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A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO EM MIGUEL REALE

Autor: Francisco da Cunha e Silva Neto

http://www.advogado.adv.br/artigos/2005/franciscodacunhaesilvaneto/teoriatridimensi
onal.htm

Texto confeccionado em 2005 por Francisco da Cunha e Silva Neto, Bacharel em


Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestrando em Direito pela
Universidade Gama Filho – UGF, advogado nas cidades de Curitiba e do Rio de
Janeiro.

E-mail para contato: cunhasilvaneto@brturbo.com.br ou fcsn@pop.com.br

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O momento anterior à “Teoria Tridimensional do


Direito” de Miguel Reale – 3. A experiência jurídica como estrutura tridimensional – 4.
Dialética da complementaridade – 5. O Direito como experiência histórico-cultural – 6.
Modelos do Direito – 7. Conclusões – 8. Bibliografia Geral.

RESUMO: O nosso trabalho tem como objeto a análise da “Teoria Tridimensional do


Direito” do jus-filósofo brasileiro Miguel Reale, com ênfase nos seguintes aspectos: a
experiência jurídica como estrutura tridimensional, a dialética da complementaridade, o
Direito como experiência histórico-cultural e os modelos do Direito.

PALAVRAS-CHAVE: tridimensionalidade, experiência-jurídica, experiência histórico-


cultural e modelos do Direito.

ABSTRACT: This work purpots to analyse the Brazilian jurist-philosopher Miguel


Reale’s “Tridimensional Law Theory”, by highlighting the following angles: as a
tridimensional structure, the dialectics of complementarity, Law as a historical-cultural
experience and Law patterns.

KEY WORDS: tridimensional Law Theory, dialectics of experience, historical-cultural


experience, Law patterns.

1 – Introdução
O presente trabalho tem por escopo analisar “A Teoria Tridimensional do
Direito” do jus-filósofo Miguel Reale, especialmente porque o lente da Universidade de
São Paulo, ao sistematizar sua teoria, contempla o Direito não como um esquema
puramente lógico, uma vez que a Ciência Jurídica deve ser considerada em termos de
uma realidade cultural, onde a norma é tomada como resultado da tensão entre fato e
valor. Ou seja, para o devido entendimento da norma jurídica mister se faz estudá-la
numa relação de unidade e de integração entre fatos e valores.[1] Aliás, a tomada de
posição de Miguel Reale exige do jurista que, ao se deparar com a norma jurídica, saiba
que não há como abstrair do seu estudo aqueles fatos e valores, que determinaram a sua
própria gênese, sob pena de uma visão reducionista do Direito, o que o descaracterizaria
enquanto verdadeira ciência normativa. Disso resulta que toda norma jurídica é uma
integração entre fato e valor. Tal posição de Miguel Reale faz com que qualquer teoria
que admita um estudo separado daqueles três elementos ( fato, valor e norma ) logre
infrutífera e improdutiva para a explicação do fenômeno jurídico.

Importante notar que “A Teoria Tridimensional do Direito”, ao considerar a


importância da implicação-polaridade dos elementos fato e valor, produzida no
momento normativo, passa a ser uma das teorias antecipadoras dos novos estudos da
hermenêutica jurídica forjadas nas diversas universidades brasileiras e do mundo, uma
vez que encara o Direito não mais como uma proposição nos moldes de uma lógica
formal. Pelo contrário, a Ciência do Direito para Miguel Reale não é uma série de fatos
que ocorrem no plano da abstração, mas, sim, fatos que estão inseridos no processo
histórico da vida humana.[2]

Acentue-se que a obra de Miguel Reale é uma daquelas obras[3] que se renovam
no tempo e no espaço, a dizer, é uma obra que se atualiza pela própria lógica de sua
tese, mormente porque o jus-filósofo não vê o homem tão-somente no processo
histórico-cultural, tendo em vista que “o homem é, também, a história por fazer-se”.[4]

Esclareça-se que para o implemento da análise da “Teoria da


Tridimensionalidade do Direito” de Miguel Reale nos utilizaremos de cinco vieses da
sua obra, quais sejam: a experiência jurídica como estrutura tridimensional, a dialética
da complementaridade, o Direito como experiência histórico-cultural e modelos do
direito.

2 – O momento anterior à “Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale

O panorama do Direito anterior às formulações tridimensionais se caracterizava


por ser reducionista ou unilinear, especialmente a mentalidade do século XIX.
Discorrendo sobre essa situação, Miguel Reale constata:
Já foi dito – e a afirmação é válida em suas gerais dominantes – que a mentalidade do
século XIX foi fundamentalmente analítica ou reducionista, sempre tentada a encontrar
uma solução unilinear ou monocórdica para os problemas sociais e históricos, ao passo
que em nossa época prevalece um sentido concreto de totalidade ou de integração na
acepção plena destas palavras, superadas as pseudototalização realizadas em função de
um elemento ou fator destacado do contexto da realidade.[5]

Ainda dentro das idéias anteriores à formulação da tridimensionalidade, havia


duas tendências que competiam em relação ao fundamento do Direito, sendo que nelas a
realidade jurídica não correspondia mais aos padrões do jusnaturalista clássico. Uma
dessas tendências tomava os fatos jurídicos estabelecendo uma mera descrição de uma
realidade que desenvolveu sob a influência do positivismo e da sociologia “empírico-
naturalista”[6]. É o nominado sociologismo jurídico.[7]

De outro lado, com ênfase no criticismo formal do neokantismo de Marburgo, a


realidade é apreendida a partir de certos princípios a priori, onde a forma determina o
que é jurídico.[8]

Cirell Czerna chama a atenção para esse confronto entre o formalismo lógico e
um sociologismo de cunho naturalista, intitulando aludido confronto de
“unidimensionalidade”.

