812, do escritor condenado à prisão James Hardy Vaux, no qual é

sinônimo de racket, “estelionato”, ou “comércio criminoso”. No entanto, comenta Davis:

“Nos anos da cólera 1830 e 1840, os pobres já moravam em slums em vez de praticá-los.” 85

Por todo o mundo espalharam-se definições para esses espaços caracterizados,

principalmente, pela concentração de gente pobre. Davis cita alguns exemplos: em 1895, os

fondaci de Nápoles apareciam num estudo sobre os pobres das grandes cidades como “as

mais apavorantes moradias humanas da face da Terra”; Gorki elegeu o famoso bairro

Khitrov, em Moscou como o “fundo mais fundo”, já Kipling considerava Colootollah em

Calcutá como o “mais vil de todos os esgotos, na cidade da noite assustadora.” 86 Nos Estados

Unidos, em 1894, a primeira pesquisa científica sobre a vida nos cortiços de Baltimore,

Chicago, Nova York e Filadélfia definia slum como: “Uma área de becos e ruelas sujas,

principalmente quando habitada por uma população miserável e criminosa.” 87 De acordo com

Davis:

Essas favelas clássicas eram lugares pitorescos e sabidamente restritos, mas


em geral todas se caracterizavam por um amálgama de habitações
dilapidadas, excesso de população, doença, pobreza, vício. É claro que para
os liberais do século XIX, a dimensão moral era decisiva e a favela era vista,
acima de tudo, como um lugar onde o “resíduo” social incorrigível e feroz
apodrecia em um esplendor imoral e quase sempre turbulento: na verdade
uma vasta literatura excitava a classe média vitoriana com histórias
chocantes do lado “negro da cidade.88

Entre a Inglaterra vitoriana ou a distante Rússia de Máxim Gorki e o Brasil, embora

existissem sem dúvida muitas diferenças, havia pelo menos uma semelhança: o estigma

imposto a esses espaços populares e a seus moradores. Em 1897, no Morro da Providência,

85
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.32.
86
Ibidem, p.32.
87
Ibidem, p.32.
88
Ibidem, p. 33.
48

Rio de Janeiro, surgia o “Morro da Favella” 89, que teria transmitido o nome às outras

ocupações com as mesmas características. O ano é reconhecido como um marco que situa o

início da ocupação dos morros cariocas. Este período marca também, de acordo com o

professor Jaílson de Souza: “O momento em que essas formas de habitação começam a ser

percebidas como um problema higiênico, estético e populacional pelas autoridades e grupos

dominantes da cidade do Rio de Janeiro.” 90

Para Pierre Bourdieu a compreensão dos diversos aspectos que giram em torno da ideia

de lugar depende de uma análise rigorosa sobre as relações entre as estruturas do espaço

físico e as estruturas do espaço social. O lugar, segundo ele, pode ser definido como o ponto

do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado concretamente “tem lugar,

existe.” Nele, entretanto reside o espaço social, uma espécie de conjunto de idéias ou

conceitos aplicados a um determinado espaço físico. De acordo com Bourdieu, o espaço

social se retraduz no espaço físico, mas sempre “de uma maneira mais ou menos confusa”,

porque se deve levar em consideração “o poder sobre o espaço que a posse do capital

proporciona.” 91 Bourdieu argumenta que:

O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se


apresenta, assim como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies
de bens ou de serviços e também de agentes individuais ou grupos
fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e
dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais
ou menos importantes (em função de seu capital e também da distância
física desses bens, que depende também de seu capital). É na relação entre a
distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espaço que se define o
valor das diferentes regiões do espaço social reificado. 92

89
O termo "favela" evoca em suas origens o local do sertão baiano onde se concentravam os seguidores de
Antônio Conselheiro, tendo-se difundido no Rio de Janeiro a partir da ocupação dos morros de Santo Antônio e
da Providência pelos soldados que voltavam da guerra de Canudos. Ao chegarem no Rio, os soldados receberam
permissão para instalarem-se nos morros. O Morro da Providência recebeu o nome de "Morro da Favela", como
referência a um arbusto abundante no sertão de Canudos.
90
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 25.
91
BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis RJ, Vozes 1997. p. 160.
92
Ibidem, p. 161.
49

Desta forma, os diferentes espaços sociais “fisicamente objetivados” tenderiam a se

sobrepor uns aos outros. A concentração de bens mais raros e de seus proprietários em certos

lugares do espaço físico, como os endereços nobres do Rio de Janeiro se oporiam aos lugares

que agrupam as populações mais pobres, como as favelas cariocas, ou como definiria

Bourdieu: “lugares de densa concentração de propriedades positivas ou negativas

(estigma)”. 93 A capacidade de dominar o espaço, apropriando-se de bens raros depende,

portanto, do capital que se possui. De acordo com Bourdieu: “O capital permite manter à

distância as pessoas e as coisas indesejáveis ao mesmo tempo que aproximar-se de pessoas e

coisas desejáveis.” 94

Neste mesmo sentido segue o raciocínio de Zigmunt Bauman, quando ao examinar a

relação entre a pobreza e a ocupação do espaço, afirma que:

Não é possível livrar-se do poderoso estigma territorial ligado à moradia


numa área publicamente reconhecida como depósito de pobres de casas de
trabalhadores decadentes e grupos marginais de indivíduos. (...) O
mecanismo de segregação e exclusão pode ou não ser complementado e
reforçado por fatores adicionais de raça/pele, mas no limite todas as suas
variedades são essencialmente a mesma: ser pobre numa sociedade rica
significa ter o status de uma anomalia social. 95 (grifos nossos)

O caso do Rio de Janeiro é curioso. Diferente das cidades cuja população mais pobre

concentra-se nas periferias, à margem, mantendo-se a distância física e social entre pobres e

ricos, aqui, embora se mantenha a distância social, há uma proximidade espacial entre

algumas favelas e os bairros mais “nobres”. Talvez isso explique, em parte, porque elas têm

sido vistas ao longo de sua existência como um verdadeiro incômodo à urbanidade da cidade,

o estigma territorial é acentuado, porque a anomalia social está bem ao alcance de nossa

vista, basta virar uma esquina do Leblon ou de Ipanema. O aspecto comum entre as favelas

93
Ibidem, p. 161.
94
Ibidem, p. 164.
95
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003. p 108.
50

brasileiras, os slums vitorianos, o bairro russo, as ruelas e becos do mundo todo é, além da

exclusão socioeconômica, o peso simbólico que esses lugares e seus moradores carregam.

No Brasil, o estigma é um problema a ser enfrentado pelos moradores das favelas desde

o início do século XX, quando as populações mais pobres começaram a ocupar os morros da

cidade. 96 Falar da favela é também falar da história do Brasil, mas particularmente da cidade

do Rio de Janeiro, capital federal na virada do século XIX para o XX. No Rio e em São

Paulo, a crise habitacional tornou-se grave a partir da Abolição da escravatura (1888) e,

consequentemente, da expansão do trabalho remunerado e do aumento da migração.

Desenvolveram-se várias formas de moradia popular entre elas os cortiços e as favelas.

De acordo com o estudo de Maria Laís Pereira da Silva entre o final do século XIX até as

primeiras décadas do XX, o Estado foi movido pela “prioridade à questão higienista e pela

ideologia do progresso, que pressupunha a modernização da cidade.” 97 Foram três as

principais intervenções higienistas e modernizadoras adotadas pelo Estado: a desinfecção das

áreas de moradia consideradas contaminadas e causadoras de epidemias da época (cólera e

febre amarela), como cortiços 98 e estalagens; controle e repressão dessas formas de moradia;

estímulo à iniciativa privada – com a concessão de privilégios para a construção de casas

operárias 99. Essas ações causaram um impacto na cidade levando as populações pobres dos

cortiços para os morros, charcos ou áreas vazias em torno da capital:

Quando Pereira Passos, o prefeito ‘bota-abaixo’ que governou a capital


federal entre 1902 e 1906, iniciou a sua reforma urbana, os cortiços e casas

96
Em Um século de favela os autores Alba Zaluar e Marcos Alvito fazem uma retrospectiva da história das
favelas cariocas comprovando com documentações datadas do início do século XX, de que maneira as
autoridades policiais e do governo tratavam a ocupação dos morros da cidade pela populações despejadas dos
cortiços e pelos ex-combatentes da Guerra de Canudos. Os autores argumentam como ao longo de sua existência
a favela, no plano das representações, inspirou dos sentimentos humanitários ao imaginário preconceituoso.
97
PEREIRA DA SILVA, Maria Laís. Favelas Cariocas 1930-1964. Rio de Janeiro; Contraponto, 2005. p. 38.
98
Um exemplo marcante de demolição foi a do cortiço Cabeça de Porco, em 1897. Situado no centro da cidade e
considerado o maior cortiço da época, ele fora demolido para a construção da atual Avenida Rio Branco. Uma
parte de seus moradores mudou-se para o Morro da Providência, depois Morro da Favella.
99
De acordo com Maria Laís: “Essa parece ser uma das formas principais de ação estatal, a julgar pelo grande
número de concessões obtidas por empresários do final do século XIX para os anos iniciais do séc.XX. Observa-
se também que muitas dessas concessões caducaram, e poucas moradias operárias foram efetivamente
construídas.” p. 165, nota 55.
51

de cômodos eram cada vez mais escassos e os morros pareciam ser a


principal saída para uma população pobre que aumentava a cada dia.100

Jaílson de Souza e Silva observa que a expansão das favelas passa a chamar a atenção

da imprensa e cita como exemplo uma matéria do Correio da Manhã de 2 de junho de 1907.

Diz ele: “Nela, afirmava-se que, para a grande leva de banidos da cidade só restava as

montanhas agasalhadoras... Quase todos os morros que forma a cinta da cidade.” 101 De

acordo com Silva foi a partir do Morro da Favella que se começou a difundir na imprensa a

associação do termo favela à imagem de perigo e de desordem. 102

Para Alba Zaluar e Marcos Alvito, a favela representa no imaginário urbano, desde

1908, um foco de doenças, sítio de malandros, berço de bandidos, nicho da desordem:

“Apesar do que se afirma com freqüência na literatura da favela, esta já começa a ser

percebida como um “problema” praticamente no momento em que surge, muito embora, a

despeito desta clara oposição a sua presença na cidade, tenha continuado a crescer sem

interrupção.” 103

Mesmo o ativo Pereira Passos nada fez de concreto em relação à Favella, muito embora

o Morro da Providência despertasse a atenção das autoridades. Uma famosa caricatura

publicada em 1908, destacada por Zaluar e lembrada também por Jaílson de Souza, mostrava

o Dr. Oswaldo Cruz, ostentando no braço um símbolo da saúde e passando um pente gigante

pelos cabelos do “morro” (representado no desenho por um grande rosto mal humorado) e

extraindo deles, como se extraem piolhos de uma cabeça infestada, toda a sua população. A

100
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 25-26.
101
Ibidem, p.27.
102
Alba Zaluar e Marcos Alvito esclarecem que já no início do século XX os morros do Rio eram vistos pela
polícia e alguns setores da população como locais perigosos e refúgios de criminosos. Entretanto, um estudo
realizado por um especialista em história da polícia desmente essa ideia; o estudo de Marcos Bretas afiança que,
nas diversas regiões da capital federal de então:“a distribuição dos tipos de crimes e contravenções é
semelhante.” BRETAS, Marcos. A Guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional, 1997. p. 74. Apud ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro,
Editora FGV, 2003.P. 10
103
ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.P. 10
52

legenda dizia: “A Higiene vai limpar o morro da Favella, do lado da estrada de ferro Central”.

Para isso intimou os moradores a se mudarem em 10 dias. 104 Mas a campanha não teve

nenhum resultado.

Somente em 1927, a favela passa a constar de um plano oficial, embora não

implementado. Idealizado pelo urbanista francês Alfred Agache, o plano, que ficou

conhecido como o Plano Agache, previa a “remodelação, extensão e embelezamento” do Rio.

Nele, o capítulo que se referia às favelas propunha a transferência da população ali residente.

A idéia do francês era remover a população das favelas e o operariado para casas e

edifícios coletivos instalados nas zonas industriais, nos subúrbios, isolando desta forma da

área central ou nobre da cidade o lugar dos pobres, seu espaço físico e social. Na opinião de

Jaílson de Souza, o discurso do Agache ainda baseava-se nas concepções higienistas “A

necessidade não era garantir melhor fluidez ao organismo urbano, mas também proporcionar

uma pedagogia civilizatória por meio das novas delimitações territoriais. Uma bela paisagem

da cidade passa a ser privilégio dos ricos.” 105

De acordo com Maria Laís Pereira da Silva, durante a década de trinta as favelas

crescem rapidamente e ganham visibilidade como “emblemas da pobreza”. Vista como um

problema a favela passa a ser alvo de proibições, planos e projetos de ordenamento. A ameaça

de remoção, por exemplo, e em alguns casos a sua concretização, foi uma dificuldade

enfrentada por todas as favelas do Rio de Janeiro. No início dos anos quarenta, a solução

encontrada pelo Estado para resolver o “problema”, foi a construção de parques proletários. 106

O resultado da ação, ao contrário de surtir o efeito esperado pelo governo, colaborou com a

104
Ibidem, p.11.
105
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 33.
106
Entre 1941 e 1943, três parques foram construídos na Gávea, no Leblon e no Caju para onde foram
transferidas cerca de 4 mil pessoas, mais tarde expulsas, devido a valorização principalmente dos dois primeiros
bairros.
53

organização das comissões de moradores, que a partir dali, fortaleceram o seu papel como

atores políticos.

Nos anos sessenta, a mobilização das lideranças comunitárias passa a ser determinante

para a vida das comunidades cariocas. Com o golpe militar de 1964, o perigo da remoção fica

ainda maior. A política autoritária do regime adota o remocionismo como alternativa para a

erradicação das favelas do cenário urbano do Rio e passa a investir recursos na construção de

conjuntos habitacionais, para os quais a população deveria ser transferida. O plano, contudo,

enfrentaria uma forte reação dos moradores, é o que afirma o professor Marcelo Burgos:

Organizados politicamente e representados por uma [Federação da


Associação de Favelas do Estado da Guanabara] FAFEG que congregava
cerca de 100 associações de moradores, os moradores das favelas lutariam
de forma desesperada para não serem removidos, entrincheirados na
identidade politicamente construída de favelado. A história dessas remoções
ocorridas entre 1968 e 1975 representa um dos capítulos mais violentos da
longa história de repressão e exclusão do Estado brasileiro. Na verdade sabe-
se muito pouco ao seu respeito, mas o que se sabe permite supor a extensão
de sua dramaticidade.107

Em A palavra é: favela 108 as pesquisadoras Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense

Marcier destacam a incidência da temática da remoção na música popular brasileira,

sobretudo entre os anos 50 e 70. A seleção de composições musicais, realizada pelas

pesquisadoras demonstra que, de fato, mesmo antes do período do regime militar, as

populações faveladas conviviam com a ameaça constante de remoção. Os versos de Adoniran

Barbosa em Despejo na Favela (1975) e os de Zé Keti em Opinião (1963) imortalizaram o

drama vivido pelas populações:

107
BURGOS, Marcelo. Dos parques proletários ao Favela-Bairro. In Um Século de Favela. Alba Zaluar e
Marcos Alvito, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 36. No texto o autor lembra o episódio de remoção dos
moradores da favela Praia do Pinto, no Leblon. Diante da resistência dos moradores a favela foi incendiada sem
que os bombeiros fossem chamados. As famílias perderam seus pertences e os líderes da resistência passiva
desapareceram. No lugar da favela construiu-se um conjunto de prédios conhecido como a Selva de Pedra, com
apartamentos financiados para militares. A Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara
(FAFEG) foi fundada em 1963, pelas lideranças de moradores das favelas.
108
OLIVEIRA, Jane Souto e MARCIER, Maria Hortense. A palavra é: favela. In: Um Século de Favela. Alba
Zaluar e Marcos Alvito. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.61.
54

Quando o oficial de justiça chegou/ Lá na favela/ E contra o seu desejo/


Entregou pra seu Narciso/ Um aviso, uma ordem de despejo/ Assinada seu
doutor/Assim dizia a petição:/ Dentro de dez dias/ Quero a favela vazia/ E os
barracos todos no chão/ É uma ordem superior/. Adoniran Barbosa

Podem me prender/Podem me bater/Podem até/deixar-me sem comer/que


não mudo de opinião/Daqui do morro? Eu não saio não/Se não tem água eu
furo um poço/Se não tem carne eu pego um osso/e ponho na sopa/e deixa
andar/fale de mim quem quiser falar/aqui eu não pago aluguel/se eu morrer
amanhã, seu doutor/estou pertinho do céu/
Zé Keti 109

As remoções, como ressalta Jaílson de Souza, tiveram um papel central para a expansão

imobiliária vinculada ao acelerado crescimento econômico do país – “o milagre brasileiro”. 110

Neste período ocorreu a erradicação das favelas localizadas à margem da Lagoa Rodrigo de

Freitas, como Ilha das Dragas, Praia do Pinto e Catacumba; mais uma vez as ações do Estado

se sustentaram nos argumentos da higienização e da recuperação moral, social e econômica

das famílias faveladas. Entre 1962 e 1973 quase 140 mil pessoas foram removidas para

conjuntos habitacionais 111:

Os impactos foram profundos: redes sociais desfeitas e a proximidade do


local de trabalho, que proporcionava uma economia significativa com o
transporte não existiam mais. (...) A política remocionista não considerou a
voz, o sentimento nem a própria vida dos moradores das áreas ocupadas. 112

109
O compositor paulista Adoniran Barbosa e o carioca Zé Keti imortalizaram em suas letras o problema da
ameaça de remoção, drama enfrentado pelas populações faveladas em São Paulo e no Rio de Janeiro,
principalmente durante o período do regime militar.
110 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 46 –47.
111 A Cidade de Deus conhecida fora do Brasil graças ao filme de Fernando Meirelles foi um desses conjuntos
habitacionais construído nos anos 60 para abrigar moradores transferidos de 23 favelas da cidade. Entre elas a da
Praia do Pinto, no Leblon, e a Macedo Sobrinho, no Humaitá. Criado durante a onda de remoções do governo
Carlos Lacerda, o projeto foi tocado com dinheiro da Aliança para o Progresso, financiada pelo governo
americano. O nome foi pensado pelos próprios políticos da época. Não se sabe exatamente o motivo. Talvez para
tentar convencer seus novos habitantes das qualidades da região, então desabitada e sem infra-estrutura da Zona
Oeste carioca. Informações disponíveis no site: <http//www.favelatemmemória.com.br> Na mesma época, o
Governo do Estado construiu outros conjuntos habitacionais pela cidade com verba do governo norte-americano,
principalmente na Zona Oeste. São desta mesma época as vilas Kennedy, Aliança e Esperança.
112
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 46 -47
55

De acordo com Jaílson de Souza, a partir do final da década de setenta uma série de

fatores contribuíram com o fim das remoções e a adesão à idéia da urbanização das favelas.

Souza destaca alguns aspectos que teriam colaborado com essa mudança de perspectiva:

A preocupação de instituições internacionais, como Fundo das Nações


Unidas para Infância (UNICEF), Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), Banco Mundial (BIRD), com o crescimento das periferias do
Terceiro Mundo; crescimento das favelas como redutos oposicionistas, já
que as políticas de remoção fortaleceram a organização dos moradores;
reconhecimento da gravidade do problema da favela, que teria crescido em
14 anos, 317% (...); a reorganização em 1979 da FAFEG (...); A pressão da
Igreja Católica, por meio da Pastoral das Favelas, marcada entre outras
ações, pela Campanha da Fraternidade de 1979 e a visita do Papa ao Morro
do Vidigal, em 1980; a desaceleração da construção civil para a classe média
em função da crise econômica; a percepção dos grupos políticos do potencial
eleitoral das favelas. 113

Na década de oitenta, os moradores das favelas começam a ser percebidos como atores

políticos. As associações ganham força em muitas comunidades do Rio de Janeiro. As

transformações na conjuntura política do país relacionadas à transição democrática, ao fim do

regime militar, e também à eleição de Leonel Brizola (1983-86) para o governo do Estado do

Rio e Saturnino Braga, para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, colaboraram com a

aproximação entre autoridades e lideranças comunitárias, proporcionando para estas,

benefícios relacionados principalmente ao saneamento básico, abastecimento de água e luz,

bem como a construção de creches e escolas.

O Estado inaugura uma série de ações políticas, investindo na urbanização, na

construção de postos de saúde e escolas, e na transformação de algumas delas em bairros,

como foi o caso, já nos anos noventa, da Rocinha e da Maré. 114 Mas, mesmo que essas ações

tivessem contribuído para uma transformação física no cenário das favelas, a representação

113
Ibidem, P. 51.
114
O Programa Favela-Bairro é o maior exemplo de projeto de urbanização das favelas. Ele foi posto em prática
em algumas comunidades a partir de 1994. Coordenado pela Secretaria Municipal de Habitação e pelo Instituto
Pereira Passos, a proposta do programa é integrar a favela à cidade, oferecendo-a toda a infraestrutura, serviços e
políticas sociais.
56

negativa dele no imaginário da cidade permaneceu hegemônica. Essa representação nos leva

novamente aos conceitos do espaço físico e espaço social de Bourdieu. Ao território da

favela impregnou-se um peso simbólico, um ônus do qual ela ainda luta para se livrar.

De acordo com Alba Zaluar e Marcos Alvito, encarar a favela como um fantasma que

assombra a cidade, determinou historicamente uma divisão, uma dualidade, que separa

radicalmente o morro do asfalto. 115 Na década de setenta, entretanto, o discurso sociológico

destacava a vida na favela como: “Um complexo coesivo, extremamente forte em todos os

níveis: família, associação voluntária e vizinhança.” 116

Os estudiosos da época não deliravam, de fato o ethos predominante entre os favelados

contradizia a imagem negativa que já povoava o imaginário urbano. Mas o discurso

sociológico retoma a metáfora dualista na década seguinte, quando uma atividade subterrânea

começa a transformar definitivamente a vida nas favelas – a chegada do tráfico de cocaína.

Assim, comentam os autores:

Com a chegada do tráfico da cocaína em toda a cidade, a favela – onde as


quadrilhas se armavam pra vender no mesmo comércio que movimenta o
resto da cidade e do país – passou a ser representada como covil de
bandidos, zona franca do crime, habitat natural das classes perigosas. (...) a
despeito de diferentes roupagens, sempre de acordo com um contexto
histórico específico, o favelado foi um fantasma (...). 117 (grifos nossos)

Os artigos contidos no estudo de Zaluar e Alvito combatem o senso comum que já

possui longa data e que aprisionou a imagem da favela a um contexto de desordem e à idéia

da carência. O estudo cumpre essa função desmistificadora, na medida em que mostra que os

100 anos de história das favelas cariocas são anos de conquistas; onde a capacidade de luta

dos moradores rendeu melhorias na urbanização, moradias e saneamento. Mas, sobretudo,

mostrando que no espaço da favela sempre se produziu:

115
O termo “asfalto” é utilizado, embora esteja já caindo em desuso, pelas pessoas que moram nas favelas para
denominar os bairros.
116
ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003. p. 15.
117
Ibidem.p.15.
57

O que de mais original se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a


escola de samba, o bloco de carnaval, o pagode do fundo de quintal. (...)
Onde se escreveram livros, onde se compõem versos belíssimos ainda não
musicados, onde se montam peças de teatro.118

A luta que parece longe de terminar. Atualmente, a favela enfrenta o terror imposto pela

polícia e por traficantes, num conflito que vem rendendo as primeiras páginas dos jornais. Em

Favelas - além dos estereótipos 119, Jaílson de Souza argumenta que em contraponto à idéia da

favela como um “espaço de ausências urbanas, sociais, legais e morais” ou “a própria

expressão do caos” seja necessária a construção de uma nova representação dessas

comunidades populares – “para além das ausências mais visíveis”. Onde possamos enxergar

que nesses espaços as pessoas “desenvolvem formas ativas e criativas para enfrentar as

dificuldades do dia a dia, que estabelecem vínculos sociais na comunidade, que buscam canais

alternativos para o acesso a instituições culturais e educacionais” 120, que enfim enfrentam “os

limites sociais e pessoais de suas existências” 121.

A imprensa teria também uma participação determinante na construção de uma visão

estereotipada sobre a favela. Assim como aquela famosa caricatura publicada no jornal de

1908, a dos “piolhos” retirados do Morro da Providência, aqui uma representação mais atual

atribui à favela uma imagem semelhante. Observa Jaílson de Souza:

No mês de dezembro de 2000, a revista Veja expressou, na capa de uma


edição, esse juízo marcado pelo temor. Acompanhada da manchete "a
periferia cerca a cidade" apresenta-se uma imagem na qual as construções
de alvenaria, em cor escura - remetendo à visão de formigas saúvas em
movimento - devoram gradativamente prédios brancos e limpos. O exemplo,
recorrente nos meios de comunicação, é ilustrativo do temor, que é atávico
em amplos setores sociais do Rio de Janeiro e de outras metrópoles, de que o
morro desça, e a cidade seja dominada pelo caos.122

118
Ibidem, p. 22.
119
SILVA, Jailson de Souza. Favelas - além dos estereótipos. Disponível em:
<http://www.observatoriodasfavelas.org.br> Acesso em: julho/2004.
120
Ibidem, p.11.
121
Ibidem, p.10.
122
Ibidem, p. 14.
58

Constatamos com esse breve histórico das favelas no Rio de Janeiro que ao longo de

mais de um século de existência essas comunidades populares têm sido vistas como um lugar

externo à organização da pólis e que, ainda hoje, elas lutam para descolar a sua imagem dos

espectros da carência, do caos, do crime. De fato, essa é a perspectiva crítica que vem sendo

trazida à tona pelos estudos mais recentes sobre a historiografia da favela no Brasil. Da

mesma forma que eles procuram mostrar como essa imagem estigmatizada foi sendo

construída por aqueles que estão “de fora” da favela, eles também apontam algumas

estratégias desenvolvidas pelos “de dentro”, os moradores da favela, tanto para garantir a sua

sobrevivência, quanto para reagir à atitude excludente adotada pelos “de fora”.

É interessante observar que, principalmente a partir dos anos 90, vários autores vêm

optando pelo uso da palavra favela, no lugar da palavra comunidade. 123 O termo comunidade

ainda é bastante utilizado por moradores e não moradores das favelas, como uma definição

mais “amena” para os aglomerados populacionais. Entretanto, diversas publicações têm

preferido o uso da palavra original - favela. Este fato indicaria uma tendência de afirmar o

termo, talvez como um contraponto ao estigma que ele mesmo carrega, uma tentativa de

positivá-lo, de incluí-lo num vocabulário autorizado e aceito pela cidade. É notório também

um crescente interesse pelas “coisas que vem da favela”; ela não só passou a ser mais

estudada pelos “de fora”, como também ela mesma passou a encontrar espaços para falar de

si mesma, para falar com sua própria voz – a favela pela favela.

123
Neste trabalho optei por utilizar a palavra favela e comunidade como sinônimos.
59

2.4 – A favela pela favela e a chance da narrativa alternativa.

Vou nas ruas da cidade encontrar/Onde estou/ Se cale por não ter o que dizer/
Sou do Rio de Janeiro,CDD meu cativeiro/ Então,respeita nóis aqui tem voz /
E hoje eu sei o que você falava pro meu povo não é lei/ Se cale por não ter o que
dizer
Sou do Rio de Janeiro/ Lobo em pele de cordeiro/ Então respeita nóis aqui tem
voz. 124
MV Bill

Mike Davis pergunta se não seriam as grandes favelas contemporâneas, vulcões à

espera de explodir. Segundo ele, dentro de uma só cidade, a população pode apresentar uma

enorme variedade de reações à privação e à negligência estruturais, que vão desde: “As

Igrejas carismáticas, as gangues de rua, ONGs neoliberais até movimentos sociais

revolucionários”. 125 O fato é, que uma enorme quantidade de atos de resistência vem

emergindo de dentro dessas comunidades por todo o mundo, mesmo que eles guardem entre

si características muito diferentes.

Davis afirma que: “O futuro da solidariedade humana depende da recusa combativa dos

pobres urbanos a aceitar a sua marginalidade terminal dentro do capitalismo global.” 126 As

recusas vêm ficando cada vez mais evidentes, um grau de insubordinação por parte dos mais

“fracos”, tem sido expresso inclusive por manifestações violentas, motivo de preocupação

por parte das instâncias do poder.

Esta recusa pode assumir faces bastante radicais. Uma delas, citada pelo próprio Davis,

seria, por exemplo, o engajamento de jovens pobres dos arredores de Istambul, Cairo,

Casablanca ou Paris ao movimento de Salafia Jihadia. 127 Podemos considerar também como

outra face violenta desta recusa, a adesão de jovens do mundo todo à economia do

narcotráfico, com o qual eles selam um pacto quase sempre de morte; uma “integração

124
Aqui tem voz. Letra do rapista MV Bill. CDD refere-se à Cidade de Deus.
125
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.201.
126
Ibidem.p. 201.
127
Estabelecido em meados dos anos 90, o Salafia Jihadia é uma organização islâmica terrorista com base no
Marrocos.
60

perversa entre a pobreza e o tráfico de drogas,” título de uma das publicações de Alba

Zaluar. 128

Davis chama atenção para o fato de que, como na época vitoriana, a “criminalização

categórica dos pobres urbanos é uma profecia que leva ao seu próprio cumprimento e

configura de modo garantido, um futuro de guerra interminável nas ruas.” 129 Mas, embora a

criminalização seja um fenômeno presente no cotidiano das favelas, no caso do Rio de

Janeiro, ao contrário do que imagina o senso comum, são muito poucos os moradores que se

envolvem com a vida no crime. De acordo com Jaílson de Souza, uma parcela muito

pequena, cerca de 1%, dos jovens moradores das favelas no Rio estaria envolvida com o

tráfico. 130

Mas a “recusa combativa” sobre a qual se refere Mike Davis pode também, felizmente,

ganhar feições mais pacíficas. Àquelas expressas, por exemplo, através da criatividade e do

espírito crítico dos artistas populares. No passado, Cartola, Zé Kéti, Nelson Sargento e outros

compositores cantaram a favela com a voz de quem enxerga a sua realidade “de dentro” dela.

128
ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004. No livro,
Zaluar examina com profundidade as teses clássicas que supõem as causas da violência como pobreza,
desemprego, crise na família, escolarização insuficiente, surgimento das gangues do tráfico e a natureza de seus
integrantes. No Rio de Janeiro, de acordo com a pesquisa Crianças combatentes em violência armada
organizada realizada pelo Viva Rio entre dez 2001 e junho de 2002: “Os homicídios por armas de fogo são a
maior causa externa de morte de crianças e adolescentes no Rio. Os níveis dessas mortes de jovens menores de
18 anos cresceram muito desde o fim dos anos 70. O grupo etário entre 15 e 17 anos é o mais afetado pelas
mortes por tiros, em particular nas regiões da cidade onde são mais comuns os conflitos entre facções, refletindo
que o número de menores que trabalham na segurança armada dos territórios das facções é maior nessa faixa
etária. Entre 1990-1999, os níveis de mortalidade de menores na cidade e no estado do Rio de Janeiro foram bem
mais elevados do que nos estados norte-americanos da Califórnia, Washington e Nova York. Além disso, os
índices de mortes de menores por tiro no estado do Rio são piores que em alguns lugares do mundo em estado de
conflito armado tradicionalmente definido. Por exemplo, morreram oito vezes mais menores no Rio, por tiro,
entre 1987 e 2001, do que crianças israelenses e palestinas em conflitos nos territórios ocupados no mesmo
período.” DOWDNEY, Luke. ISER, Viva Rio. Crianças combatentes em violência armada organizada, um
estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas territoriais das facões de drogas no Rio de Janeiro,
2002.
129
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.202.
130
PAIVA, Anabela. Doutor da periferia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9/9/2003. Caderno B, Capa. Na
reportagem o professor contesta a atuação de alguns projetos sociais que ao divulgar suas realizações na mídia,
sublinham o perigo da relação juventude/violência, vendendo a idéia de que caso eles não existissem, todos os
jovens favelados se tornariam bandidos em potencial. Fato incompatível com a realidade. Afirma ele: "Dizem
que se o jovem não estivesse participando deste ou daquele projeto, estaria no tráfico. Ora, o tráfico recruta no
máximo 1% dos jovens. Parece até que o jovem é um débil mental que pode ser puxado de um lado para o
outro." A pesquisa Crianças combatentes em violência armada organizada confirma a informação:
“Especialistas em segurança pública estimam que os empregados das facções do tráfico totalizam cerca de 1% da
população das favelas, ou seja, por volta de 10.000 pessoas, a maioria armada.” p.5.
61

Hoje, na mesma perspectiva, o vigor das letras e atitudes dos rapistas, a atuação das rádios

comunitárias e outras manifestações de dentro da favela são exemplos de estratégias de

“combate” desenvolvidas pelas comunidades para enfrentar as suas dificuldades.

No campo da literatura também se verifica o fenômeno. É o que observa Beatriz

Resende em Literatura brasileira na era da multiplicidade. 131 De acordo com autora, uma

das maiores novidades da produção literária contemporânea é a presença das vozes que

emergem dos espaços “até então afastados do universo literário.” Segundo Resende: “Usando

seu próprio discurso, vem hoje, da periferia das grandes cidades, forte expressão artística que,

tendo iniciado seu percurso pela música, pelo teatro e pela dança, chega agora à literatura.” 132

Na opinião de Beatriz Resende os escritores, como Paulo Lins, autor do romance

Cidade de Deus, vindos do espaço da exclusão estariam dispensando os “tradicionais

mediadores, os intelectuais, que, até recentemente falavam por eles” preferindo

definitivamente falar com suas próprias vozes. A autora afirma que:

A Cidade de Deus se sucederão outras obras que pretendem trazer para o


erudito campo do literário o universo de parcelas da cidade que já se
manifestaram de maneira expressiva em outras formas de expressão
artística, como a música (principalmente pelo funk, hip-hop e rap) e a dança
com companhias como o Corpo de Dança da Maré e a importante Cia.
Étnica de Dança, do Morro do Andaraí, e ainda no teatro com o já sólido
grupo Nós do Morro, que existe na favela do Vidigal há 18 anos. 133

O movimento de emersão das vozes da periferia é investigado também por Érica

Peçanha do Nascimento em Vozes Marginais na Literatura134. No livro, a autora analisa as

edições especiais da revista Caros Amigos/Literatura Marginal que ofereceu mais

131
RESENDE, Beatriz. A literatura brasileira na era da multiplicidade. In: Cultura e Desenvolvimento.
Organização: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.148.
132
Ibidem, p.150.
133
Ibidem, p. 171.
134
NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. O objetivo
da pesquisa de Nascimento foi compreender a que se refere a expressão “literatura marginal” por escritores da
periferia de São Paulo, buscando investiga-la a partir de uma dupla perspectiva. Como explica a autora: “(...) de
acordo com os aspectos relacionados aa produção e à circulação de alguns dos seus produtos literários; e
segundo os signos culturais e objetivos amplos, que dizem respeito à construção e divulgação de uma cultura de
periferia e à formação de identidades coletivas.”p. 22.
62

visibilidade a obra de 48 autores, residentes em São Paulo, incluindo 80 textos entre crônicas,

contos, poemas e letras de rap. No estudo, Nascimento enfatiza o discurso de três dos

escritores: Sergio Vaz, Ferréz e Sacolinha (Ademiro Alves). De acordo com a autora, entre

os anos 1990 e 2005 a produção literária contemporânea trouxe à tona a expressão literatura

marginal para:

Designar a condição social de origem dos escritores, a temática privilegiada


nos textos ou a combinação de ambos, disseminando-se para caracterizar os
produtos literários dos que se sentem marginalizados pela sociedade ou dos
autores que trazem para o campo literário, temas, termos, personagens e
linguagens ligados a algum contextos de marginalidade. 135

Como observa Heloisa Buarque de Hollanda, na passagem dos séculos XX para o XXI

a “nova cultura da periferia” se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país:

“Com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação

social. Alguns traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da

cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural.” 136

Como parte deste mesmo contexto cultural contemporâneo, que afirma o lugar das

vozes periféricas, ganha força também a atuação das rádios comunitárias. O radialista Tião

Santos é categórico ao afirmar que: “Num país como o nosso, marcado pelo silêncio das

maiorias, desde os processos de colonização até os anos da ditadura militar, era de se esperar

que, ao primeiro sinal de liberdade de expressão, a voz das maiorias se fizesse ouvir nos

quatro cantos deste país.” 137 As quinze mil rádios comunitárias em funcionamento hoje no

Brasil representam uma conquista popular. Elas estão no ar em favelas, pequenos e médios

municípios, áreas rurais, aldeias indígenas e comunidades quilombolas. De acordo com

Santos:

135
Ibidem, P. 112.
136
HOLLANDA, Heloísa Buarque. In: NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes Marginais na Literatura. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2009.
137
SANTOS, Tião. Rádios Comunitária: “Balangando o beiço” pelo direito de comunicar! In: Cultura e
Desenvolvimento. Organização: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro:Aeroplano, 2004. P. 177.
63

A diferença é que esse novo jeito de comunicar vem ganhando cada vez
mais o gosto popular. Num contraponto a chamada comunicação
globalizada, normalmente pasteurizada em seus conteúdos, as rádios
comunitárias estão resgatando o bom conceito do rádio “amigo íntimo”, que
entende a fala a linguagem do ouvinte, dos seus problemas, dos seus sonhos,
das coisas que fazem parte de seu cotidiano.138

O rap do MV Bill, a literatura marginal ou a pauta das rádios comunitárias representam

expressões desse movimento de luta diária, onde a existência no espaço da pobreza permite

que se desenvolva um estado de ação/reflexão sobre o seu próprio lugar e o mundo. O que

verificamos com isso é que, na contramão do discurso hegemônico, aquele que estabeleceu

uma representação negativa da favela, existe também a possibilidade da produção de outro; de

um novo discurso, baseado na versão daqueles que estão “de dentro.”

É notória no Rio de Janeiro a presença de inúmeras ações oriundas dos espaços

populares, que vêm trazendo à tona narrativas locais, colocando em relevo o cotidiano das

comunidades. Ao contrário de estar sujeita a uma escrita e a uma leitura de “fora para dentro”,

é ela mesma, a favela, quem vem abrindo brechas para apresentar o seu próprio relato - “de

dentro para fora.”

O novo discurso, que insurge do território da favela, é reforçado pela atuação de

organizações que surgiram a partir da mobilização comunitária como o Grupo Nós do Morro,

o Grupo Cultural AfroReggae, a Central Única das Favelas – CUFA e o Observatório das

Favelas. As quatro organizações, com forte e reconhecida atuação social têm em comum um

poderoso elemento: todas foram criadas por pessoas que moram ou moraram em comunidades

populares e que, portanto, reconhecem suas potencialidades, as possibilidades que têm de

desenvolver estratégias comuns de luta e resistência, cultural e política. Outro aspecto em

comum é que consideram prioritário fortalecer políticas públicas de emprego de jovens, bem

138
Ibidem, P. 180. No artigo, Tião Santos esclarece que apesar da multiplicação das rádios comunitárias no país
e da aprovação da lei 9.612 (19/02/1998) que regulamenta o funcionamento delas, das estimadas quinze mil
existentes, apenas mil foram autorizadas definitivamente pelo Ministério das Comunicações.
64

como necessário o desenvolvimento local dos espaços populares, favelas e periferias. Como

ironia ao G8, as quatro entidades formaram recentemente o grupo Favela 4 – F4 que pretende

promover ações conjuntas, solidárias, de mobilização, com vistas à redução da violência

contra crianças, adolescentes e jovens no Rio de Janeiro. 139

Essas organizações, que emergem do lugar da favela, encabeçam um movimento que

explodiu na década de noventa. Hoje, uma complexa rede social constituída por iniciativas

oriundas de dentro das comunidades e por outras, implementadas por organismos externos a

elas, porém dentro delas, têm ampliado o espaço para diversas formas de expressão artística,

como o teatro, a música, a dança ou o audiovisual. A partir dos anos noventa, quando ocorre

um verdadeiro “boom” do ‘terceiro setor’ 140, fortalecendo a atuação das organizações não

governamentais (ONGs) dentro das comunidades do Rio, o palco ganha um sentido quase

milagroso.

Na área teatral, o pioneiro grupo Nós do Morro tornou-se uma inspiração para diversos

projetos sociais que tem descoberto o teatro como uma atividade sedutora e emocionante para

a vida de crianças e adolescentes. Em quase toda comunidade carioca, difícil é não encontrar

pelo menos um ‘projeto’ de teatro. 141 É fato: longe dos refletores das salas de espetáculo mais

139
O conselho gestor do F4 está constituído por Celso Athayde da CUFA, José Júnior do AfroReggae, Guti
Fraga do Nós do Morro e Jailson de Souza e Silva do Observatório de Favelas. Foi criado como ironia ao G8 -
Grupo dos Sete e a Rússia, uma cúpula internacional que reúne os sete países mais industrializados e
desenvolvidos economicamente do mundo, mais a Rússia. Todos os países se dizem nações democráticas:
Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá (antigo G7), mais a Rússia - esta
última não participando de todas as reuniões do grupo. Durante as reuniões, os dirigentes máximos de cada
Estado membro discutem questões de alcance internacional. Fonte: <http// www.observatoriodasfavelas.org.br>
Acesso em: 14/02/2008.
140
De acordo com Rubem César Fernandes, o "Terceiro Setor" é composto por organizações sem fins
lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não governamental, dando
continuidade às práticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para
outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações
na sociedade civil. Disponível em: <http://www.rits.org.br> Redes de informação para o terceiro setor.
141
O crescimento do número de projetos sociais no Brasil que percebem a arte (inclui-se o teatro) como uma
ferramenta poderosa de adesão do jovem que vive em áreas de risco social fica bastante evidente a partir dos
meados da década de 90. Segundo dados do relatório de atividades do Programa Capacitação Solidária , por
exemplo, entre os anos de 1996 e 2000, das 2967 propostas de capacitação aprovadas para financiamento por
instituições, ONG’s, associações e cooperativas, a modalidade “artes e espetáculos” esteve em segundo lugar,
com percentual de 9,13%; perdendo apenas para informática 10,84%. Fonte: Painel Solidário. Capacitação
Solidária, folder de divulgação, 2000. É evidente também o aumento de propostas de financiamento para
projetos que envolvam a arte; exemplos disso são: o Cidadão 21 - Arte do Instituto Ayrton Senna, lançado no
65

sofisticadas da cidade, em quase toda favela do Rio, um grupo de teatro está em plena

atividade.

Um surto de projetos implementados nas comunidades populares da cidade aposta no

teatro, e também nas outras artes, como uma alternativa para a melhoria da qualidade de vida
142
de crianças e jovens. O fenômeno é responsável pela disseminação de palcos em muitas

favelas da cidade. Os resultados alcançados por alguns desses projetos, bem como a sua

crescente divulgação nos veículos de comunicação, afirmou a ideia de que as linguagens

artísticas exercem uma influência poderosa sobre crianças e adolescentes, representando um

contraponto, ou um elemento estratégico para enfrentar e combater a violência, muito

presente no cotidiano das comunidades. Esses projetos surgem com a preocupação de oferecer

as atividades como uma alternativa às situações de perigo ou risco social. 143

Uma pesquisa realizada pela UNESCO intitulada Cultivando Vida, desarmando

violências destaca iniciativas espalhadas pelo país, direcionadas aos jovens em situação de

risco social e que têm colaborado para o fomento de uma “Cultura de Paz”. O estudo

reconhece que a arte, o esporte, a educação e a cultura representam:

Um contraponto, elemento estratégico para enfrentar e combater a violência


(...) um incentivo aos jovens para afastarem-se de situações de perigo, sem
lhes negar meios de expressão e de descarga dos sentimentos de indignação,
protesto e afirmação positiva de suas identidades. 144

início de 2002 e o Transformando com Arte, do BNDES, lançado no mesmo ano. Na edição 2006/2007 foi criada
uma nova linha de atuação no Programa Petrobrás Cultural, a de “Formação”, que integrou as Artes e a Cultura à
Educação. A área Formação e Educação para Artes pretende contemplar propostas no campo social, envolvendo
o ensino das artes.
142
A crítica e professora de dança Silvia Soter realizou uma pesquisa entre agosto de 2001 e agosto de 2002,
intitulada: A dança no Rio de Janeiro: uma alternativa contra a exclusão pelo Programa RioArte, 2002. Soter
mapeou 32 experiências que ofereciam atividades de dança (incluindo diversas modalidades) gratuitamente aos
jovens de baixa renda no Rio de Janeiro. A pesquisa constata que o crescimento dos projetos sociais em dança
nas comunidades do Rio de Janeiro é um fenômeno recente. Até 1997, existiam apenas seis dos 32 projetos
localizados, e, o ano de 2001 foi o período de criação do maior número de projetos (dez projetos no total).
143
CASTRO, Mary. Cultivando Vida, desarmando violências. Brasília: UNESCO, Brasil Telecom, Fundação
Kellogg, Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2001. O livro é resultado de uma pesquisa que pretendeu
ampliar a visibilidade social de experiências inovadoras no trabalho com jovens, em particular aqueles em
situação de pobreza no campo da arte, cultura, cidadania e esporte. No livro um capítulo é dedicado ao Nós do
Morro, dentre os trinta projetos mapeados em vários estados do país, o grupo é um dos pioneiros.
144
Ibidem. p.19.
66

Mesmo que algumas dessas instituições, como o Nós do Morro, tenham nascido antes

da década de noventa, quando as favelas ainda não estavam tomadas pelas facções do tráfico

de drogas como estão hoje, o surgimento da maioria desses projetos é consequência do agravo

da negligência do Estado em relação às necessidades básicas dessas populações.

Organizações como o AfroReggae, a CUFA, ou grupo de teatro do Vidigal, além de

terem incentivado o “palco comunitário”, também promoveram outra tendência que se

verifica nas manifestações artísticas provenientes das comunidades. Elas elegem a própria

favela como personagem principal de suas obras. Seja como tema central de peças de teatro,

nas letras de rap, ou nos curtas produzidos pelo cinema de ‘periferia’, o que observamos é a

vontade de falar sobre a favela, uma explosão de vozes que querem, por meio de múltiplas

possibilidades e expressões, contar a sua história, desta vez, com versão própria.

A favela sempre produziu arte, mas nunca com tanta força e diversidade. Não são

poucos os exemplos que podemos citar, com razoável frequência eles aparecem nas páginas

dos jornais. Uma reportagem intitulada O morro pede passagem 145 destacou iniciativas que

integram a “virada cultural” promovida pelas favelas do Rio para “transcender a realidade de

miséria e violência.” Nela ganham destaque o curta premiado Neguinho e Kika, de Luciano

Vidigal, diretor cria do Nós do Morro 146; um curso audiovisual promovido pela CUFA, cujo

patrono é o famoso cineasta Cacá Diegues; o grupo Teatro na Laje, da Vila Cruzeiro no

Complexo do Alemão, que montou Romeu e Julieta adaptado para a realidade de guerras

entre as facções armadas, espetáculo que ganhou destaque na matéria Da laje para a pista 147;

os shows do AfroReggae; os atores formados pelo Nós do Morro; as bailarinas do projeto

145
CEZIMBRA, Márcia. O morro pede passagem. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro, 4.6.2006. Revista O
Globo. P. 20-26.
146
Neguinho e Kika é o terceiro curta–metragem produzido pelo núcleo de cinema grupo Nós do Morro. O curta
ganhou o prêmio do júri de melhor filme curto no festival Reencontres Cinematographiques, na cidade francesa
de Marselha. Trata-se da história de amor de um casal de adolescentes em que ela tenta salvá-lo do ingresso no
tráfico.
147
CEZIMBRA, Márcia. Da laje para a pista. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 5/11/2006. Revista O Globo.
P.16-17.
67

Dançando para não dançar 148.