Diante desse quadro teórico, havia a necessidade de uma integração dos elementos
contrapostos, o que resultaria numa “bidimensionalidade”[9]. No entanto, tal não era,
ainda, possível, vez que nenhumas das “duas dimensões poderia oferecer o elemento
integralizante”. Vale reproduzir o raciocínio de Cirell Czerna sobre a insuficiência
daquelas posições para a produção do elemento integrador:

Se o formalismo lógico acusava o sociologismo de esquecer o critério segundo o


qual realidade deve ser ordenada, o sociologismo naturalístico acusava o formalismo de
esquecer a realidade viva, encerrando-se na universalidade lógica puramente abstrata.
Perante essa “unidimensionalidade”, representada por cada uma das tendências opostas,
surge a exigência de compreender a totalidade como uma integração dos elementos
contrapostos; mas esta não poderia ser o resultado de uma “bidimensionalidade”,
porque para tal integração se desse, nenhuma das duas dimensões poderia oferecer o
elemento integralizante: era necessário, pois, que surgisse um terceiro elemento, e que a
totalidade adquirisse, por isso mesmo, um aspecto tridimensional.[10]

Ora, é a partir do valor que temos o elemento mediador entre a norma e o fato.
Entretanto, é preciso visualizar a “exigência de entender a realidade como unidade”,
pena de não haver a integração. Com tal entendimento, anota Cirell Czerna:
Entre a norma e o fato surge assim o valor, como intermediário, como mediador do
conflito, elemento de composição da realidade em suas dimensões fundamentais.
Interessa ressaltar a exigência de entender a realidade como unidade, sem a qual não se
explicaria a tendência a integrar os dois elementos contrapostos, que se deixariam
separados num dualismo irredutível, exigência que unicamente pode explicar, na
verdade, o surgir da “tridimensionalidade”.[11]

Destaque-se que neste momento anterior à construção de uma teoria da


tridimensionalidade dinâmica – pertencente a Miguel Reale – a correlação existente
entre os planos fático, axiológico e prescritivo do Direito não foi de logo notada pelos
juristas e filósofos. Tal realidade é bem delineada por Reale:

É preciso observar que a unidade ou correlação essencial existente entre os aspectos


fático, axiológico e prescritivo do Direito não foi logo claramente percebida pelos
juristas e jusfilósofos, os quais, como vimos, foram antes tentados a compreender o
fenômeno jurídico à luz de um ou de dois elementos discriminados, dando, assim,
origem às teorias reducionistas (...) [12]

Convém acentuar que no amadurecimento das idéias que levaram à formulação


do tridimensionalismo são encontrados momentos diversos da teoria. Isto é, no exato
momento que os autores reconheceram a viabilidade da composição fato, valor e norma,
aí, sim, passamos a ter um incipiente “tridimensionalismo genérico de tipo
enciclopédico”.[13] Urge notar que a teoria tridimensional do Direito não surgiu de
repente, isto é, não apareceu de toda construída, mas adveio de longo tempo de
maturação e autocrítica.[14] Acrescente-se, ainda, que, de acordo com Miguel de Reale,
existiam várias modalidades de tridimensionalismo genérico e também diversas teorias
tridimensionais específicas.

Somente após o superamento dos estudos estanques do fato, valor e da


norma[15]é que teremos constituído o chamado “tridimensionalismo específico”. Nesta
fase, temos as formulações mais qualificadas da teoria do tridimensionalismo. Wilhelm
Sauer irá ser um daqueles filósofos que, juntamente com Reale, vai elaborar uma teoria
da tridimensionalidade mais complexa na década de 40 do século XX.[16] Insta
observar, contudo, que, apesar dos pontos em comum com a concepção de Reale, a
teoria tridimensional de Sauer apresentará pressupostos metodológicos diversos.[17]
Segundo Reale, na concepção de Sauer a tridimensionalidade resulta em um plano
estático, “desligado da experiência jurídica como processo histórico”. Criticando a
tridimensionalidade de Sauer, Reale aduz:

Não nos explica, com efeito, como é que os três elementos se integram em unidade,
nem qual o sentido de sua interdependência no todo. Falta a seu trialismo, talvez em
virtude de uma referibilidade fragmentada ao mundo infinito das “mônadas de valor”,
falta-lhe o senso de desenvolvimento integrante que a experiência jurídica reclama.[18]

Convém assinalar que ao tempo do aparecimento da “Teoria


Tridimensional do Direito” de Reale em 1940, outro jurista já brilhava há muito no
cenário internacional, a saber, Hans Kelsen. O mestre austriáco entendia o Direito como
sendo tão-somente a norma, quaisquer outras considerações a respeito dessa não
entravam na construção de seu conceito. A divulgação da Teoria Tridimensional do
Direito” de Reale vem à tona e contrasta com o normativismo hierárquico de Kelsen,
em particular porque nas palavras do jus-filósofo brasileiro:

(...) a norma é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo


partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma
é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, pela primeira vez, em meu livro
Fundamentos do Direito eu comecei a elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só
norma, como quer Kelsen, Direito, não é só fato como rezam os marxistas ou os
economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção
econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é
principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo,
porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor.

Lembre-se, outrossim, que incialmente Miguel Reale se referiu à sua teoria como
sendo “bidimensional”, mas, na realidade, segundo o próprio jus-filósofo, em pese a
utilização daquela expressão, o tridimensionalismo já existia, “mas sem a plenitude de
sua acepção verbal, o que demonstra como, às vezes por força de inércia, o sentido das
palavras ou da forma lingüística adequada tarda a revelar-se”.[19]

3 – A experiência jurídica como estrutura tridimensional

Partindo do entendimento de Miguel Reale que “fato, valor e norma estão


sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica”, o que
aponta no sentido de que os filósofos, juristas e sociólogos não devem estudar nem
analisar esses elementos de forma isolada, mas, sim, associados ao “mundo da vida”,
temos que mencionada posição rejeita o nominado tridimensionalismo genérico ou
abstrato. Quer dizer, as investigações do filósofo, do jurista e do sociólogo passam a ter
um sentido dialético, v.g., a sentença judicial é apreendida segundo uma experiência
axiológica concreta e não apenas como um ato lógico formal, resultante unicamente de
um silogismo. Em tal sentido, Reale salienta:
É necessário aprofundar o estudo dessa “experiência normativa”, para não nos
perdemos em cogitações abstratas, julgando erroneamente que a vida do Direito possa
ser reduzida a uma simples inferência de Lógica formal, como a um silogismo, cuja
conclusão resulta da simples posição das duas premissas. Nada mais ilusório do que
reduzir o Direito a uma geometria de axiomas, teoremas e postulados normativos,
perdendo-se de vista os valores que determinam os preceitos jurídicos e os fatos que os
condicionam, tanto na sua gênese como na sua ulterior aplicação.[20]

Ao se apreender esta dimensão axiológica no plano da experiência, os valores aí


não são tratados como entidades meta-históricas, mas como afirmado por Cirell Czerna,
em aprofundado estudo sobre Miguel Reale: “se realizam funcionalmente no próprio
processo, numa concreção móvel unitária ao mesmo tempo, que não pode dar lugar a
formalísticas abstrações reducionista ou isoladores”.[21]

Em conformidade com essa assertiva de Cirell Czerna, embasada na obra de


Reale, não há como o estudioso do Direito ( sociólogo, filósofo ou jurista ) poder isolar,
de forma absoluta – repise-se mais uma vez – os elementos fato, valor e norma e se
obter um resultado científico satisfatório, sob pena de um regresso a um tempo anterior
à tridimensionalidade concreta e dinâmica.

Reale faz questão de deixar claro que o direito é um só para todos os que o
estudam, mas isso não quer dizer que se tenha apenas uma única Ciência do Direito,
haja vista os vários “objetos de cognição que a experiência do direito logicamente
possibilita”.[22]

Ora, a experiência jurídica, como estrutura tridimensional, precisa ser


compreendida como forma de uma experiência tridimensional de natureza normativo
bilateral-atributiva. Tal caracterização se torna necessária porque a experiência jurídica
é feita não só de pessoas e das coisas pertencentes ao mundo, mas também das
valorizações daí decorrentes.

A tridimensionalidade, ao trabalhar com a experiência jurídica, tem como um


dos seus traços a própria atualização dos valores e o aperfeiçoamento do ordenamento
jurídico. Observando esta realidade, assinala Reale:

É para essa objetivação normativa que volve fundamental a atenção jurista, visando
à atualização dos valores que nela se consagram. Já o “político do direito” ou o
legislador, olhos atentos para experiência jurídica em geral, cuidam de aperfeiçoar o
ordenamento em vigor, para adequá-lo às novas exigências da sociedade”.[23]

Fazendo referência a essa atualização ( modelagem ) dos valores em razão da


experiência jurídica, afirma Reale:
A modelagem da experiência jurídica é feita, portanto, pelo jurista em contato
direito com as relações sociais, como o faz o sociólogo, mas enquanto este se limita a
descrever e explicar as relações existentes entre os fatos, em termos de leis causais ou
motivacionais, o jurista opera mediante regras ou normas produzidas segundo o
processo correspondente a cada tipo de fonte que espelha a solução exigida por cada
campo de setores.[24]

4 - Dialética da complementaridade

Miguel Reale, ao analisar a denominada “dialética da complementaridade”,


demonstra que o conhecimento está sempre aberto a novas possibilidades, tudo, pois,
em decorrência de seu caráter dialético e, por, isso, de natureza relacional.[25] Ao
trabalhar com este aspecto dialético de sua teoria, Reale em vero admite que o
tridimensionalismo anterior à sua elaboração era “abstrato e estático”. Esse
posicionamento do autor faz com que, no plano do conhecimento, não haja a redução do
sujeito em objeto ou o contrário, tendo em conta que

(...) visto como algo haverá sempre a ser convertido em objeto e, ao mesmo tempo,
algo haverá sempre a atualiza-se no tocante à subjetividade, através de sínteses
empíricas que se ordenam progressivamente no processo cognoscitivo.[26]

Podemos precisar este caráter dialético e relacional da tridimensionalidade


realeana porque no mundo dos valores e da praxis há uma intensa referibilidade, pois
como descrito na teoria do jus-filósofo brasileiro a correlação existente entre sujeito e
objeto é de complementaridade. Analisando esta correlação de implicação, observa
Reale:

Tal correlação de implicação não pode jamais se resolver mediante a redução de uns
aspectos nos outros: na unidade concreta da relação instituída tais aspectos mantêm-se
distintos e irredutíveis, daí resultando a sua dialeticidade, através de “sínteses
relacionais” progressivas que traduzem a crescente e sempre renovada interdependência
dos elementos que nela se integram.[27]
Em passagem da sua obra “Filosofia do Direito”, Reale avalia com precisão a
questão do processo dialético de complementariedade, a saber:

Na realidade, porém, fato e valor, fato e fim estão um em relação com outro, em
dependência ou implicação recíproca, sem se resolverem um no outro. Nenhuma
expressão de beleza é toda a beleza. Uma estátua ou um quadro, por mais belos que
sejam não exaurem as infinitas possibilidades do belo. Assim, no mundo jurídico,
nenhuma sentença é a Justiça, mas um momento de Justiça. Se o valor e o fato se
mantêm distintos, exigindo-se reciprocamente, em condicionalidade recíproca, podemos
dizer que há entre eles um nexo ou laço de polaridade e de implicação. Como, por outro
lado, cada esforço humano de realização de valores é sempre uma tentativa, numa uma
conclusão, nasce dos dois elementos um processo, que denominamos “processo
dialético de implicação e polaridade”, ou, mais amplamente, “processo dialético de
complementariedade”, peculiar à região ôntica que denominamos cultura.[28]

Ora, ao se pautar pelo caráter dialético da sua teoria da tridimensionalidade,


Reale reconhece que o direito é uma realidade histórico-cultural, a qual não pode ser de
forma alguma destacada da experiência social. Sobre tal situação teórica, alerta aquele
mestre:

Mister é não olvidar que a compreensão do direito como “fato histórico-cultural”


implica o conhecimento de que estamos perante uma realidade essencialmente dialética,
isto é, que não é concebível senão como processus, cujos elementos ou momentos
constitutivos são fato, valor e norma, a que dou o nome de “dimensão” em sentido,
evidentemente, filosófico, e não físico-matemático.[29]

Outro alerta de Miguel Reale diz respeito à importância da conduta na teoria


tridimensional do direito, uma vez que “a experiência jurídica não se resolve em um
fenômeno de conduta”, mormente porque o ato humano já se acha objetivado pela obra
do espírito.[30]