No campo da dança, ganharam destaque nos últimos anos a Cia. Étnica de Dança 149 e

as experiências do coreógrafo Ivaldo Bertazzo com o Corpo de Baile da Maré, nas montagens

dos espetáculos Folias Guanabaras (2001) e Dança das Marés (2002). Os espetáculos foram

objeto de estudo de Silvia Soter em Cidadãos Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo

com o corpo de dança da Maré. 150 A autora explica que Folias guanabaras “apresentou o

Complexo da Maré, uma quase-cidade dentro da cidade, como alegoria para a ação: um

corpo-cidade.” 151 Já em Dança das marés, completa a autora “o zoom de Bertazzo trouxe para

o centro da cena cada jovem do corpo de dança: um corpo-memória.” 152 Na última peça,

segundo Soter, o cotidiano da favela é espetacularizado através da incorporação de danças dos

jovens da comunidade e de “relatos constituídos pelas lembranças de suas infâncias e pela

leitura que fazem de suas histórias e do ambiente em que vivem.” 153 Comenta a autora:

Desde o início, o processo de construção desse espetáculo esteve


intimamente ligado à Maré e aos seus jovens moradores. (...) As ações que
estiveram na origem do espetáculo – os encontros para a discussão do tema
e as incursões na Maré, seguindo o mapa desenhado a partir do trajeto
cotidiano de cada jovem – fizeram com que a realidade local estivesse
presente no cerne da obra. Através da narrativa dos jovens sobre a passagem
da infância para a adolescência, o lugar e suas práticas se transformaram em
matéria-prima desse espetáculo. Os grupos de discussão e a construção dos
diversos mapas da região, que tiveram os jovens como ponto de partida,
refletem a tentativa de aproximação da equipe de criação com a realidade
local. Pela primeira vez na experiência de Bertazzo com o Corpo de Dança
da Maré, a criação do espetáculo partiu, de forma muito íntima, das
experiências de seus jovens integrantes. (...) A maturidade da experiência, já

148
Criado e coordenado pela bailarina Thereza Aguilar o projeto democratizou o acesso das crianças e jovens
cariocas ao balé, além de prepará-los para a prova de admissão da Escola de Dança Maria Olenewa – a única
escola pública de formação de bailarinos do Rio de Janeiro.
149
O projeto foi criado pela bailarina Carmem Luz e é sediado próximo ao Morro do Andaraí.
150
SOTER, Silvia. Cidadãos Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré. Rio
de Janeiro: UniverCidade Ed., 2007.
Entre 2000 e 2002, Ivaldo Bertazzo esteve associado ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
(CEASM), uma organização não-governamental criada em 1997 por moradores e ex-moradores do Complexo da
Maré. A parceria entre o professor e o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré deu origem a três
espetáculos dirigidos e coreografados por Bertazzo, os quais contaram com a participação de até 66 crianças e
jovens da Maré – que formavam o Corpo de Dança da Maré, além de músicos, atores e bailarinos profissionais:
Mãe gentil (2000), Folias guanabaras (2001) e Dança das marés (2002).
151
Ibidem, p.32.
152
Ibidem, p.32.
153
Ibidem, p.32.
68

em seu terceiro ano consecutivo, fez com que o diretor e coreógrafo


confiassem na capacidade do grupo de estar sozinho em cena. 154

Sem dúvida, como afirma a própria autora, a experiência de Bertazzo com os

bailarinos da Maré apresentou as crianças e jovens como “porta-vozes, em cena, de ricos


155
saberes locais” “valorizou a periferia e transformou-a em centro”. 156 O projeto, entretanto,

não obteve uma sobrevida maior do que a montagem dos espetáculos. Com o término do

patrocínio da Petrobrás, encerrou-se também o trabalho do coreógrafo com o elenco da

Maré. 157

Recentemente, também no Complexo da Maré, o movimento da dança foi revigorado

por meio de uma parceria estabelecida entre a companhia de dança da bailarina Lia Rodrigues

e a organização comunitária Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES). Num grande

galpão em reforma na favela de Nova Holanda, a companhia apresenta a dança

contemporânea aos moradores locais. Os olhares curiosos, tímidos, das crianças da Nova

Holanda, observam os ensaios dos bailarinos da companhia através da sempre aberta porta do

galpão; à noite alguns moradores se arriscam na descoberta da linguagem ainda muito pouco

familiar em aulas oferecidas gratuitamente para a comunidade. Espetáculos da companhia,

que cumprem turnê internacional, desembarcam em temporada na Maré. 158

154
Ibidem, p.98-99. A autora esclarece que DrauzioVarella e outros membros da equipe de Bertazzo
percorreram as diferentes comunidades da Maré, acompanhando os jovens em seus trajetos diários, visitando
suas casas, conhecendo aquele lugar a partir de seus olhares e passos. Essas visitas guiadas alimentaram a
criação do espetáculo e deram origem ao livro Maré: vida na favela, assinado por Drauzio Varella, Ivaldo
Bertazzo e Paola Berenstein Jacques.
155
Ibidem, p.106.
156
Ibidem, p.32.
157
Dali em diante o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré - CEASM em parceria com um grupo de
bailarinas providenciou a continuidade de projetos em dança dentro da comunidade.
158
A Lia Rodrigues Companhia de Danças, companhia de dança contemporânea de abrangência nacional e
internacional, comemora em 2010 vinte anos de atividades de criação. Para comemorar, estreou dia 12 de março
no Centro de Artes a Maré o espetáculo "Pororoca", e até o dia 04 de abril apresentou espetáculos que marcaram
esses anos de trabalho, como "Encarnado", "Formas Breves" e "Aquilo de que somos feitos". A parceria entre a
Redes de Desenvolvimento da Maré com a Lia Rodrigues Companhia de Danças viabilizou a criação do Centro
de Artes da Maré: um lugar de partilha, convivência e de troca de saberes, direcionado para a formação, criação,
difusão e produção das artes. No Centro de Artes da Maré a Companhia desenvolveu sua última criação
"Pororoca", e atualmente realiza ensaios, apresentações e está a frente do projeto «dança para todos» com aulas
gratuitas de consciência corporal, dança contemporânea para jovens e dança criativa para crianças. Informações
disponibilizadas em: <http://www.redesdamare.org.br>
69

A dança também ganhou espaço na Cidade de Deus. O Programa Educação pelo

Movimento (PEM), idealizado pelo coreógrafo Sylvio Dufrayer em 2001, é assunto do artigo

No palco da Cidade de Deus, de Solange Caldeira. 159 Na favela, mundialmente conhecida

após o filme de Fernando Meirelles (Cidade de Deus – 2002), setenta crianças se espalham

pelo chão para aprender capoeira, dança folclórica, dança de rua, ginástica olímpica e circo.
160
A reportagem A cidade unificada confere ao trabalho de iniciativas de notoriedade

como o Nós do Morro e o AfroReggae, um movimento que “costura” as fissuras entre o morro

e o asfalto na cidade que foi um dia considerada, fazendo alusão à obra de Zuenir Ventura,

partida. Na matéria, é o próprio Zuenir quem comemora o surgimento nos últimos anos de

ações afirmativas como os movimentos que se empenham em sair do gueto e ganhar

visibilidade “não pelos tiros de AR15, mas pelos sons, cores e gestos da arte e da cultura.”

Nas artes plásticas, foi divulgada pela imprensa a maquete Morrinho, resultado da

brincadeira de um grupo de meninos da favela do Pereirão que, utilizando materiais como

azulejos quebrados e tijolos, criou um cenário da favela em miniatura com mais de 300

metros quadrados. 161 Nas Artes Cênicas destacam-se também os trabalhos do Instituto

Stimulu Brasil por meio das ações do Galpão Aplauso, e da ONG Spectaculu. 162

159
CALDEIRA, Solange. No palco da Cidade de Deus. In: Teatro e dança como experiência comunitária. Org.
Narciso Telles, Victor Hugo Adler Pereira e Zeca Ligiéro. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.
160
AUTRAN, Paula. A cidade unificada. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Rio. p. 30.
161
A matéria divulgou o feito dos meninos do Pereirão. Parte da maquete viajou para a Bienal da Veneza, virou
documentário e ganhou exposição também no Centro Cultural da Caixa, Rio de Janeiro. MONTEIRO, Karla.
Favela Chique. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 15/07/2007. Revista de O Globo. P. 18-20.
162
A Spectaculu é uma instituição não-governamental sem fins lucrativos que se propõe a complementar a
educação escolar, oferecendo atividades artísticas, culturais e de iniciação profissional, para jovens de 16 a 21
anos, de comunidades da periferia do Grande Rio, em situação de risco. Localiza-se em um Galpão na area
portuária do Rio. O Instituto Stimulu Brasil, organização sem fins lucrativos, foi criado para viabilizar
programas, projetos e ações sociais cujos beneficiados são os jovens de diversas comunidades de baixa
renda do Rio de Janeiro. O Instituto idealizou e desenvolveu os programas Talentos da Vez, Espaço do
Artesão e os Laboratórios de Práticas inclusivas, além de coordenar a Cia. Aplauso, (companhia de teatro) e
o Centro Espacial (centro de artes plásticas), formados por jovens que já passaram pelo Talentos da Vez. O
Instituto participa também do PróJovem, programa do Governo Federal. O Galpão Aplauso localiza-se
perto da Rodoviária Novo Rio.
Informações disponíveis em: < http://www.spectaculu.org.br> e < http://www.aplauso.art.br>
70

Em 2007, uma capa de revista exibia como manchete: A favela se diverte. 163 A convite

da revista sete fotógrafos oriundos de diferentes comunidades cariocas capturaram imagens

que retrataram o tema título da reportagem. Dizia o texto: “Um olhar de dentro para fora, sem

preconceitos ou estereótipos.” O grupo de fotógrafos fazia parte da primeira turma formada

pela Escola de Fotógrafos Populares, criada pelo Observatório das Favelas 164. As fotografias

mostram cenas alegres do cotidiano de crianças e adultos nas favelas, as brincadeiras com

bolinha de gude e pião, a recreação na piscina da laje, o churrasco de fim de semana, a

garotada soltando pipa. Também organizado pelo Observatório das Favelas, o Festival de

Audiovisual Visões Periféricas 165 exibiu uma diversidade de vídeos, demonstrando a força do

que vem sendo produzido pelas periferias de todo o Brasil. As produções trouxeram diferentes

visões que a periferia apresenta sobre si mesma, uma variedade de retratos e relatos que a

cada dia se colocam cada vez mais no centro do debate. O editorial do programa do Festival

dizia:

É a periferia se colocando na ofensiva, mostrando-se capaz de operar


linguagens e meios. Mais do que isso de se representar, de falar por ela
mesma, de fazer arte. Aqui não há carência. Não se briga pelo direito ao
discurso. O discurso já está sendo feito. 166

Um projeto cinematográfico, agora reformulado, é também destaque dentro deste

movimento. Em 1961, cinco jovens cineastas de classe média, oriundos do movimento

estudantil universitário, realizavam o filme Cinco Vezes Favela. Carlos Diegues, Joaquim

163
Fonte: A favela se diverte. Lá no morro que beleza. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 18/03/2007. Revista O
Globo. p. 20-27.
164
O Observatório de Favelas é uma organização social de pesquisa, consultoria e ação pública dedicada à
produção do conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e fenômenos urbanos. O Observatório
busca afirmar uma agenda de Direitos à Cidade, fundamentada na ressignificação das favelas, também no âmbito
das políticas públicas. Criado em 2001, sua sede fica na Maré, no Rio de Janeiro, mas sua atuação é nacional. Foi
fundado e é composto por pesquisadores e profissionais oriundos de espaços populares. Informações
Informações disponíveis em: <http//www.observatoriodefavelas.org.br>
165
O Festival aconteceu em junho de 2007 no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal no Centro do Rio e
contou com o financiamento também da Petrobrás, SESC, Projeto Reperiferia, Prefeituras do Rio e de Nova
Iguaçu. Fonte: Informativo Oficial do Festival (junho de 2007). Festival Audiovisual Visões Periféricas. No ano
seguinte, 2008, uma outra mostra audiovisual incluiu a participação de produções provenientes da periferia.
Promovida pela Light o concurso de vídeos amadores recebeu o nome de Mostre a sua Comunidade.
166
Informativo Oficial do Festival (junho de 2007). Festival Audiovisual Visões Periféricas. P. 2.
71

Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges foram os jovens que

tornaram o filme um marco do cinema moderno brasileiro e um dos fundadores do Cinema

Novo. Passadas quatro décadas, Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos reúne dessa vez

jovens cineastas moradores de favelas do Rio de Janeiro 167, treinados e capacitados a partir de

oficinas profissionalizantes de audiovisual ministradas por grandes nomes do cinema

brasileiro, como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Walter Lima Jr., Daniel Filho,

Walter Salles, Fernando Meirelles, João Moreira Salles e outros. O projeto apresenta cinco

filmes de ficção, de cerca de 20 minutos cada um, sobre diferentes aspectos da vida em suas

comunidades.

Em comum a todos esses eventos e ações, que aos poucos encontram mais lugar nos

veículos de comunicação, está o fato de que todas elas, por meio de diferentes linguagens,

alteram, mesmo que ainda discretamente, a perspectiva hegemônica que aprisiona a imagem

da favela a noções negativas. São vozes que se manifestam e falam por si mesmas, que

procuram tornar a favela mais autora de sua história. Gradualmente, elas vêm forçando uma

mudança no discurso da mídia, que muitas vezes preferiu associar o jovem favelado como um

indivíduo “carente”, ou altamente suscetível a cooptação pela criminalidade. O diretor teatral

Amir Haddad, do grupo Tá na Rua, aplaude a explosão de grupos teatrais nas comunidades

que, segundo ele, recupera o teatro como arte pública: “O teatro é uma atividade de todo e

qualquer cidadão. Não se trata de ensinar arte para salvar o favelado da miséria, para que ele

não assalte a minha mãe na esquina, mas para formar cidadãos capazes de interferir no seu

destino.” 168

A favela é o lugar onde a tensão entre os vetores “de cima” e “de baixo” trava uma

batalha diária. Um território atacado pela globalização neoliberal, perversa, cujos disparos

167
São eles: Luciana Bezerra, Cacau Amaral, Rodrigo Felha, Wavá Novaes, Manaíra Carneiro, Cadu Barcellos e
Luciano Vidigal.
168
CEZIMBRA, Márcia. O Morro pede passagem. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Revista O Globo.
P.22.
72

privam as populações mais pobres do direito aos “bens públicos” como Educação, segurança,

lazer, saúde; mas um espaço de onde emergem ações criativas, movimentos capazes de reagir

à situação de privação. Há mais de um século a favela faz parte do Rio de Janeiro, e durante a

maior parte deste tempo ela tem sido vista como um território à parte. A ampla rede social

que se formou nos últimos anos, incluindo movimentos comunitários e a participação de

organismos da sociedade como um todo tem tentado construir outra perspectiva, que enfrenta

a cultura histórica de exclusão e que procura ver a cidade como menos partida e mais

unificada.

A dinâmica deste novo projeto de cidade permite o encontro entre diferentes grupos

sociais e territoriais, autoriza o trânsito da produção artística e cultural da favela por todos os

circuitos, cria sociabilidades inéditas. As celebridades que se tornam parceiras da juventude

da periferia, os rostos da favela nas capas de revista, os empresários “responsáveis sociais”, a

favela na telenovela. Mas, diante desta complexa trama de transações sociais, políticas e

também econômicas cabe desconfiar; perguntar em que situações a comunidade/favela é de

fato sujeita, de fato favela pela favela, ou mero objeto do interesse de grupos, representantes

dos “vetores de cima.”

É que a narrativa dominante cria a doença da exclusão, mas ao mesmo tempo prepara

adocicados remédios paliativos. Algumas vezes seus interesses ocultos, objetivos ilusórios,

criam um simulacro de transformação social; assim, as comoventes campanhas de doação na

TV ou o reconhecimento pela mídia dos rostos da favela, ameaçam isentar a sociedade,

deformada e desigual, da responsabilidade maior que são as verdadeiras mudanças estruturais,

a democratização real das oportunidades na educação, saúde, moradia, emprego, serviços,

cultura. Isto não quer dizer que devam ser negadas as “parcerias”, ou que deva ser rejeitada a

“poliglosia da sociabilidade” 169, necessária para que ocorra o diálogo entre os mais variados

169
A expressão “poliglotas da sociabilidade” é de autoria de Rubem César Fernandes. Ao descrever a
necessidade da construção de diálogo entre os mais diversos segmentos sociais, tarefa especialmente importante
73

atores sociais como órgãos governamentais, agências de cooperação internacional,

universidades e escolas, empresas, políticos, artistas, intelectuais, organizações comunitárias,

associações de moradores; mas, que se deva avaliar em que medida a favela/comunidade tem

sido tratada como sujeita de seus desejos ou como objeto de interesses alheios.

O diálogo ampliado entre diversos setores da sociedade obriga uma constante

negociação entre personagens que guardam entre si diferentes posições de poder. Esta é uma

negociação inevitável, faz parte do convívio com a tensão entre os vetores “de cima” e “de

baixo”. Mas o que está em jogo nessa tensão é a seguinte pergunta: a quem interessa mais o

“projeto”? Até que ponto nele está assegurado a participação e autonomia da

favela/comunidade? O que se faz necessário é refletir sobre quais circunstâncias favorecem a

favela/comunidade o seu verdadeiro direito de, nas palavras de Paulo Freire - nomear o

mundo.

Mesmo que o fenômeno recente da explosão de grupos e iniciativas oriundas da favela

tenha esgarçado redes de parcerias e trocas, dentro do território da luta as pessoas sempre

descobriram formas alternativas para enfrentar as suas dificuldades, compartilhando a

experiência da escassez, mas também a da convivência e da solidariedade, produzindo cultura,

desenvolvendo ações como resposta às suas próprias necessidades; encontrando meios para se

tornarem mais donas de sua história. É ela mesma, a favela pela favela quem protagoniza a

luta para ocupar o seu lugar na cidade, proferindo narrativas alternativas.

Sem dúvida, o encontro entre variados atores sociais tem contribuído com, nas palavras

de Jaílson dos Santos, “a criação de novas redes de sociabilidade” e estimulado, nesses

para as organizações do terceiro setor, Fernandes afirma que: “Os ativistas do terceiro setor devem aprender a
arte da tradução, tornar-se poliglotas da sociabilidade, ser capazes de entrar e sair dos vários espaços sociais com
um mínimo de elegância e reconhecimento.” Ela será mais abordada no capítulo 4 deste trabalho. Cf.
FERNANDES, Rubem César. Público porém privado – o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994.
George Yúdice, fazendo alusão a expressão criada por Rubem César, compara a atuação de José Junior,
coordenador do AfroReggae, que se tornou um expert na articulação de parcerias para o grupo de Vigário Geral,
como a de um poliglota da sociabilidade. Cf. YÚDICE, George. A Conveniência da cultura. Usos da cultura na
era global. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.206-207.
74

espaços populares e também fora deles, o surgimento de ações inovadoras, que buscam: “O

reconhecimento e afirmação de identidades entre os jovens de origem popular. De quebra,

promovendo também a construção afirmativa de uma identidade plural para o Rio.” 170

São exemplos de iniciativas que favorecem a produção de genuínas narrativas

alternativas, baseadas em relações de troca, solidariedade e criatividade; ações que indicam

um caminho em direção a fé de Milton Santos: “Se a realização da história, a partir dos

vetores “de cima”, é ainda dominante, a realização de uma outra história a partir dos vetores

“de baixo” é tornada possível.” 171 A arte tem nesta proposta grande significado. De acordo

com Tim Prentki:

A narrativa alternativa é aquela na qual as relações são formadas na base da


dignidade, e não do dinheiro. É a narrativa que tem como objetivo a criatividade
e imaginação e, portanto, uma narrativa onde a arte tem papel importante. No
entanto, não me refiro à narrativa da satisfação pessoal através do afastamento
das injustiças do mundo, mas de um processo de satisfação social através da
autodeterminação de agrupamentos formados por relações horizontais, e não
verticais. 172

Em tempos de insegurança e desengajamento, a arte, especialmente o teatro, que neste

estudo mais nos interessa, tem o poder para criar espaços nos quais ganharão voz e

representação narrativas alternativas; nele se restitui o espírito comunitário, o sentido do

coletivo, o sentimento de pertencimento. O palco da favela pode ser uma arena na qual

cidadãos se redescobrem mais críticos, menos espectadores e mais autores, ou nas palavras de

Amir Haddad mais “capazes de interferir no seu destino.”

A favela como palco e personagem pode significar a expressão legítima de uma

comunidade-sujeito em busca de seu desenvolvimento, uma “recusa combativa” 173 ao modelo

neoliberal de globalização. Para Tim Prentki: “O teatro desenvolve espaços onde alternativas

170
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p.109.
171
Ibidem, p. 166.
172
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p. 19.
173
Expressão utilizada por Mike Davis em Planeta favela.
75

podem ser colocadas, onde, através da força da narrativa dramática, os atores podem ser

transformados de objetos em sujeitos de seu próprio desenvolvimento.” 174 Bertolt Brecht

confiou ao teatro a tarefa de modificar o mundo. É com a mesma confiança, que o palco da

favela pode assumir-se como um agente ativo e transformador; resta refletir sobre em que

circunstâncias ele poderá exercer este papel.

174
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p.26.
76

3 - O TEATRO APLICADO – abrangência, percurso e teoria.

3.1 - O universo do teatro aplicado.

Todo dia o teatro encontra um lugar diferente para acontecer. Um fenômeno constatado

aqui no Brasil e também em outras partes do mundo tem levado esta arte aos mais variados

contextos e ampliado o seu acesso a diversos segmentos da população. Uma grande

diversidade de práticas teatrais cruza a fronteira das salas convencionais do teatro comercial,

para alcançar e agir sob outras esferas, como em projetos comunitários realizados nas

periferias e favelas das grandes cidades; em ações na área da educação não formal, fora dos

muros das escolas; em programas em prol dos direitos humanos e da saúde; nas ações

patrocinadas por empresas, pela igreja ou nos projetos das ONGs. Apesar de se tratar de um

universo que se amplia com grande velocidade, a reflexão teórica e crítica sobre este campo,

entre nós, ainda é pouco sistematizada. Muito embora, recentemente, elas tenham começado a

atrair a atenção do meio acadêmico e a despertar reflexões sobre o tema também aqui no

Brasil.

Uma publicação de 2009 revela o crescente interesse da universidade em discutir

experiências artísticas em contextos comunitários. Teatro e Dança como experiência

comunitária 175 reúne textos de professores de diversas universidades brasileiras interessados

em debater o tema ainda pouco visitado pelas pesquisas acadêmicas. Na apresentação do livro

a professora Márcia Pompeo Nogueira afirma que: “Apesar de muito praticadas, essas

experiências artísticas comunitárias tem pouca visibilidade, pois estão fora dos holofotes do

175
LIGIÉRO, Zeca; PEREIRA, Victor Adler; TELLES, Narciso. (Orgs.) Teatro e dança como experiência
comunitária. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.
77

teatro comercial e acontecem em regiões periféricas.” 176 Como sugere a autora, o caráter

periférico dessas experiências “talvez explique a distância da academia, que só recentemente

abriu espaço para discussão e reflexão sobre trabalho nessa linha.” 177 Até então, muitos

estudos estiveram mais dedicados às manifestações do teatro em âmbito escolar. 178

Em Dentro ou fora da escola? 179, a professora Maria Lucia de Barros Pupo reconhece a

multiplicação das iniciativas no campo da educação não formal que têm levado o “fazer e

fruir” teatral a espaços diversificados, além da escola:

Demandas de entidades as mais variadas, tanto ligadas a sociedade civil


quanto às ONGs, quanto instituições ligadas ao poder público na área da
cultura como é o caso de centros culturais, alem de setores da área de saúde,
constituem algumas das múltiplas esferas nas quais os processos de criação
em teatro – e de modo mais abrangente, nas artes da cena – revelam uma
área em plena expansão.180

As experiências teatrais destacadas por Pupo envolvem pessoas “comuns”, grupos de

não atores, como atuantes e espectadores. De acordo com a professora, essas iniciativas estão

inseridas em uma noção ampla de educação “baseada no princípio de que as ações interativas

entre os indivíduos promovem a construção de saberes.” 181 Pupo inclui neste quadro de ações,

por exemplo, as desenvolvidas por alguns grupos teatrais, como o mineiro Galpão que

inaugurou um núcleo pedagógico que oferece cursos de teatro para iniciantes, sejam crianças,

jovens ou adultos interessados em aprender teatro. Também o grupo Oi Nóis aqui Traveiz,

que criou uma escola na periferia de Porto Alegre “também voltada a um trabalho teatral com

176
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Um olhar sobre o teatro e a dança como experiência comunitária. In: Teatro e
dança como experiência comunitária. Organização, Victor Hugo Adler Pereira, Zeca Ligiéro, Narciso Telles –
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. p. 8.
177
Ibidem, p. 8.
178
Como aponta Arão Paranaguá em Teatro e formação de professores, durante os anos 80 e 90 foram
produzidas muitas pesquisas no Brasil sobre teatro na educação escolar. O autor cita, a título de exemplo, as
pesquisas realizadas na ECA-USP por Ingrid Koudela, Maria Lúcia Pupo e Ricardo Japiassu, entre outros. Cf.
SANTANA, Paranaguá Arão. Teatro e formação de professores. São Luís: EDUFMA, 2000. p. 28.
179
PUPO, Maria Lúcia de Barros. Dentro ou fora da escola? In: URDIMENTO - Revista de Estudos em Artes
Cênicas – Especial. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Teatro. – vol. 1,
n.10 (dez, 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART. Anual. P. 59.
180
Ibidem, p 59.
181
Ibidem, p. 60.
78

iniciantes, importante eixo da função social almejada pelo grupo.” 182 São exemplos, que

segundo a professora, atestam um quadro singular, no qual coletivos teatrais revelam uma

“notável capacidade de intervenção na vida social. (...) O teatro transborda das margens que

até há pouco pareciam conter o seu percurso.” 183 Por isso, se antes as atenções do meio

acadêmico estiveram mais voltadas para as experiências do teatro dentro da escola, hoje

investigar a relação entre teatro e educação levando em consideração apenas esta perspectiva

já não é mais suficiente. A variedade de iniciativas que incluem a parceria entre teatro e

educação nos diversos contextos citados neste início de capítulo, obrigou uma resposta da

academia à nova realidade; dilatou o foco de seus estudos teóricos, o que vem contribuindo,

por exemplo, com a maior atenção à investigação de práticas artísticas comunitárias, bastante

numerosas em nosso país hoje.

A constatação de que atualmente existem múltiplas esferas acolhendo as artes da cena

redimensionou o campo que trata da relação teatro/educação e despertou entre professores e

pesquisadores um debate sobre o uso de uma terminologia a ele mais adequada. Em

Pedagogia do Teatro 184, Ingrid Koudela argumenta sobre a questão do uso de terminologias

dentro da área de conhecimento que aborda as interelações entre o teatro e a educação;

questão que, como aponta a autora, sempre gerou muitas polêmicas entre os estudiosos da

área. De acordo com Koudela, aqui no Brasil o recente batismo do termo Pedagogia do

Teatro e Teatro na Educação pelo grupo de trabalho da Associação Brasileira de Pesquisa e

Pós-Graduação em Artes Cênicas (GT da ABRACE) buscou “incorporar as novas dimensões

da pesquisa que vem sendo realizada na área.” 185

182
Ibidem, p. 60.
183
Ibidem, p. 61.
184
KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do IV Congresso Brasileiro de Pesquisa e
Pós-graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124.
185
Ibidem, p 124. O termo Pedagogia do Teatro e Teatro na Educação foi mantido no V Congresso Brasileiro de
Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes
Cênicas – ABRACE, realizado em 2008.
79

No texto, a autora nos oferece como novidade a existência de um dicionário publicado

em língua alemã intitulado Dicionário de Pedagogia do Teatro186. Segundo Koudela, o

Dicionário traz o desafio de constituir-se como um programa de pesquisa em Pedagogia do

Teatro. No verbete “campos profissionais de pedagogia do teatro” há uma descrição sobre o

“espectro profissional desta área teórico-prática na Alemanha.” 187 Nele estão distintas oito

áreas de trabalho nucleares que incluem diversos perfis de iniciativas inseridas no campo da

Pedagogia do Teatro, entre elas: as desenvolvidas junto a grupos de alunos da Educação

Infantil, dos Ensinos Fundamental e Médio; em iniciativas extracurriculares, como as que

acontecem em museus ou centros culturais; no “lazer”, que se refere a projetos de jogo e

teatro com crianças em centros de férias; em projetos de integração, prevenção e socialização

promovidos por organizações comunitárias ou religiosas; no contexto terapêutico e de saúde,

no trabalho realizado em hospitais, centros de reabilitação ou psiquiátricos etc. Esta

abordagem, que chega da Alemanha, indica a tendência de incluir dentro de uma mesma

nomenclatura o crescente leque de práticas teatrais em ação nos mais diferentes contextos

daquele país.

Aqui no Brasil, a adoção do termo Pedagogia do Teatro, ou Pedagogia Teatral, parece

apontar a mesma tendência. O seu uso já é bastante freqüente em publicações na área, como

apontam os exemplos a seguir: Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo 188, de Flávio

Desgranges e Pedagogia do Teatro e o teatro de rua 189, de Narciso Telles; ou ainda no artigo:

186
KOCH, Gerd e STREISAND, Marianne (Orgs.) Wörterbuch der Theaterpädagogick. Berin; Scribni-Verlag,
2003. Apud KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de
Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras,
2006. Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P.
124 - 125.
187
KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-
graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema:
Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124.
188
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Ed.Hucitec, Edições
Mandacaru, 2006.
189
TELLES, Narciso. Pedagogia do Teatro e o teatro de rua. Porto Alegre: Mediação, 2008.
80

Da pedagogia do ator à pedagogia teatral: verdade urgência, movimento 190, de Gilberto Icle.

O termo Pedagogia do Teatro foi também reconhecido em verbete pelo Dicionário do Teatro

Brasileiro 191. Muito embora, sejam também correntes entre nós, outras terminologias como:

teatro em comunidades, teatro na prisão, teatro no hospital e ação cultural. 192 Como

observou Koudela, a “questão da terminologia sempre foi polêmica” 193, por isso, os estudos

no campo trocam o convívio com o consenso pelo convívio com a multiplicidade de

abordagens.

Em Cartografias do Ensino do Teatro194, os professores Adilson Florentino e Narciso

Telles nos oferecem a curiosa imagem de um caleidoscópio para ilustrar o universo cada vez

mais plural desta área nomeada como Pedagogia do Teatro. O desafio de compreendê-la

exige do observador a atitude de quem “olha” por meio de um caleidoscópio, que a cada

“giro” ilumina um novo modo de ver, investigar, entender a área.

Estudos publicados em língua inglesa revelam que a tarefa de buscar uma compreensão

sobre a pluralidade de nomenclaturas, abordagens, métodos, formulações teóricas e históricas

é compartilhada por estudiosos também de outros países. Em vários lugares do mundo,

pesquisas acadêmicas vêm tentando responder, em alguns casos com maior, em outros, com

menor agilidade, à emergência dessa diversidade de iniciativas.


190
ICLE, Gilberto. Da pedagogia do ator à pedagogia teatral: verdade urgência, movimento. Disponível em:
Percevejo online. Vol.1. no. 2 (2009).
191
GUINSBURG, Jacob, FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves. (Orgs.) Dicionário do Teatro
Brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. p.239. Verbete escrito
pela colaboradora Ingrid Dormien Koudela. (IDK)
192
O termo Teatro em Comunidades é assumido por Márcia Pompeo Nogueira (UDESC), para delimitar os
estudos em torno da experiências de teatro com comunidades “periféricas”. Cabe neste sentido destacar a
contribuição das reflexões da professora, cujos artigos, direcionados a este segmento têm ampliado e enriquecido
as discussões teóricas sobre o tema aqui no Brasil. A professora é também a idealizadora do Banco de dados em
teatro na comunidade, que conta com o apoio da UDESC e com a participação de estudantes bolsistas do
Departamento de Artes Cênicas. (Fonte: <http://teatrocomunidade.ceart.udesc.br>). O segmento teatro na prisão
é o foco dos estudos de Vicente Concílio (UDESC), de Maria de Lourdes Naylor Rocha (UNIRIO); teatro no
hospital assunto da pesquisa da professora Lucia Helena de Freitas (UNIRIO) e o termo ação cultural, que
aparece em textos recentes de Maria Lúcia Pupo (USP) quando a autora se refere a inciativas de teatro no campo
da educação não-formal ou do trabalho das ONGs.
193
KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-
graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema:
Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124.
194
FLORENTINO, Adilson e TELLES, Narciso. (Orgs.) Cartografias do Ensino do Teatro. Uberlândia:
EDUFU, 2009.
81

Na Inglaterra, por exemplo, a literatura dedicada à área também acolhe diversos termos

e “modalidades teatrais” tais como: performance comunitária, teatro para mudança social,

teatro popular, teatro de intervenção, teatro para o desenvolvimento, teatro comunidade e

teatro para solução de conflitos. Embora cada uma delas apresente formulações teóricas

específicas, não é difícil identificar entre elas algumas características comuns: todas

acontecem longe do âmbito das salas tradicionais de espetáculo, além do território do

mainstream, ou do teatro comercial 195; são iniciativas que levam o teatro a determinadas

comunidades, que envolvem a participação de pessoas comuns, suas histórias, lugares,

desejos, prioridades e que são motivadas pelo desejo político de transformar, por meio do

teatro, realidades individuais e coletivas. Em recentes publicações em língua inglesa, como

veremos mais adiante, essas práticas foram reunidas num termo abrangente e inclusivo que

vem ganhando destaque pelo mundo – applied theatre (teatro aplicado).

No âmbito internacional, desde os anos noventa, cresceu o número de pesquisas

dedicadas à atuação desses “segmentos” teatrais. As obras de autores como Eugene Van

Erven, Helen Nicholson, Baz Kershaw, Zkes Mda, Kees Epskamp e Tim Prentki contribuem

com importantes reflexões sobre este “universo”. Em títulos como: Community Theatre,

Popular Theatre, Theatre for Development, Applied Drama e Applied Theatre Reader 196, os

autores optam pelo uso de diferentes termos e elaboram suas próprias definições para explicar

as práticas que povoam a área. Em Defining the Territory (Definindo o território), capítulo do

195
No inglês a palavra mainstream recebe as seguintes definições: alguma coisa que pertence a uma área
estabelecida de atividade; uma tendência de opinião ou modo que prevalece, domina. Cf. Shorter Oxford English
Dicionary. O uso da palavra no caso deste trabalho estaria relacionado à noção de um teatro estabelecido,
dominante. Optei por usar mainstream como sinônimo de teatro comercial, ideia que considero mais próxima da
sugerida pela definição da palavra em inglês.
196
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural
intervention. London: Routledge, 1992. MDA, Zakes. When people play people. Development communication
through theatre. London and New Jersey: Zed Books, 1993.NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of
theatre. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2005. PRENTKI,Tim and PRESTON, Sheila. (orgs.) The
Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political
Culture. Intellect Books, Bristol, UK, 2000. VAN ERVEN, Eugene. Community Theatre. Routledge: London
and New York, 2001.
82

livro Popular Theatre in Political Culture (Teatro Popular na Cultura Política), Tim Prentki

aponta para a necessidade de esclarecer a “linguagem neste campo e clarear o uso de termos.

Embora algumas separações possam ser vistas apenas como diferenças semânticas, um

preciso delineamento entre as atividades teatrais com interesse social parece ser

necessária”. 197

O autor afirma que o território cresce com rapidez e que definições e a utilização

cuidadosa de terminologias podem ajudar na compreensão dos trabalhos realizados na área,

suas intenções, metodologias, processos e uso de formas teatrais. Assim como Prentki,

durante os últimos anos outros estudiosos se dedicaram à tarefa de procurar distinguir cada

um desses segmentos e práticas interdisciplinares, híbridas, que envolvem o teatro, a

educação, a sociologia, os estudos culturais, a psicologia e a antropologia. De acordo com o

autor, cada uma dessas linhas possui hoje, sua própria teoria, debate e prática especializada.

Entretanto, a necessidade de estabelecer e conceituar divisões, categorias, vem sendo

questionada. O próprio Prentki, em recente publicação, opta por abordar o “universo”

utilizando uma perspectiva mais abrangente e menos segmentária. 198 Além do termo, teatro

aplicado, outro também inclusivo, é encontrado nos estudos britânicos - o drama aplicado.

Como esclarece Helen Nicholson:

Esses termos começaram a ser utilizados a partir dos anos noventa, e aceitos
por acadêmicos, práticos do teatro e elaboradores de projetos como uma
espécie de abreviação para descrever formas de atividades dramáticas que
existem prioritariamente fora do mainstream convencional das instituições
teatrais e que estão especificamente destinadas a beneficiar indivíduos,
comunidades e sociedades. 199

197
PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political Culture. Intellect Books, Bristol, UK, 2000. p.13.
198
No livro The Applied Theatre Reader, os editores Tim Prentki e Sheila Preston incluem uma série de
reflexões sobre iniciativas no mundo todo, envolvendo as áreas do teatro na educação, teatro na prisão, teatro de
intervenção, entre outros. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009.
199
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2005. p.2.
Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
83

A autora enfatiza que: “Incluído nesta pasta de drama/teatro aplicado estão práticas

diversas como, por exemplo, o drama na educação e o teatro na educação, teatro e educação

para saúde, teatro para o desenvolvimento, teatro nas prisões, teatro comunidade (...)”. 200

Ainda segundo Nicholson, o drama aplicado seria o teatro que acontece “em lugares sem

muito glamour” 201, como nos asilos para velhos, abrigos para desempregados ou em prisões.

Helen Nicholson explica que práticos do teatro têm trabalhado em áreas da educação, da

terapia e das comunidades por muitos anos, mas a emergência dos termos teatro/drama

aplicado revela um interesse em encontrar uma teoria e uma motivação política comum a

todas às práticas que se incluem neste campo.

A autora também afirma que por se tratarem de termos relativamente novos ainda não

existe um real consenso sobre como cada um deles deve ser usado. As controvérsias entre o

uso de um ou outro giram em torno, segundo ela, de um debate muito próximo do levantado

entre os anos 70 e 80 na Inglaterra, que distinguia, naquele país, o drama in education – DIE

(drama na educação), do theatre in education – TIE (teatro na educação). Comenta Nicholson:

“DIE estava baseado no ensino de conteúdos do currículo através do teatro e o TIE envolvia

atores-professores trabalhando com estudantes em programas de performance

participativa”. 202 O primeiro estaria mais interessado na utilização do teatro como um meio

para abordar outros conteúdos, enquanto que o segundo estaria mais focado nas questões

próprias desta arte e na educação estética dos alunos. 203

De fato, a própria autora observa que não há como estabelecer nítidas diferenças entre

um e outro, são termos que se referem a práticas flexíveis e intercambiáveis. Os cursos de

educação superior na Inglaterra em teatro/drama aplicado revelam sutilezas e diferentes

200
Ibidem, p.2.
201
Ibidem, p.2.
202
Ibidem, p.4. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
203
A discussão sobre o drama, proveniente da vertente anglo-saxã, vem sendo trazida para o Brasil pela
professora Beatriz Ângela Vieira Cabral. Cf. Drama como método de ensino. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.
v. 1.
84

interpretações para as nomenclaturas. A Central School of Speech and Drama, em Londres,

por exemplo, descreve a prática do teatro aplicado como “intervenção, comunicação,

desenvolvimento, autonomia e expressão no trabalho com indivíduos e comunidades

específicas”. 204 Para o departamento de drama da Universidade de Manchester o teatro

aplicado refere-se ao teatro que acontece em “espaços não tradicionais e que envolve

comunidades marginalizadas”. 205 Nicholson assume o hibridismo dos termos e comenta:

Se o drama aplicado e o teatro aplicado são gêneros híbridos, minha escolha


pelo drama aplicado como título deste livro, e a minha menção ao “teatro”
no subtítulo, não tem a intenção de causar uma grande controvérsia. Eu estou
tentando ser o mais inclusiva possível, oferecendo igual peso aos dois
termos. 206

A autora prossegue nos lembrando a etimologia das palavras drama e teatro. O drama 207

derivado do grego dran guarda o sentido do fazer, enquanto que teatro (theatron) significa

lugar de assistir. As duas palavras combinadas, segundo Nicholson, indicariam um processo

de ação e reflexão que residem nas práticas do drama/teatro aplicado. A autora justifica a

opção pelo termo drama aplicado no título de seu livro Applied Drama, the gift of theatre208

argumentando que a palavra teatro tem sido mais associada com a ideia de prédios

especializados, iluminação e figurinos, ao invés de com as mais diversas e menos ostentosas

práticas do drama/teatro aplicado.

204
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom and United States: Palgrave
Macmillan, 2005. p. 3.
205
Ibidem, p.3. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
206
Ibidem, p.4. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
207
A etimologia da palavra drama vem do verbo grego dran, agir, atuar e da palavra grega drama ação, ato,
feito. Cf. The New Shorter Oxford English Dicitionary. Embora em inglês a palavra drama possa também ser
associada a peças com conteúdo mais sério, em sua acepção mais ampla refere-se a todas as manifestações das
artes dramáticas, por exemplo: drama school (escola de artes dramáticas), drama festival (festival de drama).
Patrice Pavis esclarece que: “No Brasil, de um modo genérico, para um público não especializado, drama
significa o gênero oposto à comedia. E dentro de uma tradição americana adotada por nosso teatro, o drama é
imediatamente associado ao drama psicológico.” Ainda segundo Pavis, em francês o termo é usado apenas para
qualificar um gênero em particular: o drama burguês (sec. XVIII), e posteriormente o drama romântico e o
drama lírico (sec. XIX).Cf. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. GUINBURG J. e PEREIRA, Maria
Lúcia. São Paulo: Perspectiva, 1999.
208
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. (Drama Aplicado, uma dádiva do teatro). United
Kingdom and United States: Palgrave Macmillan, 2005.
85

Nicholson assume a dificuldade em categorizar os trabalhos neste campo como drama

aplicado ou teatro aplicado e atenta para o perigo de que um discurso único e homogêneo

possa reduzir a rica diversidade de teorias e práticas artísticas presentes neste universo. Para

ela, mais do que rotular ou estabelecer definições rigorosas, o que mais importa nestes termos

é o significado da palavra aplicado; é levantar questões sobre porque ou “em quem” o teatro

deve ser aplicado, por que razões, com quais intenções. A autora nos chama atenção também

para o fato de que os termos podem ser problemáticos se vistos como oposição ao

drama/teatro como forma artística; quer dizer, se o aplicado for encarado como algo

secundário, com um status inferior, que privilegia o aspecto instrumental e utilitário do teatro

em prejuízo do aspecto artístico e da qualidade estética dos trabalhos neste campo. Nicholson

é enfática ao afirmar que: “Qualquer que sejam os objetivos, a qualidade do trabalho do

drama aplicado precisa ser alta, ele não pode se basear em repertório artístico empobrecido ou

limitado”. 209 A assertiva nos provoca a pensar sobre uma perspectiva corrente tanto no meio

profissional do teatro, como também em alguns circuitos acadêmicos, de que as manifestações

do drama/teatro aplicado não incorporam todas as qualidades da arte teatral “pura”. Na

verdade, existe um fantasma que assombra as práticas teatrais que acontecem fora dos espaços

tradicionais e que as rotula com frequência como algo que não está à altura do verdadeiro

teatro, uma espécie de teatro “de segunda”. Nos últimos anos, muitas dessas experiências vêm

provando o contrário, que o teatro pode acontecer em sua plenitude em outros espaços,

assumindo diversas formas, atingindo e interagindo com diversas platéias, em diferentes

contextos.

Enquanto Helen Nicholson se divide entre o uso dos termos drama ou teatro aplicado,

Tim Prentki assume de vez o segundo como o mais eficiente para alinhavar as práticas

incluídas no campo. Para ele, o uso do teatro é mais adequado quando se trata de processos

209
Ibidem, p.6. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
86

que resultem em espetáculos a serem apresentados para uma audiência. Já o drama estaria

mais restrito a experiências que envolvem apenas os participantes, sem o resultado final de

uma performance com a presença de platéia. Todavia, o autor esclarece que não existe um

consenso sobre essas abordagens entre os estudiosos da área. 210 De acordo com Prentki teatro

aplicado significa:

Um amplo leque de práticas teatrais e processos criativos que levam os


participantes e as audiências além do teatro convencional e mainstream para
o mundo de um teatro que responde a pessoas comuns, suas histórias, suas
localidades e prioridades. O trabalho que acontece, quase sempre, em
espaços informais, em lugares não teatrais, numa variedade de ambientes
geográficos e sociais: escolas, rua, prisões, centros comunitários, conjuntos
habitacionais, ou qualquer outro lugar que possa ser específico ou relevante
aos interesses da comunidade. 211

Segundo o autor, o teatro aplicado funciona normalmente em contextos onde a obra

criada, e apresentada, tem uma comunicação e impacto específicos para os seus participantes

e platéias. Como observa Prentki, os ativistas do teatro aplicado são motivados pela crença

que esta arte, vivenciada pelos participantes e assistida pelas platéias, pode fazer alguma

diferença na maneira “como as pessoas interagem umas com as outras e com o mundo a sua

volta.” 212 Prentki afirma que: “Existe um desejo político declarado de usar os processos de

teatro a serviço de uma mudança social e comunitária.” 213 Em outros casos, mesmo que a

intenção seja menos evidente (mas potencialmente não menos política no que diz respeito ao

seu efeito) as ações do teatro aplicado estão mais interessadas em revelar as histórias ocultas

de uma comunidade.

A escolha por um termo mais inclusivo como este indica a tendência desses estudos em

se concentrar em conceitos que regem as práticas no campo, mais do que se dedicar às

210
Informação verbal.
211
PRENTKI,Tim and PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge,
2009. p.9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
212
Ibidem, p. 9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
213
Ibidem, P.9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
87

nuances entre elas. Márcia Pompeo Nogueira contribui com o debate acerca das

nomenclaturas para o teatro em ambientes comunitários aqui no Brasil. Em Teatro em

Comunidades: questões de terminologia, assim como Prentki, Nogueira assume que não

existe um consenso sobre “a melhor terminologia para se referir a práticas teatrais de cunho

educacional, mas que não são dirigidas para sala de aula.” 214 No mesmo caminho que os

demais autores, ela reconhece que, embora seja vasto o leque de termos e definições, tudo

indica que as práticas inseridas neste “tipo” de teatro possuam aspectos bastante comuns:

Trata-se de um teatro criado coletivamente, através da colaboração entre


artistas e comunidades específicas. Os processos criativos têm sua origem e
seu destino voltados para realidades vividas em comunidades de local ou de
interesse. De um modo geral, mesmo usando terminologias diferentes,
esboça-se um método baseado em histórias pessoais e locais, desenvolvidas
a partir de improvisação. Cada terminologia, a seu modo, guarda relações
com um processo educativo entendido ou não como transformador. Do meu
ponto de vista podemos, no Brasil, chamar essas práticas de Teatro em
Comunidades. 215

A opção de Nogueira pelo termo teatro em comunidades deve-se ao fato de que aqui no

Brasil pairem sobre os termos artes aplicadas, ou teatro aplicado, resquícios dos tempos da

ditadura, quando, segunda ela:

A terminologia fazia parte das diretrizes curriculares das licenciaturas curtas


em educação artística, propostas durante a ditadura militar. Os argumentos a
favor do uso de nova terminologia, nesse período, destacavam uma visão de
que aos professores de arte bastava uma formação superficial nas linguagens
artísticas já que se objetivava sua aplicação educacional.216

Mesmo assim, a autora admite que não há como ignorar o fato de atualmente o termo

esteja sendo reconhecido em todo o mundo. De acordo com Nogueira: “Trata-se de um termo

que vem ganhando destaque internacionalmente. A última Conferência Internacional de

Exeter, Inglaterra, por exemplo, que recebia o nome de Pesquisa em Drama e Teatro na

214
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro em comunidades, questoes de terminologia. ANAIS do V Congresso da
ABRACE, 2008. Disponível em: http://www.portalabrace.org/vcongresso/progpedagogia.html (arquivo pdf, p.1)
215
Ibidem, p. 4.
216
Ibidem, p.4.
88

Educação, ganhou agora o nome de Pesquisa em Drama e Teatro aplicado e Performance. 217

O fato é também observado por Philip Taylor. Segundo ele:

O termo ‘Teatro Aplicado’ tem sido usado cada vez mais nos últimos anos.
Intuições de educação superior ao redor do mundo, especialmente na
Austrália, Inglaterra e os Estados Unidos, vêm formulando cursos de
graduação e centros de pesquisa dedicados a investigar a questão: Como é
que o teatro pode ser utilizado em ambientes não teatrais para ajudar
construir comunidades mais fortes? (...) Teatro Aplicado se tornou uma
descrição particularmente útil por que inclui uma gama de trabalhos que os
projetos de teatro foram criando dentro e fora de ambientes educacionais,
principalmente em ambientes não teatrais por motivos diversos –
conscientização, propondo alternativas, tratando feridas ou barreiras
psicológicas, questionando discursos prevalentes, dando voz às opiniões
silenciadas e marginais.218

Por isso, para efeitos deste estudo, apesar de interpretações ou traumas que o termo

possa ter suscitado em nosso passado, no momento em que ele é escolhido como referência

internacional, parece-nos importante trazê-lo novamente à cena, agora com um novo

significado.

Para Kees Epskamp existem intersessões entre todas as modalidades teatrais que

povoam o universo do teatro aplicado, e que o que mais importa é identificar um “conceito

denominador comum” capaz de abraçar todas as manifestações na área, como, sugere ele, o de

teatro participativo. 219 De fato, o conceito comum a todas essas práticas, destacado

atualmente com unanimidade por esses estudos, é o que garante às pessoas, ou às

comunidades, a sua participação, colocando em primeiro plano o envolvimento delas no

processo criativo.

217
The Sixth International Exeter Conference. Researching Applied Drama, Theatre and Performance. School of
Arts, Languages and Literature. Department of Drama. University of Exeter, Inglaterra (2/04 a 5/04/2008).
Outro encontro internacional, a ser realizado este ano no Brasil, também utiliza o termo. A programação
acadêmica do próximo Congresso da Associação Internacional de Drama/Teatro e Educacão – IDEA, que será
realizado na cidade de Belém (Pará) em Julho de 2010, já inclui o termo Teatro Aplicado. Informação disponível
em: <http://www.idea2010.art.br>.
218
TAYLOR, Philip. Applied Theatre. Creating transformative encounters in the community. Portsmouth, NH:
Heinemann, 2003. p. xxi. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
219
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p.11. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
89

Esta noção é aplicável aos mais diferentes contextos, seja o da escola, o da prisão, o da

zona de guerra, da comunidade rural ou da favela. O termo teatro aplicado assume, portanto,

que diferentes categorias como teatro na educação, teatro na prisão ou teatro para o

desenvolvimento não são áreas necessariamente separadas, mas um grupo de práticas que se

interconectam, porque comungam os mesmos valores. É certo, porém, que antes de chegar a

esta perspectiva mais unificadora, vários autores contribuíram com debates em torno de cada

uma das categorias em questão. Mas de onde vem o teatro aplicado, qual a sua história? E

qual seria a origem dos princípios comuns às ações que nele se incluem?

As práticas incluídas no campo do teatro aplicado transitam por diferentes áreas do

conhecimento como o teatro, a educação, a sociologia, a política. Por isto, não seria possível

traçar a sua trajetória, sem realizar uma investigação multidisciplinar capaz de apontar os

principais movimentos dessas vertentes, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.

Quando separadas essas vertentes são como peças esparsas de um quebra-cabeça; mas juntas,

nos permitem compreender melhor o cenário e os fatores que contribuíram com o surgimento

do teatro aplicado.

3.2 - Transformações na cena ocidental e o percurso do teatro aplicado.

3.2.1 – O teatro e a alforria da sala convencional.

Os movimentos de transformação pelos quais passou o teatro ocidental durante o século

XX exerceram significante influência na origem e trajetória do teatro aplicado. O século

presenciou uma explosão de práticas artísticas encorajadas pelo ativismo político e o desejo

de redemocratizar o teatro. Já em 1903 na França, um dos primeiros debates que começou a

inflar o movimento pela democratização do teatro colocava em questão a estrutura da sala


90

italiana. De fato, como observa Jean Jacques Roubine, “a sala italiana representa o espelho de

uma hierarquia social.” 220 O autor acrescenta: “A qualidade desigual das localidades, quer se

trate da visibilidade, da acústica ou do conforto, não deriva de uma impossibilidade técnica:

ela reproduz uma ordem na qual não convém que o pequeno comerciante se beneficie das

mesmas facilidades que o príncipe”. 221 Romain Rolland sugere um caminho que será mais

tarde efetivamente adotado, o de tirar o teatro da sala italiana e instalá-lo em outros lugares:

“Uma única condição me parece necessária para o teatro novo: a de que tanto o palco, como a

sala possam abrir-se a multidões, conter um povo e as ações de um povo”. 222

Na época, os partidários da democratização do teatro opunham-se à desigualdade

perpetuada pela organização da sala. Roubine afirma que: “Os que sonham com uma nova

estética de palco contestam a imposição que a sala italiana impõe ao espectador: uma relação

com o espetáculo, fundamentalmente estática e basicamente passiva”. 223 Ainda de acordo com

o autor, o espectador havia se acostumado durante mais de três séculos à tradição ilusionista;

o teatro havia se tornado uma “caixinha de mágicas”.

É verdade, entretanto, como admite o próprio Roubine, que as experiências mais

inovadoras de tentativas de rompimento com a estrutura italiana, foram acontecimentos

excepcionais na rotina do teatro ocidental. Um dos raros exemplos é Jean Vilar que em 1947

venceu o desafio de abandonar o teatro italiano e alcançar uma “autêntica repercussão junto

ao público.” 224 Naquele ano, Vilar inaugura o festival de teatro de Avignon 225, como uma

tentativa de resolver vários problemas decorrentes das limitações inerentes a estrutura italiana.

Em primeiro lugar, os diferentes “status” sociais, já que a sala italiana condicionava uma

“prática social de identificação (cada um reconhecendo-se nos seus vizinhos de platéia ou de


220
ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 83.
221
Ibidem, p. 83.
222
Ibidem, p.84.
223
Ibidem, p. 87.
224
Ibidem, p. 94.
225
O Festival de Avignon aconteceu no pátio do Palácio de Papas, em Avignon. Vilar optou sempre por encostar
seus espetáculos contra o muro do palácio. Foi uma iniciativa de bastante importância na história do teatro
francês até 1951, quando Vilar foi convidado para dirigir o Teatro Nacional Popular.
91

balcão) e de exclusão (apenas a burguesia dispõe dos recursos materiais e culturais

necessários para frequentar o teatro.)”. 226

Além disso, os três séculos de centralização haviam concentrado a base da vida teatral

francesa dentro de alguns bairros parisienses. De acordo com Roubine: “Tratava-se não só de

um teatro da burguesia, mas da burguesia parisiense”. 227 O sonho de Vilar era criar “um teatro

que unisse o público, que abolisse provisoriamente as discriminações sociais”. 228 Embora a

iniciativa de Vilar tivesse mantido a relação frontal com a platéia, ele optou sempre por

manter os espetáculos contra o “muro de Avignon”, as proporções, a largura e profundidade

do palco, além da distância entre os espectadores e o proscênio transformava radicalmente a

convenção formal que estamos abordando.

De acordo com Roubine, o festival criou um contexto favorável a mudanças de

comportamento do público em relação ao espetáculo. Segundo ele, os eventos ali tiveram um

caráter de assembléia festiva, evocando o tempo em que o teatro refletia uma festa de

congregação popular, muito distante do ritual burguês parisiense. Não há dúvida que

historicamente a experiência de Avignon teve bastante importância na transformação dos

hábitos e práticas do teatro francês. No decorrer da década de 50 multiplicou-se o número de

festivais de verão, “em qualquer lugar onde o ambiente natural propiciasse o encontro, ao ar

livre, entre o público e o espetáculo”. 229

Assim, a explosão do teatro para além do espaço convencional durante o século XX,

além de significar um impulso para a descoberta de novas possibilidades formais e de

linguagens, representou também um movimento de disseminação desta arte e facilitou o seu

reencontro com uma população que, ao contrário da classe burguesa, não podia pagar os

ingressos do circuito oficial. Ele colocou em discussão a natureza do evento teatral, que desde

226
ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 94.
227
Ibidem, p 95.
228
Ibidem, p 96.
229
Ibidem, p. 97.
92

o final da Idade Média até a época moderna o havia transformado em uma transação

comercial.

Quatro séculos antes da explosão do espaço, o teatro havia sido confinado nos edifícios

teatrais; o espetáculo se transformara em “produto”, algo a ser consumido por aqueles que por

ele pudessem pagar. Em Londres, no século XVI, o aumento muito grande da população

possibilitou a apresentação de teatro em prédios construídos para esta função específica, além,

é claro, de uma audiência comercialmente viável. Não foi à toa, que o primeiro edifício teatral

londrino ganhou, em 1576, o nome de The Theatre (O Teatro), lugar onde o público primeiro

pagava, para depois assistir ao espetáculo. Até então, aquela cidade, e outras européias,

acolhiam como expressão popular e espontânea os Mistérios 230 medievais, que apoiados em

histórias bíblicas aconteciam diante das catedrais e agrupavam todas as classes da sociedade

em total participação e comunhão. Como explica Ricardo Brugger Cardoso:

As manifestações artísticas se integraram à realidade daquela comunidade,


em espaços que literalmente se confundiam: o comércio, as residências, o
céu o chão, todo aquele ambiente participava do espetáculo, transformando a
cidade, um espaço cotidiano, em espaço teatral. 231

Naquele momento, concretizava-se a ideia da cidade como teatro, já que, de acordo com

o autor, “os limites físicos entre a cena teatral e a cena cotidiana eram muito tênues.” Como

esclarece Cardoso, as encenações pertenciam, portanto, ao universo urbano, as representações

estavam livres para ocorrer em praças públicas, nas salas dos palácios, no interior de um

convento ou nos pátios das igrejas. Durante o século XVI, o espaço teatral foi deixando de

230
Esses eventos ofereciam para todas as classes da população o ensinamento da história sagrada, sob a forma da
linguagem teatral.
231
CARDOSO, Ricardo Brugger. Relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim
Werneck. (org) Espaço e Teatro, do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras FAPERJ,
2008. p.81. No artigo Brugger analisa a ideia da cidade como palco. No texto o autor reconhece que, ao mesmo
tempo em que houve um expressivo desenvolvimento técnico no edifício teatral, observa-se também que houve
certo interesse pela realização de espetáculos cênicos em espaços não especializados, e, portanto, a noção de que
as ações do espetáculo não dependem necessariamente de uma estrutura arquitetônica.
93

ocupar o espaço comunitário das cidades, das praças públicas e da feira popular, para residir

nos salões ducais e depois nos edifícios construídos para este fim específico.

Ben Johnson, dramaturgo inglês contemporâneo de Shakespeare, em uma de suas peças,

A Feira do dia de São Bartolomeu, 232 critica a perda do aspecto de festa popular do teatro em

função de sua formalização. Johnson, apesar de ele mesmo ter feito parte daquele teatro, foi

capaz de enxergar as perdas e contradições daquela nova realidade, que confinava o teatro

dentro dos teatros e o submetia a critérios de rentabilidade e ao gosto das classes que por ele

podiam pagar.

Assim, o que observamos é que os processos de modernização do teatro e evolução do

espetáculo a partir do início do século XX, que refletiu mudanças em relação a vários

aspectos como a rejeição à cena naturalista, o surgimento da figura do encenador, os avanços

nos recursos de iluminação, as discussões sobre a relação entre o texto dramático e a

encenação, trouxe à tona também a flexibilização em relação ao uso do espaço. Em 1922,

Adolphe Appia e Gordon Craig previam possibilidades mais variadas para o futuro do teatro.

Craig escreveu nas margens de um catálogo:

Uma necessidade me surgiu: o teatro deve ser um espaço vazio com apenas
um telhado, com um piso e paredes, no interior desse espaço é preciso erguer
para cada novo tipo de peça, um novo tipo de palco e de auditório
temporário. Descobriremos assim novos teatros, por que cada tipo de drama
exige um tipo especial de lugar cênico.233

232
A Feira do Dia de São Bartolomeu (1614) é uma comédia de Ben Jonhson, a enorme vitalidade da feira e não
o enredo é o foco de atenção da obra. Nesta barulhenta e animada peça, puritanos e prostitutas, rústicos e
batedores de carteiras, vendedores, trapaceiros, galãs e caridosos se esbarram e por vezes se enfrentam. Entre os
muitos incidentes, um juiz reformador, porém desajeitado se encrenca e acaba preso; um tolo jovem perde sua
noiva pela própria tolice; e um monge evangélico perde um debate com um fantoche sobre a imoralidade do
teatro. A exuberância da peça dá a ela lugar entre as melhores de Jonhson. Cf. BENÈT, William Rose. The
Reader´s Encyclopedia. New York: Thomas Y. Crowell Company, 1965.
233
Estas anotações foram feitas por Craig na margem de um catálogo da Exposição Internacional de Teatro de
Amsterdã, da qual ele participou. Cf. BABLET, Denis. Lê lieu théâtral dans la societé moderne. Paris: Éditions
du CNRS, 1988. p. 23. (Collection Arts do Spetacle. Spectacles, histoire, société) apud BRUGGER, Ricardo
Cardoso. Relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: Espaço e Teatro, do edifício teatral à cidade como
palco. Org. Evelyn Furquim Werneck Lima, 7 Letras FAPERJ: Rio de Janeiro, 2008.p.85.
94

Também Max Reinhardt 234 defendia mais flexibilidade. Nas décadas de 1920 e 1930,

Reinhardt realizou experimentações inovadoras levando suas montagens teatrais para praças

públicas, igrejas, bosques e ruas. A partir da segunda metade do século XX, muitos diretores

começam a explorar as possibilidades de espaços não convencionais. O teatro pôde ser revisto

nas ruas, e avenidas, praças, parques, fábricas, em diversos tipos de edifícios. Ou seja, ele

voltou a interagir com o espaço público comunitário, resgatando a ideia do teatro como um

ato de cidadania compartilhado.

Pelo mundo afora o desejo de transformações e o cansaço diante de práticas conhecidas

provocaram o florescimento de experiências que explodiram de vez a cena italiana

influenciadas também pelas teses artaudianas. Roubine destaca: “As tentativas do Living

Theatre nos Estados Unidos e, a seguir, na Europa, as buscas de Peter Brook na Inglaterra e

de Jerzy Grotowski na Polônia constituem, sem dúvida os empreendimentos mais rigorosos e

bem-sucedidos sob esse aspecto”. 235

A partir dessas mudanças o teatro ganhou alforria, estava livre para acontecer em

qualquer lugar. Durante os anos 60 e 70 espalham-se pelas cidades européias uma série de

festivais de teatro, música, dança e circo. As metamorfoses do espaço teatral provocam

também mudanças na condição do espectador, que agora, diante das novas possibilidades é

instigado também a adotar uma atitude menos passiva e mais ativa em relação ao espetáculo.

A ruptura com o espaço convencional do teatro colocou em xeque a perspectiva que via o

fazer teatral como uma tarefa exclusiva dos atores.

Multiplicaram-se as experiências baseadas em criação coletiva e improvisações, a cena

reinventou o uso da palavra, passou a criar dramaturgia por meio de processos de

234
Reinhardt viveu o momento em que o teatro moderno desenvolvia novas ideias. O elemento chave de seu
trabalho era o expressionismo, ele recorreu a inovações como o palco giratório ou desmembrado em vários
níveis, projeção de slides, rampas laterais ou plataformas colocadas no meio da platéia.
235
ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 100.
Roubine esclarece entretanto que as propostas de Artaud, por terem permanecido muito tempo no campo da
teoria, só viriam a ter uma efetiva influência sobre a evolução do espetáculo anos mais tarde. Artaud faleceu em
1948.
95

experimentação cênica, colaborativos, participativos. O fazer teatral passou a ser visto por

alguns artistas como uma tarefa que poderia se estender e alcançar também os espectadores,

transformando-os em atores. Assim, além de livre para acontecer em qualquer lugar, o teatro

estava livre também para ser feito por qualquer pessoa, fatos que nos indicam as pistas do

desenvolvimento do teatro aplicado.

3.2.2 - A relação entre teatro e política na trilha do teatro aplicado.

O rompimento com a estrutura arquitetônica foi também amplamente aceita pelos

artistas do chamado teatro político. A rua passou ser vista como símbolo de liberdade política,

enquanto que o edifício teatral como um símbolo do poder dominante. O período presenciou

uma explosão de práticas artísticas criadas para encorajar a intervenção política através da

criação de performances e o desenvolvimento de processos de trabalho que questionaram as

hierarquias sociais no teatro comercial.

O teatro sentiu revigorada a sua relação com a política; a associação (teatro-política) já

apontava no início do século um fortalecimento, evidente em movimentos relacionados com a

Revolução soviética. A partir de 1917 o teatro engajado soviético, através de grupos

especialmente treinados para o agitprop (propaganda de agitação), assumiu a organização de

eventos nas capitais e em todo o país. Patrocinado pelo Partido Central, o seu objetivo era

mobilização das massas em prol dos ideais comunistas. 236

Na mesma época despontaram como importantes encenadores Meyerhold, Vakhtangov e

Taírov, os três procediam do Teatro de Arte de Moscou, de Konstantin Stanislavski.

Meyerhold havia se separado do mestre Stanislavski para fundar a Sociedade do Drama Novo

236
De acordo com Margot Berthold: “Uma das mais imponentes realizações de massa do período foi A Tomada
do Palácio de Inverno, encenado em Petrogrado, em 7 de novembro de 1920, como uma celebração dramática e
teatral dos eventos históricos da Revolução em seu terceiro aniversario. Houve salvas de canhão, fanfarras e
holofotes. Exibia-se a estrela soviética grande e vermelha e toda a assembléia cantava a Internacional.” Cf.
História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, p. 493.
96

(1902) e trabalhar em oposição à estética naturalista. O encenador começara a desenvolver um

estilo próprio de vanguarda, por meio das técnicas para atores, a biomecânica, e de recursos

como projeções de filmes, inovadoras maquinarias e estruturas cenográficas. Nos anos que se

seguiram a Revolução de 1917, Meyerhold, que a princípio apoiou o regime, montou peças

que falavam também sobre problemas de interesse imediato para o espectador soviético como

as relações da URSS com o Ocidente capitalista e a luta revolucionária na China. 237

O ideal de uma sociedade sem classes atraiu o interesse do proletariado, artistas e

intelectuais também fora da Rússia. Em 1919, Erwin Piscator, em seu manifesto endereçado

aos trabalhadores de Berlim escreveu: “A Rússia é o rochedo que propagará a onda da


238
revolução mundial.” Piscator conclamou e idealizou o teatro proletário, 239 cuja finalidade

era usar o teatro como meio de propaganda política em salas e locais de reunião de

trabalhadores, nos bairros de periferia. Inspirado pelas idéias de Marx, o teatro de Piscator

servia como um instrumento da luta de classes, dirigindo-se à inteligência dos espectadores

por meio de uma argumentação política, social e econômica. Sua proposta pedagógica

influenciou Bertolt Brecht.

De fato, como afirma Gerd Bornhein, Piscator foi o primeiro mestre importante que

Brecht teve no aprendizado da teoria marxista, aprendizado significativo “já porque ele se

fazia vinculado sempre à prática do teatro – queria-se um marxismo posto em cena”. 240 A

ideia do uso do teatro em serviço da mudança social é a essência da teoria e prática de Bertolt

237
Na montagem de Terra Revolta, de Sergei Tretyakov , Meyerhold fez uma reprodução da Revolução no
palco. Em determinada cena os soldados vermelhos tomavam de assalto o palco, o auditório e o foyer, sacudiam
as bandeiras vermelhas e entoavam a Internacional. Embora tivesse apoiado e recebido o apoio do regime
comunista soviético, em 1930, a arte e o posicionamento de Meyerhold passaram a ser considerados
incompatíveis pelo governo. Seu teatro foi fechado em 1938, o encenador preso e executado em um campo de
concentração (1940).
238
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo:Perspectiva, 2000. p. 499.
239
BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 122. De acordo com Gerd
Bornhein, o ponto de partida do pensamento de Piscator encontra-se em expressões como: teatro proletário (foi
a primeira denominação utilizada por ele), teatro popular, teatro de tendência e teatro político. A primeira
expressão foi logo esquecida, observa Bornhein, mas as outras duas se tornaram frequentes na linguagem de
Piscator.
240
Ibidem, p.131.
97

Brecht. Brecht adaptou o pensamento de Marx nas Teses sobre Feuerbath, “a filosofia apenas

interpretou o mundo, a meta é modificá-lo” e aplicou isso à prática do teatro. 241 A influência

do marxismo na obra de Brecht é admitida pelo próprio dramaturgo em 1927: “Quando li O

Capital, de Marx, compreendi as minhas peças.” 242 Tim Prentki destaca a influência do teatro

de Brecht, sobretudo das peças didáticas, no desenvolvimento do teatro aplicado. O autor

afirma que:

Brecht deve ser considerado como o “pai” fundador do teatro aplicado, e


existem evidencias de que o seu projeto de as Peças Didáticas, que aboliam
a distinção entre atores e espectadores, teria acelerado o desenvolvimento
deste campo, não fosse a vitória dos nazistas em 1933, que interrompeu as
suas atividades. 243

Para Brecht, o público não deveria entrar no teatro para esquecer a vida ou esquecer o

mundo “exterior”. As peças didáticas são exercícios de dialética, nos quais o texto é

experimentado cenicamente com objetivo de proporcionar aos participantes um envolvimento

ativo e imediato no dilema das personagens. Como explicou o próprio Brecht: “A peça

didática ensina quando nela se atua, não quando se é espectador.” 244

Para Gerd Bornhein, o projeto das peças didáticas de Brecht abandonava a ideia do

teatro como “diversão perdulária”, e optava pela “seriedade do pedagógico, com o exercício

ascético da racionalidade”. 245 O fato de as peças didáticas terem sido consideradas por muitos

especialistas como obras pertencentes a uma fase “menos madura” do teatro brechtiano, à
241
As Teses sobre Feuerbach (em alemão: "Thesen über Feuerbach") são onze curtas notas filosóficas escritas
por Karl Marx (provavelmente) em 1845. Eles explicitam a crítica de Marx sobre seu colega filósofo jovem
hegeliano, Ludwig Feuerbach. As “Teses” identificam a ação política como a única forma verdadeira de
filosofia, concluindo que: “Filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que
importa é transformá-lo”.
242
Como sabemos, Marx definiu a doutrina marxista em O Capital (1867) baseando-se em uma explicação
materialista dos fatos econômicos e históricos. O filósofo e economista alemão considerava que o sistema
capitalista, na medida em que concentrava a riqueza em poucas mãos, não poderia resistir à ação dos
trabalhadores agrupados. Ele acreditava que tais trabalhadores, se organizados, poderiam tornar-se senhores,
numa sociedade coletivista. Marx considerava que a revolução que tornaria os trabalhadores donos dos meios de
produção dependia de uma ação organizada e coletiva. Cf. BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio
de Janeiro: Graal, 1992. p. 145.
243
PRENTKI, Tim and PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge,
2009. p.12. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
244
BRECHT, Bertolt. Para um teoria da peça didática. Apud KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de
aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. p.16.
245
BORNHEIM, Gerd. Brecht - A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 182.
98

margem ou esteticamente inferiores à sua dramaturgia posterior, é amplamente debatida e

contestada por Ingrid Koudela em Brecht: um jogo de aprendizagem. 246 De acordo com

Koudela, as peças didáticas contêm, sobretudo, a preocupação genuína de Brecht como

educador. Um texto escrito pelo dramaturgo em 1930, Teoria da Pedagogia, reflete o seu

objetivo de estabelecer “um procedimento que reunisse teatro, política e aprendizagem.” 247

No texto, Brecht deixa explícita a proposta de “educar os jovens através do jogo teatral” o que

significa “fazer com que sejam ao mesmo tempo atuantes e observadores”. A radicalidade das

peças didáticas, de abolir a separação entre atuação e observação, transformando espectadores

de seres passivos a ativos, contribui com a perspectiva que vê a vivência teatral, o ato artístico

coletivo, como uma experiência capaz de gerar atitude crítica e comportamento político.

A Decisão e a Exceção e a Regra, ambas de 1930, encerram o ciclo das peças didáticas.

Mas, o fato é que a partir delas todo o teatro de Brecht, até a escrita do Pequeno Organon

para o Teatro (1948), considerado o coroamento de todas as idéias teóricas do autor, assume

uma dimensão pedagógica, empenhada em “ensinar o homem a ver o mundo em que vive”.

Nos textos do Organon, Brecht concilia os dois tópicos que em sua opinião constituem o

teatro: o prazer e o conhecimento. A relação entre estas duas noções é um dos pilares da obra

do dramaturgo e teórico, se a princípio ele privilegiou o conhecimento em detrimento do

prazer, no Pequeno Organon ele revê essa posição. Nesta obra, ele afirma que:

Embora o teatro não deva ser incomodado com uma série de matérias de
conhecimento que não lhe confiram o caráter recreativo, ele ainda é livre
para se recrear com ensino e investigação. Constrói suas representações
sociais de forma válida e capaz de influenciar a sociedade, com uma grande
diversão. 248

246
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. p 1- 2.
247
Ibidem. p.15.
248
BRECHT, Bertolt. Pequeno Organon para o teatro. In: Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967. p. 192.
99

De acordo com Brecht, a síntese entre as noções estaria em fazer da “crítica, isto é, do

grande método da produtividade, um prazer”. 249 Não se trata, portanto, afirma o professor

Gerd Bornhein, “do divertimento pelo divertimento, mas sim de uma forma bem determinada

de divertimento: o supérfluo prazer que sentia Galileu quando espiava os astros”. 250 O

Organon esclarece também o que seria para Brecht a razão de ser do teatro, e que estaria fora

do teatro. O importante está em tornar o espectador “produtivo, que vá além da simples visão

passiva”. 251 Para Brecht, o teatro deveria estar empenhado em provocar na platéia o impulso

de mudança da sociedade, um movimento que, segundo ele, deveria ultrapassar as salas de

teatro e atingir a realidade do espectador. A proposta de Brecht consistia em tirar o

espectador de uma atitude confortável e passiva, instigando-o a adotar uma perspectiva mais

crítica diante da cena apresentada. Como explica Thelma Lopes Carlos:

O dramaturgo pretendeu “despertar” a platéia, proporcionando situações


cênicas diante das quais o público se assombrasse com aquilo que, até então,
lhe parecia natural, pois deste modo, acreditava ele, o teatro evitaria uma
visão determinista e conformada do mundo. O teatro épico, ao se utilizar do
distanciamento, objetiva representar o mundo como passível de
transformação.252

Para Brecht, o teatro deveria provocar no espectador uma atitude de investigativa diante

do mundo, incitando-o a estender “tal atitude ao mundo social”. 253 Thelma Lopes destaca a

posição de Brecht a atitude deste novo espectador:

Diante das representações do mundo dos homens levadas ao palco, ele adota
a mesma atitude que diante da natureza, como homem do nosso século. O
teatro também o acolhe como transformador, aquele que é capaz de intervir

249
BRECHT, Pequeno Organon (VII,22-3) apud BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de
Janeiro: Graal, 1992. p. 371.
250
BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 371.
251
BRECHT, Pequeno Organon (VII,57) apud BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de
Janeiro: Graal, 1992. p. 373.
252
CARLOS, Thelma Lopes. O Palco de Brecht e o Céu de Galileu: Tudo se Move. Teatro e Ciência nas três
Versões Dramáticas de "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht. Dissertação de Mestrado- Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil. p.58.
253
Ibidem, p. 58.
100

nos processos da natureza e nos da sociedade, que não encara o mundo


apenas como é, mas que se faz senhor dele.254

Para Tim Prentki, a grande contribuição de Bertolt Brecht à poética do teatro aplicado

foi a de desenvolver uma dramaturgia capaz de demonstrar “a necessidade e a inevitabilidade

de mudança social”. 255 Prentki afirma que:

O efeito do distanciamento, elemento chave do seu teatro épico, é em


essência, um meio pelo qual se pode apontar as contradições capazes de
minar as versões oficiais e dominantes da história da política e da cultura.
(...) Esta prática, contra hegemônica, pretende proporcionar às platéias uma
autonomia intelectual, que a torna capaz de praticar mudanças fora do
teatro.256

O pensamento do dramaturgo alemão exerceu grande influência no movimento do teatro

político que se manifestou em diversas partes do mundo durante os anos 60 e 70 e que

representou um impulso no percurso do teatro aplicado. Durante aqueles anos, grupos teatrais

inovadores 257, inspirados também pelo movimento da contracultura, desprezaram o

mainstream para levar o teatro a diversos lugares, proporcionando um encontro desta arte com

populações pouco acostumadas à sua presença.

3.2.3 – O impulso dos anos 60 e 70.

Em 1968, Peter Brook escreve O Teatro e seu espaço, obra que reflete o momento pelo

qual passava o teatro ocidental. O texto de Brook representa a voz dos artistas cansados das

obras “mortas” do teatro comercial. No livro, o diretor analisa quatro tipos de teatro: o Morto,

254
BRECHT, Bertolt. O Teatro Dialético. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 138. Apud CARLOS,
Thelma Lopes. O Palco de Brecht e o Céu de Galileu: Tudo se Move. Teatro e Ciência nas três Versões
Dramáticas de "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht. Dissertação de Mestrado- Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil. P.58-59.
255
PRENTKI, Tim, PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. p.
20-21.Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
256
Ibidem, p.21. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
257
Entre eles podemos destacar: nos Estados Unidos o Bread and Puppet, Welfare State, Squat Theatre e Living
Theatre; Teatro-Laboratório de Grotowski, na Polônia; Armand Gatti e Teatro de Soleil, na França, entre outros.
101

o Sagrado, o Rústico e o Imediato. O primeiro, segundo ele, estaria “diretamente ligado ao tão

desprezado e atacado teatro comercial” 258, já o Rústico, que aqui mais nos interessa, estaria

associado às experiências distantes das salas tradicionais e mais próximas das platéias

populares. Essas experiências, segundo Brook, seriam capazes de provocar verdadeiras

“explosões de vida”, tal o seu poder de comunicação com o público:

É sempre o Teatro Popular que vem salvar a situação. Através dos tempos
ele tem tomado muitas formas e todas com um só traço em comum – uma
aspereza. Sal, suor, barulho, cheiro: o teatro que não está dentro de um teatro
(...) Teatro em quartos de fundo, quartos de sótão, em celeiros; espetáculos
de uma noite só, o lençol rasgado pendurado na entrada, o biombo gasto para
esconder as rápidas mudanças de roupa – e assim: um único termo genérico,
teatro, compreende tudo isto além dos lustres cintilantes dos teatros ricos. Já
tive muitas discussões abortivas com arquitetos empenhados na construção
de novos teatros, tentando, em vão, encontrar palavras para comunicar a
minha convicção de que não é uma questão de construções boas ou más: um
lugar lindo talvez nunca provoque explosões de vida, enquanto que um salão
qualquer pode ser um lugar muito vivo. 259

Mais adiante o autor completa:

Os anos passam enquanto as experiências mais vitais acontecem fora dos


lugares oficialmente construídos e usados para este fim. (...) O Teatro
Rústico é muito próximo do povo: pode ser um espetáculo de fantoche, ou
como é nos vilarejos gregos até o dia de hoje – um espetáculo de sombras
animadas. (...) O Teatro legítimo tem sido considerado o importante,
enquanto que o Teatro Rústico tem sido considerado menos sério. Mas a
verdade é que toda tentativa de revitalizar ou renovar o teatro tem-se voltado
para as fontes populares. 260

A perspectiva de vivenciar experiências teatrais mais próximas da descrição de Brook,

vivas e isentas dos critérios de qualidade impostos pelo teatro burguês, somada à fermentação

política, própria dos movimentos sociais da época, motivaram inúmeros artistas pelo mundo.

A trajetória da companhia 7:84, do Reino Unido, é um bom exemplo disso; ela exerceu

grande influência nas práticas do teatro comunitário e político por lá. Esta companhia,

258
BROOK. Peter. O Teatro e seu Espaço. Petrópolis: Vozes Ltda., 1970. p.2.
259
Ibidem, p. 65.
260
Ibidem, p.67-69.
102

fundada pelo escritor, diretor e produtor, John McGrath, recebeu este nome curioso depois

que uma estatística nos anos 70 revelou que 7% da população acumulavam 84% das riquezas

do Reino Unido.

O objetivo do 7:84 era levar o teatro político popular aos lugares rejeitados pelas

companhias oficiais nacionais e regionais. A Escócia foi o seu campo de atuação principal e

também assunto preferido de MacGrath em sua dramaturgia. Ele escreveu 60 peças de teatro,

mas a sua obra mais famosa é The Cheviot, The Stag And The Black, Black Oil (O Carneiro, o

veado e o óleo negro) (1973), baseada numa festa popular, contando a história da exploração

do país desde as remoções nos Highlands pelos proprietários aristocratas, até o boom do

petróleo na região. A produção viajou muito e também recebeu uma adaptação bem sucedida

pela BBC TV. O 7:84 atuou na Inglaterra e na Escócia. Mas a companhia inglesa encerrou

suas atividades em 1984, quando o Conselho Nacional de Arte retirou o patrocínio do grupo

por motivos políticos. Em 1988, McGrath se retirou do grupo escocês em protesto contra

mudanças recomendadas pelo Conselho Nacional de Artes da Escócia.

O 7:84 foi um dos grupos que integrou o movimento que ficou conhecido no Reino

Unido como popular political theatre. Desde os anos 60, muitos artistas começaram a sentir a

necessidade de criar companhias fora do teatro comercial. Entre 1968 e 1969, grupos à

margem floresceram e circuitos alternativos de tournée emergiram. Como explica McGrath, a

partir daquele momento companhias teatrais descobriram que não precisavam de um teatro

(edifício) para fazer teatro:

Nós queríamos viajar com espetáculos que tivessem uma conexão forte,
imediata e atual, que levantasse uma perspectiva socialista dos eventos
contemporâneos, que entretece as pessoas da working class (classe operária)
e tivesse apelo a esta classe, e aos aliados da classe operária, como
estudantes e intelectuais, que tinham um pé na classe média e outro nos
movimentos liberais. Nós queríamos apresentar essas peças no intuito de
agitação, de intervenção nas comunidades. 261

261
MCGRATH, John. Naked Thoughts that roam about. London: NHB, 2002. p.48. Trecho livremente traduzido
por mim, com revisão de David Herman.
103

O 7:84 desejava atrair uma platéia não acostumada a ir ao teatro, e para conseguir isto,

McGrath concluiu primeiramente, que a solução seria deixar o ambiente tradicional do teatro

e ressituá-lo em territórios onde aquelas platéias já frequentavam, como os clubes dos

operários, os sindicatos e os salões comunitários. Além disso, os trabalhos deveriam usar

como fonte e temas as histórias locais, lutas, atitudes e comportamento das comunidades. Os

espetáculos precisavam estabelecer um diálogo com as platéias, por isso o 7:84 optou pela

utilização de elementos como show de variedades, música ao vivo, comédia, sátira e

caricatura. 262 Na opinião de Baz Kershaw, era fundamental para John McGrath identificar as

formas populares locais e os interesses da comunidade, sua realidade socioeconômica e

cultural:

Os atores tinham que deixar claro que os interesses da comunidade eram


compartilhados e valorizados, qualquer que fosse a linguagem cênica
utilizada na apresentação. Portanto, a ideia de identidade de McGrath é
diferente de empatia, indica uma consonância ideológica entre o intérprete e
a audiência, a companhia e a comunidade. A base de tal solidariedade,
sugere McGrath, pode ser proporcionada pelas formas teatrais populares. 263

De acordo com Kershaw, o diretor acreditava que o “localismo” é crucial para o impacto

da obra na comunidade porque “a melhor resposta da platéia operária provem de personagens

e acontecimentos com sabor local.” 264 O processo de criação das peças incluía o diálogo com

os habitantes das comunidades e a criação coletiva entre os membros da companhia.

Comentando o processo de The Cheviot, McGrath diz:

Obviamente, como autor, eu tinha uma ideia clara e exata de como eu queria
o espetáculo. Eu sabia para quem ele era, e eu sabia o que queria dizer. Mas

262
Em A Good Night Out (Um bom programa a noite) este assunto, a comunicação plena com a audiência, é
particularmente desenvolvido por McGrath. No livro, o autor descreve as características da audiência da working
class e aponta aspectos, que segundo ele, seriam necessários para o engajamento dessas platéias populares.
Segundo ele, os elementos da comédia, música, emoção, efeitos, imediatismo, localismo (assuntos próprios da
localidade) seriam importantes para o estabelecimento de uma comunicação mais imediata com este público. Em
The Cheviot, por exemplo, cantos, músicas e danças do folclore Escocês foram incorporados ao espetáculo,
inclusive letras cantadas em “gaélico,” língua original da Escócia, que ao longo dos anos fora substituída pelo
inglês. A good night out. Popular theatre: audience, class and form. London and New York: Methuen, 1981.
263
KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural intervention. London: Routledge,
1992. p.153. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
264
Ibidem, p. 154. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
104

eu queria também que todos da companhia estivessem envolvidos no


processo de criação. (...) Então nós todos sentávamos no chão como blocos
de papel em branco. Eu apenas esboçava os temas principais da peça em
blocos. 265

Mais adiante o autor comenta sobre a interação entre o espetáculo e a platéia de uma
comunidade em Glasgow, na Escócia:

Aquela noite em Kinlochbervie, a 250 milhas de Glasgow, naquela área


considerada atrasada, as pessoas nos mostraram como o teatro deve ser. E
aquela foi a lição que aprendemos muitas vezes depois, em cinquenta ou 60
halls comunitários pelo norte. (…) Nós sabíamos que nós teríamos muito
trabalho pela frente, mas nós sentimos naquele momento que aprendemos
não apenas como fazer o teatro, mas também, e pela primeira vez numa
experiência viva, por que fazê-lo. 266

O movimento do popular political theatre (teatro popular e político) no Reino Unido

envolveu artistas que decidiram cruzar a fronteira do mainstream e ir à busca de outra platéia,

como a das comunidades remotas do Highlands da Escócia ou das vilas de operários do País

de Gales. Baz Kershaw considera as experiências de McGrath, o 7:84 e, especialmente, a

montagem de The Cheviot, uma contribuição determinante para o movimento que explodiu

no Reino Unido:

The Cheviot...McGrath e 7:84 criaram um modelo flexível que foi adaptado


e modificado por um amplo espectro de companhias de teatro político e
comunitário durante os anos 70 e também nos anos 80. Espalhados pelo
país, grupos se estabeleceram para explorar novas interfaces entre teatro e
comunidade. 267

Em meados dos anos 70, o movimento havia proliferado no Reino Unido e originado

dezenas de grupos com perfis variados. De acordo com Baz Kershaw: “No final da década,

aproximadamente 70 companhias atuavam num circuito ‘alternativo’, que se opunha ao teatro

265
MCGRATH, John. Naked Thoughts that roam about. London: NHB, 2002. p. 62. Trecho livremente
traduzido por mim, com revisão de David Herman.
266
Ibidem, P.67. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
267
KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural intervention. London:
Routledge, 1992. p.166. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
105

do centro/mainstream).” 268 Alguns deles foram denominados community theatre companies

(companhias de teatro comunitário), cuja meta era tornar o teatro acessível a comunidades

afastadas. Segundo o autor, algumas companhias assumiram como objetivo estabelecer

vínculos mais estreitos com as comunidades, ficar cada vez mais “perto” delas “para que os

projetos fossem criados e determinados pela comunidade, como parte do processo de seu

fortalecimento.” 269 Elas ficaram conhecidas como community-based companies (companhias

com base na comunidade).

Kershaw explica que todas essas companhias definiam seu público alvo a partir da

localização geográfica, que podia variar entre áreas urbanas de baixa renda, vilas rurais,

cidades industriais e até condados. Algumas preferiam visitar diferentes espaços dentro de

uma mesma comunidade, como escolas, centros comunitários, clubes de jovens, hospitais,

pubs, asilos, ruas e creches; outras preferiam alvos mais específicos, optando apenas por

escolas e centros comunitários. O tipo de contato com as platéias podia variar, desde a

estética mais direta, sem a participação do público, até processos complexos de engajamento

dos espectadores; a programação também era diversa, podendo partir de peças criadas pela

comunidade, encomendadas, de textos pré-existentes ou até de espetáculos apresentados

segundo um modelo mais convencional de repertório, levando o teatro às áreas rurais ou

suburbanas, consideradas desertos culturais.

Assim como no movimento britânico, em outras partes do mundo, o teatro abriu

definitivamente a porta de saída da sala convencional, visitou outros espaços, aconteceu em

praça pública, reencontrou a platéia das comunidades populares, empenhou-se em sua

capacidade de provocar mudanças sociais e políticas. As transformações sofridas pela cena

ocidental ao logo de todo o século influenciaram a trajetória do teatro aplicado, mas foi

durante aquelas duas décadas que se fortaleceram as condições para o seu surgimento. Aqui

268
Ibidem. p. 139. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
269
Ibidem, p. 141. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
106

em nosso país não foi diferente. O período de grande ebulição na vida política e também

teatral que antecedeu o golpe militar de 1964 preparou o terreno para as sementes do teatro

aplicado no Brasil.

3.3 - Pistas do teatro aplicado no Brasil.

No início da década de 60 o Brasil entrava em um momento da história marcado pela

mobilização em torno de grandes temas de interesse para o país como a conquista da posse de

João Goulart, a euforia nacionalista da luta pelas reformas de base, principalmente pela

reforma agrária, o aumento do número de conflitos entre latifundiários e posseiros, a extensão

do voto ao analfabeto, o fortalecimento da organização das classes trabalhadoras com a

criação do Comando Geral dos Trabalhadores – CGT. No campo da cultura, como observa

Silvana Garcia em Teatro da Militância 270:

O sentimento nacionalista inflava a luta pela valorização do artista nacional


e exigia, nas telas e nos palcos, a presença do homem brasileiro. Assim,
enquanto o cinema era povoado por favelados, marginais, lumpens e
cangaceiros, o operário subia ao palco em Eles não usam black-tie,
confirmando o Teatro de Arena paulista como posto avançado de defesa da
dramaturgia nacional engajada.271

Como observou Yan Michalski, a evolução assumidamente nacionalista do teatro “ia de

par com a sua cada vez mais radical politização.” 272 No Nordeste, movimentos de cultura

popular passaram a utilizar técnicas teatrais em campanhas de “conscientização e

catequização política das populações interioranas.” 273 Em Recife, o governo de Miguel Arraes

promove, como afirma Silvana Garcia, “uma experiência pedagógica integrada de base

270
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 99.
271
Ibidem, p. 100.
272
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.
15.
273
Ibidem, p. 15.
107

renovadora” 274, o Movimento de Cultura Popular – MCP. Apoiado no método do educador

Paulo Freire e voltado para um programa de educação popular, o MCP ampliou a sua atuação

para a esfera da produção cultural popular “promovendo festivais de cinema, teatro e música,

mantendo Centros e Praças de Cultura.” 275

Na área teatral, o MCP cria os Clubes de Teatro, organizados nos Centros Educativos e

sindicatos, os Clubes eram grupos de teatro formados por operários que se apresentavam em

bairros do Recife e também no interior do Estado. 276 Diversos grupos se reuniram em torno

do Teatro de Cultura Popular do MCP, que tinha como frentes de ação: promover espetáculos

junto às organizações estudantis, sindicatos e associações de bairros e a preparação de

esquetes para as conferências de Paulo Freire nos Centros e Praças de Cultura; a formação de

núcleos teatrais nos Centros Educativos e Operários e a organização de espetáculos na zona

da mata (norte e sul).

De acordo com Silvana Garcia, o Movimento de Cultura Popular exerceu naquele

período grande influência no Nordeste, mas atraiu atenção também no sul do país. O encontro

dos artistas do Teatro de Arena paulista com os nordestinos teria, segundo a autora, inspirado

em 1961, no Rio de Janeiro, a criação do Centro Popular de Cultura – CPC da União

Nacional dos Estudantes - UNE. 277 O grupo, composto em sua maioria por estudantes

universitários, artistas e intelectuais, atuou entre 1961 e 1964 e tinha como objetivo a

conscientização de massa. O discurso proferido pelos jovens, quase todos filiados ao Partido

274
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 100.
275
Ibidem, p. 100.
276
Que é o MCP? Arte em Revista. São Paulo 2(3):71,mar.1980. apud GARCIA, Silvana. Teatro da Militância.
A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 100
277
O CPC foi fundado em 1961, vinculado a União Nacional dos Estudantes (UNE), órgão combativo do
movimento estudantil brasileiro desde 1937. O grupo adquiriu um estatuto jurídico em 8 de marco de 1962,
onde consta no segundo artigo as suas finalidades: “promover atividades culturais nos setores teatrais,
cinematográficos, musicais, das artes plásticas e outras e elevar o nível de conscientização das massas
populares.” De acordo com Fernando Peixoto é impossível resumir as atividades do CPC da UNE: conferências,
debates, seminários, espetáculos, musicais, teatro em comícios, teatro na rua, em caminhões, universidades e
sindicatos. “movimento essencialmente multiplicador, passou pelo CPC uma geração de artistas e intelectuais.”
Cf. PEIXOTO, Fernando. O melhor teatro do CPC da UNE. São Paulo: Global, 1989. p.14.
108

Comunista, pretendia levar ao povo idéias revolucionárias. Como afirma Garcia, foi com o

CPC que o teatro de agitprop ganhou força de permanência e alcance no Brasil. A história

deste grupo militante, entretanto, começa um pouco antes, de dentro do Teatro de Arena, em

São Paulo; um percurso que convém rememorar.

Fundado em 1955 por ex-alunos da Escola de Arte Dramática de São Paulo – EAD 278, o

Teatro de Arena, em sua primeira fase, visava montar espetáculos com o mesmo apuro do

Teatro Brasileiro de Comédia – TBC 279, adotando, porém, uma forma de produção mais

econômica e abolindo o ilusionismo. No ano seguinte, como esclarece o Dicionário do

Teatro Brasileiro 280, o grupo inicia uma colaboração com o Teatro Paulista do Estudante, um

grupo amador simpatizante do Partido Comunista Brasileiro. Dessa fusão, e da presença de

Augusto Boal, como diretor, vai resultar um novo programa artístico para a companhia.

O palco em arena passa a ser compreendido como um instrumento para acolher o teatro

protagonizado pelas classes populares, igualmente a disposição circular dos espectadores, por

eliminar um ponto de vista privilegiado, torna-se a metáfora da democratização do espetáculo.

Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Francisco de Assis escrevem peças

inspiradas por esta ideologia. Em 1958, estreia Eles não usam black-tie, peça ainda moldada

sob o estilo realista, mas entremeada por uma canção que prenuncia os recursos do teatro
278
Escola de Arte Dramática é uma unidade complementar da USP, ligada à Escola de Comunicações e Artes
(ECA). Popularmente conhecida como EAD, foi fundada em 1948 sob a coordenação de Alfredo Mesquita e
passou, ao longo de mais de meio século de existência, por incontáveis reestruturações e reformulações. Numa
destas surgiu o Departamento de Artes Cênicas da ECA. A EAD é uma escola pública (gratuita) e uma das mais
importantes escolas de formação de atores do Brasil, sendo que muitos de seus ex-alunos são figuras
nacionalmente conhecidas, no teatro, cinema e televisão.
279
Teatro Brasileiro de Comédia –TBC foi fundado em 1948, pelo industrial italiano Franco Zampari,em São
Paulo. Durante as várias fases por que passou e durante os anos em que existiu como companhia estável, de 1948
a 1964, o palco do TBC chegou a ter melhor elenco do país, em que se distinguiam: Cacilda Becker, Tônia
Carrero, Fernanda Montenegro, Cleyde Yáconis, Nydia Lícia, Nathalia Timberg, Tereza Rachel, Paulo Autran,
Sérgio Cardoso, Jardel Filho, Walmor Chagas, Ítalo Rossi e muitos outros. A encenação estava confiada a
europeus e, em certos momentos, até quatro deles se alternavam nas montagens: Adolfo Celi, Luciano Salce,
Ruggero Jacobbi, Ziembinski, Flaminio Bollini Cerri, Maurice Vaneau, Alberto D'Aversa e Gianni
Ratto..Acusado de certo conservadorismo, tanto na encenação quanto na escolha de seus textos, além de certo
privilégio a uma cultura oficial que mantinha laços com a burguesia dominante, o TBC entrou em sua última
fase, alterando suas diretrizes. Passou a confiar as encenações aos brasileiros Flávio Rangel e Antunes Filho,
além do belga Maurice Vaneau, e o repertório privilegiou os dramaturgos nacionais Dias Gomes, Jorge Andrade
e Gianfrancesco Guarnieri.
280
Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. J. Guinsburg, João Roberto Faria, Mariângela
Alves de Lima (orgs.) – São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006.
109

épico. Em 1960, com Revolução da América do Sul, sob a direção de Boal, o Arena inova a

cena apresentando um espetáculo que incorpora procedimentos épicos extraídos da teoria

brechtiana.

De acordo com o Dicionário do Teatro Brasileiro, a partir de 1960 “a lembrança

aristofanesca, o circo, o teatro de revista, os autos medievais, tornam-se fontes para

construção de textos e espetáculos que pretendem minimizar a função empática da cena, e em

contrapartida acentuar a função instrutiva.” 281 Após o golpe militar em 1964, os vinte anos de

ditadura que se seguiram, testemunharam a multiplicação do formato em arena em trabalhos

de grupos por todo o país, que produziram peças em palco de formato circular, muitas vezes

em espaços adaptados, como afirma o Dicionário do Teatro Brasileiro:

Emulando ao mesmo tempo o formato e o compromisso de resistência


política dos pioneiros paulistas. Quando o Teatro de Arena é dissolvido pela
repressão da ditadura, a associação entre a morfologia peculiar e a atuação
política permanece nas equipes que, fora do circuito profissional, continuam
a fazer uma arte de resistência. Em paralelo a esse efeito multiplicador sobre
grupos de resistência a ditadura, alguns projetos arquitetônicos passam a
considerar o espaço em Arena como uma alternativa estética às convenções
do palco italiano e, nesse sentido, um alternativa espacial ideologicamente
“neutra.” 282

De fato, o Arena representou um momento de significante mudança no rumo do Teatro

Brasileiro. A sua principal contribuição foi inaugurar um movimento de nacionalização do

nosso teatro. Esta nacionalização consistia em não mais tentar montar peças estrangeiras de

acordo com as normas do gosto europeu, mas revelar através da dramaturgia e das

personagens, as temáticas nacionais, que dissessem respeito ao nosso país.

O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes - CPC surge a partir do

questionamento de alguns integrantes do Arena sobre o alcance e o impacto de seus

espetáculos. Vianninha, um dos idealizadores do grupo, afirmou: “O Arena era o porta-voz

281
Ibidem, p.38.
282
Ibidem, p. 38.
110

das massas populares num teatro de cento 50 lugares. O Arena não atingia o público popular

e, o que é talvez mais importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para seu

trabalho.” 283 Para Vianninha existia uma contradição entre o público que o Arena atingia,

classe média paulistana e intelectuais, e a dramaturgia do grupo, destinada ao conjunto do

povo brasileiro.

O CPC é criado, portanto, com o intuito de difundir as peças nacionalistas em maior

escala. Assim, em 1960, quando se encerra a temporada carioca do Arena, Vianninha e Chico

de Assis decidem ficar na cidade para montar um espetáculo, o tema da peça seria a “mais-

valia”. 284 O CPC criou e produziu dezenas de peças, como explica Julian Boal “algumas feitas

em poucas horas, outras ensaiadas durante semanas. Foram apresentadas em sindicatos,

assembléias estudantis, em plena rua, em qualquer lugar onde fosse possível reunir

espectadores.” 285

O grupo teve uma produção bastante fértil e diversificada. Em dois anos e meio de vida,

além de cursos e do trabalho com o teatro, produziram um longa metragem, Cinco Vezes

favela, gravaram os discos O Povo Canta e Cantigas da Eleição, produziram a coleção Violão

de Rua para a série Cadernos do Povo Brasileiro, editados pela Civilização Brasileira, além

de outras publicações. 286 Mas, como observa Silvana Garcia:

O aspecto mais relevante do CPC foi a multiplicação da experiência que


tinha no coletivo da UNE o seu foco de irradiação. Dali se produziram as
peças, as músicas e os cartazes que eram distribuídos para os outros Centros,
que rapidamente foram se multiplicando pela Guanabara, pelo Rio de Janeiro
e pelos outros Estados. 287

283
BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 19.
284
A primeira peça do CPC é intitulada Mais-Valia vai acabar, Seu Edgar. Foi apresentada durante seis meses
na Faculdade de Arquitetura, Urca. A peça contava com músicas de Carlos Lyra e com a utilização de técnicas
inspiradas em Piscator.
285
BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p.14.
286
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 104.
287
Ibidem, p. 104.
111

Com suas incursões, o CPC acreditava na possibilidade de realizar uma revolução,

levando à população idéias políticas capazes transformar a sua situação de opressão.

Entretanto, como assumiu o próprio Vianninha, o discurso do grupo não chegou com o

impacto esperado à platéia popular. Isto porque, o seu modo de intervenção talvez tivesse

carecido de uma atitude mais dialógica em relação às comunidades e menos depositária.288

Em 1974, Vianninha constata:

Você me perguntou se eu vi o resultado no trabalho do CPC. E eu lhe digo


que quem aproveitou melhor o trabalho fomos nós, integrantes do CPC.
Descobrimos que na horizontalização da cultura há necessidade, em primeiro
lugar, de um trabalho de continuidade, e essa continuidade para nós não
existia. Eu acho que realizei espetáculos teatrais em todas as favelas do Rio
de Janeiro, mas devo ter realizado um ou dois em cada uma. Isso significa
uma total descontinuidade e não tinha nenhum significado. Nós
trabalhávamos em sindicatos, mas as condições de trabalho eram utópicas.
Era paixão pela atmosfera, a paixão pelo encontro do intelectual com o povo
e realmente, para nós, era incandescente, mas ao mesmo tempo muito
romântico, e que informou muito mais a nós do que à massa trabalhadora.289

A trajetória do CPC foi interrompida e destruída pelo golpe militar em 1964. 290 Talvez

tivesse sido possível para o grupo ter adotado práticas que buscassem uma maior interação

com as platéias ou mesmo um trabalho mais contínuo nas comunidades que buscaram atingir.

Em As Imagens de um Teatro Popular, Julian Boal, aponta qual teria sido o maior equívoco

do CPC: uma ação verticalista, que pretendia ensinar ao povo, ou levar a ele a “verdade capaz
291
de libertá-lo.” Sobre a atuação do grupo, o autor afirma que:

288
Os termos dialógica e depositária, de autoria de Paulo Freire, serão mais adiante esclarecidos.
289
O. VIANNA FILHO, "A Última entrevista", Revista de Teatro, Rio, SBAT, jul-ago 1974, transcrito do
Jornal do Brasil de 17.07.1974. In: PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2001. p.100.
290
De acordo com Yan Michalski, em março de 64, quando as tropas militares desceram de Minas para o Rio “o
CPC se achava na reta final das obras através das quais o precário auditório da UNE estava sendo transformado
numa moderna sala de espetáculos. (...) No 1o. de abril, o prédio da UNE ardia em chamas, que destruiu
completamente o que seria o teatro. O incêndio não se limitava a transformar o auditório num monte de
escombros: nas suas chamas morria também o CPC, imediatamente colocado como a UNE, fora da lei. E morria
todo o projeto de um teatro engajado ao qual muitos dos melhores artistas do país se vinham dedicando nos
últimos anos.” Cf. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. p. 16.
291
BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 123
112

A sua ação verticalista, sua linguagem, e a própria posição que adota em


relação ao Povo, faz com que considere que esse Povo deva, na concepção
desse grupo, recorrer a esse mesmo grupo intelectual, que está acima das
divisões das classes. No que diz respeito ao pensamento e à reflexão, o único
papel do Povo é absorver e, em seguida, travar as lutas políticas que lhes
foram recomendadas, tendo com armas as idéias elaboradas pelos outros. 292

Julian Boal sugere como antídoto contra esta ação “de cima para baixo” o método que

poucos anos depois começaria a ser desenvolvido por seu pai, Augusto Boal, e que resultaria

na publicação de o Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas (1975). Para Julian Boal,

no Teatro do Oprimido a “ação verticalista” é abolida “visto que somente as pessoas que

sofrem igualmente da mesma opressão sentida pela plateia e pelos personagens serão aceitas

para entrar em cena e para apresentar suas alternativas de libertação.” 293

Diferente do CPC, que encerrou suas atividades em 64, o Teatro de Arena, sob a

liderança de Boal, conseguiu sobreviver à pressão do regime autoritário até 1971. Naquele

ano, além da montagem de A resistível ascensão de Arturo Ui, de Bertolt Brecht, o diretor

inicia sua pesquisa em torno do teatro que ele nomeou de Teatro Jornal, cuja proposta era

mostrar “que qualquer pessoa, mesmo que não seja artista, pode fazer do teatro um meio de

comunicação”, constituindo-se assim um primeiro esboço do que viria a ser o Teatro do

Oprimido. Infelizmente, no mesmo ano, desfez-se o Arena 294; Boal foi preso e exilado. Já

fora do Brasil escreveu o Teatro do Oprimido, obra fortemente influenciada pela Pedagogia

do Oprimido (1970), de Paulo Freire. Como veremos mais adiante, o pensamento desses dois

brasileiros representa significativa contribuição para o desenvolvimento do teatro aplicado.

A poética do oprimido de Boal defende o teatro como “carnaval e festa”, “o povo

cantando ao ar livre”; enfrenta “as classes dominantes que se apropriaram do teatro e

construíram muros divisórios, separando atores de espectadores: gente que faz e gente que

292
Ibidem, p. 124.
293
Ibidem, p.125.
294
A última montagem do grupo foi Arturo Ui, com a fraca repercussão do espetáculo, os problemas com a
censura e o agravamento da crise econômica do grupo, bem como a prisão de Boal, o Arena entra em colapso.
113

observa” 295; clama pela “libertação do povo oprimido”, a derrubada dos muros dos edifícios

teatrais e a participação ativa dos espectadores na cena. A trajetória de Boal, construída,

principalmente, a partir do Arena e do CPC desemboca nas conclusões do Teatro do

Oprimido e outras poéticas políticas, obra que lhe daria o reconhecimento internacional,

influenciando por todo o mundo práticas direcionadas a contextos comunitários, em espaços

alternativos, envolvendo grupos de não atores; uma tendência que, apesar do golpe militar em

1964, também se confirmou aqui no Brasil.

Mesmo que durante os anos que se sucederam ao golpe, os meios intelectuais e artísticos

tivessem sofrido com a repressão e o exílio de nomes importantes, no teatro, como nos lembra

Silvana Garcia: “O sentimento de resistência brotou como em todas as esferas da atividade

social onde se manteve um laivo de consciência.” 296 Alguns teatros se tornaram redutos de

resistência como foram os casos do Teatro São Pedro e Ruth Escobar, em São Paulo, e Teatro

Ipanema no Rio. Como explica Yan Michalski, apesar de rotulado pelo regime como um

perigoso inimigo público, perseguido e reprimido “com requintes de perversidade e tolice, o

teatro constituiu-se numa importante frente de resistência ao arbítrio e desempenhou

destacado papel na sociedade de seu tempo.” 297 Em Teatro sob pressão, Michalski destaca a

realização de espetáculos símbolos do período de efervescência vivida pelo teatro brasileiro

nos palcos profissionais. 298 Além disso, dezenas de grupos e palcos alternativos proliferaram.

No capítulo Teatro Popular de Periferia dos anos 70, Silvana Garcia destaca que:

À margem dos grupos alternativos e elencos profissionais vão surgir, de


modo mais ou menos espontâneo, dezenas de grupos que se deslocam para a

295
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a.
edição. P. 135.
296
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intencao do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 122.
297
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 7.
298
De acordo com o crítico, no circuito profissional tiveram destaque, entre outros, as montagens: Os Pequenos
Burgueses, de Gorki (Teatro Oficina, SP,1964), A Ópera dos três vinténs, de Brecht (Teatro Ruth Escobar,
SP,1964), Arena conta Zumbi, de Guarnieri, Boal e Edu Lobo, direção de Paulo José (RJ,1965); Morte e Vida
Severina, de João Cabral de Mello Neto (TUCA paulista, 1965); Dois perdidos numa noite suja, de Plínio
Marcos (SP e RJ, 1966).
114

periferia das capitais à procura de um público mais popular, totalmente


apartado do acesso aos bens culturais produzidos no centro. 299

Como esclarece a autora, esses grupos guardavam entre si muitas semelhanças, o que

permite indicar um perfil básico para todos eles. Há a mesma intenção de não atuar no

mercado profissional do centro, o que se deve por um lado à insatisfação com o alcance do

“teatrão” junto às camadas mais populares, de outro o fato de discordarem com teatro

produzido no centro afinado com os setores das classes média e alta. De acordo com Silvana

Garcia:

Há um consenso no sentido de ir buscar o público no seu habitat, ou seja,


nos bairros periféricos mais afastados, e de produzir um teatro que atraia e
corresponda a realidade dessas populações. Esse teatro, portanto, deve ser
popular, no sentido de uma linguagem acessível, e também à medida que
propõe conteúdos que digam respeito à vida desse homem da periferia. 300

Silvana Garcia aponta os aspectos que aproximavam os grupos integrantes do

movimento do teatro popular de periferia dos anos 70. Segundo ela, a “tônica” do

movimento era: a produção coletiva; a atuação fora do âmbito profissional; o desejo de levar o

teatro ao público da periferia; a produção de um teatro popular e o compromisso de

solidariedade com o espectador e sua realidade. Outra característica levantada pela autora diz

respeito à composição heterogênea dos grupos. Como observa Garcia, na formação inicial

predominava geralmente os integrantes da classe média, com exceção de grupos que já

nasciam na periferia, todavia, durante a itinerância, no contato com os bairros, os grupos

podiam agregar novos membros, como “colaboradores periféricos.”Além disso,

eventualmente, a itinerância podia também promover nos bairros a formação de novos grupos.

299
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 122.
300
Ibidem, p.124.
115

A autora aponta como marco significativo na história da maioria dessas iniciativas a

decisão de deixar o aspecto “mambembe” para encontrar uma sede, um espaço físico

permanente para sua atuação. Afirma a autora:

O projeto de sede traz, em geral, atrelada a ideia de uma casa de cultura que
o grupo pretende colocar à disposição de uma comunidade. A intenção é a de
suprir a carência de espaços culturais e de lazer da periferia, ao mesmo
tempo em que se pretende estimular os artistas locais.301

Garcia escolhe para objeto de análise a trajetória de sete grupos paulistas: Núcleo

Expressão de Osasco; Teatro-Circo Alegria dos Pobres; Teatro União e Olho Vivo; Núcleo

Independente e Truques, Traquejos e Teatro; Galo de Briga e Forja. Não cabe neste estudo

aprofundar as conclusões da autora sobre a trajetória dos grupos, mas destacar informações

que nos ajudem a encontrar pistas do percurso do teatro aplicado no Brasil.

Como observa Garcia, no eixo central dos projetos desses grupos está uma dupla

proposta a “intenção de ser popular e a motivação política”. De acordo com a autora: “Na sua

formulação mais pretensiosa, o grupo se propõe a interferir na consciência dessas populações

periféricas, utilizando o teatro como instrumento de uma ação politizadora.” 302 O modo

coletivo de produção é também destacado por Garcia como um aspecto comum ao trabalho

dos grupos. Em relação à leitura e à influência de teóricos do teatro no trabalho dos grupos,

entrevistas realizadas com seus integrantes, revelam que os parâmetros mais frequentes são

Brecht e Boal. A autora aponta também como característica comum à atuação dos grupos, a

realização de debates após os espetáculos.

A proposta de aproximação com as platéias, a partir da promoção desses fóruns de

discussão após os espetáculos, revela o traço marcante da atuação dos grupos, o desejo de

provocar e estabelecer um diálogo coletivo com as comunidades receptoras de seus

espetáculos. Como observa Silvana Garcia, alguns dos grupos entendiam que o debate é

301
Ibidem, p. 125.
302
Ibidem, p. 144.
116

também um momento chave para a realização de uma reflexão coletiva sobre a realidade

sociopolítica; muitas vezes esses fóruns eram direcionados à discussão de temas locais,

próprios das comunidades envolvidas. Mas, apesar das semelhanças, os grupos estudados pela

autora guardavam também diferenças. Segundo ela, os “pontos nevrálgicos”, assuntos que

geravam discordância entre eles constavam: a “instrumentalização do trabalho artístico”, a

“ditadura da mensagem”, “a predominância do objetivo político sobre a pesquisa estética.” 303

Apesar das divergências e das nuances presentes neste conjunto de grupos, é certo que eles

surgiram como uma resposta em uníssono àquele determinado contexto político e que, como

confirma a autora:

Tinham a pretensão de agenciadores de uma organização popular (...) um


projeto cultural mais amplo, que alcança a esfera não só da circulação de
bens culturais pela periferia, mas também da produção que essa população
pode desenvolver. 304

Assim, durante os anos 60 e 70, encontramos no Brasil movimentos semelhantes aos

que aconteceram em outras partes do mundo. O teatro também descobriu a porta de saída do

edifício convencional, buscou espaços mais populares e o ativismo político, desejou a

socialização do fazer teatral. O teatro popular de periferia dos anos 70, como um exemplo

desse movimento, herdou, por vias diversas e indiretas, aspectos do agitprop “cepetista”,

incorporou matrizes populares como o circo, o folguedo, as danças, o cordel, a revista,

estudou Brecht e Boal, encenou no meio do espaço público. Ao longo dessas duas décadas a

relação entre artistas de teatro e o universo das comunidades sofreu nítidas transformações.

O encontro entre os dois “mundos” desafiou a construção de relações menos verticais e

mais horizontais. A ação verticalista do CPC e as práticas inspiradas pela poética do oprimido

303
Ibidem, p.189.
304
Ibidem, p. 202.
117

de Boal, que elaborou um teatro em que “o espectador liberado se lança na ação” 305, ilustram

bem o percurso de modelos adotados pela relação entre teatro e comunidade. Como explica

Márcia Pompeo Nogueira:

Pode-se dizer que esses modelos partem de práticas decididas de cima para
baixo, para práticas cujo objetivo e métodos são decididos pelas pessoas que
participam dos projetos teatrais. Entretanto este percurso não é único, pois
todas essas etapas podem ser encontradas ainda hoje.306

A relação entre teatro e comunidade pode assumir, portanto, diferentes feições, desde as

menos participativas, como as “peças de mensagem” até as mais dialógicas – quando o teatro,

como observa Nogueira, passa a “incluir as próprias pessoas da comunidade no processo de

criação teatral.” 307 O movimento de irradiação do teatro e a sede política pelo reencontro com

a plateia popular, colaboraram também aqui no Brasil com a ampliação da diversidade de

contextos nos quais os processos de criação cênica podem acontecer e o acesso às populações

à realização teatral; indícios da trajetória do teatro aplicado.

Entre os artistas, o movimento levantou uma questão chave, que é, ainda hoje, objeto de

debate no campo do teatro aplicado; ela é bem observada por Silvana Garcia: “O trabalho

artístico-cultural das populações periféricas passa, por sua vez, pela organização própria da

comunidade e nada impede que os artistas contribuam para esta mobilização, mas sem

alimentar a pretensão de se tornarem os seus promotores.” 308 É neste ponto que ganham força

no percurso e teoria do teatro aplicado as contribuições de Paulo Freire e Augusto Boal.

305
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a.
edição. P. 139.
306
NOGUEIRA. Márcia Pompeo. Teatro e Comunidade. In: Cartografias do ensino do teatro. FLORENTINO,
Adilson e TELLES, Narciso. (orgs.) Uberlândia: EDUFU,2009. p. 177- 183.
307
Ibidem, p 177.
308
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p.208.
118

3.4 - Paulo Freire e Augusto Boal - alicerces teóricos do teatro aplicado.

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se


libertam em comunhão.” 309
Paulo Freire

“Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro


mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em
cena no palco e na vida.” 310
Augusto Boal

A pedagogia Freireana tem uma influência decisiva na trajetória do teatro aplicado. De

fato, como veremos a seguir, são muito frequentes as citações à obra de Paulo Freire nos

estudos internacionais neste campo de pesquisa. Em meados dos anos 70, a Pedagogia do

Oprimido começa a ser traduzida para línguas estrangeiras, o pensamento de Freire a ser

difundido e adotado em outros países. No Reino Unido, por exemplo, algumas vertentes da

educação já procuravam uma pedagogia que estivesse mais voltada para o conceito do aluno

“no centro do processo”, e encontraram apoio na obra de Freire, que defendia um tipo de

educação progressista e contestava os métodos tradicionais de ensino.

Em Pedagogia do Oprimido, e em publicações posteriores, Freire explora as

possibilidades da aprendizagem através de um processo que depende da criação de um

diálogo verdadeiro entre aluno e professor, no qual as duas partes assumem ambos os papéis -

educador e educando. Freire critica as abordagens baseadas na imposição de conteúdos,

estabelecidas fora das comunidades, o que ele chamou de educação “bancária”. Segundo ele,

a educação bancária baseia-se na ideia de que apenas um lado possui o conhecimento, e que o

outro é passivo, mero recipiente de depósitos; dele não se espera nenhuma contribuição.

Freire critica aqueles que, “de fora”, consideram os membros das comunidades apenas como

309
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 52
310
Boal faleceu em 2 de maio de 2009. Um mês antes, foi nomeado embaixador mundial do teatro pela
UNESCO, em Paris. A citação é parte do trecho final de sua mensagem, que reafirmava a sua crença no poder
transformador do teatro.
119

objetos; para ele, o processo educativo deve estar baseado num diálogo entre sujeitos, o

fundamento de uma educação libertadora. De acordo com o educador:

A razão de ser da educação libertadora está no seu impulso inicial


conciliador. Daí que tal forma de educação implique a superação da
contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos,
simultaneamente, educadores e educandos. Na concepção bancária que
estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir,
de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica, nem pode verificar-se
esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo
dimensão da cultura do silêncio a “educação” “bancária” mantém e estimula
a contradição. 311

A educação como prática da liberdade de Paulo Freire está baseada na confiança e crença

nos saberes dos educandos e comunidades. Para ele, a alfabetização de adultos significa

garantir a estes o direito de voz na sociedade. Em sua proposta, o ato de conhecimento tem

como pressuposto fundamental a cultura do educando; não para cristalizá-la, mas como “ponto

de partida” para que ele avance na leitura do mundo, compreendendo-se como sujeito da

história. É por meio da relação dialógica que se consolida a educação como prática da

liberdade.

Na pedagogia Freireana, os educadores não são conduzidos a “negar” seus saberes ou

intenções pedagógicas, mas convidados a construir em colaboração com os educandos o

processo pedagógico. Isto é, estabelecer uma prática de intercâmbio, de troca entre os saberes

entre um lado e o outro. De acordo com Freire, para que esta dialogicidade exista é necessário

que:

Creiamos nos homens oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar


certo também. Se esta crença nos falha abandonou a idéia, ou não a temos,
do diálogo, da reflexão, da comunicação e caímos nos slogans, nos
comunicados, nos depósitos, no dirigismo. Esta é a ameaça contida nas
inautênticas adesões à causa da libertação dos homens. 312

311
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, ed. 2002. p.59.
312
Ibidem, p.53.
120

Esta noção foi incorporada aos processos do teatro aplicado. Embora o método de

Freire, reconhecido em todo o mundo como referência de uma concepção democrática e

progressista de prática educativa, tenha sido concebido como recurso para a alfabetização,

seus conceitos, aliados àqueles desenvolvidos posteriormente por Augusto Boal, começaram a

ser utilizados também em experiências de teatro. Enquanto na Educação, Paulo Freire

questionou a situação passiva do educando diante da prática da educação bancária e propôs

uma pedagogia na qual o aluno assumisse o seu papel de sujeito no processo ensino-

aprendizagem; no Teatro, Augusto Boal subverteu a situação da plateia, propondo um teatro

no qual o espectador se transforma de “ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator,

em transformador da ação dramática.” 313 Boal afirma que:

O que a poética do oprimido propõe é a própria ação! O espectador não


delega poderes ao personagem para que atue nem para que pense em seu
lugar: ao contrário, ele mesmo assume um papel protagônico, transforma a
ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate
projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, preparando-se para
a ação real.314

Os estudos na área do teatro aplicado reconhecem a contribuição dos dois brasileiros.

Kees Epskamp, por exemplo, defende a obra dos brasileiros como verdadeiros alicerces para a

teoria da área. Afirma ele:

Dois pioneiros devem ser vistos como em primeiro plano neste contexto
devido ao empenho deles em desenvolver e sistematizar alguns princípios
didáticos durante os anos 60 e 70: Paulo Freire, o brasileiro educador e
filósofo e o diretor teatral Augusto Boal. Durante os anos 1960 Freire
experimentou no Brasil um inovador método participativo no contexto da
alfabetização de adultos. Durante a década seguinte aquelas idéias
inspiraram o seu conterrâneo Boal a aplicá-las ao drama, estimulando a ativa
participação dos membros da platéia na cena, contribuindo com um processo
de conscientização e solução de problemas. 315

313
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a.
edição. p 138.
314
Ibidem, p. 138.
315
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p.9
Em sua primeira experiência, em 1963, Freire ensinou 300 adultos a ler e escrever em 45 dias. Esse método foi
adotado em Pernambuco, um estado produtor de cana-de-açúcar. O trabalho de Freire com os pobres,
internacionalmente aclamado, teve início no final da década de 40 e continuou de forma ininterrupta até 1964.
121

Assim como Epskamp, outros autores também destacam a contribuição de Freire e Boal

na trajetória do teatro aplicado. O fato é comprovado também por Márcia Pompeo Nogueira

que reconhece a forte presença dos brasileiros na bibliografia dedicada à área:

Apesar da diversidade de entendimento do significado do trabalho voltado


para comunidades e da terminologia usada para designá-lo, existe uma
unanimidade no reconhecimento da influência de Paulo Freire e Augusto
Boal. 316

Helen Nicholson afirma que: “Existem duas vertentes da pedagogia que influenciaram o

teatro aplicado: uma deriva do educador marxista brasileiro Paulo Freire e a outra de modelos

europeus de educação progressista.” 317 Sobre Boal a autora acrescenta: “Freire esteve

preocupado com a alfabetização de adultos, e seu trabalho teve profunda influência no de

Augusto Boal, que se tornou uma figura poderosa e uma forte presença no drama

aplicado.” 318 Para Tim Prentki, Boal transportou a essência da teoria Freireana para a arena do

teatro, tendo se transformado “num guru do teatro aplicado, reconhecido por todo o

mundo.” 319

Em 1964, com o golpe militar que derrubou o governo do Presidente João Goulart, eleito democraticamente,
Freire foi acusado de pregar o comunismo, sendo detido. A obra de Freire fica mais conhecida pelo mundo
devido ao seu exílio, em 1964. Os 16 anos de exílio foram períodos tumultuados e produtivos: uma estadia de
cinco anos no Chile como consultor da UNESCO no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma
Agrária; uma nomeação, em 1969, para trabalhar no Centro para Estudos de Desenvolvimento e Mudança Social
da Universidade de Harvard; uma mudança para Genebra, na Suíça, em 1970, para trabalhar como consultor do
Escritório de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a
Tanzânia e Guiné Bissau, que se concentravam na reafricanização de seus países; o desenvolvimento de
programas de alfabetização em algumas ex-colônias portuguesas pós-revolucionárias como Angola e
Moçambique; ajuda ao governo do Peru e da Nicarágua em suas campanhas de alfabetização.
316
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. A opção pelo Teatro em Comunidades: alternativas de pesquisa. In:
Urdimento – Programa de Pós-Graduação em Teatro., Revista de Estudos em Artes Cênicas. Universidade do
Estado de Santa Catarina. Vol 1,no.10 (dez 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART. p. 137.
317
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom and United States: Palgrave
Macmillan, 2005. p.9.
318
Ibidem, p. 9.
319
Tim Prentki, assim como Helen Nicholson, reconhecem além das influências de Freire e Boal na teoria e
prática do teatro aplicado, também a de outras vertentes como das metodologias baseadas no aprendizado ativo,
desenvolvidas pelo Teatro na Educação (TIE) na Inglaterra durante os anos 60, e compartilhadas por outros
países. Não caberia neste trabalho um aprofundamento sobre este assunto, entretanto, podemos apontar alguns
autores que são referência dentro deste movimento: Dorothy Heathcote, Gavin Bolton, Jonathan Neelands e John
O'Toole.
122

O contexto do teatro aplicado se remodelou ao longo de seus anos de evolução. O que

aconteceu de muito significativo foi a incorporação em seus processos dos conceitos de

participação e autonomia das pessoas e comunidades envolvidas. As ações de “cima para

baixo”, aos poucos começaram a ceder algum espaço para aquelas mais “de baixo para cima”.

No palco, as comunidades ganharam mais vez; se antes apareciam como personagens da cena,

representadas por agentes “de fora”, com o tempo elas passam a atuar nele, como atores. Em

muitos lugares do mundo espalharam-se iniciativas que descobriram o teatro como uma

linguagem capaz de fazer emergir a voz de comunidades.

A rigor, a presença de Freire e Boal na história do teatro aplicado é marcante por ter

colaborado para a mudança de abordagem daqueles que são “de fora” em relação às

comunidades alvo de suas atuações. Tanto nas ações pedagógicas, como nas ações teatrais, o

que os dois pensadores defendem é uma atitude política que inclui as noções de diálogo, troca

de conhecimentos, autonomia, participação, reflexão e ação, colocando as pessoas e

comunidades no centro do processo. Este tipo de abordagem, dialógica, orienta a prática e a

teoria do teatro aplicado; constitui o seu alicerce.

3.5 – As noções de diálogo e participação: desdobramentos e desafios na trajetória


do teatro aplicado.

As idéias apresentadas ao mundo por Paulo Freire e Augusto Boal serviram como uma

espécie de antídoto contra os projetos “de cima para baixo.” É curioso observar este aspecto

da evolução do teatro aplicado a partir, por exemplo, de uma de suas subáreas, a do Theatre

for Development – TFD (Teatro para o Desenvolvimento). A história do TFD revela com

nitidez a maneira gradativa com que as noções de diálogo e participação foram incorporadas

em suas práticas.
123

O Teatro para o Desenvolvimento tornou-se conhecido nos últimos quarenta anos e

principalmente após a independência dos países africanos. De acordo Tim Prentki, o TFD

começou a ser aplicado durante os anos 70 como “estratégia para educação de adultos na

África subSaarana, no subcontinente indiano e na América Latina, principalmente em


320
projetos direcionados às áreas da agricultura, infraestrutura e saúde”.

Como explica Márcia Pompeo Nogueira, o TFD teria passado por diferentes fases,

desde o teatro de propaganda de mensagens até um modelo de teatro mais participativo. No

artigo Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento 321, a autora propõe um debate acerca da

evolução do TFD entre a sua etapa mais “de cima para baixo” até a mais “de baixo para

cima.”Nogueira aprofunda a análise do fenômeno do Teatro para o Desenvolvimento

dialogando com autores como Ross Kidd que em From People´s Theatre for Revolution for

Popular Theatre for Reconstruction: Diary of a Zimbabwean Workshop 322 (Do Teatro

Revolucionário do Povo para o Teatro Popular para Re-construção: Diário do Workshop no

Zimbábue) identifica as transformações sofridas pelo TFD ao longo das décadas. Nogueira

observa que:

Começando em 1950, Kidd nos dá exemplos do Teatro para o


Desenvolvimento usado como propaganda das políticas do governo colonial.
Teatro era feito por agentes do desenvolvimento para disseminar idéias
como a da imunização, política sanitária, produção comercial da agricultura.
O exemplo dado por Kidd do Teatro para o Desenvolvimento dos anos 1960
está relacionado aos grupos de teatro itinerantes. Grupos de estudantes
universitários levavam peças para vilarejos rurais e periferia das cidades
enquanto uma forma de democratização da cultura, fazendo o teatro
acessível para as massas. 323

320
PRENTKI, Tim. Prefácio. In: EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. London: Zed Books, 2006. p.xiv.
Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
321
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Entendendo o teatro para o Desenvolvimento (artigo inédito). Cf. Towards a
Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de
Doutorado)
322
KIDD, Ross. From People's Theatre for Revolution to Popular Theatre for Reconstruction: Diary of a
Zimbabwean Workshop. The Hague: CESO, 1984. P. 5. Apud NOGUEIRA Márcia Pompeo. Entendendo o
Teatro para o Desenvolvimento (artigo inédito) Cf. Towards a Poetically Correct Theatre for Development: a
dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de Doutorado)
323
Ibidem, P.14.
124

A autora observa que a partir dos anos 70 surge uma outra perspectiva para o Teatro

para o Desenvolvimento: “No lugar de fazer turnês de espetáculos prontos, a nova abordagem

de TFD nos anos 1970 optou por um formato mais participativo.” 324 Em When people play
325
people (Quando as pessoas representam as pessoas), Zkes Mda apresenta a mesma

discussão. Também segundo ele, o Teatro para o Desenvolvimento nem sempre teria utilizado

formas de expressão pertencentes às comunidades. Em projetos implementados pelo governo

ou por agências do desenvolvimento, onde peças eram escritas para serem apresentadas às

pessoas ou pelo rádio, o objetivo teria sido, afirma ele, o de “disseminar mensagens e

conscientizar as pessoas sobre sua situação social e política.” 326

Mda defende a adoção de critérios como: diálogo com a comunidade, a criação coletiva,

o uso de improvisações e a participação da platéia durante as performances, também nos

projetos de teatro para o desenvolvimento. O autor é critico daqueles projetos que entregavam

mensagens prontas às comunidades. Segundo ele: “A comunicação precisa ser descentralizada

e criada entre as comunidades rurais, que são a maioria das populações dos países africanos.

Isto dará a população acesso não somente a mensagens produzidas pelos outros, mas os meios

de produzir suas próprias mensagens.” 327

As conclusões de Kees Epskamp sobre o TFD em publicação posterior revelam que as

ideias defendidas por Mda foram com o tempo aproveitadas. Epskamp em Theatre for

Development (Teatro para o Desenvolvimento), livro em que faz ampla citação às obras de

Freire e Boal, afirma que o TFD é usado “para encorajar comunidades a expressar suas

324
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento. (artigo inédito) Cf. Towards a
Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de
Doutorado)
325
MDA, Zakes. When people play people. Development communication through theatre. London and New
Jersey: Zed Books, 1993.
326
Ibidem, p.49. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
327
Ibidem, p.1. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
125

preocupações e a refletir sobre possíveis causas e soluções para os problemas.” 328 A evolução

do Teatro para o Desenvolvimento, no sentido de incorporar uma abordagem mais

participativa, fica evidente em outro artigo da professora Márcia Pompeo Nogueira.

Em Buscando uma interação poética e dialógica com comunidades 329 a autora explica

como as obras de Freire e Boal foram sendo difundidas pelo mundo e aproveitadas em

experiências do Teatro para o Desenvolvimento. De acordo com a professora, a prática de

interação com comunidades através do teatro começou a acontecer com mais freqüência em

outros países do terceiro mundo do que no Brasil, principalmente na África, a partir dos anos

oitenta. No artigo, Nogueira descreve trabalhos que se enquadram no conceito da abordagem

dialógica do teatro:

Eles visam ao fortalecimento de comunidades, contribuindo enquanto um


meio de comunicação entre diferentes setores da comunidade e enquanto
forma de identificação e solução de problemas. Trata-se de um teatro que
envolve a comunidade em todo o processo teatral, incluindo a criação do
texto e representação, que são baseadas em problemas apontados pelos
participantes. O método de abordagem das comunidades é baseado no
respeito ao conhecimento e às formas de expressão da cultura local.330

O método, afirma a autora, foi sendo “desenvolvido e aprimorado por meio de

intercâmbios entre facilitadores que tomaram parte em oficinas e conferências internacionais

muito freqüentes nos anos oitenta principalmente no continente Africano”. 331 No artigo,

Márcia Pompeo, utilizando como exemplo dois workshops que aconteceram na década de 80,

um no Zimbabwe e outro na Nigéria, sistematiza o método dialógico do teatro para o

desenvolvimento, dividindo em etapas o processo de interação com a comunidade. De acordo

328
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p. 3. Tradução própria com revisão de David Herman.Atualmente o uso do
TFD é freqüente em projetos promovidos por ONGs internacionais voltados para a prevenção da AIDS e para a
resolução de conflitos.
329
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades.
Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. p.70. Os trabalhos citados pela autora no artigo foram estudados em sua
pesquisa de doutorado, cujo resultado é a tese inédita intitulada: Towards a Poetically Correct Theatre for
Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002.
330
Ibidem, p. 70.
331
Ibidem, p. 70.
126

com a autora, ao penetrar numa comunidade, com a autorização da mesma, o grupo de

facilitadores deve encorajar os indivíduos a colocar suas idéias em prática, deve assumir a

atitude de quem vai “coordenar um processo aberto para as contribuições dos membros da

comunidade.” 332 Nesses primeiros momentos, o objetivo deve ser, de maneira gradual,

conhecer as pessoas e se informar sobre o que acontece no local.

Os passos seguintes são a pesquisa dos problemas vividos pela população, até a escolha

daquele que mais a aflige. Adiante, o problema identificado torna-se o assunto de

improvisações, onde os indivíduos, representando os personagens da história buscam através

cena, possíveis soluções. Nas experiências citadas no artigo pela professora, as etapas de

aproximação previstas na abordagem Freireana, aliam-se às técnicas de Augusto Boal para,

através do teatro, levantarem e debaterem temas e problemas pertinentes à realidade das

comunidades. De fato, uma das mais conhecidas formas de encarar o teatro como

instrumento para discussão concreta de temas ligados à realidade de determinadas

comunidades são as técnicas do Teatro do Oprimido 333, especialmente as do teatro fórum, que

convidam o espectador a participar da encenação e a através da ação propor possíveis

soluções para um problema apresentado.

Os projetos desenvolvimentistas reconheceram o método participativo (baseado nas

idéias de parceria, “de baixo para cima”, diálogo, comunidades no centro do processo,

coletivo etc.) como mais eficiente para atingir suas metas do que as abordagens

convencionais (“de cima para baixo”, centradas em objetivos planejados por agentes externos

à comunidade.) Ficou evidente que excluindo a participação das populações ou comunidades

nos processos de formulação e implementação dos projetos, as políticas desenvolvimentistas

cavaram, em muitos casos, o seu próprio fracasso. Nos anos 70, tanto doadores como os

332
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades.
Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. p. 71.
333
Durante o exílio, Boal viajou pelo mundo levando suas idéias, suas técnicas estão hoje amplamente difundidas
pelo mundo em práticas teatrais que buscam a interação com comunidades.
127

governos dos países beneficiários perceberam que bilhões haviam sido gastos com projetos,

sem que estes tivessem obtido os resultados esperados. A palavra participação ganhou então

lugar de destaque no vocabulário das políticas do desenvolvimento. Incluir estratégias de

participação passou a ser prioridade para elas. O teatro passou a ser considerado como um

importante aliado dentro deste contexto. Muitos projetos, crentes na eficiência desta arte

como promotora do diálogo com as comunidades, começaram a incluí-la como uma

ferramenta em prol do desenvolvimento.

Para estimular a participação das comunidades, as campanhas de desenvolvimento

passaram a financiar projetos teatrais participativos. Como já foi visto, primeiro eles adotaram

modelos semelhantes ao teatro de propaganda, levando mensagens prontas às populações.

Depois, gradualmente, devido à divulgação dos métodos de Paulo Freire e Augusto Boal,

começaram também envolver as comunidades em todo o processo teatral, incluindo a

construção do texto até a performance final. Teatro e participação passaram a ser

considerados ingredientes mágicos para as políticas do desenvolvimento. Se a princípio a

necessidade de comunicação entre as agências do desenvolvimento e as comunidades originou

um teatro de caráter mais instrumental, preocupado em disseminar mensagens preparadas

pelos escritórios “desenvolvidos” ou nos centros universitários sobre assuntos como: a

importância do uso de fertilizantes, da irrigação e da construção de represas; mais tarde,

devido à crescente desconfiança das comunidades em serem tratadas como objeto de decisões

alheias a elas, as agências do desenvolvimento passaram a incluir os métodos mais

participativos.

Majid Rahnema explica que ativistas sociais e funcionários de organizações

internacionais atuantes nos países “em desenvolvimento” e que “haviam embarcado neste
334
trem com a esperança de poder ajudar os oprimidos” ao perceber as deficiências dos

334
RAHNEMA, Majid. Participação. In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o
conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 191.
128

projetos de cima para baixo passaram a defender a inclusão de métodos de interação

participativos, utilizando estratégias de ação planejadas que não fossem impostas. Chegou-se

à conclusão de que quando as populações locais eram incluídas, sendo ouvidas suas

verdadeiras necessidades, que os projetos obtinham melhores resultados. Sobre a participação

Rahnema afirma:

Tendo-se assim chegado a um consenso entre os planejadores, as ONGs e os


trabalhadores de campo lograram efetuar uma mudança profundamente
importante nos relacionamentos entre várias partes envolvidas nas atividades
relacionadas com o desenvolvimento. Com isso, a palavra que anteriormente
teria sido sistematicamente desprezada por economistas, planejadores e
políticos perdeu, subitamente, toda aquela conotação subversiva que antes
possuía. 335

Assim, o conceito de participação tornou-se um elemento chave para o estabelecimento

de um desenvolvimento alternativo, cuja premissa é permitir aos oprimidos que atuem

livremente como sujeitos de seu próprio destino ou, como ironicamente afirma Rahnema:

“Envolver os pacientes em sua própria cura.” 336 O autor explica que em princípio os métodos

inspirados pela abordagem participatória, entre eles o teatro, fizeram renascer a esperança

entre aqueles que trabalhavam nas bases comunitárias. Segundo Rahnema, a corrida para a

criação de um “saber popular” capaz de dar “fim ao paradigma dominante foi um incentivo

para a difusão de atividades nas áreas da alfabetização e de regeneração de técnicas

tradicionais.” 337 Embora o autor concorde com esta noção de “poderes à população” e que

acredite que as intenções dos pioneiros da participação fossem puras e nobres, ele questiona a

lógica que está por trás desta ideia. De acordo com ele: “Quando A considera essencial dar

poderes a B, A presume não só que B não tem poder – ou não tem um tipo de poder

apropriado – mas também que A tem uma fórmula secreta de um poder no qual B terá que ser

335
Ibidem, p. 192.
336
Ibidem, p.198.
337
Ibidem, p.198.
129

iniciado”. 338 O autor questiona também o papel dos “agentes de transformação” e das ONGs,

que foram, segundo ele, considerados os instrumentos com as qualificações necessárias para

envolver os pacientes em sua própria cura:

Agindo, na maior parte das vezes como promotor da participação, ou até


como profissional no assunto, e não como parte sensível ao processo de
aprendizado mútuo, ele se transformou algumas vezes em ideólogo militante,
outras em uma autoridade que atribuía a si mesmo o total conhecimento das
necessidades da comunidade e suas estratégias para satisfazê-las. (...) Poucos
foram os atores que genuinamente buscavam aprender com a comunidade
local como definir e entender a mudança e qual o método mais adequado
para implementá-la na visão da própria comunidade.339

Sobre as ONGs, o autor comenta que sendo organizações não governamentais foram

consideradas, inicialmente, um mecanismo mais eficiente e menos burocrático para a

implementação de projetos, mas, depois, passaram a ser vistas pelos “doadores” como boas

aliadas em qualquer tipo de projeto que pudesse gerar fins publicitários. Rahnema é

categórico ao afirmar que, de modo geral, nem as promessas dos agentes de transformação,

nem das ONGs, conseguiram de fato envolver os pacientes em sua própria cura, salvo

algumas exceções, devido às qualidades pessoais dos mediadores. Do ponto de vista dos

“ajudados” o autor conclui:

Os próprios pacientes, que eram encorajados a retornar as suas antigas


tradições, tornaram-se dependentes dessa nova raça de especialistas
descalços, enviados do estrangeiro como voluntários, para cair de pára-
quedas nas aldeias ou treinados no próprio local.340

As assertivas de Majid Rahnema deixam dúvidas sobre a eficiência das abordagens

participativas no contexto dos projetos desenvolvimentistas e a sua capacidade de por meio do

diálogo e da conscientização fazer cessar os processos de dominação e manipulação. Como o

próprio autor afirma, essas são questões difíceis de serem respondidas. É fato, porém, que

338
Ibidem, p.199.
339
Ibidem, p. 200.
340
Ibidem, p. 201.
130

inúmeros movimentos de base foram e ainda são particularmente interessantes e realmente

capazes de ouvir o que têm a dizer os membros das comunidades. Para ele, a obra de Paulo

Freire representou importante contribuição ao movimento participatório, sobretudo devido à

teoria desenvolvida pelo pedagogo sobre a dualidade existencial do oprimido. A teoria

elaborada por Freire afirma que os oprimidos só poderão contribuir para a pedagogia

libertadora quando se descobrirem “hospedeiros” do opressor.

De acordo com Freire, o oprimido, imerso na engrenagem da estrutura dominadora,

teme a liberdade, enquanto não se sente capaz de correr o risco de assumi-la; ele vive um

conflito interno, uma divisão que o empurra em dois movimentos opostos:

Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre
expulsarem ou não o opressor de dentro de si. Entre se desalienarem ou se
manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre
serem espectadores ou atores. 341

Freire acredita que o problema da libertação é que a realidade opressora, ao constituir-se

como um mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de

imersão das consciências. Para vencer isto só a práxis, a ação e reflexão dos homens sobre o

mundo para transformá-lo.

Apesar de confiar a Freire grande contribuição na tarefa de compreender a mente

colonizada, Rahnema o desafia quando questiona a imunidade dos “ativistas da

transformação” ou dos estrangeiros “encarregados da conscientização alheia” em relação a

uma falsa percepção da realidade. Segundo o autor, Freire não leva em consideração a

possibilidade de muitos destes agentes externos às comunidades estarem também

contaminados e absorvidos pelos valores dominantes. Isto poderia, segundo ele, explicar os

341
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 35.
131

casos freqüentes em que os “agentes” utilizam os métodos de participação e conscientização,

apenas como formas de “docilização” ou manipulação mais sutis.