Consigne-se que, ao se referir a ato humano objetivado, Miguel Reale está


verdadeiramente fazendo alusão à “experiência histórico-cultural”, na qual distingue
entre fato do direito, global e unitário ( acontecimento espiritual e histórico ) e o fato
como dimensão da experiência. Quanto a essa distinção dos fatos, vale reproduzir as
palavras do lente da Universidade de São Paulo:

Neste segundo caso a palavra fato indica a circunstância condicionante de cada


momento particular no desenvolvimento do processo jurídico. Ora, fato, nesta acepção
particular, é tudo aquilo que na vida do direito corresponde ao já dado ou já posto no
meio social e que valorativamente se integra na unidade ordenadora da norma jurídica,
resultando da dialeticidade desses três fatores o direito como “fato histórico-cultural”.
[31]

Ao se enfrentar a teoria tridimensional do Direito, é preciso visualizá-la dentro


de um processo essencialmente dialético, onde as regras jurídicas são compostas do
material vivo da história. Assim, a norma – conforme nos é indicado por Reale –
contém a correlação fático-axiológica, o que poderá determinar uma futura conversão
em fato, haja vista um outro processo de integração normativa originado de novas
exigências valorativas, a dizer:

Em suma, o termo “tridimensional” pode ser compreendido como traduzindo um


processo dialético, no qual o elemento normativo integra em si e supera a correlação
fático axiológica, podendo a norma, por sua vez, converte-se em fato, em um ulterior
momento do processo, mas somente com referência e em função de uma nova
integração normativa determinada por novas exigências axiológicas e novas
intercorrências fáticas. Desse modo, quer se considere a experiência jurídica,
estaticamente, na sua estrutura, quer em sua funcionalidade, ou projeção histórica,
verifica-se que ela só pode ser compreendida em termos de normativismo concreto,
consubstanciado-se nas regras de direito toda a gama de valores, interesses e motivos de
que se compõe a vida humana, e que o intérprete deve procurar captar, não apenas
segundo as significações particulares emergentes da “praxis social”, mas também na
unidade sistemática e objetiva do ordenamento vigente.[32]

Cirell Czerna é enfático ao constatar que a ausência do princípio dialético da


compreensão dialética da realidade jurídica importa na impossibilidade de se captar a
unidade fundamental do direito como processo histórico-cultural. Referida
impossibilidade, conforme o entendimento do exegeta da obra de Reale, é uma marca
presente das teorias tridimensionais de natureza estática.[33]

5 – O Direito como experiência histórico-cultural

Neste ponto, Miguel Reale encara o Direito de um ângulo ético, isto é, do ponto
de vista da práxis. Aqui, o processo é visto como diz o próprio Reale em termos de
“experiência axiológica” ou “histórico-cultural”[34]. Ao analisar o Direito enquanto
“historicismo axiológico”, Reale entende que sujeito e objeto se implicam e se
relacionam, mas desta relação não resulta a redução de um pelo outro e nem que seja
imaginável a existência de um dos termos sem a existência do outro. Esta implicação e
relacionamento entre sujeito e objeto nos remete ao homem enquanto dever ser, que
segundo Reale:

(...) é enquanto dever ser, mais jamais a sua existência esgota as virtualidades de seu
projetar-se temporal axiológico, nem os valores são concebíveis extrapolados ou
abstraídos do existir histórico (polaridade ética entre ser e dever ser ).[35]

Ora, a confirmação de Reale, quanto à inesgotabilidade das virtudes do


homem, faz deste um ser radicalmente histórico e que, portanto, os valores só podem ser
concebidos na sua historicidade. Dessa maneira, o homem somente toma consciência
plena de seu atuar quando inserido numa dimensão histórica. Sob tal aspecto realça
Reale:

(...) Qualquer conhecimento do homem, por conseguinte, desprovido da dimensão


histórica, seria equívoco e mutilado. O mesmo se diga do conhecimento do direito, que
é um expressão do viver, do conviver do homem.

Pensar, porém, o homem como ente essencialmente histórico, é afirmá-lo como


fonte de todos os valores, cujo projetar-se no tempo nada mais é do que a expressão
mesma do espírito in acto, como possibilidade de atuação diversificada e livre.[36]

Reale enfatiza, também, que a história não pode ser imaginada como algo
acabado e que a própria categoria do passado só existe na medida em que haja
possibilidade de futuro. O jus-filósofo brasileiro atenta, ainda, que o presente se
constitui em tensão entre passado e futuro, e o dever ser “a dar peso e significado ao que
se é e se foi”. Deste raciocínio Reale sublinha que estabeleceu uma correlação
fundamentação entre valor e tempo, axiologia e história.[37] Essa questão é também
explicitada de forma sintética na seguinte passagem de Reale:

Não se podendo conceber valor que jamais se realiza, nem valor que jamais se
realize, nem valor que de todo se converta em realidade, há uma tensão permanente
entre aquele e esta, tensão que, no plano cultural do Direito, é representada pela norma
jurídica, fator integrante de valor e fato e fato. Dadas, porém, as apontadas
características de realizabilidade e inexauribilidade dos valores, a norma jurídica nunca
esgota o processo histórico do Direito, mas assinala os seus momentos culminantes.[38]
Nesse contexto, o mundo da cultura passa a ser “um patrimônio de atos
objetivados no tempo”, que resulta no “acúmulo de obras”. Reale denomina o mundo da
cultura como “mundo das intencionalidades objetivadas”.[39]

Insta observar que o historicismo de Reale não faz de sua teoria


tridimensional uma teoria relativista, haja vista que o seu historicismo é aberto, ou seja,
não há uma “determinante da história” a conformar o ato futuro numa condicionante
inteiramente formada pelo passado. Esclarecendo a questão do denominado
“historicismo aberto”, Reale acrescenta:

Para melhor determinação de meu pensamento sobre este ponto essencial parto da
observação preliminar de que só o homem é um ser capaz de síntese. Os outros animais
respondem a impulsos particulares e, no máximo, justapõem e congregam respostas
reflexas, em função dos estímulos recebidos. Jamais se antecipam à particularidade dos
impulsos numa antevisão consciente prevenida e intencional do futuro, superando o
disperso da experiência, alçada esta a uma compreensão conceitual envolvente e
diretora. Esse “poder de síntese”, como já se disse, não é senão a expressão do espírito
como liberdade, pois o homem, na evolução cósmica, só se libertou do meramente
natural na medida em que soube vir se impondo à natureza, servindo-se dela para os
seus próprios fins.[40]

Em outra obra, Reale anota mais uma vez a improcedência das alegações de
ser relativista à sua concepção da história do direito, senão vejamos:

Dessarte, sendo o processo histórico, governado pelo que se poderia denominar “a


abertura angular axiológica da pessoa”, não tem sentido considerar-se relativista a
minha compreensão da história do direito, que, sendo experiência de liberdade, não
pode ser senão plural e problemática, insuscetível de ser reduzida a uma planificação
sem alternativas. Se a história do direito tem um sentido, projeta-se ela do ser mesmo do
homem, com todos os riscos da ventura e da aventura de sermos homens, cada um de
nós subordinado, como ensinou Ortega y Gasset, ao irrenunciável e intransferível
projeto de nós mesmos.[41]

Ora, realmente improcedente a alegação de que a concepção da história do


Direito de Miguel Reale seja relativista, uma vez que não há como negar que seja o
Direito uma Ciência da análise do concreto, de uma disciplina que sofre modificações
no tempo e no espaço. Isto é, ao se deparar com o mundo, o homem não o encontra de
forma estática, mas antes como uma realidade a ser pensada e vivida, segundo um
referencial de valores e princípios. Frise-se que a realidade cultural se reporta ao homem
como ser livre, que atua e se comporta segundo inúmeras opções.
Ressalte, ainda, que Miguel Reale afirma que “O Direito é um processo
aberto exatamente porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de
todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções normativas de caráter
definitivo”[42].

6 – Modelos do Direito

A “teoria dos modelos do direito”, construída por Miguel Reale, como


contribuição à sua teoria tridimensional, não tem por alvo a suplantação da “teoria das
fontes do direito”, mas antes ser um complemento desta.[43] Conforme nos relata o
autor, a “teoria dos modelos do direito” se distingue em “modelos jurídicos” e “modelos
doutrinários”. Os “modelos jurídicos” são aqueles de “natureza prescritiva, inseparáveis
das fontes de que promanam, sendo, de origem legal, costumeira, jurisprudencial ou
negocial”.[44] Já os modelos doutrinários, de acordo com o raciocínio do mestre Reale
são os “de natureza hermenêutica, não necessariamente vinculados às fontes”.[45]

Interessante observar que Miguel Reale ao construir sua “teoria dos


modelos do direito” abstrai a doutrina das fontes do direito, pois entende que a doutrina
tem por função unicamente dizer o que as fontes e os modelos significam. Dissertando
sobre a superação do dilema de que a doutrina seja ou não fonte, Reale sintetiza:

“Põe-se, portanto, fim a vexata quaestio sobre se a doutrina é ou não fonte do


direito, por ter ela natureza própria de caráter hermenêutico, bem diversa do que
acontecia ao tempo em que o saber dos jurisconsultos possuía força vinculante.”[46]

Do fragmento textual acima, depreende-se com clareza que Reale parte do


pressuposto de que para se constituir em fonte do direito é necessário a coercibilidade
como qualidade, ou seja, sem essa força cogente não há como se admitir a doutrina
como fonte do direito. Reproduzimos o raciocínio de Reale no que tange a tal questão:

Cumpre, por conseguinte, ter presente que, a propósito do sentido ou valor das
normas jurídicas vigentes, são formuladas pelos juristas interpretações de natureza
doutrinária ou científica, destituídas de força cogente, limitando-se sua função a dizer o
que os modelos significam. Como variam os critérios e paradigmas interpretativos, as
proposições e modelos hermenêuticos – que no seu todo compõem o corpo da doutrina,
ou o Direito Científico, conforme terminologia de Savigny – dependem da posição de
cada exegeta, os quais se distribuem em distintas teorias ou correntes de pensamento.

É por essa razão, pela não-precritibilidade dos modelos hermenêuticos, que não
considero a doutrina uma das fontes do direito, o que não lhes diminui, absolutamente, a
relevância, visto como é tarefa da doutrina esclarecer a significação das fontes de
direito, para saber, por exemplo, se elas todas se reduzem, em última análise, à lei; se
elas existem em numerus clausus; se entre elas há uma hierarquia etc.[47]

Saliente-se que Miguel Reale refere a função de vanguarda da doutrina, a


saber:

Consoante já observei, a doutrina exerce uma função de vanguarda, pois, conforme


será logo mais examinado, além de ela dizer o que as normas jurídicas efetivamente
significam ou passam a significar ao longo de sua aplicação no tempo, cabe-lhe
enunciar os princípios gerais que presidem a vigência e eficácia das normas jurídicas,
bem como conceber os modelos hermenêuticos destinados a preencher as lacunas do
sistema normativo, modelos esses convertidos em modelos prescritivos graças ao poder
constitucionalmente conferido ao juiz.[48]

Ultrapassada esta questão concernente à doutrina enquanto fonte ou não de


direito, vejamos a compreensão de Reale em relação às fontes de direito propriamente
ditas.

De acordo com Miguel Reale, a fonte de Direito implica num conjunto de


determinados pressupostos de validade, que precisam ser obedecidos para a devida
produção de prescrições normativas. Ou seja, a fonte de Direito só se tornará obrigatória
com o devido acatamento daqueles pressupostos de validade.[49] É bem de ver, ainda,
que as fontes do direito são visualizadas sob um ângulo fechado, isto é, há um
determinado número de fontes do direito reconhecidas em conformidades com os
pressupostos de validade susomencionados.[50] Sendo que tal reconhecimento de
validade é delineado pela Constituição.[51]

Note-se que Miguel Reale faz alusão à denominada “juridicidade”[52]das


fontes do Direito, que se traduz na qualidade decorrente do reconhecimento das fontes
de Direito como tais. Reale anota que outros autores tem uma visão diversa da
normativa. Seriam aqueles que compreendem as fontes do Direito sob o prisma
fisicalista ou sociológico. Estes autores, segundo Reale, afirmam que as fontes de
Direito ocorrem e se desenvolvem “independentemente de qualquer prévio requisito
normativo, obedecendo tão-somente a “causas naturais” ou a diversos centros de
interesse que só podem ser objeto de determinação à luz de uma análise de caráter
sociológico.”[53]