Como podemos constatar, a noção de participação foi adotada pelas políticas

desenvolvimentistas, mas, em muitos casos, serviu mais como um discurso conveniente; bem

longe da práxis eficiente, na qual acreditava Paulo Freire. De fato, alcançar o ideal

participatório, nos termos que defendeu o pedagogo e, posteriormente em versão teatral,

Augusto Boal, não é tarefa fácil. Mas Rahnema finaliza seu artigo com uma perspectiva um

pouco mais otimista. Por meio de duas perguntas ele restabelece a fé no ideal:

Se o ideal participatório em termos simples for redefinido para incluir


qualidades tais como a atenção, a sensibilidade, a bondade ou a compaixão e
tiver como apoio ações regeneradoras como aprender, relacionar-se e ouvir,
não serão essas, justamente, as qualidades e talentos que jamais poderão ser
cooptados? E também não são essas mesmas qualidades e talentos as que
sempre contribuem para o florescimento, em outros, de suas potencialidades
de transformação interna? 342

Hoje, mesmo que a noção de participação seja em geral uma condição sine qua non na

área do teatro aplicado, isto não quer dizer que as metas de Freire e Boal estejam em todas as

iniciativas sendo sempre plenamente atingidas. É que o conceito de participação tornou-se um

slogan politicamente bastante atraente. A efetiva presença da política defendida pelos dois

brasileiros depende das intenções do “projeto”. E elas podem variar: algumas comprometidas

com a verdadeira interação entre as pessoas, o questionamento da realidade, e a necessidade

de mudança; outras fruto de agendas mais ocultas, servindo como instrumento para objetivos

ilusórios e sem qualquer impacto na vida das pessoas.

3.6 - O teatro aplicado e a dinâmica do “pela comunidade”.

342
RAHNEMA, Majid. Participação. In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o
conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 207.
132

Ao longo dos anos, o percurso do teatro aplicado trouxe à cena ações cada vez mais

inspiradas nas ideias de engajamento comunitário e protagonismo das comunidades. Existem

inúmeras maneiras de construir a relação entre o teatro e a comunidade. Mas, em geral, o grau

de engajamento e participação de uma comunidade em determinado projeto pode refletir a

medida de sua autoria, ou até que ponto ela pode ser considerada a “dona” do evento; se, de

fato, o projeto representa uma resposta às suas necessidades e aos seus desejos, ou se foi

preparado por um outro grupo, cujos interesses nem sempre são compatíveis com os seus. A

busca pela legítima participação das comunidades como sujeitas dos processos teatrais é um

assunto que ganhou lugar de destaque nos debates que hoje fazem parte do campo do teatro

aplicado.

Os professores Márcia Pompeo Nogueira e Tim Prentki sistematizam critérios muito

semelhantes que agrupam a diversidade das relações entre teatro e comunidade em três

diferentes tipos de “transações teatrais”: o teatro para a comunidade, teatro com a

comunidade e teatro pela/por comunidade. A primeira transação partiria de um movimento

“de fora para dentro” ou “de cima para baixo” quando, por exemplo, um grupo teatral leva às

escolas espetáculos sobre educação sexual, doenças sexualmente transmissíveis ou outros

temas, com o intuito de promover uma mudança de comportamento. Como esclarece Márcia

Pompeo: “Este modelo inclui o teatro feito por artistas para comunidades periféricas,

desconhecendo de antemão sua realidade.” 343 Na segunda “transação”, agentes externos

lideram o processo, incluindo parcialmente os integrantes da comunidade com a finalidade de

discutir temas relevantes para determinado local.

Em alguns casos esses agentes “pesquisam” os temas durante workshops com os

participantes, depois preparam e levam um espetáculo pronto à comunidade; na terceira

“transação”, teatro pela/por comunidade todo ou quase todo o processo é comandado pela

343
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro e Comunidade. In: Cartografias do ensino do teatro. (orgs.)
FLORENTINO, Adilson. TELLES, Narciso – Uberlândia: EDUFU, 2009. P. 173-182. P. 177.
133

própria comunidade, mesmo que contando com a presença de um artista facilitador 344. De

acordo com Prentki:

No teatro pela comunidade, a comunidade faz e apresenta o teatro por si


própria na tentativa de se comunicar com um local e audiência específica.
Isso pode envolver um alto grau de facilitação por um artista de teatro
aplicado para facilitar a tomada de decisões e a apresentação pela
comunidade, ou por outro lado, ser gerado pela comunidade, comgen
(“community generated”, gerado pela comunidade), onde a
comunidade/participantes dirigem e planejam o evento inteiro sendo
diretores, artistas e atores, com pouca ou nenhuma intervenção de fora. 345

Nos critérios estabelecidos pelos autores, o uso das preposições (para, com, pela/por)

serve para esclarecer os níveis de participação das comunidades ou o grau de envolvimento

dos integrantes dos grupos nos processos teatrais. Como vimos, as influências de Freire e

Boal foram decisivas para que o conceito de participação fosse incorporado ao discurso e

prática do teatro aplicado. Se fosse possível “medir” o grau de participação comunitária,

poderíamos, aproveitando os critérios de Prentki e Nogueira, imaginar uma escala que

flutuaria entre as iniciativas mais “de cima para baixo” (para a comunidade) até as mais “de

baixo para cima” (pela comunidade).

O teatro pela inclui iniciativas nas quais o grau de participação comunitária é grande,

isto quer dizer, que a partir do impulso ou de um facilitador ou de algum membro da

comunidade, o processo teatral promove a emersão de um teatro que pertence e diz respeito

especialmente aquele local e àquelas pessoas, caracterizando-se como um movimento “de

baixo para cima”. Experiências como essas envolvem as pessoas em todo o processo de

criação, buscando por meio do teatro, criar um espaço no qual a sua cultura, voz e expressão

possam se manisfestar. No extremo oposto ao teatro pela, encontram-se as iniciativas de

teatro para, identificadas por projetos que levam peças prontas às comunidades abordando

344
O termo “artista facilitador” é utilizado com frequência na literatura do teatro aplicado (applied theatre) para
designar os indivíduos que penetram nas comunidades para coordenar processos teatrais.
345
PRENTKI, Tim, PRESTON, Sheila. (orgs.) The Applied Theatre reader. London and New York:Routledge,
2009. p 10. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
134

conteúdos pré-determinados, a maioria das vezes decididos por organizações externas às elas,

caracterizadas por um movimento “de cima para baixo”. 346

Nos estudos do teatro aplicado, a “modalidade” do community theatre (teatro de

comunidade) é freqüentemente associada a um tipo de prática cuja dinâmica equivale a noção

do teatro pela comunidade. Seus exemplos vêm crescendo em grande número e em várias

partes do mundo a partir da ação de membros dos próprios grupos comunitários, ou por meio

da colaboração de um “facilitador”, um artista “de fora”, que semeia na comunidade o apetite

pelo teatro, encorajando um processo que será liderado não por ele, mas por ela própria. Em

Community Theatre, Eugene Van Erven afirma que:

O community theatre é um fenômeno do mundo inteiro que se manifesta de


várias maneiras diferentes, proporcionando um largo leque de estilos
performáticos. Essas manifestações têm em comum, acredito eu, a ênfase em
histórias locais e/ou pessoais (em vez de textos pré-escritos) que são
primeiro processadas em improvisações e depois transformadas em teatro
coletivamente sob a direção, ora de artistas profissionais de fora - que podem
ou não, terem sido ativos em outros tipos de teatro profissional - ora por
artistas amadores locais.347

Van Erven observa o fato de que as experiências do community theatre (teatro de

comunidade) proporcionam performances que emergem das comunidades, cujos residentes

atuam e contribuem significativamente com os processos criativos. Erven salienta: “O teatro

de comunidade privilegia o prazer artístico e o fortalecimento da autonomia dos participantes


348
da comunidade.” E acrescenta que: “Sua matéria-prima e formas estéticas sempre provém

diretamente (senão exclusivamente) da comunidade, cujo interesse este teatro tenta

346
Para ilustrar esta transição do o teatro para e o teatro pela, Prentki conta, por exemplo, que estudantes
universitários na África, especialmente na Nigéria durante os anos 70 e 80, preparavam peças para serem levadas
prontas às comunidades. Depois perceberam que aquelas peças não faziam muito sentido para a platéia que
buscavam, não causavam impacto algum porque tratavam de assuntos sem significado para ela. Mais tarde
passaram a visitar as comunidades e a pesquisar os temas de seu interesse, voltavam para universidade e lá
escreviam as peças. Num terceiro estágio, mais próximo do teatro pela, as peças passaram a ser criadas junto
com as comunidades, através de processos criativos, incluindo seus membros como atores, na cena. (informação
verbal)
347
VAN ERVEN, Eugene. Community Theatre. Routledge: London and New York, 2001. p. 2-3.
348
Ibidem, p. 2-3.
135

349
expressar.” Além do envolvimento da comunidade como sujeita do processo criativo, o

fenômeno do community theatre (teatro de comunidade) vem favorecendo o surgimento de

experiências que apostam menos na “discussão de problemas” e mais na ideia de que o fazer

teatral pode representar, em si, a afirmação da voz e do corpo das comunidades, explorando o

espaço teatral como um lugar onde podem se manifestar as suas formas artísticas, os valores

da cultura local, o seu protagonismo.

Helen Nicholson está de acordo com Erven quando comenta que: “O community theatre

tende a enfatizar o potencial dramático das histórias da comunidade local ou de suas pessoas.”
350
Nicholson também esclarece que ele vem sendo caracterizado pela participação de

membros da comunidade envolvida nos processos de criação de espetáculos que possuem

especial ressonância para as suas comunidades. Kees Epskamp também concorda com os

demais autores quando afirma que são “iniciativas teatrais desenvolvidas pela própria
351
comunidade, muito baseadas em formas artísticas locais.”

Em geral, são práticas que permitem que as comunidades não apenas participem, mas se

tornem autônomas nos processos criativos, isto porque, mesmo que ocorra a colaboração de

um artista/facilitador, o projeto está sob a liderança dos membros da comunidade; favorecem

a emersão de histórias e formas de expressão locais; permitem uma comunicação imediata e

plena com a platéia local, para a qual a performance é elaborada.

No Brasil, a relação entre teatro e comunidade vem sendo batizada com diversos nomes.

Além de teatro de comunidade aparecem outras versões como: teatro e, teatro na, teatro em

comunidade ou, simplesmente, teatro comunidade. Para evitar entrar num labirinto de

349
Ibidem, p. 2-3. Nesta obra, Van Erven, que é um dos principais experts em teatro político asiático, organizou
o primeiro estudo comparativo dos trabalhos e tradições metodológicas que têm se desenvolvido no campo do
teatro comunitário pelo mundo. Trata-se de um estudo abrangente baseado em suas próprias experiências com
grupos de teatro comunitário em seis países diferentes. O community theatre é considerado pelo autor como um
instrumento importante por meio do qual as comunidades podem compartilhar histórias coletivamente, participar
de um diálogo político e desconstruir a crescente exclusão e marginalidade de grupos de cidadãos. É praticado
em todas as partes do mundo por um número crescente de pessoas.
350
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of the theatre. Palgrave Macmillan, 2005, UK, p. 10.
351
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p. 11. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
136

justificativas em torno do uso de preposições mais ou menos adequadas, ou investir em

discussões terminológicas, para efeito deste estudo, acreditamos que optar pelo uso do

conceito do teatro pela comunidade seja mais pertinente. Ele é preciso, reflete a dinâmica de

um teatro que surge a partir da comunidade, que emerge dela e a ela pertence. Ele nos será útil

para dialogar não só com os exemplos a seguir, como também com os que serão investigados

no capítulo seguinte.

A transição de um teatro que é levado às pessoas para um teatro que é feito pelas

pessoas, premissa do teatro pela comunidade, tem como exemplo marcante a experiência do

Kamiriithu, no Quênia. Em Decolonising the mind - the politics of language in African

Literature 352 (Descolonizando a mente, a política da linguagem na Literatura Africana), o

escritor Ngugi wa Thiong`o 353 descreve a sua vivência enquanto coordenador de um grupo de

teatro naquela comunidade em 1976. Thiong`o foi procurado por uma moradora do local que

desejava a sua contribuição nas atividades de um centro comunitário.

O resultado do encontro entre o escritor e a comunidade foi além da criação de um

espetáculo marcante, a construção de um teatro pelos próprios moradores do lugarejo. O

centro comunitário, um barraco com quatro salas e paredes de barro, era utilizado para

alfabetização de adultos. Havia também um espaço ao ar livre, onde os camponeses e

operários da vila construíram um palco, um tablado semicircular em torno do qual a platéia se

acomodava.

A peça Nagaahika Ndeenda (Me caso quando quiser), escrita por Thiong`o, em

colaboração com comunidade e aproveitando as experiências de vida de seus moradores,

falava sobre a história de luta pela terra e pela liberdade do povo queniano. A escolha da
352
WA THIONG’O, Ngugi. Decolonising the mind - the politics of language in African Literature. London:
James Currey.1986. p.44 -45. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
353
Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em 1938 no Quênia. A partir da experiência em passou a escrever, além de em
língua inglesa, também em Gĩkũyũ. Seu trabalho inclui romances, pecas, contos, ensaios, artigos eruditos,
críticas e literatura infantil. Ele é fundador e editor do jornal Gikuyu-language, Mutiiri. Foi exilado quando saiu
da prisão em 1977. Vivendo nos Estados Unidos lecionou por alguns anos na Yale University e desde então é
professor de duas cadeiras na New York University, Literatura Comparada e Estudos da performance; leciona
também na University of Califórnia.
137

língua local para a escrita e representação da peça foi um desafio para o autor. Educado em

língua inglesa, exigência dos colonizadores britânicos durante os anos de dominação,

Thiong`o precisou redescobrir a sua língua natal a “Gikuyu” e reaprendê-la com a

comunidade, guardiã do dialeto. A peça mostrava a transição do Quênia de uma colônia na

qual os interesses britânicos predominavam a uma neo-colônia com as portas abertas aos

interesses imperialistas mais largos do Japão e EUA. Thiong`o explica que:

[A peça] retratava as condições sociais do momento, particularmente, a dos


operários nas fábricas e plantações multinacionais. Muitos dos operários do
Kamiriithu haviam participado da luta pela terra e liberdade (...) Muitos
deles fugiram para as florestas e montanhas, outros foram para as prisões e
campos de detenção coloniais. (...) Muitos tiveram suas casas queimadas,
suas filhas estupradas pelos britânicos, sua terra confiscada, seus parentes
mortos. De fato, Kamiriithu foi um produto daquela história de luta heróica
contra o colonialismo e da subsequente traição monumental do neo-
colonialismo. A peça celebrava aquela história enquanto mostrava a
continuidade da luta. 354

O espetáculo foi apresentado durante nove meses em ensaios abertos assistidos por cerca

de trezentas pessoas. A dança e o canto, elementos fortes da cultura local, foram incorporados

ao espetáculo. Thiong`o afirma que: “O teatro voltou a ser o que ele havia sido um dia - um

festival coletivo.” 355 O sucesso da peça, que atraiu público também de outras regiões,

assustou o governo que agiu com violência. Em novembro de 1977, o governo do Quênia

proibiu as apresentações de Ngaahika Ndeenda; Thiong`o foi preso no mesmo ano e banido

de suas atividades como professor da Universidade de Nairobi. Apesar dos esforços da

comunidade do Kamiriithu em manter as atividades, em 1982, o centro educacional e cultural

foi posto abaixo. Nas palavras de Thiong`o:

A destruição do Kamiriithu representou mais do que a destruição de um


teatro ao ar livre. Em sua busca por uma linguagem africana autêntica de
teatro, o Kamiriithu havia transformado em forma palpável o futuro do

354
WA THIONG`O, Ngugi. Decolonising the mind - the politics of language in African Literature. London:
James Currey.1986. p.45. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
355
Ibidem, p.57.
138

Quênia – o Quênia dos quenianos, um Quênia independente, para um povo


independente. 356

Em seu curto período de existência, entretanto, o teatro de Kamiriithu exerceu um

impacto no teatro queniano. Cresceu um movimento teatral que defendia o uso das línguas

africanas no palco; o próprio Thiong`o passou, a partir daquela experiência, a militar pelo

ressurgimento das línguas africanas:

Escritores quenianos não tem outra alternativa a não ser retornar às raízes,
retornar às fontes de seu ser, nos ritmos da vida, da fala e das linguagens das
massas quenianas para que elas possam estar à altura do grande desafio de
recriar em seus poemas, peças e romances a grandeza épica de sua
história. 357

A história de Kamiriithu inspirou outras experiências teatrais em diferentes países

africanos. Aqui no Brasil, também existem registros do teatro pela comunidade. Exemplo

disso é a pesquisa realizada por Zeca Ligiéro no final da década de 70, intitulada Teatro e

comunidade - uma experiência. 358 O estudo relata a vivência do professor com um grupo

amador de teatro em São Gonçalo. Ligiéro foi convidado pelo Departamento de Cultura do

Estado do Rio de Janeiro para realizar um “curso de teatro” na região. O primeiro contato do

professor com o teatro realizado na região foi por meio de um festival de teatro amador.

Ele se surpreendeu ao constatar que os grupos locais optavam, quase sempre, por um

repertório motivado por imitações de espetáculos do teatro profissional que haviam visitado

São Gonçalo. De acordo com Ligiéro: “Eles pareciam ignorar o que é fazer teatro para a sua

própria comunidade.” 359 Por este motivo, o professor estabeleceu como metas para o “curso”

instigar os integrantes a descobrir a sua maneira própria de fazer teatro, provocar uma

reflexão sobre a sua realidade e recriá-la através da cena. Para ele, o teatro deveria surgir a

356
Ibidem, p.61.
357
Ibidem, p.73.
358
LIGIÉRO, Zeca. Teatro e comunidade: uma experiência. Uberlândia: Universidade de Uberlândia,1983. A
reflexão sobre esta experiência é desenvolvida por Ligiéro em publicação mais recente. Cf. LIGIÉRO, Zeca.
Teatro a partir da comunidade. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2003.
359
Ibidem, P.3.
139

partir da comunidade, ao contrário de tentar reproduzir, ou impor, uma estética distante

daquele contexto. O resultado do curso foi a montagem do espetáculo Realidades e Lendas de

São Gonçalo que, de acordo com o relato, refletiu o intercâmbio de experiências e

conhecimento entre o professor e o grupo.

Outro registro, um pouco mais recente, vem de Santa Catarina. Entre 1991 e 1998, a

professora Márcia Pompeo Nogueira desenvolveu um projeto de teatro pela comunidade em

Ratones, um lugarejo no interior de Florianópolis. De acordo com Nogueira, um grupo de

jovens da comunidade visitou a Universidade para apresentar um espetáculo, que se limitava

apenas a apresentar cópias de programas de humor da televisão. A partir dali uma parceria

entre a universidade e o grupo se firmou 360; coordenado por Nogueira o objetivo da parceria

foi criar um projeto teatral baseado em histórias próximas da realidade, do imaginário e da

cultura de Ratones. Juntos eles criaram três peças, que resultaram de processos de um ano e

meio cada: País dos Urubus, História do Não sei e A Outra História do boi.

Os três espetáculos foram criados a partir de um processo que privilegiou os interesses

do grupo de Ratones. A primeira peça abordava a história de um país muito corrupto, onde

tudo acontecia ao contrário de como deveria acontecer, como por exemplo, o objetivo do

ministro da educação que era ensinar as crianças a não tomar banho e falar palavrão. O tema

foi levantado pelo grupo de adolescentes e aproveitado pela equipe da universidade como

tema da peça.

A segunda, História do não sei, emergiu de um workshop e impressionou os

facilitadores pelas suas possibilidades simbólicas. Não sei era um personagem em busca de

sua identidade de gênero, a história surgiu a partir de dúvidas dos adolescentes sobre as

mudanças ocorridas em seus corpos naquela etapa da vida. A terceira peça criada em Ratones,

A Outra História do boi, tinha como tema uma manifestação cultural do Boi mamão, própria

360
O projeto tornou-se um campo de estágio para alunos da Universidade do Estado de Santa Catarina –
UDESC.
140

daquela região, este espetáculo serviu como um resgate da memória cultural da comunidade.

Márcia Pompeo explica que: “Nós não chegamos a Ratones com uma peça teatral pré-

estabelecida. Queríamos pesquisar os interesses do grupo, em torno do que nós criávamos as

peças a serem apresentadas pelos adolescentes de Ratones, baseadas em histórias próximas de

sua cultura e realidade”. 361

Ao descrever os três espetáculos, Nogueira destaca o fato de que aquele projeto de teatro

não fora criado para funcionar como um fórum para identificar e resolver os problemas da

comunidade. “O trabalho em Ratones tinha seu foco na prática teatral a ser desenvolvida por

um grupo específico de adolescentes.” Segundo ela, o trabalho estava “relacionado com a

realidade, mas não era uma simples cópia de aspectos da vida quotidiana. Era uma abordagem

poética e lúdica da realidade.” 362 A professora, utilizando o conceito de codificação 363 de

Paulo Freire, defende a idéia de que é possível para uma comunidade desvelar e transformar a

sua realidade também através da investigação de formas imaginativas:

Do meu ponto de vista, as imagens simbólicas escolhidas no centro de cada


peça criada em Ratones podem ser identificadas com codificações. Não eram
aspectos da realidade concreta. Não Sei era um personagem fictício, mas
exatamente porque era imaginário, ele nos deu uma distância para explorar
questões íntimas relacionadas com a realidade do grupo. (...) Sob o meu
ponto de vista, enquanto artistas, podemos levar adiante o conceito de
codificação, no sentido de incluir abordagens fantásticas e imaginativas que
possam contribuir para aprofundar nosso entendimento da realidade.364

O trabalho de longo prazo desenvolvido em Ratones indica, além da evolução do teatro

levado às comunidades para o teatro feito pelas comunidades, a incorporação de elementos

361
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades.
Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89.
362
Ibidem, p.84.
363
Uma das etapas do "Método de Paulo Freire", expressão universalizada como referência de uma concepção
democrática, radical e progressista de prática educativa, é a codificação. Trata-se de uma representação ou a
ilustração (desenho ou fotografia) de um aspecto da realidade, de uma situação existencial construída pelos
educandos em interação com seus elementos. O mecanismo proporciona uma percepção distanciada da realidade
pelos indivíduos, ela passa a ser observada, analisada. Freire admitiu também a eficácia da dramatização como
codificação: "Funcionaria a dramatização como codificação, como situação problematizadora, a que se
seguiria a discussão de seu conteúdo." In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. p. 118.
364
Ibidem, p. 87.
141

mais poéticos e lúdicos no processo de criação e também no resultado dos espetáculos. A

escolha por levantar temas locais por meio de uma abordagem mais “fantástica”, investigando

metáforas criadas pelos jovens participantes e também presentes no imaginário da

comunidade, diferencia, e muito, este projeto, daqueles que, como vimos anteriormente,

buscavam a disseminação de mensagens prontas. Abordagens como esta, garantem além da

efetiva participação comunitária a emersão de formas mais artísticas e menos áridas de contar

histórias, tristezas ou alegrias de uma comunidade.

Experiências como a de Ratones têm se tornado mais freqüentes do que as baseadas em

abordagens instrumentais e incolores. Atualmente, embora não possamos afirmar que projetos

de mensagem, ou de cima para baixo, sejam um fenômeno do passado, muitas iniciativas, no

mundo todo, além de adotar métodos mais participativos têm explorado as possibilidades do

palco como um espaço que vai além de uma arena para a discussão de problemas locais, mas

como um lugar onde a cultura, as memórias, lutas e conquistas de uma comunidade podem ser

tratadas a partir de uma perspectiva mais artística.

A explosão deste leque de estilos e formas de expressão próprias das comunidades não

pode ser explicada somente a partir do ponto de vista dos que aplicam o teatro, e que teriam

gradualmente percebido que a natureza de sua relação com os grupos comunitários deveria

oferecer, ou ceder, mais espaço a voz dos “excluídos.” Esta transição acontece em razão

também, e talvez principalmente, da crescente desconfiança dos grupos comunitários em

relação às “ações generosas” neles aplicadas, da necessidade urgente desses grupos em

eliminar a mediação dos que vem “de fora” e seguir em busca da construção de uma narrativa

própria - alternativa.

Aplicar significa sobrepor, apor, empregar em alguém; aplicado quer dizer que se

aplicou, que foi sobreposto. 365 Como uma injeção que se aplica em alguém, passivo, paciente.

365
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Miniaurélio: o mini dicionário da língua portuguesa. Curitiba:
Ed. Positivo, 2008. p.130.
142

Helen Nicholson oferece relevante observação quando atenta para a questão de que no campo

do teatro aplicado é importante levantar o porquê, com que intenções ou em quem o teatro é

empregado. Curioso é o fato de que o termo teatro aplicado nos traga a imagem de uma

prática que é posta sob alguém, enquanto que a sua própria teoria, caminhe em direção

contrária, defendendo a ideia de um teatro que surge de alguém. É neste ponto que cabe a

observação de Nicholson. As doses de teatro, quando aplicadas, surtirão efeitos positivos,

transformadores, na medida em que as próprias comunidades, com autonomia, se tornem as

agentes da “cura”.

No momento em que o universo do teatro aplicado encontra-se em franca expansão,

descobrindo a cada dia novos contextos para o acontecimento teatral, refletir sobre o porquê,

as intenções e em quem o teatro é sobreposto torna-se uma tarefa importante; indispensável

para quem acredita que deva ser garantido à comunidade o seu verdadeiro protagonismo.

Mais uma vez o que está em jogo aqui é a tensão entre o poder da narrativa dominante e

a possibilidade da criação de narrativas alternativas; é o discernimento sobre a diferença entre

as iniciativas desenvolvidas como estratégia pelos “vetores de cima”, a fim de perpetuar a

dependência dos “vetores de baixo”; e as iniciativas que colaboram com a realização de outra

história, ações imunes a vícios perigosos como aquele alimentado pela noção de que alguém,

atrasado, precisa ser assistido ou atendido por outro alguém, supostamente mais evoluído. As

ações do teatro aplicado podem incidir sobre a estrutura social como forma de mantê-la como

está, ou no sentido de modificá-la; aquelas que se demonstrarem mais comprometidas com a

ética e a estética da comunidade-sujeito, estarão, sem dúvida, mais próximas do caminho da

transformação. Este é o verdadeiro desafio para as iniciativas do teatro aplicado.


143

4 – A FAVELA COMO PALCO E PERSONAGEM


E O DESAFIO DA COMUNIDADE-SUJEITO.

O palco é um espaço que hoje faz parte da realidade de muitas favelas do Rio de Janeiro.

Nele, a música, a dança e o teatro vêm ampliando as possibilidades de expressão da voz e do

corpo dos moradores dessas comunidades populares. Diversas iniciativas, promovidas por

atores sociais “de dentro” das comunidades, por grupos ou organismos externos a elas, “de

fora”, têm criado a oportunidade da favela contar a sua própria história. Em contraponto ao

discurso hegemônico que aprisionou a imagem da favela a uma representação negativa, as

práticas e produções artísticas oriundas do seu território abrem brechas para que um novo

discurso, uma narrativa alternativa ganhe vez. Como vimos no segundo capítulo, essa

produção cultural, com muita freqüência elege a própria favela como o personagem

protagonista de suas obras. Nas letras do rap, nos versos da literatura marginal, ou em peças

teatrais, constata-se a emersão de vozes que assinam a sua história.

Também no capítulo 2 abordamos que este novo cenário de cidade, e de país, porque o

fenômeno não se restringe ao Rio de Janeiro, que alarga o diálogo entre diferentes segmentos

da sociedade criando novas redes de sociabilidade, começa se desenhar com mais força nos

anos 90, quando ocorre a explosão do terceiro setor e dos projetos que apostam na arte como

uma alternativa para a melhoria da qualidade de vida de crianças e jovens favelados. As

atividades artísticas assumem um papel quase que de “curandeiras” das feridas abertas pelos

problemas estruturais provocados pelo abandono do Estado e pela privação dos bens públicos.

Combater a violência, “ocupando o tempo disponível” da juventude das comunidades é a

tônica do discurso de muitos desses projetos que conquistaram destaque na mídia. No lugar

apenas das más notícias sobre o crescente poder das facções armadas do tráfico de drogas que
144

dominam o espaço da favela, as páginas dos jornais passam a divulgar os bons resultados de

projetos sociais e artísticos.

Com grande velocidade, novas redes de sociabilidade criaram tramas que envolvem a

parceria entre associações comunitárias, organizações não governamentais, o terceiro setor,

órgãos governamentais, veículos da comunicação, empresas nacionais e internacionais. As

ações implementadas no território da luta passaram gradualmente a responder às vontades de

seus múltiplos parceiros. A trama, ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de ações

criativas com o potencial de trazer à tona a voz dos vetores “de baixo”, obriga a negociação

entre os interesses de seus diversos atores, entre eles, aqueles que representam os vetores “de

cima.” Diante desta intricada transação, social, econômica, política e cultural, parece

importante recuperar a questão formulada no segundo capítulo: em que situações a

comunidade/favela é de fato autora, de fato favela pela favela, ou mero objeto do interesse de

grupos, representantes dos vetores “de cima”? Ou ainda, no que diz respeito ao foco deste

trabalho, em que circunstâncias o teatro aplicado favoreceria a emersão de narrativas

alternativas, assegurando à favela/comunidade o seu direito de nomear o mundo por meio de

um teatro que responda a dinâmica do pela comunidade, como acabamos de ver no terceiro

capítulo?

Para tentar responder a essas questões apresentaremos ao longo deste capítulo os

exemplos de três grupos teatrais. O primeiro deles, o grupo Nós do Morro é uma referência

entre as práticas teatrais desenvolvidas com moradores das comunidades faveladas no Brasil.

O pioneirismo, a longevidade da iniciativa, bem como a repercussão de suas realizações

dentro da favela do Vidigal, e também fora dela, reserva ao grupo um lugar de destaque neste

trabalho. Mas a sua trajetória não é um exemplo raro apenas no campo do teatro comunitário,

representa também uma experiência única na História do Teatro Brasileiro. É o que afirma a

professora Tânia Brandão:


145

Uma história de grupo que é uma exceção, sem paralelo qualquer no passado
recente de nossa cena. (...) Não há registro de qualquer grupo proveniente de
uma realidade comunitária que tenha conquistado projeção inquestionável
em nosso teatro, como é o caso do Nós do Morro. (...) É essencial, portanto,
reconhecer como, em cerca de vinte anos, a paisagem teatral e humana do
Rio de Janeiro foi alterada por obra e graça de um pequeno grupo que
acreditou em si e resolveu apostar no seu desejo de fazer acontecer. O grupo
Nós do Morro se inscreveu no tempo, mudou a História do Teatro
Brasileiro. 365

De acordo com Brandão, ao longo dos hoje mais de vinte anos de vida, “não foram

poucas as realizações – O Nós do Morro tem uma folha de serviços impressionante, um ritmo

de trabalho invejável.” 366 Durante as últimas duas décadas, tempo em que o grupo construiu

passo a passo a sua história “em etapas progressivas de muita luta, mas consolidadas” 367, não

foram poucas as transformações ocorridas na realidade do grupo. De fato, enquanto o Nós do

Morro se afirmava como um empreendimento de sucesso, transformando-se como observa

Tânia Brandão num “acontecimento da favela”, muitas mudanças ocorriam no próprio

Vidigal, território de onde emergiu a experiência, na cidade do Rio de Janeiro e no país.

Focalizar com uma lente de aumento as transformações ocorridas na trajetória do grupo,

como também em instâncias mais amplas nos aproximará de uma compreensão sobre, por

exemplo, os aspectos que favoreceram o aparecimento das diversas iniciativas do teatro

aplicado atualmente em atividade no território da luta. Entre elas, as que surgiram depois do

Nós do Morro e que nos servirão como exemplos mais recentes, incluídos no vasto leque de

ações teatrais presentes em âmbitos comunitários hoje: o Grupo Código (Japeri, Baixada

Fluminense), que é o resultado da extensão das ações do grupo do Vidigal e a Cia. Marginal

(Nova Holanda, Complexo da Maré), uma iniciativa que nasce no Centro de Estudos e Ações

Solidárias da Maré (CEASM), hoje Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES), uma

organização que, assim como o Nós do Morro e o Código, surge a partir da mobilização de

365
BRANDÃO, Tânia. Paisagens de luz e outras histórias. In: PORTO, Marta. Nós do Morro 20 anos.
Coordenação editorial e edição. Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009. p.131.
366
Ibidem, p. 132.
367
Ibidem, p. 131.
146

moradores da comunidade, guardando, por isso, um inegável compromisso com a sua

comunidade-mãe. 368 Mesmo que este capítulo se dedique principalmente ao estudo do Nós do

Morro, trazer esses outros dois exemplos é importante. Primeiro porque um deles reflete o

impacto da ação do Nós do Morro também em outra comunidade, Nova Belém, Japeri;

segundo porque são iniciativas mais recentes, que já nascem inseridas no contexto atual das

novas redes de sociabilidade; terceiro porque, enquanto práticas do teatro aplicado, elas

compartilham com o Nós do Morro, uma mesma intenção original: criar, a partir da parceria

entre a comunidade e os artistas, processos criativos cuja meta é estabelecer um diálogo com

as suas comunidades, transformando ela mesma, a comunidade, em matéria artística para o

palco – teatro pela comunidade.

Como veremos a seguir, a história do veterano Nós do Morro mostra que para selar a

relação entre palco e platéia, e fazer acontecer o teatro dentro do Vidigal, o grupo descobriu

que precisava “contar” a sua própria comunidade. Para consolidar o palco no Vidigal, foi

preciso tornar a própria favela, a sua personagem central. Hoje, a sua história já ultrapassa

geografia do morro, e deixa a sua protagonista falar também em outros lugares. Se por um

lado, alargar o horizonte de atuação, passando a dialogar não apenas com novas platéias, mas

também com outros atores sociais como patrocinadores, veículos da comunicação, mídia,

critica especializada, empresas, mercado, marketing, traz muitos benefícios, de outro, pode

também oferecer riscos. O principal deles sendo o de ter que conviver com o assédio de

vetores, com interesses nem sempre de acordo com os valores de uma organização, cuja

origem revela um forte compromisso comunitário, enraizado na ética da comunidade-sujeito.

Diante desta contradição, que a realidade contemporânea impõe, caberá às iniciativas como as
368
Em 2006, após um intenso trabalho de campo no Nós do Morro que começara em 2003, quando iniciei a
pesquisa direcionada ao Mestrado, senti a necessidade de me aproximar de outras ações teatrais no âmbito das
favelas do Rio. A minha intenção era encontrar pontos de afinidade entre a experiência do grupo e outras mais
atuais, principalmente no que diz respeito ao uso da abordagem dialógica e a transformação da
favela/comunidade como personagem da cena. Desde 2006 venho acompanhando a trajetória do Grupo Código,
em Japeri. A sede do Código está situada na comunidade de Nova Belém, Japeri. Embora a área não seja
considerada favela, as suas características de extrema pobreza nos deixam considerá-la também como território
da luta. Em 2007, conheci a Cia. Marginal, cuja sede está na favela de Nova Holanda, Complexo da Maré.
147

destacadas por este trabalho e que serão mais profundamente analisadas a seguir, o desafio de

transitar pelas tramas das novas redes de sociabilidade, defendendo os seus interesses, que a

rigor, representam os interesses do território da luta.

4.1 – Vidigal, favela palco e personagem. A conquista da comunidade-sujeito no percurso


do Grupo Nós do Morro.

Seguindo a trilha do teatro aplicado no Brasil, chegamos à segunda metade da década

de 80, quando um grupo de artistas, inspirados pelo movimento da contracultura, pela

ebulição do teatro político das décadas anteriores e motivados pelo desejo de vivenciar

experiências teatrais mais próximas das camadas populares, decide apostar na criação de um

núcleo de teatro dentro da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro. Em 1986, nasce o grupo Nós

do Morro, fundado pelo ator e diretor Guti Fraga, em parceria com Fred Pinheiro, Fernando

Mello da Costa, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Maria José da Silva. Naquele ano, o grupo

inicia suas atividades contando com a participação de aproximadamente vinte pessoas. O

teatro, que apenas havia visitado o morro em curioso episódio a ser contado mais adiante,

ganhou naquela favela outro papel, não se tratava mais de um visitante representado por

atores do asfalto; ele ganhou voz e corpo na expressão dos próprios vidigalenses. Naquela

favela, longe das salas sofisticadas da cena carioca, o teatro foi aplicado.

Nos primeiros anos de sua existência, o Nós do Morro selou uma forte comunhão com a

comunidade vidigalense, uma relação que seria responsável pelo crescimento do número de

participantes no grupo, pela duração e originalidade do projeto. Ali, eles consolidaram outro

palco, um espaço no qual se revelou o teatro pela comunidade, que elegeu o Vidigal como

personagem protagonista.

A trajetória do Nós do Morro faz parte de um contexto maior que é a história de sua

comunidade-mãe, protagonista de lutas e conquistas. A continuidade das atividades propostas


148

pelo grupo foi assegurada, ao longo dos anos, pelo engajamento e participação dos moradores

do Vidigal. A mobilização comunitária é uma característica marcante daquela população, que

aprendeu a se organizar, principalmente para reagir às tentativas de remoção durante as

décadas de 50, 60 e 70. Situado numa das áreas mais valorizadas da cidade do Rio de

Janeiro, a encosta do Morro Dois Irmãos, entre os bairros do Leblon e São Conrado, o Vidigal

sempre foi alvo da especulação imobiliária, interessada na construção de casas e hotéis de

luxo.369

A capacidade de organização da comunidade vidigalense se reflete na atuação da

Associação de Moradores do Vidigal (AMV), que escreveu importantes páginas da história

das favelas cariocas. A política remocionista foi uma das batalhas enfrentadas pela AMV.

Fundada em 1967, a Associação protagonizou a luta em defesa da consolidação da

comunidade naquela área considerada “nobre” da cidade. Em 1977, a Associação impediu a

derrubada de 320 barracos decretada pelo governador do Estado, atendendo solicitação do

Prefeito do Rio, que alegava perigo de deslizamento das encostas do morro. Na realidade,

procurava ele defender os interesses de uma grande empresa imobiliária, que pretendia utilizar

o terreno para a construção de um complexo hoteleiro de luxo. Na época, o movimento da

comunidade contou com a participação também da Igreja Católica. O apoio do Cardeal Dom

Eugênio Salles e a atuação da Pastoral das Favelas 370 exerceram grande pressão junto ao

369
Também a existência de uma pequena praia na parte baixa da encosta tornava a região um convite irresistível
à construção de hotéis. A história da praia do Vidigal sempre esteve diretamente ligada à da favela. Os
moradores do Vidigal freqüentam a praia desde 1940, quando os primeiros barracos começaram a se instalar na
região. Desde 1967, existe no local o Hotel Sheraton, que fora construído no lugar do antigo Hotel Colonial. De
acordo com o relato de moradores antigos da favela, o Colonial teria dividido a praia com uma colônia de
pescadores. Esses pescadores teriam sido os primeiros moradores do morro. A origem do nome Vidigal, também
nos remete à história da localidade; trata-se do sobrenome de um de seus antigos donos. Em 1820, as terras na
encosta do pico do Morro Dois Irmãos, se tornaram propriedade do Major de Milícias Miguel Nunes Vidigal,
autoridade maior na cidade durante o Primeiro Império (1822-31). Vidigal passou a denominar a praia e no
século seguinte, também a favela.
370
A Pastoral das Favelas foi criada em 1977 pela Arquidiocese do Rio de Janeiro para oferecer apoio aos
moradores das favelas, fornecendo inclusive assistência jurídica. A relação com a Igreja é responsável por uma
famosa passagem na vida do Vidigal. Não poderíamos deixar de lembrar a visita do Papa João Paulo II à favela,
em 1980. Segundo o relato de um agente de pastoral de favelas registrado no estudo O Papa e o povo370, o
Vidigal havia sido selecionado entre todas as demais comunidades para a visita do Pontífice, devido ao espírito
de luta de seus moradores. Acontece que o que seria, na ótica do povo, um verdadeiro encontro com a santidade,
149

governo e à opinião pública. Uma letra de música, escrita pelo cantor Sérgio Ricardo,

inspirada pela resistência dos moradores do morro, ilustra bem aquele momento: “No Vidigal

/Tem uma turminha de bamba/ Que não se assusta com as ameaças do rei/ Se vem o mal toda

a favela se levanta/ Tuas tramóias já sei/ Não se brinca com o poder/ Que poder do povo é
371
bem maior.” Com a vitória, a comunidade revigora a sua força política e passa a integrar o

quadro de movimentos associativos, que a partir do final dos anos setenta e início dos oitenta

começa a colaborar com mudanças significativas na vida das favelas cariocas.

Os versos do compositor registram também o espírito que tomou conta das favelas

cariocas durante o período da ditadura militar, quando nelas ganharam força, principalmente a

partir dos anos 70, as noções de: trabalho comunitário e movimento social. Como a

comunicação com os canais do Estado superior foi totalmente rompida durante o regime,

surgiu à necessidade de se fomentar ações que buscassem soluções para problemas num plano

mais local, por isso as pessoas começaram a se organizar para criar estratégias de

sobrevivência em suas próprias comunidades. Como nos lembra Renato Boschi, dizia-se que a

favela era “um complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação

voluntária e vizinhança.” 372 Alba Zaluar e Marcos Alvito destacam as experiências


373
associativas e o espírito cooperativo como o “ethos predominante entre os favelados” na

época.

marcou cenas de total desapontamento. Patrulhas policiais bloquearam a entrada do morro, a multidão se
aglomerou por trás do cordão de isolamento e mal conseguiu vislumbrar a figura do Papa, tal foi a rapidez que o
carro pontifício passou. O trajeto percorrido por João Paulo II, havia sofrido várias melhorias, embora um grupo
de moradores tivesse ido à Prefeitura solicitar que nenhum tipo de “embelezamento” fosse feito na área, para que
a santidade tivesse uma “visão real da favela”. A história é até hoje lembrada por moradores da comunidade. Na
ocasião da visita do Papa, o decreto de desapropriação do terreno do Vidigal para fins sociais já havia sido
assinado.
Após o enfrentamento de setenta e sete, uma disputa judicial foi travada mobilizando moradores e advogados da
Pastoral, até que em 1978, o decreto foi assinado pelo então governador Chagas Freitas.
371
Trecho de música extraído da reportagem de Marcelo Monteiro intitulada: Paraíso cobiçado, publicada em
07/05/2004 no site <http://www.vivario.org.br>
372
BOSCHI, Renato. População favelada do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro, dados, 1970. apud
ALVITO, Marcos e ZALUAR, Alba.(orgs) Um século de favela. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.
15.
373
ALVITO, Marcos e ZALUAR, Alba.(orgs) Um século de favela. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
p. 15.
150

Fortaleceu-se o sentido da comunidade, a ideia de que um ajuda o outro. Curiosamente,

como afirma Rubem César Fernandes, foi durante o período autoritário que a expressão

comunidade ganhou maior peso, atraindo não só no Brasil, como em outros países da América

Latina “um sem-número de agentes sociais.” 374 Isto num momento em que as cidades

inflavam de gente e que, como consequência disso, aumentavam os problemas urbanos. Neste

período a demanda por bens públicos cresceu geometricamente, problemas como espaço para

moradia, saneamento e transporte, instigaram o surgimento dos movimentos sociais. Segundo

Rubem César, “foi nestas condições que a palavra comunidade brilhou na imaginação.” 375

Fernandes argumenta que:

Os mecanismos de comunicação civil com as esferas superiores da vida


pública foram estrangulados e as oposições armadas percorreram um
caminho de tragédias. O movimento sindical que no passado constituíra a
coluna vertebral das mobilizações populares foi violentamente reprimido.
Em suma, reduziu-se a um mínimo a participação cívica no Estado e nas
empresas. Estancado assim o ímpeto participativo gerado na década anterior,
uma saída restou para os que olhassem em outra direção: para baixo e para
o plano local, justamente para as “comunidades”. Se agir sobre a sociedade
como um todo já não era possível, quem sabe então as transformações
pudessem ser preparadas, numa outra escala de tempo, trabalhando-se
pelas bases do edifício social. 376 (grifos nossos)

De acordo com o autor, em toda a América Latina, o trabalho comunitário conseguiu

escapar dos controles e se alastrar mesmo sob os regimes mais violentos como o de Pinochet,

no Chile. A comunidade iluminou-se com uma “aura positiva”, passou a ser discutida em

“reuniões”, nas quais sentavam num mesmo círculo de cadeiras, lideranças comunitárias,

padres da Teologia da Libertação 377, educadores freireanos e ativistas políticos de diversas

origens.

374
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
relume Dumará, 1994. p. 34.
375
Ibidem, p. 44.
376
Ibidem, p. 34.
377
A Teologia da Libertação é uma corrente teológica que engloba diversas teologias cristãs desenvolvidas no
Terceiro Mundo ou nas periferias pobres do Primeiro Mundo a partir dos anos 70, baseadas na opção pelos
pobres contra a pobreza e pela sua libertação. Desenvolveu-se inicialmente na América Latina. Estas teologias
utilizam como ponto de partida de sua reflexão a situação de pobreza e exclusão social à luz da fé cristã. Esta
151

Neste período, cresceram em número as associações de moradores nas favelas do Rio,

organizações autônomas, formadas pelos próprios moradores para discutir e levantar soluções

para as questões de suas comunidades. Foi o período também em que a Igreja Católica ganhou

grande participação na vida comunitária, através das “comunidades eclesiais de base” e da

Teologia da Libertação. As associações de moradores valorizavam a noção de autonomia, de

fazer por si só, com as próprias mãos; situadas em espaços abandonados pelo Estado

insensível e ameaçador, as associações foram levadas a encontrar alternativas de atuação

tornando-se parceiras de movimentos e de iniciativas não governamentais; combinadas aos

núcleos comunitários eclesiais e a projetos subsidiados por agências estrangeiras

apresentaram, como afirma o Rubem César um “suporte civil para o aprendizado de uma

pequena cultura de ação não governamental que se formava pelas bases a despeito dos

governos autoritários.” 378

No Vidigal, o momento favoreceu um encontro inusitado, que seria responsável pelo

surgimento do Nós do Morro na década seguinte. Na época, alguns artistas “alternativos”,

remanescentes do movimento da contracultura, foram morar no conjunto de prédios

construídos na base da encosta do Vidigal, o Condomínio Pedra Bonita. Lá eles conheceram a

“rapaziada” jovem da favela e, juntos, imbuídos pelo espírito comunitário e mobilizados pela

pequena cultura da ação não governamental, prepararam o terreno para o nascimento de um

núcleo de teatro no morro, batizado, primeiramente, como Projeto Teatro Comunidade 379.

Nos anos 80, o Brasil se preparava para retomada da democracia. O Vidigal, assim

como outras comunidades cariocas, havia aprendido a se organizar, e com as transformações

na conjuntura do país, adquiriu mais espaço como ator político, ampliando lutas em benefício

de sua população. Este contexto aumentou a disposição dos artistas do Vidigal em criar, com

situação é interpretada como produto de estruturas econômicas e sociais injustas, influenciada pela visão das
ciências sociais, sobretudo a Teoria da Dependência na América Latina, que possui inspiração marxista.
378
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 46.
379
Cf. PORTO, Marta. Nós do Morro 20 anos. (Ed.) Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009. p. 35.
152

as próprias mãos, o núcleo teatral. Baseado numa relação de troca, solidariedade e

criatividade surgia o embrião do projeto, que passou a pulsar como o coração do Vidigal, a

alma da comunidade-sujeito.

O teatro, por sua vez, começava a se livrar das restrições impostas pela censura dos

militares. O alívio, entretanto, na opinião do crítico Yan Michalski, não impediu que os palcos

vivessem um período pobre em matéria de novas idéias, dramatúrgicas ou cênicas, acusando

“um nítido retrocesso em relação à efervescência que reinava nos anos anteriores, nos piores

momentos de pressão.” 380 Para Michalski, a crise econômica que se abateu sobre o país com o

fim da utopia do “milagre brasileiro” atingiu em cheio o teatro, obrigando-o a optar por

produções mais seguras, com retorno de bilheteria mais garantido.

O crítico observa que a década é um momento onde os produtores adotam uma atitude

de prudência, optando por um cartaz que conta com a presença de uma estrela consagrada ou

ainda pela escolha de um texto estrangeiro, aprovado pelas platéias do exterior. Neste

contexto, de “risco zero”, na opinião de Michalski, as iniciativas mais inquietas e

experimentais refugiam-se em grupos jovens e amadores, com poucas chances de

continuidade. Assim comenta ele:

Por um lado, não existe, em geral, uma idéia suficientemente clara, seja no
plano ideológico existencial ou estético, para dar ao empreendimento uma
base de continuidade; por outro, os individualismos exacerbados e a falta de
um real espírito coletivo – frutos em parte, da educação e formação que
prevaleceram nos anos do autoritarismo – tornam problemático o convívio
grupal; e as dificuldades econômicas, aliadas ao quase total insucesso de
público ao qual essas iniciativas são condenadas, acabam por impossibilitá-
las de desenvolver e aprofundar uma proposta definida de trabalho. 381
(grifos nossos)

Em contraponto a este cenário descrito por Michalski, nasce o Nós do Morro, uma

iniciativa que, naquele momento, ainda que embrionária e bem distante do circuito

380
MICHALSKI, Yan. O Teatro sob pressão – uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.
87.
381
Ibidem, p. 89-90.
153

profissional, desafiava a tendência dos anos oitenta, e prometia surpresas nos seguintes. Guti

Fraga abandonava uma carreira individual para acreditar na idéia de um teatro de grupo.

Mas, embora a década de 80 tenha sido identificada pelo crítico como um retrocesso em

relação à verdadeira “trincheira teatral” instaurada contra o regime militar nas décadas

anteriores, que rendeu à cena e à dramaturgia brasileiras talvez o momento mais fecundo de

sua história, os anos oitenta marcam também um tempo em que alguns artistas, como os do

Nós do Morro, persistiram na ideia de cruzar a fronteira do circuito oficial para levar o teatro

a diferentes lugares da cidade.

Foi o que aconteceu no contexto urbano do Rio de Janeiro durante aquela década.

Ricardo Brugger Cardoso exemplifica com a experiência do grupo Tá na Rua. Segundo

Cardoso, o diretor Amir Haddad reivindicou um espaço “livre público da cidade como o mais
382
importante local para as suas encenações e manifestações artísticas.” O grupo de Haddad,

o Tá na Rua, participou de projetos de difusão cultural, implantado pelos órgãos de cultura

municipais da época e realizou no período, explica Cardoso: “Uma extensa incursão teatral

em vários locais da cidade, na busca de um espaço livre, aberto, que não poderia ser

encontrado entre as paredes institucionalizadas das salas de espetáculos.” 383 As incursões do

Tá na Rua revelam um curiosa história, que guarda significativa relação com a origem do Nós

do Morro. Ricardo Cardoso Brugger destaca uma entrevista concedida por Haddad ao

arquiteto e urbanista Ítalo Campofiorito, que explica o episódio. Na entrevista Amir Haddad

tece considerações sobre as descobertas do Tá na Rua em apresentações realizadas em

variados espaços da cidade:

Comecei a entrar por todas as ladeiras e ruelas da cidade, para me apresentar.


Conheci uma população que vai passando, e é interrompida para ver um
acontecimento provocador: o espetáculo de teatro. Quando o povo reage

382
CARDOSO, Ricardo Brugger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn
Furquim Werneck. (org). Espaço e Teatro. Do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2008. p. 90.
383
Ibidem, p. 90.
154

diante desse acontecimento, ele se revela e, de repente, mostra-se ativo. O


que mais me autoriza a falar do urbanismo é que temos chegado a extremos.
Do alto do morro do Vidigal, na favela lá em cima, a Brasília. São modos de
vida totalmente diferentes. Na favela, entre os caminhos, as praças apertadas
e as casas, uma em cima da outra, com a população vivendo fora das portas,
numa vida conjunta, ou nos espaços enormes e geométricos de Brasília, onde
as pessoas mal se vêem e tem pouquíssimo contato. Foi tão forte este
contraste, que para o desenvolvimento da nossa linguagem, durante muito
tempo privilegiamos as favelas e os bairros pobres, como lugar ideal para
desenvolver uma linguagem capaz de ser absorvida por todos os cidadãos,
sem distinção de classe. 384

No mesmo período, o diretor Aderbal Freire Filho também começou a realizar

experiências no espaço aberto da cidade. A investida dos dois diretores no teatro ao ar livre

levou a participação de ambos em projetos de democratização da cultura, desenvolvidos na

época pela Fundação Rio (depois Rioarte). Como explica Brugger, as inter-relações entre

teatro e cidade, como aquelas que naquele momento se manifestaram, têm o potencial para

“desencadear ações e movimentos no campo da cultura, fundamentais para a invenção de

novas formas de sociabilidade, ao estabelecer um via direta de comunicação e de interação

entre os diversos segmentos da sociedade.” 385 De fato, como veremos a seguir, a incursão do

Tá na Rua no Vidigal é narrada como um episódio marcante na vida de Luiz Paulo Corrêa e

Castro, jovem morador da favela, que naquela época, motivado pela visita do Tá na Rua e

influenciado pelos artistas que moravam no local, agarrou de vez o destino do Nós do Morro.

384
HADDAD apud CAMPOFIORITO, Italo. Enquete Tendenciosa. In: Revista do IPHAN, no. 23 1994. p.243-
244. apud CARDOSO, José Ricardo Brugger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA,
Evelyn Furquim Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7
Letras,2008. p. 91.
385
Ibidem, p. 92.
159

De acordo com Corrêa e Castro, nos anos oitenta, o morro era uma espécie de província

onde todos circulavam por todos os lugares, se conheciam e cumprimentavam-se. Um bar

chamado Bar-raco era um dos pontos altos desse encontro. Lá se misturavam no bate-papo,

usando as palavras de Paulo, a “galera cabeluda doidona dos prédios, cabeça anos 70” e a

“rapaziada do morro”. Fraga, Mello da Costa e Fred Pinheiro representantes da “galera

cabeluda”, e Paulo, da “rapaziada do morro.” A interação entre essas duas “tribos” gerou o

embrião do Nós do Morro. De um lado a “rapaziada” querendo “beber” a informação dos

“cabeludos”; esses por sua vez dispostos a compartilhar o saber com a “rapaziada”. 386

Segundo Fraga, o núcleo seria a oportunidade de provocar uma interação entre os grupos que

ocupavam o Vidigal e, sobretudo, oferecer o acesso à arte aos moradores menos favorecidos:

Eu já tinha uma vivência legal no teatro amador, profissional e experimental


e eu via aqui, as pessoas que eu conhecia, os talentos que eu percebia,
pessoas que nem imaginavam qualquer possibilidade de acesso à arte. Eu
achei que o grupo de teatro iria criar um elo entre todo mundo, por que na
época existia no morro uma divisão entre favela e não favela. 387

Para Luiz Paulo Corrêa e Castro, o Paulo Tatata, que havia até aquele momento tido

pouco contato com o teatro resolveu apoiar a ideia dos “artistas ripongas”:

Eu me lembro que a primeira peça que eu assisti foi o Guti que me levou,
Adorável Júlia, com a Marília Pêra. A gente não tinha acesso, mas eu acho
que era mais por preguiça. Uma coisa que me marcou muito também foi uma
vez que o Guti conseguiu levar o Tá na Rua no Vidigal. A verdade é que o
teatro não estava na nossa pauta, a gente queria era jogar bola. Mas os
artistas abriam caminhos, lá tinha pintor, escultor, era outra realidade. Eles
indicavam peças, emprestavam livros, era um convívio mesmo, uma troca de
informações, além disso, a vida liberada deles, os ripongas, a cabeça anos
70, era tudo novidade. 388

386
Guti Fraga já trabalhava como ator num grupo de teatro amador no Mato-Grosso do Sul, quando resolveu vir
para o Rio de Janeiro se profissionalizar na Escola de Teatro Martins Penna e ingressar na faculdade de
jornalismo; Fernando Mello da Costa havia chegado do Rio Grande do Sul e abandonado a carreira de ator para
trabalhar como artesão e cenógrafo. Os dois se encontram no Vidigal no final da década de setenta, quando
Fraga, para sobreviver no Rio, começou a trabalhar confeccionando bolsas no ateliê de Mello, instalado no
Vidigal. Entre uma bolsa e outra, surgiu a idéia de criar no morro um núcleo de teatro.
387
O depoimento de Fraga esclarece a distinção entre as classes que ocupavam o Vidigal na época: a favela
(moradores pobres, residindo em barracos) e a não favela (moradores dos prédios e casas da parte inferior do
morro).
388
Em entrevista pessoal 14/08/2003.
160

A parceria rendeu frutos. Corrêa e Castro firmou ao longo dos anos o seu posto como

dramaturgo do Nós do Morro. A oportunidade para concretizar a idéia do núcleo teatral só

chegaria em 1986, quando Fraga fora convidado para realizar um projeto no Centro Cultural

Padre Leeb 389:

Tudo começou com o convite para visitar o Centro, conhecer o padre e


armar um projeto de teatro. Lá, após conhecer o padre e Joana, a sua
companheira de batalha, descobri nele a pessoa com quem gostaria de
trabalhar. Expus para ele um projeto que vinha desenvolvendo mentalmente
e eles resolveram me ajudar. Desci o morro pensando em como poderia dar
forma ao projeto. Resolvi parar no Bar-raco para tomar uma cerveja. De
repente apareceu o Paulo Tatata [Luiz Paulo Corrêa e Castro], amigo de
muito tempo, e resolvi perguntar se ele toparia ser meu assistente num
projeto. Ele topou. Em novembro de 86, estava formado o Nós do Morro. 390

Corrêa e Castro conta que na época andavam pelo Vidigal diversos tipos de

“personagens”. Os que moravam nos prédios, parte inferior da encosta do morro, era o pessoal

da classe artística, por lá passaram pintores, escultores, atores e cantores, alguns bem

conhecidos. Os casarões eram ocupados por famílias mais abastadas e tradicionais; subindo a
391
encosta, crescia a favela. Os moradores mais pobres ocupavam barracos nas partes médias

e altas do morro. O grupo surge a partir do diálogo estabelecido entre alguns artistas

residentes Vidigal e jovens considerados pertencentes à comunidade “favelada” entre eles,

Luiz Paulo Corrêa e Castro. Guti Fraga, Fernando Mello e Fred Pinheiro 392 trocam a “praça”

profissional dos teatros do “asfalto” carioca, pelo projeto de difundir e democratizar o teatro

no Vidigal.

389
O Centro Cultural Padre Leeb foi fundado pelo padre austríaco Humberto Leeb e por Joana Batista Costa. O
Padre Leeb, sacerdote da Congregação dos Oblatas de São Francisco de Sales, chegou ao Brasil em 1976, e
fundou um centro social em Porto do Mato comunidade carente no Sergipe. Após essa primeira experiência o
padre veio para o Rio de Janeiro, onde implantou na favela do Vidigal um Centro de Encontros e Ajuda Social e
Cultural. O Centro pertencia a uma escola de missionários alemães. Em 1995, assustados com a violência
encerram as atividades no Vidigal.
390
Texto escrito por Guti Fraga no programa da primeira peça montada pelo grupo: Encontros (1987). O
programa foi escrito à mão, reproduzido e distribuído aos espectadores.
391
Os moradores das classes média e alta dividiam a região com os moradores pobres; este forte contraste entre
classes é, até hoje, uma característica marcante no local, apesar de a violência gerada pelo avanço do tráfico de
drogas ter ao longo dos anos espantado aqueles moradores mais favorecidos.
392
Na época, os três artistas já atuavam no mercado profissional. Fraga como ator, Mello da Costa como
cenógrafo e Fred Pinheiro como iluminador.
161

As instalações precárias de um salão no Centro Cultural Padre Leeb serviram ao grupo

entre os anos de 1986 e 1991. O Centro se tornou, no período, uma referência de lazer e

diversão para a população da favela. Naquele lugar aconteceram, relembrando as palavras de

Peter Brook, verdadeiras explosões de vida. De fato, as primeiras produções do Nós do Morro

tinham que ser cheias de vida e vibrantes. Isto por que, o grupo de artistas fundadores junto

com alguns jovens da favela, interessados em aprender teatro, tinha pela frente o desafio de

conquistar uma platéia cuja maioria dos indivíduos sequer havia colocado os pés em um

teatro, ou sequer haviam assistido a uma representação “ao vivo”. 393

A maneira encontrada pelo grupo para seduzir os espectadores vidigalenses foi

desenvolver performances que falassem com humor e irreverência sobre o universo da favela.

Assim criou-se um intenso vínculo entre as primeiras produções do grupo e a platéia

vidigalense. O movimento que começa com a interação entre os artistas, que absorveram e

respeitaram os valores da comunidade local, e os “rapazes do morro”, que apreenderam os

conteúdos artísticos trazidos pelos artistas, transforma-se aos poucos num movimento próprio

da comunidade/favela, por que passa a ser produzido por ela e para ela – teatro pela

comunidade. Isso nos permite afirmar que o teatro do Nós do Morro reflete com legitimidade

a cultura local, a cultura da favela do Vidigal.

Desta forma, a implementação do palco vidigalense através da experiência do Nós do

Morro acontece devido a um fator chave: a comunhão, a cumplicidade entre o palco e a

platéia. De fato, os depoimentos, fotos e vídeos documentados pelo próprio grupo 394

demonstram a vibração das apresentações de espetáculos, eventos, performances, e a

igualmente calorosa recepção da platéia do Vidigal.

393
Em depoimento ao Jornal O GLOBO (11/06/88) Guti Fraga, principal idealizador do Nós do Morro, conta
que noventa por cento do público da favela havia ido ao teatro pela primeira vez para assistir uma peça do Nós
do Morro. Disse ele: “Eles deliram, aplaudem em cena aberta, riem e comentam, tem uma espontaneidade e um
entusiasmo muito grandes. É emocionante.”
394
Por ocasião da realização de minha pesquisa de mestrado tive acesso a uma série de documentos que me
foram cedidos pelo grupo Nós do Morro.
162

Essa cumplicidade que citamos, talvez seja conseqüência do encantamento dos

espectadores pela novidade da magia teatral, e da surpresa de reconhecer a sua realidade

retratada no palco, sob uma perspectiva artística. Naqueles instantes, pouco importava o

espaço físico precário do salão, ou mesmo certa desordem provocada pela excitação do

momento; o mais importante é que pulsava o “centro dinâmico”, como escreveu Etienne

Souriau sobre a relação espaço teatral/atores/espectadores.

Em O cubo e a esfera, Souriau, defende a idéia de que o ato da representação deve

assegurar a existência de um “núcleo central”, um “centro ativo” pulsionado por um “coração

palpitante”. O autor rompe com os limites da sala tradicional de espetáculos, que obedecem

segundo sua inventiva analogia à imagem de um cubo aberto em um dos lados, explodindo as

possibilidades do evento teatral para um espaço livre, sem limites, onde vibra a relação atores

e espectadores, como que envoltos em uma esfera. Neste sentido, podemos dizer que a

dinâmica implementada na realização daquelas primeiras apresentações dos espetáculos do

Nós do Morro estaria de acordo com o princípio esférico pensado por Souriau. Segundo ele:

Os actores ou o grupo de actores encarnam esse coração, esse punctum


saliens, esse centro dinâmico do universo da obra, são oficinantes, mágicos
cujo poder se exerce sem limites fixos, num espaço infinitamente aberto e
livre. O mundo fictício de que são o centro desenvolve-se e coloca-se tão
vastamente quanto for possível ao poder sugestivo e encantatório. Eles são o
centro e a circunferência não está em parte alguma – trata-se de a prolongar
até o infinito, englobando os próprios espectadores, englobando-os na sua
esfera ilimitada. Nada de cena! Claro que é sempre preciso um solo
utilitário, um tablado qualquer para sustentar, para deixar evoluir os atores; é
preciso um lugar, um edifício, abrigo, anfiteatro, para aí colocar com eles os
espectadores (...) esse lugar da teofania teatral não limita coisa alguma, não
impõem a sua forma ao que se passa, não tem outro objetivo que não seja
reunir actores e espectadores em torno desse centro em que vibra e palpita
mais ardentemente do que noutro lado a aventura de que se anima o universo
da obra. 395

395
SORIAU, Etienne. O cubo e a esfera. In: O Teatro e sua estética, Redondo Júnior. 2o. volume. Arcádia
Lisboa, s/data. p.35-36.
163

Por tudo isso, podemos ampliar o nosso entendimento sobre a implementação do palco

vidigalense, se pensarmos que na verdade ele estabeleceu-se ao mesmo tempo em que se

formava uma platéia curiosa, que acompanharia suas realizações em espaços variados dentro

do Vidigal. As produções do grupo incluíram a platéia da comunidade dentro de uma esfera,

que passou a se deslocar por diversos lugares dentro da favela. É essa esfera que, com seus

contornos seguros e núcleo pulsante, vibra há mais de vinte anos.

A falta de recurso financeiro e a dificuldade de encontrar uma sede própria foram

dificuldades enfrentadas pelo Nós do Morro. Em 1991, suas atividades são transferidas do

Centro Cultural Padre Leeb para ao auditório da Escola Municipal Djalma Maranhão. O

padre havia firmado um convênio com a Secretaria Municipal de Culturas, que passou a

administrar o Centro. Segundo a diretoria do Nós do Morro, as medidas implantadas pela

Secretaria interferiam no trabalho do grupo. Guti Fraga reagiu às intervenções da nova

administração e transferiu as atividades para o auditório da Escola Djalma Maranhão, na

Avenida Niemeyer, entrada do morro do Vidigal. Nessa escola, durante alguns meses o Nós

do Morro funcionou, mas devido à total falta de infra-estrutura uma nova mudança foi feita

para os fundos da Escola Municipal Almirante Tamandaré; primeiramente ocupando duas

salas durante o período da noite, depois, um espaço vago nos pilotis da escola.

Ali, integrantes do grupo, a golpes de marretada, transformaram um buraco de pedra

num pequeno teatro, como revela o depoimento de Fernando Mello da Costa: “Isso aqui era

tudo pedra, tinha só um buraco ali. Um dia o Guti perguntou: Será que a gente consegue

quebrar aquela pedra? E a gente quebrou. Depois com sobras de material da minha

cenotécnica da Praça Mauá a gente fez o teatrinho.” 396

396
Em entrevista pessoal 9/12/2003.
164

A renda obtida pelo evento Show das Sete 397, colaborações de comerciantes da

comunidade e do Conselho Britânico também ajudaram na construção do teatro, com

acomodação para oitenta espectadores. Somente em 1998, o grupo consolida uma sede

própria e consegue recurso suficiente para equipar o seu pequeno teatro. Atualmente, suas

atividades se dividem entre o Casarão 398, onde acontecem aulas para suas turmas regulares, e

o Teatro do Vidigal, onde além de aulas ficam em cartaz seus espetáculos.

O que podemos constatar é que a sobrevivência do grupo em seus primeiros anos de

atividade acontece principalmente devido à mobilização da comunidade em torno do projeto,

tanto no que diz respeito à integração de membros para o grupo, quanto à formação de uma

platéia fiel. É, portanto impossível pensar a experiência do Nós do Morro e a consolidação de

seu palco, deixando de lado a platéia, por que de fato, foi esse pacto selado entre um e outro, o

pilar fundamental de sua vivência dentro do Vidigal. A experiência teatral, quando vivida em

espaços populares, como uma favela carioca, nos deixa pensar sobre a essência do Teatro, e a

sua mais forte vocação que é comunicar, emocionar, mobilizar uma platéia. Lá reside a força

de uma arte, freqüentemente esquecida nas sofisticadas casas de espetáculo.

A ousadia dos artistas inventores do Nós do Morro reside no fato deles terem rompido

com o teatro eleito como “legítimo” e apostado na idéia de criar outro teatro, num outro lugar.

O impulso criativo de Guti Fraga, Mello da Costa e Fred Pinheiro ganha força primeiro

devido ao desejo de compartilhar com aquela população o conhecimento adquirido no teatro

397
Em 1990, o Nós do Morro inventa o Show das Cinco, um espetáculo de variedades que ganha a comunidade,
principalmente as crianças; elas passam a se enfileirar na porta do Centro Cultural Padre Leeb. O Show era
comandado por Guti Fraga e as atrações eram os jovens talentos do Vidigal. Simulando um programa de
auditório, aos domingos, o show incluía números de dança, humor, dublagens, música e sketches de teatro. A
partir de 1992 o evento passa a se chamar Show das Sete.
398
O Casarão Branco, antigo ateliê do pintor Giuseppe Irlandini, havia sido herdado pela esposa do artista. Guti
Fraga negociou com a proprietária, que acabou cedendo a casa para as atividades em troca do pagamento do
IPTU, luz e água. Mais tarde o imóvel foi doado ao grupo após a compra pela organização não-governamental
IBISS – Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social. A mansão de três andares comporta escritórios da
administração, um amplo salão para aulas e ensaios, uma cozinha, duas salas para aulas (uma o antigo porão),
uma biblioteca, uma sala de vídeo e banheiros. A área externa é bastante ampla, arborizada e possui vista para o
mar.
165

profissional, segundo do desejo de incorporar a esse conhecimento elementos e valores da

cultura local.

Do outro lado, os jovens da favela, detentores da sabedoria local querendo apreender o

conhecimento dos artistas. Estabelece-se a relação dialógica, da qual falamos no capítulo

anterior, uma troca de influências entre aqueles que traziam o conhecimento teatral e aqueles

a quem pertencia à cultura da favela. Na prática, o que observamos sobre as primeiras

experiências teatrais do Nós do Morro é a “materialização cênica” desse diálogo entre os

artistas, que apresentavam à comunidade o conhecimento teatral, e a comunidade, que

apresentava aos artistas a sua cultura, a sua linguagem, o seu universo. Nos espetáculos

Encontros (1987) e Biroska (1989), por exemplo, o Nós do Morro escolhe colocar em cena o

dia a dia da favela.

As peças foram criadas a partir de improvisações realizadas pelos integrantes do grupo;

na segunda, o cenário reproduzia uma birosca do morro, em ambas, as personagens foram

inspiradas em personalidades do Vidigal. De fato, essas escolhas naqueles primeiros

momentos, foram fundamentais para que o grupo ganhasse, como já vimos, a adesão de um

personagem importante, a platéia vidigalense.

Desta forma, os artistas “dialógicos” aproximaram-se da população da favela adotando

uma postura que previa antes de tudo o reconhecimento e valorização dos elementos da

cultura local. Tomando como parceiros os próprios moradores da favela, eles interpretaram

aquela cultura, não exatamente com um propósito etnográfico, mas com a intenção de

transformar em matéria-prima para o teatro os elementos mais significativos daquela

realidade.

Podemos citar como experiência análoga à inserção desses artistas na realidade do

Vidigal, àquela vivida por Hélio Oiticica no Morro da Mangueira, na década de sessenta.

Impregnado também por uma atitude dialógica, Oiticica se redescobre como artista plástico ao
166

mergulhar no universo daquela favela. Lá ele descobre o corpo, o samba, o ritmo e a pulsação

da Mangueira.

Essas descobertas servem como inspiração para a criação de Parangolés. Na obra, o

artista utiliza panos, fragmentos de tecidos, plásticos, materiais semelhantes àqueles usados

pelos favelados na construção de seus barracos e cria espécies de capas, bandeiras, estandartes

que deviam ser vestidos e dançados pelos espectadores.

Em A Estética da Ginga, Paola Berenstein Jacques afirma que Oiticica não imitou os

favelados ou simplesmente ilustrou a favela em sua arte: “Ele, viveu na Mangueira, na sua

escola de samba, experimentou essa favela, vivenciou-a. Reproduziu subjetivamente em seu

trabalho de artista sua experiência no morro.” 399 Assim como ele, Guti Fraga, Mello da Costa

e Fred Pinheiro viveram intensamente o Vidigal, moravam no Vidigal. Através da arte,

Oiticica da plástica, e os outros da teatral, eles souberam interpretar aquelas realidades,

aqueles espaços. Iniciativas como a dos artistas do Nós do Morro, bem como a de Hélio

Oiticica representam uma ação favorável para a reversão da imagem negativa sobre a favela,

já que através da arte elas contribuem com o fortalecimento dos valores e tradições dessas

comunidades em seu próprio âmbito, como também divulgam positivamente a sua cultura

para além de seus limites.

No caso da implementação do palco vidigalense o que podemos evidenciar é que a

inserção dos artistas na comunidade esteve de acordo com a atitude dialógica, ela permitiu

que se estabelecesse um forte elo entre eles e os primeiros integrantes do grupo, moradores da

favela; num segundo momento, após firmada esta primeira aliança, o pacto se estendeu

também à platéia comunitária.

Mas todo esse movimento, importante observar, tem como ponto de partida o desejo de

criar uma síntese cultural, ao contrário de uma invasão cultural. A síntese cultural, conceito

399
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga. A Arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001. p.36.
167

desenvolvido por Paulo Freire, acontece quando o processo de aproximação com uma dada

comunidade parte de uma ação cultural dialógica, na qual, aproveitando as palavras do

educador: “Os investigadores ainda que cheguem de outro mundo chegam para conhecê-lo

com o povo e não para ensinar ou transmitir, ou entregar nada ao povo.” 400 Constatamos,

portanto, a evidente compatibilidade entre o conceito de síntese cultural e as experiências dos

artistas “dialógicos” do Vidigal. Fica evidente também, que os processos teatrais

desenvolvidos pelo grupo naqueles primeiros anos de vida são compatíveis com as idéias

levantadas no capítulo anterior sobre a prática de interação dialógica com comunidades, de

autoria de Freire, que passaram a ser adotadas por experiências do teatro aplicado. A atuação

dos facilitadores, os artistas dialógicos do Vidigal, favoreceu a criação de uma relação

baseada na ética e na estética da comunidade-sujeito.

O processo dialógico instaurado entre o grupo e a comunidade permitiu a consolidação

de palco/platéia vidigalenses, como desdobramento disso, o Nós do Morro descobre em um de

seus integrantes o talento para a dramaturgia. Luiz Paulo Corrêa e Castro, nascido e criado no

Vidigal, é um dos primeiros jovens da favela a se interessar pelas novidades que traziam

aqueles artistas de teatro para a sua comunidade. Paulo Tatata, como é mais conhecido, inicia

sua carreira como dramaturgo transformando em texto as improvisações criadas no palco

pelos integrantes do grupo.

Encontros (1987) foi o primeiro espetáculo montado pelo Nós do Morro. Baseado em

improvisações criadas pelos atores, Tatata e Tino Costa, escrevem um texto inspirado no

cotidiano da favela. O espetáculo era composto por esquetes que apresentavam um panorama

da vida dos jovens do Vidigal. As situações criadas para o palco inspiravam-se em

experiências comuns à maioria dos jovens da favela: os meninos reclamando da fome e

péssima qualidade da merenda oferecida na escola, a menina que conta às amigas sobre a

400
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 32ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.180.
168

preocupação de estar grávida, o grupo de jovens na praia sonhando com o dia em que ficariam

ricas. Com a peça, o grupo inicia um currículo de montagens que alternam a encenação de

textos criados a partir da temática da comunidade e dramaturgia nacional. O espetáculo

marca o início da carreira de Corrêa e Castro como dramaturgo 401 do grupo.

O próximo passo do autor seria a peça Biroska (1989), que fortalece a relação do grupo

com a comunidade, e vira notícia em alguns jornais. A encenação de Biroska representa um

marco no fortalecimento do elo entre o grupo e a comunidade. Não apenas pelo assunto da

peça, mas também pela estética da encenação. O texto, escrito por Luiz Paulo Corrêa e Castro

a partir de improvisações criadas pelos atores conta a história de Neguinho, um morador do

morro, que acreditando ter ganhado no “jogo do bicho” paga cerveja para todos os

companheiros de bar, ignorando o fato de que tudo não passava de um engano, posteriormente

descoberto pelo protagonista. O enredo brinca com a possibilidade remota que o jogo pode

proporcionar ao brasileiro pobre: a de “ficar rico da noite para o dia”. Na peça, ao contrário de

utilizar um tom dramático para falar sobre a pobreza e a difícil realidade de vida do morador

do morro, o grupo trata a situação de Neguinho com humor. Esse será um ingrediente

fundamental na dramaturgia do grupo, nas peças que abordarão os temas do cotidiano na

favela.

O cenário para a trama reproduzia com exatidão uma biroska conhecida do Vidigal (um

pequeno estabelecimento com terra no chão, paredes de ripas de madeira e telhado de zinco),

nele desfilavam situações da noite do Vidigal e personagens marcantes da comunidade. A

iluminação para o espetáculo foi improvisada com latas de leite adaptadas como refletores, e o

401
O trabalho de Luiz Paulo Corrêa e Castro enquadra-se nas definições dos termos: dramaturgo (autor de
dramas) e dramaturg (que colabora na criação coletiva de textos, que executa a adaptação de textos já escritos,
que é uma figura presente e com voz ativa nos ensaios, um colaborador do diretor, uma espécie de conselheiro
literário do grupo). Optei pelo termo dramaturgo, porque sua obra tornou-se ao longo dos anos, cada vez mais
autoral. A sua primeira peça, Encontros (1987), em parceria com Tino Costa, organiza no papel situações
surgidas em improvisações criadas pelos atores. Já a partir de Biroska (1989), suas próprias idéias, sugestões de
situações e conflitos começam a predominar, em parceria com as direções de Guti Fraga e Mello da Costa. Em
todos os processos de criação do grupo, mesmo naqueles em que o autor entregou um texto pré-concebido (É
proibido brincar, Abalou- um musical funk e Noites do Vidigal) foi aproveitado o material proveniente de
improvisações.
169

preço do ingresso equivalia ao valor simbólico de uma cerveja. 402 O elemento musical

também estava presente no espetáculo e desempenhava um importante atrativo para a platéia

da comunidade. Foram incorporados ritmos musicais próprios da cultura dos morros do Rio

de Janeiro, o samba e o pagode. As músicas eram cantadas e tocadas pelos atores.

A resposta da platéia em Biroska refletia o acerto do grupo na comunicação com a

comunidade. A cena materializava um ambiente reconhecido pelo público, caracterizado por

elementos visuais, cenário, figurinos e adereços próximos da realidade de uma birosca real da

favela. Além disso, a representação dos atores levava para a cena um comportamento

descontraído, um humor popular, o espírito próprio do morador da favela, que apesar das

dificuldades da vida, não se deixa abater, ri, canta e dança. Um fato curioso é, por exemplo, o

programa da peça. Desenhado a mão, na capa ele trazia o cenário da birosca numa ruela da

favela, um negro apoiado no balcão tomando cerveja e segurando um pandeiro. Com todos

esses recursos o Nós do Morro arrebata a comunidade, tomando-a a partir dali como parceira

fiel. A mágica dessa parceria entre palco e platéia desenvolve no grupo a habilidade de

transformar temas do cotidiano da comunidade em matéria artística.

402
O Nós do Morro adotou como prática a cobrança de um valor simbólico para o ingresso em seus espetáculos.
A partir de Biroska este valor esteve sempre baseado no preço de uma cerveja.
172

Corrêa e Castro assina todos os textos encenados pelo grupo, onde protagonizam o
403
morro e a comunidade. E, embora o Nós do Morro tenha ao longo dos anos montado

também textos da dramaturgia nacional e estrangeira, os espetáculos mais marcantes de sua

carreira são aqueles que encenam a dramaturgia do autor Corrêa e Castro. A criatividade de

seus enredos é surpreendente, sua irreverência e humor são, em grande parte, responsáveis

pela comunicação plena com a platéia vidigalense. Ao contrário de retratar com aridez a

realidade da favela, ele a transforma num cenário fantástico onde até fantasmas podem

interferir na vida dos mortais.

É o que acontece em Abalou - um musical funk (1997). Na trama, um trio de fantasmas,

personagens inspirados em figuras do Vidigal das décadas de 50, 60 e 70, observa a juventude

nos bailes funks do morro. No início da peça, cena três, Eládio e Waldemar, os espectros mais

velhos, reclamam da “zoeira dos seiscentos diabos”, Ricardo o mais jovem explica que a

"barulheira" vem de um baile funk. Os outros dois curiosos aceitam dar uma "descidinha"

para ver o que está acontecendo lá em baixo. Os três observam o mundo dos vivos, e

nostálgicos, resgatam coisas do passado. Entre os mortais, a trama principal gira em torno de

Maestro e Tininha. Ela tentando conquistá-lo, ele querendo fazer sucesso como MC. Além

disso, tipos curiosos perambulam pelo enredo, como é o caso de Esther e Cleuzéia, irmãs

evangélicas que freqüentam o baile escondidas da mãe. Um final feliz para Maestro e Tininha

pontua a história com a ajuda dos fantasmas.

Já em Noites do Vidigal (2002), um trágico desfecho encerra a história de amor entre

Tião, o mestre-sala, e Aparecida, a porta-bandeira da escola de samba Acadêmicos do

Vidigal. A peça resgata a atmosfera dos anos oitenta, quando apesar da incipiente violência

403
Nas duas primeiras experiências cênicas do grupo, Encontros e Biroska, Luiz Paulo Corrêa e Castro fica
responsável por transcrever as improvisações criadas pelos atores. Com isso, ele desenvolve a habilidade para a
dramaturgia. Atualmente ele é o dramaturgo do grupo, foi reconhecido pela crítica especializada no Brasil
principalmente com os textos de Noites do Vidigal (2002) e Burro sem Rabo (2004). De acordo com Corrêa e
Castro não existe um registro dos textos de Encontros e Biroska. As informações sobre os espetáculos estão
baseadas em entrevistas com o autor.
173

ainda havia muita festa e boêmia na favela. Neste texto, mais uma vez o morro aparece não

apenas como um cenário, mas como um personagem vivo, povoado por personalidades e pela

tradição da comunidade. Assim como Abalou, Noites leva para a cena, o passado, o presente,

os conflitos, as alegrias, as pessoas do Vidigal, com ingredientes poéticos e fantásticos. O que

significa elevar a realidade da comunidade do campo do concreto ao terreno da fantasia,

brincando com o seu imaginário.

O cenário de Noites foi um elemento muito especial do espetáculo. Assinado pelo

cenógrafo Fernando Mello da Costa, que dividiu a direção da peça com Guti Fraga, ele recria

a favela em estruturas de madeira, praticáveis com escadas, pequenos corredores, simulando

as vielas do morro, rampas e desníveis. Uma favela cenográfica, por onde circulavam os

atores/personagens, dando ao espectador a impressão quase “real”, dos deslocamentos dos

populares pelas ruelas do Vidigal. Pedaços de materiais compunham os barracos cenográficos

nos remetendo à característica fragmentária da construção dos barracos reais.

Em Noites do Vidigal, a vida na favela, suas práticas e hábitos estão presentes o tempo

todo no texto de Corrêa e Castro. Das palavras do autor se descola a própria imagem da

favela. Essa imagem se concretiza em cenários que sugerem tanto o espaço geográfico, quanto

a arquitetura do Vidigal. Para contar a tragédia de Tião, o mestre-sala, a ação se desenrola em

alguns ambientes: uma birosca, uma quadra da escola de samba, a casa de Dona Feliciana (um

terreiro), a casa de Cícero e outras, a rua e o tanque comunitário. Em Vozes da favela, o

professor Luís Eduardo Franco do Amaral analisa a obra de Corrêa e Castro e observa o fato

de que no Vidigal construído pelo autor, “os becos e os cantos dizem respeito à arquitetura

peculiar da favela”:

Os personagens circulam em seu ambiente e se referem aos nomes das ruas,


aos topônimos locais, criando referências entre eles e também com o
174

público. Quando introduz uma birosca, ele territorializa seu texto, referência
inequivocamente a favela e seu espaço. 404

De acordo com Amaral “o texto de Luiz Paulo é movido pela necessidade de contar a

favela, de torná-la relato.” 405 O que podemos constatar é que, de fato, na dramaturgia de

Corrêa e Castro o Vidigal é o personagem principal. Essa dramaturgia nasce de maneira

espontânea com o propósito de sedimentar os pilares do palco vidigalense. Para selar a

relação palco e platéia, e fazer acontecer o fenômeno teatral dentro do Vidigal, o Nós do

Morro descobriu que precisava “contar” a sua própria comunidade, criar uma narrativa

própria. A necessidade de criar uma linguagem que se comunicasse com a platéia vidigalense,

o grupo descobriu também uma estética própria. Para consolidar o palco no Vidigal, foi

preciso tornar a própria favela - a sua personagem central. Envolvendo seus integrantes em

todo o processo de criação, o grupo promoveu a emersão de um teatro que pertencia ao

Vidigal, criando um espaço no qual a sua cultura, voz e expressão pudessem se manifestar.

Durante a maior parte do seu tempo de vida, até 2001, quando chega o patrocínio da

Petrobrás, o Nós do Morro sobreviveu sem qualquer suporte financeiro permanente, durante

quinze anos contou muito pouco com apoios externos. 406 A sua sobrevivência dependeu,

principalmente, da persistência de seus integrantes e da rede de social criada dentro da

instância da própria favela, da contribuição dos comerciantes locais, das famílias dos jovens

participantes, do boca a boca dos amigos, simpatizantes, ou o da quantia arrecadada pela

404
AMARAL, Luís Eduardo Franco. Vozes da Favela - representações da favela em Carolina de Jesus, Paulo
Lins e Luiz Paulo Corrêa e Castro. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Letras do
Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC, 2003.p.96. A dramaturgia
de Corrêa e Castro é assunto da dissertação de mestrado de Luís Eduardo Franco Amaral, que procura mapear
através das manifestações artísticas das favelas, a cultura da favela e desenvolver o conceito de literatura da
favela.
405
Ibidem, p.99.
406
As primeiras montagens do grupo (até 1988), no Centro Cultural Padre Leeb, receberam, em virtude da rede
de conhecimentos do padre alemão, o apoio da Câmara de Comércio Brasil-Alemanha e de algumas empresas
alemães, que contribuíram com pequenas quantias para a produção de material impresso: folders, cartazes,
programas.
Já em 1996, a renda obtida em suas apresentações, somada colaboração de comerciantes da comunidade e do
Conselho Britânico ajudaram a construção do Teatro do Vidigal. Também a produção do filme Testemunho Nós
do Morro, de Rosane Svartman e Vinícius Reis, colaborou destinando uma porcentagem do orçamento para o
grupo.
175

cobrança do ingresso “simbólico”. Assim, eles conseguiram manter o projeto vivo, afirmando

a identidade vidigalense, construindo uma narrativa alternativa e assumindo o palco como um

espaço no qual a comunidade pudesse agir como sujeito.

Mas, embora a experiência tenha tido como ponto de partida a atuação dentro de sua

comunidade, agora a ação do Nós do Morro não está circunscrita apenas ao âmbito do

Vidigal, ela expandiu os seus limites. O percurso que começa bastante enraizado na

comunidade, com foco na formação da platéia comunitária e com um diálogo discreto com o

asfalto, com o passar dos anos ganha repercussão, passa a receber a visita de indivíduos do

asfalto, que sobem o morro para assistir aos seus espetáculos, conquista o acesso ao circuito

profissional do teatro carioca, recebe prêmios, é consagrado pela crítica especializada, ganha

patrocínios e amplia parcerias.

Hoje, todos que se interessam pelo teatro, por experiências artísticas com origem

comunitária, conhecem o Nós do Morro. As realizações do grupo ganharam reconhecimento e

projeção no âmbito nacional e também internacional. O filho bem criado desgarrou-se de sua

comunidade-mãe para experimentar o mundo lá fora.


179

4.2 - Cruza-se a fronteira, se ganha um dilema: a ameaça da comunidade-objeto.

Os espetáculos Machadiando (1995), Abalou, um musical funk (1997) e É proibido

brincar (1998), marcaram o início da carreira do Nós do Morro fora do Vidigal. Em 1998, as

três peças, que haviam estreado no Teatro do Vidigal, ganham uma temporada Casa de

Cultura Laura Alvim. 407 Na época, o grupo já havia recebido dois prêmios: IX Prêmio Shell

de Teatro (1996) na categoria especial por Machadiando e pelo mérito de seus trabalhos junto

à comunidade do Vidigal, e o Prêmio Coca Cola de Teatro Jovem (1997), categoria especial

por Abalou, além de seis indicações. As premiações, o crescente reconhecimento pela

imprensa e a conquista em 2001 do patrocínio da Petrobrás, favoreceram a estréia do Nós do

Morro no âmbito profissional. 408

O ano de 2002 é um divisor de águas em sua trajetória devido, principalmente, ao

sucesso de Noites do Vidigal, que rendeu boas críticas, com aprovação inclusive da por

muitos temida Bárbara Heliodora, e à estréia de Cidade de Deus, cujo elenco incluía muitos

atores do Nós do Morro. A partir dali, o grupo cruza de vez a fronteira entre morro e asfalto,

passando a encenar em diversos espaços do circuito teatral carioca. Depois do sucesso de

Noites do Vidigal, o grupo estreia Burro sem Rabo (2003), com dramaturgia de Corrêa de

Castro e direção de Fernando Mello da Costa, no Teatro Maria Clara Machado; no ano

407
Na época a Casa de Cultura Laura Alvim, situada na Av. Delfim Moreira, em Ipanema, convidava grupos
para fazerem temporada em repertório. De acordo com o relato de integrantes do Nós do Morro, a repercussão de
seus espetáculos na imprensa e a conquista de espectadores do asfalto, que subiam o Vidigal para assistir
Abalou, foram fatos que motivaram o convite para a temporada na Casa de Cultura.
408
Também merece destaque entre esses fatores, o desenvolvimento do Núcleo Audiovisual do Nós do Morro.
Em 1996, após a realização do filme Testemunho Nós do Morro, os diretores Rosane Svartman e Vinícius Reis
passaram a oferecer oficinas de iluminação, cenografia, atuação, roteiro e direção aos integrantes do grupo. O
grupo ganha autonomia no mercado cinematográfico e produz o seu primeiro curta-metragem O jeito brasileiro
de ser português (2001), escrito e dirigido por Gustavo Mello, ex-aluno das oficinas promovidas por Svartman e
Reis. A equipe também fora formada, quase toda, por moradores do Vidigal. O roteiro ganhou o concurso
Riofilme de curta-metragens, o que viabilizou a sua produção. Em 2002, os atores do Nós do Morro participaram
de uma oficina de preparação para o filme Cidade de Deus , de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Os jovens
atores Jonathan Haagensen e Roberta Rodrigues conseguem personagens e participam do elenco do filme. Esses
eventos contribuíram para a visibilidade do grupo. Neste trabalho optei por não aprofundar o estudo sobre esta
vertente de ação cinematográfica do grupo.
180

seguinte, Sonho de uma Noite de Verão, uma intromissão do Nós do Morro no mundo de

Shakespeare, ocupa um dos palcos do Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB.

Hoje, as produções do grupo têm um alcance ainda maior, viajam por outras cidades do

Brasil e também do exterior; em 2006, a convite da Royal Shakespeare Company, a sua

versão bem brasileira para Os Dois Cavalheiros de Verona estreou em Stratford-upon-Avon,

na Inglaterra. 409 Em 2008, foi a vez de Londres receber a produção do Vidigal. 410 Ao longo

da carreira o grupo alternou a montagem de espetáculos a partir da dramaturgia Luiz Paulo

Corrêa e Castro, e outras a partir da dramaturgia de autores nacionais e estrangeiros. Em todas

elas, entretanto, observa-se a “ginga” do Vidigal. Em Os Dois Cavalheiros de Verona, por

exemplo, a performance dos dezesseis jovens atores do grupo emprestava à primeira comédia

romântica do bardo inglês uma pulsação impregnada de brasilidade. Como novidade, foram

introduzidos trechos escritos por Corrêa e Castro, musicados pelo elenco em ritmos como

repente, samba, rap e reggae. O resultado era um Shakespeare vibrante, que cantava, dançava,

jogava capoeira - um Shakespeare com a ginga do Nós do Morro.

O grupo cumpre um percurso que se inicia como um projeto de teatro comunidade,

criado pelo e para o Vidigal, e alcança o status de grupo famoso, preparando e inserindo

atores no mercado profissional do teatro, do cinema e da televisão. Seus acordos e

negociações agora não são mais firmados apenas com a comunidade vidigalense, mas também

com patrocinadores, diferentes platéias, mídia, crítica, organizações, empresas, marketing,

409
O espetáculo fez parte do Festival das Obras Completas (Complete Works Festival), que reuniu em Stratford
companhias de teatro do mundo inteiro, cada uma delas representando uma peça de Shakespeare. O convite
partiu da diretora de voz da RSC, Cicely Berry, que mantém, há alguns anos, uma relação de amizade com o Nós
do Morro. Em 2008, à convite do professor e diretor inglês de Paul Heritage, o espetáculo esteve em cartaz no
Barbican Centre, em Londres, participando das comemorações dos 10 anos do festival “Bite”. O Barbican é o
maior centro de multi-arte da Europa e o festival desenvolve há oito anos um programa de caráter único pela
multiplicidade de produções abrangendo teatro, música, artes visuais, dança e comédia, sempre com novas idéias
e propostas artísticas. A parceria com personalidades do teatro britânico começou em 1995, quando Berry visitou
a sede do grupo e ofereceu uma oficina aos seus atores. Na ocasião da visita de Berry, a reportagem O teatro
inglês sobe o Morro (O GLOBO - Segundo Caderno - 18/07/95) destacou o encantamento dos britânicos com o
grupo.
410
Merecem destaque também as montagens de Carmem de tal..., texto e livre adaptação de Corrêa e Castro a
partir da obra de Mérrimée e Georges Bizet, no Teatro Villa Lobos em 2007 e em 2008 Machado a 3 X 4, texto e
livre adaptação de Corrêa e Castro para a obra O Alienista de Machado de Assis.
181

mercado, um movimento natural de quem alargou o horizonte, passando a dialogar com uma

ampla rede de atores sociais.

A guinada na carreira veio acompanhada por mudanças na estrutura do grupo, que

recebeu o formato de escola de profissionalização de atores. Até então, os alunos

experimentavam livremente os cursos oferecidos; pertenciam a uma turma de interpretação e

optavam por outras atividades como, por exemplo, música e artes plásticas. Com a mudança,

o aluno passou a cursar todas as atividades, agora com um perfil de disciplinas obrigatórias. O

Nós do Morro deixa de ser um núcleo de livre experimentação teatral e ganha o caráter de

escola, assumindo o objetivo de profissionalizar atores e técnicos. 411 Curiosamente, a

reviravolta vem no momento em que ganha maior visibilidade e pode refletir uma

preocupação em não decepcionar as exigências do mercado. O corpo docente também ganhou

outro perfil, além de incluir alguns jovens multiplicadores 412 formados pelo grupo, incorporou

também profissionais do meio teatral e cinematográfico.