Miguel Reale enfatiza que só a noção normativa das fontes do Direito


corresponde à natureza do Direito, estando a concepção fisicalista ou sociológica numa
dimensão metajurídica. Vale a pena reproduzir o raciocínio do jus-filosofo quanto ao
confronto entre a posição normativa e a posição metajurídica:

Desse modo, a teoria das fontes se transfere para um plano metajurídico,


obedecendo a uma pluralidade imprevisível de focos de irradiação de regras, cuja
juridicidade caberia aos juristas e juízes reconhecer e aplicar segundo critérios postos
por distintas ciências sociais. Penso eu que só a primeira noção de fonte antes
examinadas corresponde à natureza do Direito, o qual é sempre normativo, muito
embora não seja exclusivamente normativo, como o sustentou Kelsen com sua Teoria
Pura de Direito, isto é, desvencilhado de tudo que não seja normativo.[54]

Dentre os modelos jurídicos analisados por Reale temos os seguintes: os


modelos jurídicos legais, o modelo jurídico costumeiro, os modelos jurisdicionais e os
modelos jurídicos negociais.

Os modelos jurídicos legais ( modelos legislativos ) dizem respeito às leis,


aos decretos legislativos e resoluções. A lei aí é entendida tanto numa acepção ampla
como numa acepção restrita. Característica desse modelo jurídico é a sua generalidade e
universalidade, isto é, um modelo de irradiação erga omnes. Dito modelo se situa em
grau destacado em relação aos demais, só tendo como limite a Lei Fundamental. Miguel
Reale, ao tratar dos modelos jurídicos legais, pondera que, do ponto de vista do valor,
“todas as fontes se equiparam, dependendo do respectivo conteúdo, ou seja, da
qualidade de seus modelos, a sua primazia axiológica.”[55] Esclarecendo melhor a
questão referente ao aspecto lógico e axiológico desse modelo jurídico, Reale acentua:

Parece-me importante assinalar a relevância da distinção ora feita entre


anterioridade ou supremacia de uma fonte de direito, em relação às outras, de um ponto
de vista lógico ou axiológico. Logicamente, isto é, sob o ângulo lógico-formal, a lei é
sempre a fonte preeminente no sistema jurídico, mesmo porque ela pode ser lei de
ordem constitucional, mas, do ponto de vista axiológico, uma fonte subordinada pode
ter maior significação ética ou econômica do que a atribuída à lei à qual ela se
subordina. Isto demonstra que o estudo dos modelos jurídicos deve ser tanto no plano
lógico quanto no axiológico, o que revela a riqueza de perspectivas do ordenamento
jurídico.[56]
No que tange ao modelo jurídico costumeiro, Reale alerta que seria “uma
visão apequenada e errônea” considerar as normas consuetudinárias não suscetíveis de
serem tomadas enquanto modelo jurídico tão-somente porque vinculadas a particulares
usos e costumes.[57]

É principalmente na seara do Direito Econômico que os usos e costumes


mais alimentam os modelos jurídicos. Na atividade econômica cotidiana resultam as
mais ricas práticas mercantis, o que ocasiona o aparecimento de inúmeros ajustes e
compromissos entre seus parceiros. Tais atividades terminam por se impor na sociedade
e adquirirem a qualidade de juridicidade. Em outras palvras, as sua práticas passam a ser
reconhecidas pelos seus próprios parceiros e pelo próprio Estado. Constatando essa
realidade, Miguel Reale assinala com precisão:

Ao contrário do que se pensa, é imenso o número de modelos jurídicos costumeiros,


não só no plano das relações internacionais, como no tocante a usos e costumes de
ordem econômica, na esfera cambial e bancária. Durante muito tempo a Junta
Comercial de São Paulo, obedecendo a uma praxe que vinha desde 1890, promovia o
assentamento de usos e costumes mercantis vigentes no Estado, chegando mesmo a
publicar “consolidações”, como as relativas às praças da Capital e de Santos.[58]

Em relação aos modelos jurisdicionais, Miguel Reale faz questão de


sublinhar a sua relevância para o “mundo normativo”, e ressalta que paradoxalmente
“sejam poucos os estudos sobre o conceito de jurisdição como fonte reveladora de
normas jurídicas.[59]

Ponto acentuado muito bem por Miguel Reale é a assertiva de que a “A


jurisdição é, pois, antes de mais nada, um poder constitucional de explicitar normas
jurídicas, e, entre elas, modelos jurídicos. Consoante o jus-filósofo brasileiro, esse
modelo jurídico funciona de duas formas, que passamos a reproduzir do texto de Reale:

Esse poder decisório se desenvolve de duas formas distintas: normalmente, como


exercício da jurisdição enquanto realização das normas legais adequadamente aos casos
concretos, isto é, em função das peculiaridades e conjunturas próprias da espécie de
experiência social submetida a julgamentos; e, excepcionalmente, no exercício da
jurisdição enquanto poder de editar criadoramente regras de direito, em havendo lacuna
no ordenamento.[60]

Dessa distinção acima, apresentada por Miguel Reale, temos a produção de


duas espécies de modelos jurídicos jurisdicionais, a dizer: um primeiro vinculado ao
exercício normal da jurisdição, que dá ensejo ao denominado modelo subordinado e um
segundo vinculado ao exercício excepcional da jurisdição, que origina o modelo
autônomo. Expliquemos cada um deles em sintonia com o pensamento de Miguel
Reale.

No modelo subordinado, se exige do juiz uma atividade de subsunção, pois


aqui aplica-se ao caso concreto em razão daquilo que se configura abstratamente. Já no
modelo denominado autônomo, que Reale intitula de “modelos jurisdicionais por
excelência”, ocorre a correlação de dois princípios fundamentais, tal seja: “a – o juiz
não pode deixar de sentenciar a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei” e “b – quando
a lei for omissa, o juiz procederá como se fora legislador.”[61]

Reale, escudado na história do Direito nacional, exemplifica como os


modelos jurisdicionais supriram as deficiências de modelos legais, a título de se afastar
uma injustiça no caso concreto, a saber:

“(...) exemplo de jurisdição criadora temos com a consagração, pelo Supremo


Tribunal Federal – graças sobretudo ao Ministro Pedro Lessa da tese, sustentada por
Rui Barbosa, do emprego do habeas corpus para a defesa da “posse de direitos pessoais”
violados por abuso ou desvio, numa época em que tais direitos ainda não eram
salvaguardados por mandado de segurança. Com o advento deste, o modelo da posse
voltou ao seu leito normal, como exteriorização de algum dos poderes inerentes à
propriedade.

Também pretoriano foi o modele jurídico disciplinador das relações entre


concubinos, dada a inexistência de disposições legais sobre a espécie, preservando os
direitos de quem houvesse, por seu trabalho contribuído para a formação de uma
sociedade de fato, merecedora de amparo. Desse modo, o concubinato perdeu a sua
configuração pejorativa para adquirir contornos de juridicidade, em função dos fatos e
circunstâncias.[62]

Do fragmento textual acima de Miguel Reale, depreende-se que o modelo


jurisdicional se converte em instrumento eficaz de suprimento das deficiências dos
modelos legislados, máxime no caso desses modelos legais serem lacunosos. O jus-
filósofo alerta de maneira contundente sobre a importância dos operadores jurídicos
zelarem pela oxigenação do mecanismo jurisdicional, o que implica na sua constante
revisão, tendo em conta as mudanças supervenientes no sistema legal, bem como em
razão da “emergência de novos valores sócio-econômicos, ou, por melhor dizer,
culturais”.[63] Neste passo, Reale é preciso e altamente atual com os novos estudos da
hermenêutica jurídica, devendo, por isso, ser lida constantemente sua obra, tendo em
vista a produção de novas significações para o aperfeiçoamento da disciplina exegética.
A citação a seguir materializa bem a dimensão atual dos estudos de Reale para o
aperfeiçoamento da hermenêutica jurídica:

Essa alta visão do Poder Judiciário pressupõe, é claro, o superamento de uma


concepção passiva da função dos magistrados, e, por conseguinte, da sentença como
automática aplicação dos ditames da lei ao caso concreto, sem a participação criadora
do juiz. Os estudos de Hermenêutica, uma das formas de conhecimento mais
expressivas de nosso tempo, vieram demonstrar que o ato interpretativo implica sempre
uma contribuição positiva por parte do exegeta, mesmo porque o ato de julgar, talvez o
mais complexo e dramático dentre os atos humanos, importa no dever do juiz de situar-
se, solitariamente e corajosamente, perante a prova dos autos e os imperativos da lei, a
fim de enunciar o seu juízo, reflexo de sua amadurecida convicção e de seu foro íntimo.
Poder-se-ia dizer que o juiz torna-se eticamente alheio aos rumores da rua para que
possa justamente se pronunciar sobre a causa, o que envolve o emprego de todas as
virtudes de sua personalidade, abstraindo-se de enganosas pressões imediatas para poder
captar a essência do justo, tal como este vai historicamente se configurando.[64]

Como última categoria dos modelos jurídicos, Miguel Reale indica os que
se originam do acordo de vontades, isto é, aqueles decorrentes das iniciativas
individuais.[65] Consoante Miguel Reale, “a fonte negocial é dos canais mais relevantes
da revelação do Direito”.[66]Este modelo negocial se visualiza hoje sob o prisma
constitucional, uma vez que os princípio da livre iniciativa e da livre concorrência estão
plenamente agasalhados pela Lei Fundamental de 1988, o que importa na proibição de o
legislador ordinário vir a suprimir o “mundos dos contratos”.[67] Miguel Reale, com a
sua precisão intelectual, constata que os modelos negociais “representam a
exteriorização ou a atualização da liberdade como valor supremo do indivíduo, tanto
como cidadão como produtor”.[68] Aspecto bem delineado por Miguel Reale quanto
aos modelos negociais se refere ao respeito que esses modelos jurídicos devem ao
devido processo legal na dimensão da liberdade dos cidadãos enquanto pactuantes de
um negócio jurídico, pena de resultarem inválidos, a saber:

É preciso, outrossim, ter presente que, em pé de igualdade com as demais


fontes do direito, também a fonte negocial, para que sejam válidas as normas e modelos
através dela emanados, deve obedecer ao seu devido processo legal, que cabe a cada
disciplina jurídica determinar, em consonância com as suas peculiaridades. Do ponto de
vista da Teoria Geral do Direito, o pressuposto processual por excelência da fonte
negocial diz respeito à liberdade real de decidir de todos os que participaram da
instauração do negócio jurídico, pois fonte negocial e autonomia da vontade são termos
que reciprocamente se implicam.[69]

Insta observar, com base na “Teoria dos Modelos de Direito” de Miguel


Reale, que os modelos negociais não podem ser constituídos em conflito com os
modelos legais, o que, segundo o jus-filósofo brasileiro, implica no reconhecimento de
que há uma dimensão hierárquica entre os modelos jurídicos do ponto de vista lógico-
sistemático.[70]

7 – Conclusões
Após o enfrentamento das questões que nos propusemos a analisar, a dizer,
a pesquisa da experiência jurídica como estrutura tridimensional, da dialética da
complementaridade, do Direito como experiência histórico-cultural e dos modelos do
Direito, temas chaves da “Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale, tivemos
por suma de nosso trabalho o seguinte:

1 - As formulações anteriores à teoria tridimensional realeana eram reducionistas e


unilineares, especialmente a mentalidade do século XIX no que tange ao entendimento
do fenômeno jurídico e dos demais fenômenos sociais. Já no século XX, teremos uma
perspectiva concreta e integradora em relação aos estudos de natureza social.

2 – É bem de ver que a unidade ou a correlação essencial existentes entre os aspectos


fático, axiológico e prescritivo do Direito não foram de imediato compreendidos pelos
jus-filosofos e juristas.

3 – Anterior às formulações tridimensionais do Direito havia um estudo estaque de fato,


valor e norma, sem que se operasse uma correlação entre os três elementos.

4 – Mister notar que a teoria da tridimensionalidade do direito não apareceu de pronto,


mas fez-se em razão de uma longa maturação e autocrítica.