Uma recente publicação institucional do grupo afirma: “A hora é de conquistar o

mercado e firmar a inserção profissional dos artistas do morro.” 413 De fato, uma mostra de

teatro estudantil realizada anualmente pelo Centro Cultural Banco do Brasil reconhece o

grupo como escola de formação profissional. Na lista das “instituições que se dedicam ao

ensino da arte da interpretação” 414 constavam escolas públicas e particulares, como a Martins

Penna e a Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), além da Escola de Teatro da Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

411
Atualmente a estrutura do grupo dividi-se em Jogos Cênicos - Iniciação às Artes Cênicas (8 a 13 anos);
Formação de Ator (14 anos em diante).
412
Jovem ator veterano do grupo que trabalha como educador no grupo, multiplicando os conhecimentos
adquiridos ao longo de sua vivência no grupo. O trabalho não é voluntário, mas remunerado.
413
Nós do Morro 20 anos. PORTO, Marta. Coordenação editorial e edição. Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009.p.
65.
414
Informações extraídas do programa impresso da II Mostra Estudantil de Teatro CCBB. 15 de março a 1º. De
abril de 2007. Neste evento o Nós do Morro apresentou o espetáculo Gota D’Água, com direção de Miwa
Yanagizawa.
182

Para facilitar o acesso dos atores formados pelo grupo aos veículos de audiovisual foi

criado um departamento de elenco, que é, de acordo com o site do grupo: “O núcleo

responsável pelo casting dos atores. Nele, produtores de cinema e televisão podem acorrer e

encontrar atores com o perfil desejado para suas produções.” 415 Hoje as vagas do grupo são

disputadas por centenas de crianças, adolescentes e adultos provenientes não só do Vidigal,

como de outras comunidades do Rio. No início de 2009, foram 600 candidatos a passar pelo

teste de seleção, concorrendo a 80 vagas apenas. 416

A fusão sóciocultural, fenômeno assim definido por Guti Fraga, mistura no Casarão do

Vidigal, jovens de várias favelas do Rio e até gente que vem de fora do Estado. Embora Guti

Fraga alerte os alunos sobre o “deslumbramento” e avise aos pais: “Se pensa que o Nós do

Morro é para levar alguém para a TV, tire o seu filho” 417, não há como duvidar do fato de que

a estampa dos rostos do Vidigal em novelas da Rede Globo, capas de revistas e jornais, não

tenha colaborado com o aumento da procura por oportunidades dentro do grupo. Mesmo que

Fraga revele a sua preocupação em alertar aos alunos e responsáveis sobre a importância de

“deixar o pé no chão”, o fato é que, pertencer a um grupo que “está na mídia” acaba

assumindo na consciência popular a chance de dar um salto do anonimato para o estrelato.

São inúmeras as matérias jornalísticas realizadas por diversos veículos sobre as suas

realizações, também a propaganda contribui com a notoriedade. Em 2007, uma delas, de

página inteira, anunciava em grande manchete: “A gente até abaixa a cabeça pra você, mas só

se for para receber aplauso depois.” Em seguida destacava que as peças encenadas pelo grupo:

415
De acordo com informações do site do grupo, o departamento funciona desde 2001 e foi o responsável pela
seleção dos atores que integraram os elencos de produções como Cidade de Deus, Tropa de Elite, O Diabo a
Quatro, Xuxa -Gêmeas, O Redentor, O maior amor do mundo, Do outro lado da rua, O passageiro, Anjos do sol,
entre outros filmes de projeção nacional e internacional.
416
Curiosamente observou-se um fenômeno. Entre os candidatos existiam jovens do Vidigal, de outras
comunidades, até de fora do Rio, jovens de outros segmentos da sociedade, inclusive, atores formados por outras
escolas de teatro. Em 2010, como forma de contornar a forte procura por parte de não moradores do Vidigal, o
grupo decidiu oferecer vagas apenas para residentes de sua comunidade.
417
Em entrevista a Mauro Ventura. Duas caipirinhas e a conta... Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 26/08/2007.
Revista O Globo. P. 6.
183

“Mudaram a vida não só de quem assistiu, mas, principalmente, de quem atuou. Porque subir

no palco, para muita gente, foi apenas o primeiro passo para subir na vida.” 418

As transformações pelas quais atravessa o Nós do Morro acontecem concomitantes a

importantes mudanças ocorridas também nos contextos maiores, da favela, da cidade, do país.

Tudo mudou, e não podia ser diferente. Sem dúvida, ao ultrapassar o limite do Vidigal, o

grupo acumula muitos ganhos, mas de outro lado, passa a conviver com um dilema: até que

ponto é possível preservar os interesses do Vidigal como comunidade-sujeito, se hoje, outros

vetores da sociedade interferem na realidade do grupo? À luz da experiência deste grupo

específico, de novo cabe perguntar, a quem interessa mais o “projeto”? Qual é a participação e

autonomia da comunidade nele? Encontrar respostas para essas perguntas, não é uma tarefa

fácil. Para tentar escapar de uma análise simplista é necessário olhar novamente para um

cenário mais amplo.

Ao ultrapassar a fronteira entre o Vidigal e o asfalto, o Nós do Morro imprime uma

nova marca na geografia da cidade e, junto com isso, desbrava caminhos que levam à criação

de novas parcerias e alianças, estabelecidas com diferentes atores sociais. Os meados dos anos

noventa, momento em que tem início a saga do grupo, favorecia a criação de novas redes de

sociabilidade; os aspectos sociais, políticos e econômicos que regiam aquele período

ajudaram a sustentar a travessia do Nós do Morro.

4.3 - Década de 90: sociedade civil organizada, ONGs, “responsabilidade social” e o


dilema da comunidade sujeito/ objeto.

Com a chegada da democracia, que engatinhava no início dos anos 90 após a primeira

eleição presidencial pós-regime militar em 1989, o Brasil afunda numa crise econômica

acompanhada por inflação, dívida externa, deteorização dos serviços públicos e, conseqüente

418
Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 25-01-2007. Rio.
184

aumento da miséria. Como explica Rubem César Fernandes: “A democratização trouxe mais

do que uma “abertura”. Trouxe também uma confusão. Como se não bastassem às

inseguranças de uma tal transição, as mudanças ocorreram em condições de graves

dificuldades econômicas.” 419 Ao mesmo tempo em que se difunde pela sociedade inteira a

categoria do cidadão, ocorre à perda da credibilidade nas leis e no sistema estatal. No

contexto das comunidades pobres das grandes cidades crescem, como observa Rubem César,

“os circuitos paralelos e marginais, embalados pelos negócios da droga, que desconheceram a

depressão.” 420 Nas favelas, as quadrilhas do tráfico de cocaína passam a se armar para

garantir o comércio que movimenta o resto da cidade e do país. O cenário é uma herança

perversa deixada pelo regime militar.

Como vimos no início do capítulo, o período autoritário, por haver cortado os laços de

comunicação com o Estado maior, acabou estimulando uma pequena cultura da ação não-

governamental, refletida em movimentos associativos locais, organizados com o propósito de

buscar a melhoria da qualidade de vida das comunidades. Rubem César observa que enquanto

a ditadura havia trazido o gosto pelas noções de comunidade e movimento social, a

democracia “abriu novos horizontes para a presença participativa dos indivíduos-cidadãos.” 421

Dali por diante, mesmo que tivessem permanecido as noções anteriores, a abertura

democrática pôs a mostra e estimulou inúmeros outros tipos de formas associativas, menos

condicionadas ao pertencimento territorial, e mais agrupadas livremente num universo, como

definiu Fernandes - dispersivo. É neste contexto que frutificou o conceito de sociedade civil

organizada. De acordo com Rubem César Fernandes:

As inseguranças do Estado reforçam, por contraste, o valor das iniciativas


civis, livres das antigas dependências para com os órgãos do governo. A
ineficácia dos serviços públicos estimula a busca de alternativas autônomas

419
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 92-93.
420
Ibidem,. p. 94.
421
Ibidem, p. 90.
185

que, embora não sejam capazes de enfrentar os problemas em toda a sua


extensão, reforçam as idéias de ajuda mútua e de iniciativa própria. As
carências orçamentárias dos governos estimulam a busca de recursos para
fins sociais no setor privado. 422

Ocorre uma pulverização de iniciativas que passam a se articular com liberdade por

diversas instâncias do organismo social permitindo o diálogo entre os seus mais variados

atores. No prefácio do livro de Fernandes, Miguel Darcy de Oliveira comenta o fenômeno:

Iniciativas privadas que não visam ao lucro; iniciativas na esfera pública que
não são feitas pelo Estado. Nem empresa, nem governo, mas sim cidadãos
participando, de modo espontâneo e voluntário, em um sem-número de
ações que visam o interesse comum. (...) Em contraponto à lógica do poder
que prevalece nas relações entre Estados e à lógica do lucro que orienta a
ação das empresas no mercado, iniciativas empreendidas por cidadãos
afirmam o valor da solidariedade. Um terceiro setor – não lucrativo e não
governamental coexiste hoje no interior de cada sociedade, com o setor
público estatal e com o setor privado empresarial. 423

Escrita no exato momento em que a história se desenrolava, a descrição de Oliveira

enxerga uma tendência que se fortaleceu ao longo dos anos 90, estabelecendo-se

definitivamente na virada do milênio. Dentro do conjunto de iniciativas que caracterizam o

terceiro setor estão as incontáveis organizações não governamentais - ONGs, associações

civis, e formas tradicionais de filantropia e ajuda que ganharam ainda mais impulso no

período. As ONGs avançaram com força total, mesmo que a sua existência já fosse um caso

confirmado no Brasil em décadas anteriores.

Aliás, desde os anos 70, em toda a América Latina, elas já trabalhavam por meio de

projetos subsidiados pela Igreja e por agências estrangeiras. Segundo Rubem César

Fernandes, as primeiras organizações desse tipo na América Latina concentraram suas

energias principalmente na área da “educação para o desenvolvimento com ênfase na

422
Ibidem, p. 94.
423
OLIVEIRA, Miguel Darcy. Prefácio. In: FERNANDES, Rúbem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro
setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p.11.
186

promoção social.” 424 Esta área abrangente incluía ações no campo da educação popular,

formação qualificada, saúde, direitos das minorias (índios, negros, mulheres), meio ambiente,

direitos humanos. Essas organizações recebiam o apoio direto da “cooperação internacional”,

visto que as relações com o Estado e com empresas privadas, durante os regimes militares em

vigor em boa parte da América Latina, inexistiam.

Assim, para incentivar as ações comunitárias e os movimentos de promoção social,

surgiram no sul do continente americano as ONGs - parceiras da ajuda que vinha de fora, e

aliadas à promessa do desenvolvimento, já abordada no segundo capítulo. Como explica

Fernandes, elas surgiram com um caráter emergencial, como uma solução para falta de opção,

que se imaginava ser conjuntural no sistema institucional existente – “centros de pesquisa que

se formavam à margem de universidades submetidas a pressões do Estado autoritário, núcleos

de educação popular paralelos ao sistema educacional oficial, grupos de apoio a movimentos

sociais.” 425

O que não se imaginava é que essas iniciativas fossem ter uma longa duração. Afinal,

pesquisas deveriam ser feitas dentro das Universidades, educação, dentro das escolas públicas

e a saúde teria que ser um direito de todos. O advento do Estado democrático decepcionou, e

essas premissas foram paulatinamente deixadas de lado. O que parecia ser uma situação de

emergência, na qual essas organizações entrariam com funções emergenciais, acabou se

tornando uma situação permanente, mesmo ao longo do novo Brasil. As ONGs se

transformaram numa espécie de parasita, alimentado pela falência do Estado, incapaz de

garantir aos cidadãos os bens públicos essenciais, e pela ascensão da lógica do mercado.

Os anos 90 testemunham o crescimento do terceiro setor, especialmente a proliferação

das ONGs, sobretudo nas áreas urbanas da região Sudeste. Se antes elas contavam mais com a

ajuda internacional, agora a receita provém também de dentro do país. As organizações

424
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 72.
425
Ibidem, p. 66.
187

passam a recorrer ao apoio financeiro nacional, do Estado ou de empresas privadas. Como

afirma Rubem César, as características das ONGs “resumem-se com nitidez na ideia do

privado com funções públicas.” 426 Elas são as principais integrantes do time de ações do

terceiro setor, um terceiro personagem que surge no mundo para negociar com outros dois

segmentos: o Estado (primeiro setor) e a iniciativa privada (segundo setor).

Seguindo a filosofia do não governamental e do não lucrativo, as ONGs se impuseram,

sobretudo, na realidade de vida de grande parte das comunidades populares dos centros

urbanos brasileiros, onde o desmaio do Estado se tornou cada vez mais evidente, e os disparos

da globalização perversa ainda mais violentos. O sucateamento dos bens públicos,

principalmente nas áreas da educação e saúde, o crescimento desordenado das favelas,

desemprego, o agravo dos índices de violência e criminalidade, fertilizaram o terreno para a

atuação dessas organizações, seus projetos e parcerias.

Desde a explosão da década de 90 até agora, parece evidente que por mais positivas que

fossem, ou que sejam, as intenções das ONGs, é difícil escaparem ilesas dos interesses do

capital, que penetram, “de fininho”, nas entranhas de suas ações, mesmo das mais

verdadeiramente solidárias. Ao selar alianças inevitáveis, para não dizer irrecusáveis, com o

segundo setor, elas acabam tendo que se adequar também às demandas das corporações

financiadoras. No início daquela década, quando Rubem César registrava as primeiras páginas

dessa história, ainda era incipiente um tipo de atitude empresarial que o sociólogo chamou de

“comportamento cidadão das empresas.” 427

A ideia de que o empresariado deveria além de assumir compromissos com seus

funcionários, ampliar a sua responsabilidade também em relação ao mundo ao seu redor, o

“ambiente natural e urbanístico”, apenas começava a florescer. Crescia a opinião de que não

era mais suficiente pagar impostos e esperar pelo governo, porque ele já não estava “dando

426
Ibidem, p. 65.
427
Ibidem, p. 98.
188

conta”; surgem as fundações privadas e ganha espaço na retórica das empresas o termo

responsabilidade social.

Os slogans “nós fazemos a nossa parte” ou “somos uma empresa cidadã” se destacam

nas propagandas institucionais. No país entregue ao modelo neoliberal, a súbita generosidade

dos empresários é desmascarada por Fernandes: “O aumento da pobreza e a proliferação da

violência urbana envenena o dia a dia das elites, forçando-as a se indagarem sobre o que pode

ser feito.” 428 A responsabilidade social torna-se assim uma atitude bastante conveniente:

recebe o mérito de “fazer a sua parte”, se sobrepõe ao poder do Estado, muitas vezes

assumindo funções que não são suas e, além do mais, esconde a face nociva da atuação das

corporações, que baseada nas leis do capital são, a rigor, as maiores vilãs da história. Seria

injusto, é claro, não reconhecer que a responsabilidade social se manifesta também por meio

de intenções positivas, genuínas, e que muitas empresas, à medida que obtém mais poder

econômico, reconhecem a necessidade de reinvestí-lo se tornando, solidariamente,

“responsáveis sociais.”

Na prática, a ideia bonita adquiriu feições distorcidas, e nem sempre respondeu as

necessidades daqueles em quem os projetos da responsabilidade social foram, ou ainda estão

sendo, aplicados. Muitas vezes, eles não representam uma resposta a um desejo que foi

gerado pelas comunidades a serem “atendidas”, são criados por aqueles que, sentados nos

escritórios da “responsabilidade”, decidem, a seu gosto, quais projetos precisam aquelas

pessoas, moradoras daqueles lugares “problemáticos”.

De acordo com esta lógica, o poder de decisão permanece nas mãos daqueles cuja ética

raras vezes escapa de valores pouco humanos. De um lado eles alimentam o sistema, de outro

providenciam uns “paninhos quentes.” Afinal, depois de lucrar bastante, por que não doar um

pouco às ONGs, para que elas façam suas benfeitorias? A articulação que se instalou entre

428
Ibidem, p. 98.
189

público e o privado na proposta do terceiro setor está fatalmente atrelada aos interesses do

mercado. É o que confirma a assertiva de Rubem César Fernandes:

Enquanto os serviços oferecidos pelo Estado são financiados por impostos


compulsórios, os serviços oferecidos pelo terceiro setor dependem, em
grande medida, de doações voluntárias. O setor sobrevive porque, em algum
momento, a busca do lucro dá lugar a uma doação. Sua existência envolve
uma troca triangular pela qual alguns dão para que outros possam receber.
Incluir despesas alheias na minha contabilidade é a expressão econômica da
tese moral que alimenta a dinâmica do terceiro setor: importar-se com o
outro (vizinhos, marginalizados, estrangeiros distantes, gerações futuras etc.)
é parte constitutiva da consciência individual. Palavras como gratidão,
lealdade, caridade, amor, compaixão, responsabilidade, solidariedade etc.
são as moedas correntes que alimentam o patrimônio do setor. Quanto mais
sonoras e convincentes forem, maiores recursos advirão para as atividades
que o compõe. (...) Ser não governamental e não lucrativo não significa, é
claro, estar em algum outro mundo, além das esferas da influência do Estado
e do mercado, ou infenso aos condicionamentos sociais. O terceiro setor não
é feito de matéria angelical. 429 (grifos nossos)

Submetidas à ética do mercado, as ações sociais propostas pelo terceiro setor correm o

risco de assumir apenas o caráter de negócio, obedecendo a leis que são, a priori, do universo

financeiro, incorporando em seu vocabulário palavras como orçamento, contrapartida,

vantagem, demanda, retorno, produto, marketing, recurso, valor, quantidade, visibilidade,

projeção, estratégia etc. A obediência ao financiador é flagrada nos relatórios,

monitoramentos, avaliações, cancelamento ou renovações de contratos etc. Devemos

obediência a quem detém o poder, e este é, por sua vez, o sujeito da história. No que diz

respeito ao primeiro setor, o Estado, o pacto com os outros dois, parece também ter vindo em

boa hora. Como indagou George Yúdice: “Será que a efervescência das ONGs não será uma

“faca de dois gumes”, ajudando a escorar um setor público abandonado pelo Estado, ao

mesmo tempo, possibilitando ao Estado se abster de algo que já foi visto como sua

responsabilidade?” 430

429
Ibidem, p. 24.
430
YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006. p. 153.
190

Para Milton Santos, a existência do terceiro setor representa o surgimento de uma

política que agora é feita no mercado: “Agora fala-se muito num terceiro setor, em que as

empresas privadas assumiriam um trabalho de assistência social antes deferido ao poder

público.” 431 De acordo com Santos, ao assumir as funções do Estado, as empresas escolhem à

conveniência de seus cálculos quais beneficiários devem ou não receber a sua assistência,

privilegiando apenas uma fração do território e da sociedade, enquanto a maior parte fica de

fora: “Essa política das empresas equivale à decretação de morte da Política.” 432 Santos

argumenta que a política, por definição, é sempre ampla e supõe uma visão de conjunto,

realizável apenas quando há a consideração de todos e de tudo:

A eliminação da pobreza é um problema estrutural. Fora daí o que se


pretende é encontrar formas de proteção a certos pobres e a certos ricos,
escolhidos segundo o interesse dos doadores. (...) nas condições atuais, e de
um modo geral, estamos assistindo à não-política, isto é, à política feita pelas
empresas. Sobretudo as maiores. 433

Todavia, seria precipitado “satanizar” por completo a existência desses organismos que

estão, afinal, estabelecidos na vigência da nova ordem global. Se por um lado este complexo

tecido social, político e econômico favorece mecanismos que alimentam dependências e que

contribuem para que os vetores de cima permaneçam no poder; de outro, ele também é capaz

de estabelecer diálogos entre as suas diversas instâncias, criando situações nas quais os

vetores de baixo podem falar aos de cima como esses devem aplicar a sua “responsabilidade

social”; circunstâncias em que os de baixo, como cidadãos ativos e conscientes, recusam o

papel de meros objetos para assumir, ao contrário, o de sujeitos do jogo. Este é o desafio que

se impõem a grupos como o Nós do Morro que, embora tenha surgido em momento um pouco

431
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2007. P.67.
432
Ibidem, p.67.
433
Ibidem, p.67.
191

anterior ao “boom” do terceiro setor, hoje encontra-se inserido na realidade dos projetos

apoiados pela noção da “responsabilidade social”.

O dilema de administrar a tensão entre os vetores de baixo e de cima não é tarefa

encarada apenas pelo grupo, mas por muitas outras iniciativas, atuantes no contexto das

favelas cariocas. Mesmo as organizações que surgiram a partir da mobilização comunitária,

como é o caso do grupo do Vidigal, do AfroReggae, ou da Redes de Desenvolvimento da

Maré (REDES), precisaram desenvolver a poliglosia da sociabilidade, conceito que será

adiante abordado. A estrutura da rede adotada por estes grupos é, na opinião de George

Yúdice:

Estratificada por atores de diferentes posições sociais, a saber, os grupos de


ativistas culturais, a comunidade em cujo nome o ativismo é desenvolvido,
fontes de fomento que variam desde órgãos governamentais e fundações
locais até corporações transnacionais e ONGs, inclusive o Banco Mundial e
o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os discursos desses
grupos são amplamente influenciados por aquela rede de colaboradores e
intermediários. 434

Ainda que seja arriscado afirmar que o discurso dos grupos seja “amplamente

influenciado” pela sua rede de colaboradores, como diz Yúdice, não há dúvida de que ao

sentar à mesa com representantes de corporações, instituições de peso e com a iniciativa

privada, as organizações comunitárias precisam desenvolver um estado de alerta, que seja

capaz de garantir o seu direito de voz. De fato, os “atores de diferentes posições sociais”

aparecem nos sites do AfroReggae, da REDES ou do Nós do Morro. Neles a área parcerias

divulga as instituições que costumam negociar com os grupos comunitários. No endereço

eletrônico da REDES, por exemplo, constam parcerias estabelecidas com o Canal Futura,

Petrobrás, Ashoka, Banco do Brasil, Instituto Ayrton Senna, WorldFund entre outros. No site

do AfroReggae, a área “patrocínio institucional” mostra as logomarcas da Natura, Petrobrás,

Banco Santander e Governo do Estado do Rio; o Nós do Morro conta atualmente com os

434
Ibidem, p. 20.
192

financiamentos dos Programas Petrobrás Social e Cultural, BNDES, SESC Rio, da Empresa

de calçados Azaléia, e já recebeu eventuais apoios da Coca-Cola, Furnas e Eletrobrás.

Em 1987, o Nós do Morro já se constituía como uma Associação Cultural sem fins

Lucrativos, apta a receber apoios externos, mesmo assim, sobreviveu por quinze anos sem

nenhum financiamento estável. Somente em 2001, depois que as suas realizações já

chamavam bastante atenção, veio o patrocínio da Petrobrás Social, que como explica um

folder de divulgação do Programa: “Constitui importante vertente da responsabilidade social

da Empresa. Com ele, a Petrobrás evolui de patrocinadora financeira de projetos para agente

de desenvolvimento humano sustentável. Deixa de ser coadjuvante e torna-se co-protagonista

das ações.”

Assim como a Petrobrás, e em nome da responsabilidade social, muitas outras

empresas, bancos e corporações despertaram um súbito interesse em estabelecer parcerias

com organizações sociais. Se por um lado os patrocínios são bem-vindos, mesmo que no caso

do Nós do Morro tenha chegado bem tarde, de outro, as empresas, ao se colocarem como “co-

protagonistas das ações” obrigam as organizações comunitárias a conviver com o desafio de

garantir o lugar da comunidade-sujeito, enfrentando o risco de se tornarem um exemplo de

comunidade-objeto.

De movimento sóciocultural, enraizado no seio da comunidade, a pessoa jurídica, apta a

receber recursos e a negociar com as mais diversas instâncias da sociedade, o Nós do Morro

vive um processo que George Yúdice, ao analisar semelhante situação experimentada pelo

Afroreggae, chamou de “ONG-ização da cultura”. Yúdice questiona se a participação de

grupos como o do Vidigal e o de Vigário Geral em redes de trabalho com instituições do

governo e também da iniciativa privada representaria uma oposição efetiva ao poder


193

dominante, uma vez que essas alianças poderiam ser caracterizadas como uma “absorção

dentro de iniciativas hierarquizadas.” 435

O autor afirma que ao operar dentro dessas redes de trabalho, negociando com os

diversos atores que dela fazem parte, é preciso que os grupos comunitários mantenham “uma

posição face à cooptação” 436. Se por um lado as parcerias institucionais sejam indispensáveis

para a sobrevivência e expansão das atividades desses grupos hoje, de outro o conselho de

Yúdice parece válido.

De acordo com o autor, diante do diálogo que se pretende estabelecer “com uma gama

de organizações, trabalhando com as interfaces e intermediando sua articulação entre as

diversas agendas (...) um governo local, uma ONG nacional ou regional e junto às fundações

internacionais” 437 convém, segundo Yúdice, que os grupos comunitários, desenvolvam a

“poliglosia da sociabilidade”, expressão de autoria de Rubem César Fernandes. Esta

poliglosia é destacada pelo autor como um talento exercitado com destreza por José Júnior,

diretor do AfroReggae.

A habilidade de Júnior segue o conselho de Rubem César ao afirmar que os ativistas do

terceiro setor devem aprender “a arte da tradução, tornar-se poliglotas da sociabilidade, ser

capazes de entrar e sair dos vários espaços sociais com um mínimo de elegância e

reconhecimento.” 438 É grande o desafio desses poliglotas: manter abertos os canais de

comunicação e troca entre variados segmentos, substituindo relações verticais por horizontais,

nas quais os grupos, por eles representados, ganharão o direito de voz. Para conseguir isso o

435
Ibidem, p. 215.
436
Ibidem, p. 215.
437
Ibidem, p. 215
438
FERNANDES, Rubem César. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 139.
194

segredo estaria, segundo um DJ do AfroReggae, em “dançar com o demônio sem sair

queimado.” 439

Como observou Yúdice a negociação requer que se mantenha uma posição face à

cooptação; de fato, para enfrentar o demônio é necessário antes de tudo exorcizá-lo de dentro

de si. A tarefa não é fácil e obriga um questionamento permanente por parte dos poliglotas,

como Júnior, Guti Fraga e tantos outros, sobre em que medida estão sendo satisfeitos os seus

interesses, e, sobretudo, se em suas atuações estão sendo satisfeitas as necessidades de suas

comunidades, afinal é em nome delas que eles trabalham e tomam decisões. Por isso, ainda

que cruzando fronteiras, é necessário continuar olhando também, e talvez principalmente,

para dentro. A realidade obriga aos poliglotas da sociabilidade o desafio de conviver com a

dialética da comunidade sujeito/objeto. O seu grau de discernimento e lucidez sobre ela é que

dirá quais ações caminham verdadeiramente em direção à construção de narrativas

alternativas.

439
DJ do AfroReggae, nome não citado. apud YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura. Usos da cultura
na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 214.
199

4.4 - Em outras comunidades o mesmo desafio.

Em outros pontos do Rio de Janeiro, bem mais jovens do que o Nós do Morro, porém

com o mesmo desafio, nasceram recentemente dois grupos: a Cia. Marginal (Nova Holanda,

Complexo da Maré) e o Grupo Código (Japeri, Baixada Fluminense). Como no Vidigal, as

primeiras experiências artísticas dos dois grupos estão fortemente enraizadas no seio de suas

comunidades-mãe. São exemplos de iniciativas que surgem com as características de teatro

pela comunidade. A Cia. Marginal é composta por um grupo de atores, a maioria deles

moradores da Nova Holanda, uma das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. Em

2007, o grupo montou o espetáculo Qual é a nossa cara? que esteve em cartaz na Casa de

Cultura do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), agora Redes de

Desenvolvimento da Maré (REDES). 440

Assim como os primeiros espetáculos do Nós do Morro, em Qual é a nossa cara? a

Cia. Marginal optou por falar de sua própria história, seus moradores, suas conquistas e

tragédias, num processo de criação coletiva e autoral. O espetáculo tratou de temas como a

440
O CEASM foi fundado em 1997 por 11 moradores de diferentes comunidades do Complexo da Maré. Apesar
de suas trajetórias serem distintas, os fundadores do CEASM tinham em comum pelo menos três características:
haviam nascido ou morado por muito tempo em alguma das 16 comunidades do Complexo da Maré, possuíam
longa história de atuação em movimentos coletivos locais e, sobretudo, tinham conseguido chegar à
universidade. Naquele ano, eles inauguram um curso pré-vestibular aberto aos jovens da Maré, o Pré-Vestibular
Comunitário da Maré, que iniciou suas atividades em 1998. O CEASM construiu sua primeira sede no Morro do
Timbau entre 1999 e 2000. Em 2002, uma nova sede foi inaugurada na comunidade de Nova Holanda. Em 2003,
um comerciante local doa ao CEASM um grande galpão, onde a hoje se situa a Casa de Cultura da Maré e o
Museu da Maré. Ao longo dos anos, as atividades do CEASM se ampliaram, passando a oferecer diversos outros
cursos, como de informática, línguas estrangeiras, linguagens artistico-culturais e reforço escolar para crianças,
biblioteca e projetos voltados para a saúde.
No ano de 2007, o Centro foi dissolvido, dando origem a uma outra instituição: A Redes de Desenvolvimento da
Maré – REDES, que incluiu ativistas que antes participavam do CEASM. A REDES é uma Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) dedicada a articular pessoas e instituições para realizar projetos de
desenvolvimento para a Maré, um dos maiores bairros populares do Rio de Janeiro. A título de curiosidade, o
Museu da Maré foi inaugurado com a presença do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em 8 de maio de 2006,
destaca-se por ser o primeiro museu, do país, localizado dentro de uma favela. O seu acervo é constituído por
objetos de uso cotidiano e relatos de origem da comunidade local, além sugestões que forem sendo fornecidas ao
longo do tempo pelos moradores, dentro do Projeto Memória Viva, que atua na comunidade desde 1997. A
exposição permanente é dividida em doze tempos não-cronológicos, onde, por exemplo, uma sala conta a
história dos migrantes, outra refere-se à infância dos moradores, outra ainda recorda episódios da resistência
social das comunidades.
200

convivência entre as diferentes religiões presentes na Maré, o conflito entre as tradições do

candomblé e a Igreja Evangélica, preconceito, homossexualismo, guerra entre traficantes e

polícia. A temporada do espetáculo na Casa de Cultura obteve bastante sucesso junto à

comunidade; a casa lotada todas as noites era a prova da plena comunicação atingida entre o

palco e a platéia comunitária. Na época, o grupo de jovens atores já desenvolvia com a

orientação da atriz Isabel Penoni, um trabalho de seis anos. Juntos eles embarcaram num

processo de investigação cênica que resultou na criação da companhia e na estréia do

espetáculo que contava a própria comunidade - a Nova Holanda como palco e personagem.

Já o Grupo Código é resultado de um encontro entre o Nós do Morro e jovens artistas

da Baixada Fluminense. O Código é um dos projetos de multiplicação, como são chamados

pelo seu mentor, o Nós do Morro. A partir de 2004, por meio de uma parceria estabelecida

com o Serviço Social do Comércio – SESC-RIO, o Nós do Morro promoveu oficinas teatrais

em várias localidades do Estado do Rio de Janeiro, compartilhando a sua experiência com

artistas locais e interessados no teatro. Desses encontros firmaram-se como grupos

autônomos, o Código, de Japeri, o grupo Casa do Nós, em Saquarema e o grupo AIA,

Associação Itaocarense de Artistas (AIA), em Itaocara. Outro projeto de multiplicação do

Nós do Morro acontece em Nova Iguaçu. As Oficinas Culturais do Nós do Morro em Nova

Iguaçu recebem o patrocínio da Petrobrás e contam com a parceria também da prefeitura da

cidade. Dez lonas culturais instaladas em escolas da rede municipal de ensino de Nova Iguaçu

abrigam as atividades culturais. Em 2006, cerca de 1440 crianças e jovens participaram do

projeto. 441

O encontro entre o Nós do Morro e os jovens atores que hoje integram o grupo Código

aconteceu durante as oficinas teatrais promovidas pelo SESC em parceria com o grupo do

441
Para efeitos deste estudo optei por recortar a experiência do grupo Código, devido à consistência do trabalho
realizado, e à dificuldade de deslocamento para os outros locais. Além disso, a experiência do Nós do Morro
com as escolas em Nova Iguaçu é muito vasta, demandando além de muitas visitas, um outro segmento para este
trabalho.
201

Vidigal num centro cultural em Nilópolis. A decisão de formar um núcleo teatral permanente

em sua comunidade, Japeri, veio depois. Lá eles alugaram o espaço de uma creche

abandonada e mantêm, há quatro anos, o Grupo Sóciocultural Código, realizando espetáculos

e oferecendo atividades culturais para a comunidade. O espetáculo Do lado de cá, terceiro do

grupo, dirigido pela ‘facilitadora’ do Nós do Morro Miwa Yanagizawa, escolheu colocar em

cena, no palco de Japeri, a sua comunidade como protagonista - Japeri como palco e

personagem.

Assim como o veterano Nós do Morro, ou como a Cia. Marginal, o Grupo Código vem,

por meio do teatro, abrindo espaços para a voz de sua comunidade. Uma espécie de relato

teatral que ganha variadas formas, influenciadas não só pelos elementos da cultura local,

sempre incorporados à cena, mas também pela colaboração daqueles profissionais “de fora”,

que entram nas comunidades para aplicar o teatro. O estabelecimento de uma relação de troca

e intercâmbio de influências entre as partes envolvidas nessas iniciativas permite, mais uma

vez, a emersão de temas e formas artísticas próprias das comunidades (favela como

personagem) e colabora com a consolidação da ação cultural (favela como palco), dentro das

mesmas.

4.4.1 - A Nova Holanda como palco e personagem.

A Nova Holanda
É um pedaço de terra que fica situado à beira mar
Tem um segredo de bamba,
onde impera o samba, nosso lema é cantar
Eu sinto um orgulho em viver, na Nova Holanda,
Para mim é um prazer
Eu vejo a alegria estampada no rosto da rapaziada
Eu sinto um orgulho em viver, na Nova Holanda,
Para mim é um prazer. 442

442
Samba cantado no espetáculo.
202

O encontro dos jovens atores que compõem a Cia. Marginal com a atriz Isabel Penoni

aconteceu em 2002, no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré o – CEASM. 443 Na

época, o projeto Viver com Arte, uma parceria entre a organização comunitária e o Instituto

Ayrton Senna oferecia aos jovens da comunidade oficinas de música, teatro e artes plásticas.

Além dele, outro projeto o Adolescentro 444, financiado pela Prefeitura do Rio, visava à

formação de adolescentes como promotores de saúde abordando assuntos como sexualidade,

DST, gravidez na adolescência; neste segundo projeto, o teatro entrou como um recurso para

desinibir os jovens agentes, que teriam como tarefa falar sobre esses assuntos a juventude de

outras comunidades. Isabel Penoni 445 era uma das responsáveis pelas oficinas teatrais nos dois

projetos. O embrião da Cia. Marginal surge quando um seleto grupo de adolescentes 446,

contagiado pelas experiências que o teatro havia lhes proporcionado nos projetos do CEASM,

decidiu se manter unido para, junto com Isabel, desenvolver um trabalho de pesquisa teatral

mais duradouro.

Em 2005, a companhia, que na época ainda não havia sido batizada, criou a performance

Você faz parte desta guerra, com ela o grupo realizou um circuito de apresentações durante o

primeiro semestre de 2006 que incluiu as dezesseis comunidades que compõem o Complexo

443
Originalmente incorporada às atividades do CEASM, hoje a Cia. Marginal faz parte dos projetos
desenvolvidos pela Redes de Desenvolvimento da Maré – REDES.
444
Adolescentro foi um projeto constituído por noventa agentes comunitários de saúde, todos jovens que
desenvolvem atividades no campo da promoção de saúde nas comunidades. O projeto incluía também uma
equipe técnica de 32 profissionais das áreas de pediatria, ginecologia, odontologia, psicologia, serviço social e
atividades desportivas e culturais, que atendem adolescentes, aos sábados, em dois postos de saúde.
445
Em entrevista pessoal, realizada em 18/12/2007, Isabel falou sobre a sua história com o teatro, que começou
ainda quando estudante, no Colégio Aplicação da UFRJ. Mais tarde participou de grupos de teatro de rua, se
envolveu com atividades circenses até ingressar no curso profissionalizante de atores da Casa das Artes de
Laranjeiras. Participou das companhias Ensaio Aberto e Mistérios, depois dos Grupos Moitara e Umbu. Seu
trabalho com atriz está muito baseado no teatro físico. Isabel trabalhou durante dois anos com o diretor iraniano
Massoud Saidpour, cuja pesquisa cênica segue em linha direta com o teatro de Grotowski. O trabalho na Maré
surgiu a convite de uma amiga que havia integrado o projeto de dança desenvolvido por Ivaldo Bertazzo. Com o
término do projeto alguns jovens demonstraram o interesse em fazer teatro. Isabel aceitou o convite de orientar o
grupo, e durante algum tempo, sem qualquer apoio financeiro trabalhou com os jovens. A coordenação do
CEASM, percebendo o envolvimento deles com a atividade, incorporou o teatro nos projetos Viver com Arte e
Adolescentro.
446
Em 2007, quando conheci a Cia. Marginal e acompanhei alguns ensaios de Qual é a nossa cara? o grupo era
dirigido por Isabel Penoni e integrado pelos jovens Priscilla Andrade, Geandra Nobre, Jaqueline Andrade,
Wallace Lino, Tatiane Charlene e David Santana. Todos os jovens permanecem na companhia, com exceção de
David Santana.
203

da Maré 447. A performance já indicava um tipo de linguagem que nos anos seguintes o grupo

iria desenvolver. Por meio de elementos da farsa, da sátira e do grotesco, a performance

apresentava um retrato tragicômico das favelas cariocas. A repercussão desta experiência

fortaleceu o grupo, que, em 2007, foi contemplado com o Prêmio FUNARTE Myriam

Muniz 448 para a montagem de Qual é a nossa cara?.

O espetáculo é o resultado de um processo que vasculhou memórias não só dos

integrantes do grupo, como também de outras personalidades da Maré. O ponto de partida

para a sua criação foram entrevistas com personagens chave da favela de Nova Holanda,

pessoas que tinham histórias para contar sobre o local, comunidade que eles decidiram,

naquele trabalho, homenagear. Histórias pessoais e coletivas foram exploradas por meio de

improvisações e mais tarde incluídas na peça. O espetáculo é composto por diversos planos de

ação. Em alguns momentos os próprios atores revelam diretamente à platéia suas memórias

pessoais, em outros estão caracterizados por figuras emblemáticas da Nova Holanda como o

Jorge Negão, o lendário chefe do tráfico na favela dos anos 80, ou o senhor Joaquim Severino,

77 anos, um dos primeiros moradores da Maré; situações marcantes da história de Nova

Holanda são levadas ao palco por meio de imagens ‘fantásticas’ construídas através de formas

e movimentos executados pelo corpo dos atores.

447
O Complexo da Maré é um bairro formado por 16 comunidades situadas à margem da Baía de Guanabara,
entre a avenida Brasil e a Linha Vermelha, duas das principais vias de acesso à cidade do Rio de Janeiro. O
Complexo é visto por aqueles que desembarcam no Rio de Janeiro pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim,
conhecido como Aeroporto do Galeão, no trajeto em direção aos demais bairros da cidade. A Maré possui cerca
de 132 mil habitantes distribuídos em aproximadamente 38 mil domicílios. Esse bairro possui, portanto, um
número de habitantes superior ao de importantes cidades do estado, como Cabo Frio, Araruama, Angra dos Reis,
Resende, Queimados e Itaguaí. No que se refere à infra-estrutura educacional, estão instaladas na Maré 15
escolas públicas – entre elas sete CIEPs –, sete creches comunitárias, além de várias escolas privadas voltadas
para a educação infantil e para o ensino fundamental. A Maré e os seus arredores contam com apenas duas
escolas de ensino médio, número insuficiente para atender a demanda da região. Cf. SOTER, Silvia. Cidadãos
Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré. Rio de Janeiro:UniverCidade
Ed., 2007. p. 35-36.
448
O Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz foi criado para incentivar a produção e a montagem de peças das
mais variadas modalidades e gêneros (teatro para crianças, para adultos, teatro de bonecos, teatro de rua, etc.) e
para apoiar grupos e companhias teatrais envolvidas em projetos de pesquisa teórica, de experimentação de
linguagem, de arte-educação, entre outras atividades. Realizado pela primeira vez em 2006 o Prêmio, que tem
patrocínio da Petrobrás, se consolidou como uma das principais ações de estímulo à produção teatral do país.
204

A narrativa entrecortada mostra um painel de situações do passado e do presente da

Nova Holanda, posta em cena não a partir de uma estrutura realista, mas por meio de um jogo

cênico corporal, no qual a fisicalidade dos atores desenha, esgarçando toda a sua

expressividade, figuras como a ‘pomba gira’ ou as mulheres do ‘dono’ da favela. Na estrutura

fragmentada do espetáculo, que contou com a supervisão de dramaturgia de Rosyane Trotta,

um momento invade o outro, num fluxo contínuo que não deixa para o espectador pistas do

que acontecerá adiante. Assim, um terreiro de candomblé, com mães de santo dançando ao

som de atabaques, é invadido por um pastor da Igreja Evangélica que, executando

movimentos frenéticos, grita: “Aleluia senhor!” Uma luta coreográfica é travada entre as duas

linhas religiosas, presentes na realidade do cotidiano da Maré. A transição entre este e o

próximo momento é costurada por um dos atores que fala à platéia sobre a personalidade de

Jorge, o ‘dono’ da favela, que inspirava ao mesmo tempo medo e admiração nos moradores da

comunidade. Não há um fio condutor lógico, mas uma imprevisível sucessão de

acontecimentos cênicos, inspirados pelos depoimentos reais e por representações ficcionais de

histórias do imaginário da Nova Holanda. A estrutura da encenação não acompanha a lógica

linear da ação ou da contação de uma fábula, mas diferente, baseia-se num repertório de

situações. A escritura cênica criada pelos atores e pela diretora, a partir de um processo

evidentemente colaborativo responde às feições da cena contemporânea, e às qualidades do

teatro pós-dramático, caracterizado por sua “intensidade, força e pulsões de presença” 449,

como observou Hans Thies-Lehmann.

Um dos momentos mais marcantes do espetáculo mostra um mascarado tentando

atravessar uma linha de fronteira. A figura, que não fala, apenas age, brinca com a expectativa

da platéia. O tom bem humorado do momento é ajudado pela música, percebemos que a linha

imaginada pelo mascarado é um limite, mas ainda não sabemos o porquê. Em seguida uma

449
LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro pós-dramático. Apud FERNANDES, Sílvia. Teatros pós-dramáticos. In:
O pós-dramático. GUINSBURG, J. e FERNANDES, Silvia. (orgs.) São Paulo: Perspectiva, 2008.
205

das atrizes entra em cena e desenha um mapa, explica um determinado evento ocorrido na

favela. Ela rabisca no papel ruas da Nova Holanda e revela o episódio histórico, um pacto

entre ‘Jorge Negão’ e os ‘Irmãos Metralha’, duas facções do crime nos anos 80, que

resolveram colocar as armas no chão e selar um acordo de paz. A narrativa deixa a cena e

outros mascarados, segurando armas de brinquedo, entram para ilustrar o episódio. São

figuras engraçadas e o público ri. O momento foi criado para ser engraçado.

Assim como este, outro trecho do espetáculo é bastante divertido, quando um grupo de

personagens vê um incêndio num ‘duplex’ de madeira da favela. Olhando em direção a algum

ponto na platéia, as personagens tecem comentários sobre a cena trágica, que ganha no

comportamento daqueles tipos populares, um tom farsesco. Os comentários e a gritaria das

figuras se intensificam até a chegada dos bombeiros, que é saudada por todos com aplausos

entusiasmados. Momentos como este, também sedem espaço para outros mais íntimos,

serenos, como o que uma das atrizes abre uma caixa de memórias e expõe para a platéia

pedaços de sua história pessoal. A caixa de segredos de Priscilla foi levada por ela mesma a

um dos ensaios da companhia. Isabel pediu que ela contasse ao grupo sobre as memórias que

estavam ali guardadas. Mais tarde, este momento, vivido na intimidade do grupo, virou cena

do espetáculo.

Nela, Priscilla, com delicadeza, remexia o seu passado, mostrava e comentava para a

platéia os seus “cacarecos”. O ticket da primeira ida ao teatro, um livro adquirido no Fórum

Social Mundial; um quarto de dormir desenhado depois de um estudo sobre o quarto de Gogol

na aula de artes da escola. No trecho, mostrando ao público um quarto desenhado com

capricho, Priscilla explicava que aquele era o quarto de seu sonho, já que “quarto de verdade

mesmo”, ela não tinha. A moça também comentava sobre outras memórias como: cartões de

inscrição para o vestibular em diversas universidades, tentativas frustradas por quatro anos

consecutivos, além de um texto de sua autoria publicado no Jornal da Maré, O Cidadão. Nele,
206

ela se pergunta: Maré, porque não? A caixinha da Priscilla representa a memória não apenas

de uma, mas de muitas jovens da Maré: os mesmos sonhos, as mesmas frustrações, a mesma

força para resistir e seguir em frente.

Outra passagem do espetáculo revelava também o seu aspecto crítico e irônico. Um

grupo de jovens é abordado por uma câmera de TV. Eles vestem camisetas coloridas, fazendo

referência às que são oferecidas aos jovens pelos patrocinadores de ‘projetos’. A câmera pede

que eles façam “um pedacinho da peça”, bem como fazem os repórteres de televisão quando

visitam projetos na favela. Os jovens obedecem, um sussurra para o outro: “diz que seu pai é

traficante” ou “diz que o projeto tá te salvando”. Um dos jovens é empurrado pelo grupo, ele é

pressionado pelo corpo dos atores, como uma ameaça. Uma espécie de ‘monstro opressor’

ganha forma na corporeidade do grupo, que luta com o jovem; ele parece enfrentar o conflito

entre se libertar ou aceitar os rótulos de ‘pobre coitado’ ou ‘quase’ bandido.

É um dos momentos do espetáculo onde fica mais evidente uma atitude de crítica por

parte do elenco sobre a sua realidade social. Mais do que procurar retratar eventos ou histórias

locais, o grupo imprimiu em todas as situações colocadas em cena uma perspectiva crítica,

expôs as contradições presentes no seu contexto social e ofereceu ao público, especialmente

aquele ao qual o espetáculo se destinava, a oportunidade de refletir e construir alguma

opinião. Isto foi possível porque o processo foi orientado de forma que favoreceu um debate,

um desvelamento daquele contexto por parte de todo o elenco e também da facilitadora, Isabel

Penoni. De fato, os atores são unânimes ao afirmar que o teatro os alertou para a importância

de perguntar o “porquê das coisas”, de não deixar as “coisas passarem despercebidas”.

Geandra Nobre revela o que sentiu quando descobriu que no teatro ela podia pensar:

No começo eu não gostava não. Odiava. Tinha que pensar! Eu não tinha o
hábito de fazer isso. Ninguém nunca me pediu para pensar. Em todos os
espaços, o familiar, o da escola, dos projetos, ninguém nunca me disse que
eu tinha que pensar. Aqui eu encontrei um lugar. A Isabel disse: “aqui eu
não mando, nós construímos o espaço”. Porra, ninguém nunca disse isso
207

para mim! Mas depois eu descobri que é bom pensar. Que é gostoso. É
fascinante descobrir que você pode ir além do que você imagina. 450

Assim, o passado e o presente da Nova Holanda, foram remexidos pelo grupo por meio

de um processo crítico-reflexivo num espaço muito particular, o do palco. Isabel tem uma

explicação para o envolvimento dos jovens com o teatro:

Eu sou uma pessoa muito apaixonada pelo teatro. E acho que muitos deles se
apaixonaram também. Daí vem a transformação. Acho que tem uma coisa de
um teatro mais engajado, de reflexão, de questionamento, que faz as pessoas
se depararem com questões pessoais e públicas, questões silenciosas,
sufocadas, na medida em que você vai colocando para fora, aquela prática
vai se tornando vital por que você se sente mais forte, vai criando um vício,
de se conhecer mais, de poder expandir seus limites.451

Qual é a nossa cara? esteve em cartaz por dois fins de semana na Casa de Cultura da

Maré. O espaço, lotado todas as noites, indicava o acerto do grupo na comunicação com a sua

platéia, que retornava nas noites seguintes para, junto com os atores, dizer as falas da peça.

Muitos rostos atentos, assim como os do Vidigal, repetiam na Maré um espetáculo à parte – o

da plateia. 452 A ‘cara’ do espectador revelava a compreensão de que aquele acontecimento

teatral dizia respeito a ele. Naquelas noites da Maré, ocorreu uma rara sintonia entre o palco e

a platéia. O depoimento de Márcio Libar, fundador do Teatro de Anônimo 453, resume bem a

experiência de participar daquele evento:

Tenho uma tendência natural de gostar ou no mínimo respeitar todo e


qualquer resultado artístico oriundo do subúrbio ou da periferia (...). Mas
dessa vez, confesso que fui realmente arrebatado. O que eu vi foi um
espetáculo emocionante e maduro (...). Um espetáculo que não defende uma
tese social, mas que expõe com liberdade as próprias contradições dos

450
Em entrevista pessoal (25/08/2007).
451
Em entrevista pessoal (18/12/2007).
452
A primeira sede do CEASM, hoje REDES, está localizada no Morro do Timbau. Em 2002, uma outra sede foi
inaugurada na comunidade de Nova Holanda. A criação de um novo espaço respondia à necessidade de ampliar
o atendimento aos moradores das diversas comunidades, já que sua livre circulação era restrita pela guerra entre
organizações criminosas. É interessante observar que a Casa de Cultura da Maré está situada mais próxima ao
Timbau, mas nas noites de espetáculo a platéia da Nova Holanda não deixou de comparecer.
453
O Teatro de Anônimo foi fundado em 1986 e dedica-se à pesquisa técnica e artística no que define de Teatro
Popular Circense, com enfoque principal na arte da comicidade, nas técnicas de números aéreos e no universo
teatral das festas populares.
208

jovens inseridos naquela realidade. (...) Mas a bela surpresa ficou mesmo por
conta do trabalho dos atores, que aparentavam uma tranqüilidade e uma
segurança na comunicação que só emerge na cena quando aqueles que a
defendem, sabem exatamente o que estão fazendo e o que querem dizer.
Durante àquela hora, esqueci por completo que estava diante de mais um
“Projeto Social”, e me senti tocado por uma obra de arte, tamanho o grau de
maturidade, profissionalismo e sensibilidade daquele elenco. Por fim, saí
com uma sensação de que este espetáculo deveria ser visto pelo maior
número de pessoas possíveis em todo o Brasil, principalmente na cidade do
Rio de Janeiro, (...) para poder nos inundar de esperança de que ainda há
vida inteligente no teatro carioca. 454

O samba que celebra a Nova Holanda é novamente cantado ao final do espetáculo. O

momento deixa para o público a impressão de que da caixinha de Priscilla saltaram muito

mais histórias do que as dela mesma; parece que nela cabiam as memórias da comunidade

inteira. Depois de Qual é a nossa cara? a Cia. Marginal consolidou o seu espaço dentro da

REDES. Desde então, a Cia. Marginal vem ampliando cada vez mais o seu diálogo com

outros segmentos da sociedade. Depois da Casa de Cultura o espetáculo foi apresentado no

Espaço Teatro de Anônimo (Fundição Progresso/Lapa/Rio de Janeiro), a um público de 250

pessoas, como uma das atividades previstas pelo Território Cultural 2008, evento realizado

pela CASA – Cooperativa de Artistas Autônomos, em parceria com organizações da sociedade

civil.

No mesmo ano, a Companhia foi uma das vencedoras dos Editais de Cultura 2008 da

Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, passando a receber desta entidade, em

2009, patrocínio para a manutenção de suas atividades de formação. 455 Mais recentemente a

Cia. Marginal ganhou o Prêmio de Apoio a Pequenos Eventos do Ministério da Cultura-

454
Disponível em: <http://www.ciamarginalmare.blogspot.com>
455
Concretamente, o patrocínio possibilitou aos atores trabalharem com bolsa durante todo o ano e, além disso,
foram oferecidas ao grupo três oficinas, todas elas ministradas por profissionais do teatro que atuaram ou atuam
em colaboração com a Cia. Marginal há cerca de cinco anos. A partir de 2009 o grupo inicia uma série de
apresentações de FRAGMENTOS, onde são costuradas algumas cenas de trabalhos passados, entre elas cenas do
Qual é a nossa cara?. Entre os eventos estão: o Primeiro Encontro pela Vida e Por Outra Política de Segurança
Pública (UFRJ - 08/08/2009); 15º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC - 13/11/2009), V
Seminário de Psicologia e Direitos Humanos (CRP – 05/11/2009); I Seminário de Educação da Maré (UFRJ –
07/11/2009).
209

MINC para a remontagem de Qual é a nossa cara?. Com isso, realizará uma nova temporada,

baseada, contudo, em duas etapas: a primeira na Nova Holanda, sua comunidade-mãe, e no

Centro de Artes da Maré 456, e a segunda, em um teatro da Zona Sul carioca. Assim como o

Vidigal, a Nova Holanda também será vista pelo mundo lá fora.

456
Um novo pólo de produção artística próximo da Maré, criado a partir da parceria entre a bailarina Lia
Rodrigues e a REDES.
215

4.4.2 – Japeri como palco e personagem.

A sede do Grupo Código é na comunidade de Nova Belém, em Japeri, município que

faz parte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro conhecida como Baixada Fluminense. A

área é considerada uma das mais pobres do Estado do Rio, obtendo os piores resultados nos

campos da educação e saúde. 457 Desde 2005, em uma rua discreta de Nova Belém, chão de

terra e precário saneamento, funciona a sede do Grupo Código. A ideia de criar um núcleo de

artes em Japeri surgiu depois que um grupo de jovens da comunidade participou do projeto

Tempo Livre, promovido pelo Serviço Social do Comércio SESC, no Centro Cultural de

Nilópolis, município próximo a Japeri. Neste projeto, do qual participaram cerca de trinta

jovens de diversas comunidades da Baixada Fluminense, entre elas Nilópolis, Nova Iguaçu,

Duque de Caxias e Mesquita, os integrantes do grupo Nós do Morro ministraram oficinas

teatrais. 458 Nessas oficinas os jovens tiveram contato com multiplicadores do grupo do

Vidigal, inclusive com seus fundadores, Fred Pinheiro, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Guti

Fraga. Os artistas deixaram a Zona Sul do Rio em direção à Baixada para incentivar a ideia de

457
De acordo com as Estimativas da população para 1º de julho de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (29 de agosto de 2008), a população de Japeri, era de 100.055 habitantes, menor do que a do
Complexo da Maré. Uma matéria publicada em O Globo (<http://www.globonline.com.br>, 23/08/2009),
destaca o acelerado nível de desenvolvimento de alguns municípios do Estado do Rio. No ranking do IDH
(Índice de Desenvolvimento Humano) Japeri obteve os piores resultados nas áreas de educação e saúde, ficando
atrás de outras regiões pobres do Estado como Belford Roxo e Duque de Caxias. O levantamento foi realizado
pela Firjan (IFDM – Índice de Desenvolvimento Municipal). Para se ter uma ideia da realidade da Educação em
Japeri, uma outra reportagem de O Globo (<http://www.globonline.com.br>, publicada em: 12/05/2008) revelou
que em 2008 dois mil alunos de 5a. a 8a. série estudavam em sistema de “rodízio” na Escola Municipal
Bernardino de Melo. Das quinze turmas da escola, todo dia, três ficavam em casa. O motivo era a falta de
carteiras para todos os estudantes.
458
O Serviço Social do Comércio - SESC, mantido por empresários do comércio de bens e serviços, é uma
entidade que atua nas áreas da Educação, Saúde, Lazer, Cultura e Assistência. Em 2004, o SESC-RIO promoveu
o Projeto Tempo Livre, uma iniciativa que visava a construção de quadras esportivas em municípios do interior
do Estado do Rio, além de oferecer oficinas artísticas aos jovens das comunidades. O Nós do Morro orientou as
atividades teatrais, o Afroreggae, as musicais, e a Cia. Étnica de Dança, as de dança. O projeto tinha também a
meta de estimular a atuação de artistas/agentes que já desenvolvessem atividades dentro de suas comunidades.
As oficinas com o Nós do Morro em 2005 aconteceram no Centro Cultural de Nilópolis, onde jovens dos
municípios próximos se encontraram. As atividades aconteceram entre Maio e Novembro, quinzenalmente, nos
fins de semana. Começavam sexta-feira à noite e terminavam domingo à tarde. No mesmo ano os jovens de
Japeri se organizaram para criar a sua própria sede. Receberam o apoio do SESC e do Nós do Morro até 2007.
Durante este período a atriz Miwa Yanagizawa, facilitadora do Nós do Morro, acompanhou o grupo, dirigindo os
seus espetáculos.
216

disseminar núcleos teatrais naquela região. Guti Fraga aceitou o convite do SESC, mas

defendeu a ideia de que o projeto Tempo Livre, não se restringisse apenas a um contato

temporário dos jovens com o teatro, mas que servisse como um estímulo para que eles se

organizassem e criassem em suas próprias comunidades outros grupos teatrais.

Mobilizados por esta ideia, após o término do projeto, os vinte e três jovens, a maioria

deles moradores de Japeri se uniu para fundar um grupo. A primeira iniciativa foi conseguir

um local para a sua sede. Eles alugaram uma casa em Japeri, lugar de uma antiga creche

abandonada. 459 O espaço foi adaptado com o recurso dos próprios integrantes, com a ajuda de

familiares e doações de comerciantes da comunidade. Uma área externa e coberta da casa foi

dividida em dois espaços, um para o palco, outro para a platéia. No telhado de zinco, latas de

leite em pó transformadas em refletores foram instaladas. O chão é de cimento; no lado da

platéia cadeiras simples organizadas em algumas fileiras. Uma pequena área destinada à uma

mesa para operação de som e luz. Dentro da casa, os cômodos se transformaram em

camarins. No seu muro externo, o nome do grupo pintado à mão. Na rua, que ainda não

ganhou asfalto, um valão a céu aberto. Quem passa em frente ao muro da casa se surpreende

quando descobre que lá dentro um grupo de teatro se prepara para entrar em cena.

Em novembro de 2005, o grupo estreou o espetáculo Código, uma colagem de situações

típicas do trem suburbano, que fazia uma crítica bem-humorada sobre os problemas

enfrentados pela população da “Baixada”, dependente do meio de transporte precário para se

deslocar. A viagem tinha início na estação de Japeri e a cada nova parada, outras personagens

se apresentavam ao público. O destino de algumas era a praia, o de outras o trabalho.

Momentos de empurra-empurra, confusão e mal-estar, característicos do cotidiano dos trens

foram transportados para a cena. Personagens curiosas, como o pastor evangélico que “prega”

como cantor de rap ou a falsa mendiga que engana os desavisados, compunham um painel de

459
O aluguel da casa era pago com o recurso dos próprios jovens que dividiam o valor de 300,00 reais.
217

tipos populares e situações caóticas vividas por aqueles que deixam as regiões mais afastadas

rumo ao centros urbanos.

No início de 2006, a casa movimentada pelos jovens já começava a chamar mais a

atenção da comunidade. A estréia de Censura Livre, segundo espetáculo montado em sua

sede, conquistou de vez a freqüência dos moradores ao espaço. Desde então, além da

apresentação de espetáculos, o grupo multiplica seus saberes oferecendo gratuitamente à

comunidade atividades como: aulas de teatro, capoeira, desenho e artesanato. Outros

moradores de Japeri também se envolveram no projeto.

Com a parceria deles, o grupo conseguiu ampliar a sua oferta de atividades. Além das

oficinas culturais, o espaço abriga o projeto de alfabetização de jovens e adultos, Brasil

Alfabetizado, e promove os eventos Cine Belém 460 e o Tempero Cultural, um encontro

bimestral que oferece o espaço do palco para a expressão artística de membros da comunidade

e convidados. Uma biblioteca também foi organizada no local. Em 2009, o grupo foi

contemplado com um prêmio oferecido pelo concurso Pontos de Leitura do Ministério da

Cultura; os recursos disponibilizados pelo prêmio foram investidos na melhoria da infra-

estrutura da biblioteca, que já funcionava no lugar.

Censura Livre, espetáculo baseado em Liberdade, Liberdade de Millor Fernandes e

Flávio Rangel, texto que marcou a história do teatro brasileiro por ter sido um dos maiores

sucessos do teatro de protesto, com forte crítica à repressão imposta pelo golpe militar de

1964, foi adaptado e dirigido por Miwa Yanagizawa. 461 A peça, cuja versão original estreou

em 1965 tendo alcançado grande repercussão principalmente entre os jovens universitários na

época, ganhou em Japeri uma abordagem mais atual, repleta de ironia e sarcasmo.

460
O projeto de cinema do Grupo Código exibe filmes gratuitamente em um telão improvisado e possibilita a
discussão dos temas apresentados na película.
461
O SESC-RIO, devido ao desejo do grupo de dar continuidade às suas atividades em Japeri, continuou
financiando as visitas de Miwa Yanagizawa ao grupo. Para a montagem de Censura Livre (2006), bem como de
Do lado de cá (2007), Miwa, visitou o grupo durante os fins de semana, quinzenalmente. Nos outros dias da
semana os próprios jovens se organizavam para os ensaios. Assim, podemos dizer que embora sob a orientação
de Miwa, o grupo trabalhou com bastante autonomia nos processos de criação dos dois espetáculos.
218

Entretanto, o tom de protesto presente na obra de Millor e Rangel não perdeu o seu

lugar, os jovens atores da Baixada queriam, desde o início do projeto realizar um teatro

engajado, comprometido com a crítica social e com o bom humor. Os números musicais e as

letras, compostas por integrantes do grupo, eram os pontos altos do espetáculo que

entusiasmou a platéia comunitária.

Logo na abertura da peça, os atores, em trajes que sugeriam a vestimenta de toureiros,

sacudiam panos vermelhos e cantavam ironizando sobre possíveis soluções para problemas do

Brasil. Dizia a letra:

Olé, Eu acredito e porque não? Dando uma de toureiro, o mundo tem


solução. Olé, Eu acredito e você não? Tem que ter muita coragem e fé na
constituição. Quem roubar um dia vai ser condenado. Vinte anos de cadeia
em regime fechado. Ou melhor, não haverá policiais. Pois não terá nenhum
ladrão, bandido ou marginais. É, não haverá mais desemprego. E nem
trabalho escravo, exploração.... É só sossego! A classe baixa, média, alta,
isso não mais haverá. E toda renda do país agora eu vou partilhar,
companheiros! (...) Descobrirão que o problema da fome tem solução. A
receita é... Menos desperdício e mais distribuição. (...) No SUS servirão até
café com biscoitos. E os funcionaram nos trataram com educação é claro. E
com remédios gratuitos sobra mais do meu salário...(...) E a nossa Educação?
Ah, dessa vez vai pisar fundo. Colégios públicos com computadores em sala.
Cursos técnicos. E com meninos bonitos, e meninas também. Universidades
em todas as cidades!

Em outro momento, uma empregada doméstica, a Maria do Céu, dirigia-se à platéia para

reclamar da patroa “muquirana” e do salário atrasado. A personagem perguntava ao público o

que é a liberdade, e debochava afirmando que “liberdade de verdade” ela só conhecia aquela

da estátua nos Estados Unidos. A opção pelo elemento do humor crítico, pela música e

também por tipos populares como Maria do Céu arrebatou o público de Japeri. A iniciativa

ganhou força na região que até então não possuía nenhum tipo de opção cultural ou de lazer.

Além de consolidar o público para os espetáculos, também cresceu o número de moradores,

principalmente crianças, interessadas em participar das atividades. Algumas mães de

integrantes do grupo passaram a se envolver na confecção de figurinos e comerciantes


219

disponibilizaram materiais para os cenários. Mesmo sem um apoio financeiro, uma rede de

sustentabilidade comunitária se formou, permitindo que a iniciativa ganhasse continuidade.

Hoje a ação é mais uma prova de que mesmo abandonadas pelo poder público, comunidades

como Japeri sabem se organizar e descobrir estratégias criativas para desenvolver seus

projetos.

A terceira produção do grupo, Do lado de cá, também foi dirigida por Miwa

Yanagizawa. Assim como em Censura Livre, eles optaram pelo uso do humor e da música,

mas desta vez, ao invés de basear-se num texto já pronto, decidiram criar, a partir de

improvisações inspiradas por temas do cotidiano de Japeri, um texto próprio. O título da peça

Do lado de cá já revela a intenção do grupo: mostrar com versão própria as diversas faces de

sua comunidade. O processo de criação do espetáculo, orientado por Miwa, teve como ponto

de partida o desejo dos jovens de falar sobre Japeri de uma maneira crítica, mas engraçada.

Miwa perguntou ao grupo: “E agora, sobre o que é que nós vamos falar?” A resposta foi:

“Sobre Japeri”. A diretora explica como ideia ganhou forma:

Depois do Censura Livre nos perguntamos sobre o próximo projeto. Eles


[jovens] têm uma linguagem muito próxima da linguagem local mesmo, eles
entendem da coisa, eles entendem das pessoas de lá. Então foi uma opção.
Partiu de uma conversa, de várias conversas. Todos preferiram criar um
espetáculo que representasse a voz da Baixada, porque se você fala de
Japeri, você fala sobre a Baixada, sobre as pessoas, a solidariedade entre
elas, suas necessidades, a precariedade da administração. Todos contaram
situações de convívio em Japeri, família, vizinho etc. Daí surgiu muita
improvisação. 462

A temática das improvisações partiu de situações do dia a dia de Japeri, brigas entre

vizinhos, tipos muito próximos das personalidades da vida real de Nova Belém, o

“churrasquinho” do domingo, as reclamações e os desejos das pessoas da comunidade. A

trama principal gira em torno de uma aposta na mega-sena. Reunidos como de costume para

um churrasco de fim de semana, momento da peça em que todos os conflitos do grupo vêm à

462
Em entrevista pessoal em 23/03/2008.
220

tona, a falta de dinheiro, rivalidades entre as mulheres da comunidade, a malandragem dos

homens, ciúmes entre casais etc, o grupo subitamente recebe a visita de uma vidente. Na cena,

a visitante inesperada, num instante de transe sobrenatural, adivinha os números da mega-

sena. Um dos vizinhos anota o palpite e todos resolvem fazer um “bolão”. As personagens

estão certas de que vão ganhar o prêmio e na semana seguinte, um novo encontro é

organizado. Desta vez, Beth elegantemente vestida, a anfitriã do quintal onde acontecem os

churrascos, esnoba o comportamento de “emergente”.

A cena é preenchida pelas mesmas personagens, agora ricamente vestidas, ouvindo

ópera e tomando champanhe, o clichê da festa burguesa. Um interessante trecho da encenação

mostra num vídeo que projeta o depoimento de alguns moradores de Japeri contando o que

fariam com o dinheiro, caso ganhassem na loteria. Em seguida, o prêmio é anunciado, e

conforme o esperado o grupo de personagens é o vencedor. Mas, para desespero de todos,

Charles, o vizinho que havia ficado responsável por fazer a aposta na casa lotérica, havia

sumido com o dinheiro do bolão. O roteiro de improvisações deu origem a um texto

alinhavado por Luiz Paulo Corrêa e Castro, o dramaturgo do Nós do Morro. A “tecnologia”

desenvolvida no Vidigal passou a ser também ali aplicada.

Do lado de cá, obteve grande sucesso junto a comunidade de Nova Belém, lá, mais uma

vez, assim como no Vidigal e na Maré, a comunicação entre palco e platéia era imediata, o

público se reconhecia em cena e percebia que aquele teatro falava sobre eles e para eles. Até

então, distante do espaço onde são maiores as possibilidades para a criação de novas redes de

troca, a soluções encontradas pelo grupo para sobreviver se agarravam quase sempre nas

mãos de quem estava ao lado, a própria comunidade. Como observou Miwa Yanagizawa:

“Em Japeri o senso de comunidade está muito presente. Eles sentem na pele todos os

abandonos. É um lugar muito prejudicado. A preocupação com o coletivo vigora muito. Eles
221

463
são muito preocupados com as necessidades de sua comunidade.” Em 2008, a iniciativa

ganhou o nome de Grupo Sóciocultural Código, associação sem fins lucrativos, a partir dali,

para ampliar recursos e expandir as suas atividades o grupo conquistou novas parcerias.

A poliglosia da sociabilidade rendeu aos jovens empreendedores, além do apoio do

Ministério da Cultura em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro,

através do projeto Pontos de Cultura, também o incentivo da BrazilFoundation, uma ONG

que capta recursos nos EUA para investir em organizações sociais brasileiras. 464 Para 2010, o

grupo aguarda a confirmação de um acordo também com o programa Mais Educação.465

Enquanto os recursos disponibilizados pelos parceiros estiverem valendo, as atividades do

Código acontecerão, sem dúvida, com mais conforto; mas, ainda que eles sejam suspensos,

tudo indica que a criatividade e perseverança do grupo, somadas ao apoio comunitário

continuem garantindo a sua sobrevivência. Entretanto, a sua realidade hoje não foge da regra,

se por um lado a ameaça de que os interesses de sua comunidade-mãe não sejam atendidos

pareça possibilidade remota, de outro, é certo que ao encontrar novos parceiros ele também

não escapará do desafio de conviver com a dialética da comunidade sujeito/objeto.

463
Em entrevista pessoal em 23/03/2008.
464
A BrazilFoundation possibilita que pessoas físicas e jurídicas nos Estados Unidos possam doar a iniciativas
sociais no Brasil e deduzir o valor das doações do Imposto de Renda Americano. De acordo com informações
fornecidas pelo site da ONG, a captação é realizada através de “campanhas de mobilização, objetivando não só a
geração de recursos, como também o desenvolvimento de uma comunidade doadora qualificada e cada vez mais
consciente de seu papel para a construção de um Brasil melhor e mais justo.”As informações são do site
http://brazilfoundation.org. Em 2009, a organização doou ao grupo de Japeri o valor de 30 mil reais.
465
O Programa Mais Educação é direcionado às crianças, adolescentes e jovens da rede pública de ensino
básico e tem como objetivo otimizar as ações e os investimentos, já existentes no país, para que complementem a
formação escolar com uma visão integradora do ensino. Quatro ministérios irão atuar conjuntamente na
formulação das políticas públicas do Programa - Educação (MEC), Cultura (MINC), Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS) e Esporte (ME). As informações são do site: http://www.cultura.gov.br.
226

4.5 - Os três grupos e a relevância do papel do artista facilitador no desafio da


comunidade-sujeito.

As histórias dos grupos, o do Vidigal, o da Nova Holanda e o de Japeri partem de um

mesmo ponto. Suas intenções originais estavam voltadas para a criação de um teatro que

respondesse e falasse para as suas comunidades; histórias, lutas, alegrias e desejos

transformados em obra artística, por meio da parceria estabelecida entre os ativistas do teatro

aplicado, os artistas facilitadores, e os integrantes dos grupos, jovens moradores das

comunidades.

Nos três grupos, o tipo de parceria estabelecida entre os artistas, que compartilharam

com as comunidades o seu conhecimento teatral, e os jovens, contribuiu com o surgimento de

um teatro baseado na dinâmica do pela comunidade, que assegura a participação das

comunidades como autoras dos processos teatrais. O papel dos artistas assume neste processo

uma importância fundamental. No caso da Nova Holanda, o resultado do espetáculo final

reflete o diálogo estabelecido entre Isabel, a atriz, e o grupo de atores da favela. De um lado a

facilitadora, sua história, cultura e formação teatral; de outro o corpo, a voz, a cultura, a

história dos jovens da Nova Holanda. O palco promove o encontro, nele se apresenta uma

estética particular que sintetiza na cena, na expressão, o diálogo entre os dois universos. Cabe

ao artista facilitador utilizar uma “mão delicada”, que não exclui o seu conhecimento, mas

que o põe a serviço de alguém cuja vez deve-se entender como prioritária.

No campo do teatro aplicado a maneira como age o artista facilitador é determinante.

Nas ações do Vidigal, Nova Holanda e Japeri, o tipo de abordagem escolhida pelos artistas

encorajou nos grupos comunitários, a expressão de narrativas locais. Isto não teria sido

possível se a relação entre os artistas e os grupos não tivesse sido moldada pela ética da

comunidade-sujeito.
227

Nas três experiências, os artistas facilitadores provocaram os participantes a reinventar

na cena o território da luta; juntos tornaram a favela/comunidade um objeto de reflexão e

criatividade, inventaram linguagem cênica e dramaturgia próprias. A favela como palco e

personagem, inaugurou além de um novo espaço para o acontecimento teatral, também um

novo discurso, uma outra palavra.

As representações da favela/comunidade por ela mesma nos levam de volta ao

pensamento de Bertolt Brecht, quando este defendeu o potencial do teatro em provocar o

homem a adotar uma atitude semelhante a do cientista diante da natureza: “O teatro também o

acolhe [o homem] como transformador, aquele que é capaz de intervir nos processos da

natureza e nos da sociedade, que não encara o mundo apenas como é, mas que se faz senhor

dele.” 466 Este tipo de perspectiva investigativa, sobre o qual argumentou Brecht, é na opinião

de Tim Prentki um “pré-requisito chave para o teatro aplicado.” 467

Enxergar a realidade com as lentes de um observador crítico, um fazedor de perguntas,

é uma atitude indispensável para os participantes do teatro aplicado; instigá-la nos grupos

comunitários é uma das principais tarefas do facilitador. Segundo Prentki, “tornar estranho o

mundo familiar, encontrando diferentes maneiras de olhá-lo” possibilita o embarque “em uma

jornada em direção à auto-definição que não é a delimitada pelo discurso dominante.” 468 A

“auto-definição” mencionada por Prentki se associa aos processos que engajaram os três

grupos na descoberta da favela como personagem.

Para criar um discurso próprio, que “contasse” as suas comunidades com a própria voz,

o Nós do Morro, a Cia. Marginal e o Código precisaram adotar a atitude recomendada por

Brecht. Em busca de sua narrativa alternativa, a dramaturgia do Nós do Morro escreveu com

humor até as dificuldades da vida na favela, o grupo da Nova Holanda perguntou “Qual é a

466
BRECHT, Bertolt. O Teatro Dialético. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 138.
467
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p.32.
468
Ibidem, P.32.
228

nossa cara?” e os jovens de Japeri mostraram no palco como é a vida do lado de “lá”. As

intenções dos artistas na “aplicação” do teatro na realidade dessas comunidades, pelo menos

nos primeiros passos dos projetos, criaram circunstâncias favoráveis ao surgimento de

narrativas alternativas.

Neste sentido, o início do percurso dos três grupos guardou a devida distância de um

perigo que ronda os projetos do teatro aplicado. Como afirmou Tim Prentki: “O pressuposto

fundamental que está na base do teatro aplicado é o de que os indivíduos e as sociedades em

que eles vivem são capazes de transformação.” 469 Todavia, como o próprio Prentki observa, a

busca por essa “missão transformadora” pode implicar em armadilhas. Ao artista facilitador

cabe um aviso especial:

A tendência de trabalhar com aqueles que são vítimas da maneira como o


mundo é dirigido, em vez daqueles que dirigem o mundo, pode tentar o
teatro aplicado ao território do terapeuta, encorajando participantes a se
adaptar mais efetivamente ao mundo, em vez de imprimir suas cores no
mastro da mudança social, através do encorajamento da análise e ações que
buscam adaptar o mundo às necessidades e direitos da maioria das espécies.
Ao trilhar o caminho da inclusão social os facilitadores podem facilmente
encontrar-se operando como o braço (leve) da política governamental,
representando a sociedade civil e as parcerias do setor voluntário.
Aparentemente, as iniciativas democráticas, podem tropeçar facilmente na
domesticação, em situações onde o poder de definir a agenda e de agir sobre
ela não foi dividido com os participantes. 470

Cabe aos artistas facilitadores, a linha de frente das ações do teatro aplicado, uma

avaliação permanente sobre as armadilhas apontadas por Prentki. No caso dos três grupos em

questão, diferente do que acontece hoje em projetos atuantes no contexto das favelas cariocas,

que são criados por pessoas sentadas nos escritórios da “responsabilidade social” e

endereçados às comunidades por vezes sem que elas tenham participado das decisões, as

iniciativas do Vidigal, Nova Holanda e Japeri surgiram de dentro das comunidades,

demonstraram um vínculo forte com os seus interesses. Mesmo que a princípio a ideia tenha

469
Ibidem, p.29.
470
Ibidem, p.30.
229

partido dos artistas “de fora”, a relação por eles estabelecida com os grupos garantiu a efetiva

atuação da comunidade-sujeito.

No momento em que essas iniciativas passam a dialogar com a complexa rede que se

formou em torno de seus projetos, e inclui em sua pauta de conversas os mais diferentes

atores sociais, empresas, agências governamentais, os escritórios da responsabilidade social,

cabem a elas avaliar o significado da adesão a determinadas estruturas e, em que medida,

essas negociações estão garantindo o espaço para a voz de suas comunidades. Esta avaliação,

que representa a rigor o questionamento sobre a dialética da comunidade sujeito/objeto, é

também tarefa dos artistas facilitadores do Vidigal, da Nova Holanda e de Japeri, que

assumiram, junto com os grupos comunitários, a “gerência” dos projetos.

Hoje, a participação na ampla rede social traz para essas ações não só a chance de

agregar novos parceiros, como também a de falar para outras e diferentes plateias. No caso

do Nós do Morro, em especial, o teatro pela comunidade já circula por outros territórios.

Inaugura-se uma nova operação em que uma iniciativa do teatro aplicado, por definição mais

localizada em espaços alternativos, “sem glamour”, dialoga também com o mainstream. A

narrativa alternativa ganha a oportunidade de se pronunciar para um público maior, tendência

que já se anuncia no percurso da Cia. Marginal e do Código.

Se por um lado colocar o “pé lá fora” possa aumentar o risco de que se afrouxem os

laços comunitários, que representam os alicerces do projeto, de outro, atuar em contextos

mais amplos, dialogando com outras audiências, pode suscitar novas e mais positivas

percepções sobre a favela/comunidade, alterando a maneira que o olhar dominante a enxerga.

E este é um ganho significativo. Mas é claro que esses novos encontros podem influenciar

mudanças no teatro que foi originalmente produzido pela e para a comunidade; tornar-se um

produto apto a ser consumido em teatros comerciais, pode significar a obrigação de que sejam

atendidas e respondidas as exigências e demandas próprias desses espaços, do mercado e de


230

seus consumidores. Para participar da trama da narrativa dominante o Nós do Morro se arrisca

num jogo delicado. A ousadia é valida desde que não haja o prejuízo da integridade do corpo

e da palavra que um dia o teatro pela comunidade deu expressão.

Conseguir articular as relações com múltiplos atores sociais, resguardando as intenções

originais do projeto é uma tarefa que grupos como o Nós do Morro, e outros mais jovens

como a Cia. Marginal e o Código terão que aprender, refletindo sobre as suas escolhas,

avaliando perdas e ganhos, mas, sobretudo, se perguntando, sempre, sobre que lugar ocupa o

interesse e as necessidades da favela/comunidade no âmbito de suas ações. Uma vigilância

permanente sobre as suas próprias opções poderá afastar a ameaça de que a qualquer

momento seja perdida a autenticidade de sua voz. Assim, retomando as palavras de Milton

Santos, ainda que a realização da história, a partir dos vetores de cima, seja dominante, o

teatro aplicado terá possibilitado ao território da luta a chance da realização de outra história

- a partir dos vetores de baixo.


231

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Pedagogia da Autonomia Paulo Freire nos alerta sobre o perigo de uma ideologia

fatalista e imobilizante que, animada pelo discurso neoliberal, anda solta pelo mundo

assumindo “ares de pós-modernidade”. Para Freire este sistema de ideias “insiste em

convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural,

passa a ser ou a virar quase natural.” 471 De fato, o mundo globalizado, baseado nas tiranias

da informação, do dinheiro, da competitividade e do consumo investe todos os dias em nos

convencer de que nada pode ser feito diante da realidade que se apresenta, de que somos

incapazes de provocar mudanças na ordem estabelecida.

Como afirmou Zigmunt Bauman: “Vivemos em tempos implacáveis, tempos de

competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o jogo e

poucos se interessam em ajudar-nos”. 472 Ainda assim, a teimosia de muitas ações criativas,

corajosas, põe em xeque a competência da narrativa dominante. A dinâmica da nova ordem

global, que estimula as sensações de incerteza, insegurança, solidão, medo do futuro, é posta a

prova quando nos deparamos com iniciativas como as do Vidigal, da Nova Holanda, de Japeri

e tantas outras.

Nascidas no território da luta, essas ações do teatro aplicado enfrentam a ideologia

imobilizante para provar que, mesmo que estejamos vivendo em tempos de

“desengajamento”, a arte, sobretudo o teatro, por se tratar de um evento sempre coletivo, é

capaz de recriar a comunidade e engajar grupos em projetos inspirados pela cultura da

mudança. O teatro abre a oportunidade para que se realize uma ideia hoje quase fora de nosso

471
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996. p.19.
472
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.p.8.
232

alcance a de comunidade. Mesmo nos espaços onde a ação da globalização perversa ganha

contornos mais violentos, como nas favelas dominadas pelas facções armadas do tráfico de

drogas, onde o medo e o terror cultivam a fragmentação, o isolamento, ainda assim

encontramos grupos mobilizados por projetos que resgatam o espírito comunitário, a noção de

comunidade.

O Rio de Janeiro é hoje o palco de ações articuladas por meio do diálogo entre inúmeros

atores, pertencentes aos mais diferentes segmentos da sociedade. A cidade é o resultado de

uma criação coletiva, plural; ela representa um verdadeiro caleidoscópio de encontros,

desencontros, movimento, transformações. Pelo Casarão do Vidigal transitam personagens

das mais diversas origens, artistas facilitadores, jovens integrantes provenientes de diversas

comunidades, gente de todas as idades, de todos os lugares; nas platéias do Teatro do Vidigal

encontramos rostos de lá mesmo e de outras partes da cidade. Em contrapartida ao crescente

desprezo do Estado pelo território da luta, a omissão diante da tarefa de prover os bens

públicos como educação, saúde, segurança, lazer, e em conseqüência disso, o avanço do

domínio das facções criminosas, constatamos a persistência do grupo do Vidigal, a sua

desobediência à atitude fatalista que deixou os artistas “vidigalenses” escreverem uma história

de mais de vinte anos.

Na Maré, as apresentações da Cia. Marginal e da Lia Rodrigues Cia. de Danças

revelam na platéia um espetáculo à parte, a mistura de indivíduos, um espaço democrático,

que rompe barreiras e dilui fronteiras no instante efêmero da cena. Em Nova Belém, Japeri, o

grupo Código, “cria” do Nós do Morro, também atrai espectadores “de fora” mesmo que o

lugar guarde bastante distância em relação ao centro do Rio. Em Vigário Geral, o AfroReggae

acumula vasta experiência em receber visitantes, cariocas, estrangeiros, curiosos,

pesquisadores, artistas, empresários, todo tipo de gente. De outro lado, as bandas musicais do

grupo se apresentam em eventos na cidade e também no exterior.


233

Não são poucos os exemplos que demonstram o trânsito deste heterogêneo “elenco da

cidade” por seus diversos espaços e até por espaços distantes. A favela como palco e

personagem com suas produções artísticas, tem favorecido o tráfego, a fluência pelo Rio de

Janeiro de seus diversos atores, por seus diversos territórios; um movimento que parece

costurar os fragmentos de uma cidade, transformando ela mesma numa obra de arte, tecida

pelas mãos de seus variados personagens.

Nos últimos anos, a divulgação das realizações artísticas dos grupos provenientes das

favelas pelos canais de informação parece criar em nós uma sensação mais confortável de

cidade unificada. Os mesmos canais nos sensibilizam a fazer contribuições para campanhas

do terceiro setor, quase sempre estampando o rosto sorridente de uma criança negra, também

mostram no noticiário a cantora Madonna, escoltada por um batalhão de seguranças visitando

o Dona Marta, favela “pacificada”, e na novela do horário nobre, um grupo de personagens

subindo o morro para uma comemoração.

Não há como negar que todas essas ações agem sobre o imaginário coletivo e acabam de

alguma forma conduzindo à construção de outro olhar sobre a favela, menos baseado no

estigma da ovelha negra da cidade, expressão de autoria de Jaílson de Souza. Mesmo assim,

não podemos nos enganar de que muitas vezes os canais da informação animam uma falsa

ideia de mudança social, porque, como afirmou Souza, a verdade é que a visão negativa sobre

o território da favela ainda permanece hegemônica.

Diante da recusa de muitos atores sociais, especialmente dos próprios moradores das

comunidades e dos artistas facilitadores, atuantes em grande número em projetos sociais nos

espaços das favelas do Rio, em aceitar a realidade social, histórica e cultural, como um fato,

como observou Freire, quase natural, e das reflexões apresentadas ao longo deste trabalho,

cabe perguntar, e estimular que esses atores perguntem para si próprios: em que projetos

desejam se engajar? A que tipo de política em relação às comunidades se pretende aderir?


234

Que valores regem determinados projetos e porque participar deles? Até que ponto

determinadas ações indicam algum comprometimento com a cultura da mudança? Ou ainda,

que tipo de teatro se pretende fazer e colocar em cena?

Não resta dúvida que parte da tarefa de todos os indivíduos, sejam eles os membros

comunitários ou os ativistas externos, engajados em ações do teatro aplicado, como as

examinadas aqui, e em todas as ofertadas pela cidade hoje, é desenvolver um estado de alerta

crítico permanente sobre o seu papel dentro dos “projetos”. Um questionamento diário sobre

o intuito de sua “missão transformadora” e as armadilhas que nela possam estar escondidas.

O impulso solidário, corajoso, e até heróico, que muitas vezes motiva a participação

nessas ações não é suficiente se não se desenvolve um processo de ação-reflexão sobre as

estruturas que sustentam a existência desses projetos, se não se procura discernir entre as

ações que incidem na estrutura social com o intuito de transformá-la e aquelas cujas agendas

estão mais preocupadas em docilizar o território da luta. Não há receita para se escapar do

equívoco, mas é provável que este estudo tenha contribuído para ampliar a reflexão acerca do

fenômeno, que por ser tão recente, desafia uma percepção crítica e distanciada.

O dilema de articular uma negociação entre os vetores “de baixo” e os “de cima” sem

dúvida indica na trajetória dos exemplos analisados por este trabalho, muitos acertos, mas

também fragilidades, inevitáveis diante da difícil tarefa de conviver à força com esta tensão.

O grande mérito de todos eles, entretanto, está não apenas na reação inconformada diante da

realidade que se apresenta como quase natural, mas no compromisso com a ética e a estética

da comunidade-sujeito; compromisso materializado no palco em forma de arte teatral.

No Vidigal, na Maré e em Japeri, o palco comunitário trouxe para atores e espectadores

a possibilidade de se tornarem cidadãos mais críticos, mais autores de sua história, capazes de

interferir em seus destinos e nomear o mundo. Do território da luta surgiu um teatro que se
235

manifesta na expressão de narrativas alternativas com poder para resistir ao pensamento

único.

No mundo em que vivemos hoje não seria esta talvez a maior contribuição do teatro?

Não seria talvez este o seu maior desafio? Permitir que os canais da palavra, da imagem, do

som falem com independência, por si próprios, livres da “castração estética” promovida pela

narrativa dominante que, como nos lembra Augusto Boal, vulnerabiliza a cidadania

obrigando-a “a obedecer mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do


473
púlpito e de todos os sargentos”? Num tempo como o nosso não seria também um

indispensável papel do teatro permitir que se revelem histórias escondidas, que ainda não

tiveram a chance de serem contadas com a palavra e no corpo de seus verdadeiros sujeitos,

alterando a nossa maneira de ver e compreender o mundo?

Acreditamos que este estudo deixe questões úteis para aqueles que já estão engajados

em projetos do teatro aplicado, ou para os que ainda pretendem se engajar, somando-se como

atores na trama das novas redes de sociabilidade. Mesmo que permaneçam as perguntas, resta

pelo menos uma certeza: a de que o teatro, ainda que diante do mundo “implacável” em que

vivemos, guarda o potencial para provocar mudança, a força para travar uma luta contra a

apatia e a desesperança, e a crença de que a invenção de um outro mundo é possível.

473
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e
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Nós do Morro - Grupo de teatro amadurece. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 05/06/89. Ipanema.

HIDALGO, Luciana. TV de mentirinha é sucesso entre as crianças do Vidigal. Jornal O Dia, Rio
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Vidigal em clima de programa de TV. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/06/1990. Ipanema.

Teatro inglês sobe o morro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 18/07/95. Segundo Caderno.

Teatro tem novo espaço no Vidigal. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 28/09/1995. Barra.

Ingleses ensaiam Hamlet com grupo do Vidigal. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 04/04/97.
Segundo Caderno.

LADIM, Pedro. Lutando pela brincadeira. Prestes e comemorara 15 anos o grupo Nos do Morro
inaugura seu novo teatro com peca infantil. O DIA - O Dia D - 30/08/2001.

Unesco reconhece trabalho de ONGs. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 30/08/2001. Zona Sul. P.
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Nós do Morro completa 15 anos com musical. Jornal O Globo, Rio de Janeiro 08/05/2002.
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A Vez do asfalto. Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 9/05/2002. Caderno D. Capa.

A princesa e o plebeu das favelas cariocas nos palcos paulistanos. Jornal Diário de São Paulo,
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NESPOLI, Beth. Samba, amor e violência em Noites do Vidigal. O Estado de São Paulo, São
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Não basta dizer não! Nós do Morro faz aposta na profissionalização. Jornal O Globo, Rio de
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LUIZ, Macksen. O excluído sobre ao palco. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30/12/2002.
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ALVES, Patrícia. Palco vira sonho da favela. Embalados por Cidade de Deus, jovens carentes
querem ser profissionais de cinema e teatro. Jornal Extra, Rio de Janeiro, 24/11/2002.

Da favela do Vidigal para o show bizz. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 4/01/03. Segundo
Caderno.

Mudança de tela. Atores de Cidade de Deus estão em novela da Globo. Jornal do Brasil, Rio de
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OLIVEIRA, Roberta. Nós do Morro vira companhia e se apresenta em Londres. Jornal O Globo,
Rio de Janeiro, 07/06/03, Segundo Caderno. Capa.

PAIVA, Anabela. Doutor da periferia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9/9/2003. Caderno B,
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AMORIM, Cláudia. Como incluir as exclusões. Autor do Grupo Nos do Morro, Luiz Paulo
estréia peca sobre o mundo além Vidigal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27/11/2003. Caderno
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OLIVEIRA, Roberta. Olhar além do Vidigal. Grupo Nos do Morro cria 14 “células” em cidades
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AUTRAN, Paula. A cidade unificada. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Rio.

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FILHO, William Helal. 20 anos desatando nós. O morro pede passagem. Jornal O Globo. Rio de
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Eventos põem lenha no caldeirão cultural. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 19/11/2006. Globo
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SOLER, Alessandro. ONGs atuantes em favelas do Rio se unem no F4, contraponto irônico ao
G7, e propõem concerto social a partir da periferia. Jornal O Globo, Rio de Janeiro,
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..................................AfroReggae abre oficinas de artes em zona de guerra. Jornal O Globo, Rio
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VELASCO, Suzana. Na ponta do mundo. Dançando pra não dançar cria companhia e mostra os
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AfroReggae é companhia associada ao Barbican Centre. Maior Centro artístico-cultural da


Europa convida o AfroReggae para parceria em reconhecimento a qualidade artística da banda.
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MONTEIRO, Karla. Uma salva de palmas. Matéria sobre o Galpão Aplauso. Jornal O Globo.
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Mais da metade dos jovens de 15 a 17 anos não esta cursando o ensino médio. Disponível em:
<http://www.globoonline> Publicada em 19/01/2010. Educação.

Unesco: Brasil avança na educação, mas segue em posição intermediária. Disponível em:
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Cuba abre seu espaço aéreo aos EUA. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 16/01/2010. Mundo. P.
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MONTEIRO, Karla. Maré Alta. Cia. de dança abre espaço para balé, aulas e pecas num dos
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DALE, Joana. A novela sobre o morro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/04/2010. Revista da
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publicação):

BRANDÃO, Tânia. Teatro do crioulo doido. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/06/88. Segundo
Caderno.

FISCHER, Lionel. Grupo Nós do Morro comemora 15 anos com ótimo espetáculo. Jornal
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30/05/2002. Teatro/crítica.

HELIODORA, Bárbara. Uma festa com muito humor e alegria. Jornal O Globo, Rio de Janeiro,
24/05/2002. Segundo Caderno.
..........................................Com talento, garra e pouco dinheiro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro,
03/12/03. Segundo Caderno.
...........................................Mesmo irregular montagem tem seus encantos. Jornal O Globo, Rio
de Janeiro,23/04/2004. Segundo Caderno.
............................................Os Dois Cavalheiros de Verona. Um Shakespeare com alegria e
seriedade. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 29/10/2006. Segundo Caderno.

LUIZ, Macksen. O entusiasmo do Nós do Morro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro 04/12/03.
Caderno B.
............................Sonho de uma noite de verão ganha ótica popular. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro,19/04/04. Caderno B.
............................Uma excelente montagem do grupo Nós do Morro. Os Dois Cavalheiros de
Verona. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5/11/2006. Caderno B.

Sites pesquisados:

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<http:// www.observatoriodasfavelas.org.br>
<http://www.vivario.org.br>
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<http://www.vivafavela.com.br>
<http://www.nosdomorro.com.br>
<http://www.afroreggae.org.br>
<http://www.rits.org.br>
<http://www.redesdamare.org.br>
<http://grupocodigo.blogspot.com>
<http://www.ciamarginalmare.blogspot.com>
< http://www.spectaculu.org.br>
< http://www.aplauso.art.br>
<http://seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline>

Entrevistas:

Com integrantes do Grupo Nós do Morro:

Diretores:
Fernando Mello da Costa em 09/12/2003.
Guti Fraga e Fred Pinheiro em 23/12/2003.
Luiz Paulo Correa e Castro em 14/08/2003 e 16/12/2004.
Maria José da Silva em 04/04/2004.
Atores:
Luciano Vidigal em 16/07/03.
Cristiano Lima dos Santos 22/09/2003.
Roberta Santiago 02/10/2003.
Rosana Rego Barros 02/10/2003 e 09/12/2003.
Cintia Rodrigues Martins Rosa 13/10/2003.
André Luís Alves da Cunha 21/10/2003 e 09/12/2003.
Roberta Rodrigues da Silva em 13/11/2003.

Entrevistas com os atores integrantes do Grupo Código (18/11/2006):


Sérgio Cardoso Filho
Felipe Adler
Rita de Cássia da Silva
Bruno Wetto Mebsta
247

Com a atriz facilitadora Miwa Yanagizawa em 23/03/2008.

Entrevistas com os atores integrantes da Cia. Marginal:


Diogo Vitor Araújo em 6/08/2007 .
Geandra Neves do Nascimento em 25/08/2007.
Jaqueline Silva de Andrade em 25/08/2007.
Wallace Gonçalves Lino em 27/8/07.
Tatiane Sharlene Antonio dos Santos em 27/8/07.
Priscilla Monteiro de Andrade em 27/8/07.
Com a atriz facilitadora Isabel Penoni em 18/12/2007.

Fotos

COUTINHO, Marina Henriques. Espetáculos do Nós do Morro, imagens do Vidigal, de Japeri e


de Do lado de cá, do Grupo Código.

YBARRA, Chico. Apresentação do Grupo Tá na Rua no Vidigal (RJ), em 01 de nov. 1981.


Acervo do Grupo Tá na Rua. (gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Ricardo Brugger Cardoso).

PENONI, João. Fotos de Qual é a nossa cara? (Cia. Marginal).

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