5 – A “Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale vai surgir na década de 40


do século XX juntamente com a “Teoria Tridimensional do Direito” do alemão Wilhem
Sauer, sem que um tivesse conhecimento do outro.

6 – Apesar de certas similaridades entre as duas teorias – a de Reale e a de Sauer – a


concepção do jus-filósofo alemão é de natureza estática, ou seja, incapaz de dar-nos
uma unidade do Direito. Diferentemente, a ‘Teoria Tridimensional do Direito” de
Miguel Reale se traduz em um processo dialético, havendo nela um momento normativo
que integra em si e supera a correlação fático-axiológica. Por isso, diz-se que a teoria
tridimensional de Reale é de natureza concreta e dinâmica.

7 – A experiência jurídica como estrutura tridimensional rejeita o tridimensionalismo


genérico e abstrato, uma vez que a experiência aí é apreendida como estado vivencial do
indivíduo, do mundo do homem e da sua consciência.
8 – No que respeita à dialética da complementaridade, esta pode ser compreendida
como um liame entre sujeito e objeto dentro de um processo relacional.

9 - O direito como experiência histórico-cultural se visualiza como realidade concreta e


mutável na dimensão temporal e espacial, daí a historicidade do homem. O Direito é
uma criação cultural, mormente sob o prisma de um espírito objetivado.[71]

10 – A teoria dos modelos de Direito de Miguel Reale tem por escopo uma renovação
das fontes do direito. Isto é, o que deseja o jus-filosofo brasileiro é completar a teoria
das fontes. Segundo Miguel Reale, os modelos do Direito são distinguidos em modelos
jurídicos ( de natureza prescritiva ) e modelos doutrinários ( de natureza hermenêutica ).

11 – Observe-se que Miguel Reale entende que a doutrina não constitui fonte de direito,
pois dela não decorre uma força vinculante, tendo em vista faltar-lhe a coercibilidade
para tanto.

12 – Consoante Miguel Reale, temos os seguintes modelos de Direito: o modelo


jurídico legal (leis, decretos legislativos, resoluções e o texto constitucional ), o modelo
jurídico costumeiro (normas consuetudinárias, usos e costumes ), modelo jurisdicional
( decisões jurisdicionais ) e o modelo negocial ( acordos de vontade, pactos, etc ).

8 – Bibliografia

CZERNA, Renato Cirell. O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed.,


Editora Saraiva, São Paulo, 1999.

MACEDO, Ubiratan Borges. Miguel Reale ou a Maturidade da Cultura Brasileira, In :


ZILLES, Urbano ( coord. ), PAIM, Antonio, DE BONI, Luis A., MACEDO, Ubiratan
B.de ( orgs. ). Miguel Reale: estudos em homenagem a seus 90 anos. EDIPUCRS, Porto
Alegre, 2000.
REALE, Miguel. Variações 2 , 1ª ed., Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,
2003.

_____________. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,


2003.

_____________. Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000.

_____________. O Direito como Experiência, 2ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1999.

_____________. Fontes e Modelos do Direito, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo 1994.

_____________. Direito Natural/Direito Positivo, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,


1984.

TEIXEIRA, António Braz. Miguel Reale e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro, In:


LÁFER, Celso & FERRAZ JR., Tércio Sampaio ( orgs. ), Direito, Política, Filosofia e
Poesia/Estudos em homenagem ao professor Miguel Reale no seu octogésimo
aniversário, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1992.

--------------------------------------------------------------------------------

[1] António Braz Teixeira, Miguel Reale e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro, In


Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Jr ( orgs. ), Direito, Política, Filosofia e Poesia,
Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale no seu Octagésimo Aniversário,
Editora Saraiva, São Paulo, 1992, p. 256. Nesta obra, o jus-filósofo lusitano lembra que
na obra de Miguel Reale “o carácter tridimensional não é específico do direito,
porquanto é comum a toda a restante realidade normativa, já que no mandamento
religioso, no preceito moral ou nos usos sociais se podem também surpreender a
dimensão axiológica, o momento normativo e a manifestação empírica, Reale não se
esquece de esclarecer que a conduta jurídica se individualiza à face das restantes por se
configurar como um momento bilateral-atributivo da experiência social.

[2] 123.

[3] Sobre o perfil cultural da obra de Miguel Reale ver o ensaio “ Miguel Reale ou a
Maturidade da Cultura Brasileira”, de Ubiratan Borges de Macedo, contido no livro
“Miguel Reale, Estudos em Homenagem a seus 90 anos, publicado pela EDIPUCRS,
Porto Alegre, 2000.

[4] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
2003, p.. 137.

[5] Ibidem, p. 10.

[6] Ibidem, p. 17.

[7] Ibidem, p. 18.


[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibiden.

[12] 511.

[13] Ibidem, p. 511.

[14] Miguel Reale, O Direito como Experiência, 2ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
1999, p. XV.

[15] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p.
513. .

[16] Interessante observar que os estudos de Reale e Sauer deram-se no mesmo contexto
cronológico sem que um tivesse conhecimento do outro.

[17] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p.
513.

[18] Ibidem, p. 542.

[19] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
2003, p. 91

[20] Ibidem, p. 564.

[21] Renato Cirell Czerna, O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed.,
Editora Saraiva, 1999, p. 127.

[22] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, 2003, p.
56.

[23]Miguel Reale, O Direito como Experiência, Editora Saraiva, São Paulo, p. 121.

[24] Miguel Reale, Fontes e Modelos do Direito, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
1994, p. 41.

[25] Ibidem, p. 72.

[26] Cirell Czerna, O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed., Editora
Saraiva, São Paulo, 1999, p. 17.
[27] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p.
571.

[28] Ibidem.

[29] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
2003, p. 75.

[30] Ibidem, p. 76.

[31] Ibidem, p. 77.

[32] Ibidem.

[33] Renato Cirell Czerna, O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale, 1ª ed.,
Editora Saraiva, São Paulo, p. 53.

[34] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
2003, p. 79.

[35] Ibidem, p. 80.

[36] Ibidem, p. 90

[37] Ibidem, p. 81.

[38] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p.
572.

[39] Ibidem.

[40] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
2003, p. 84.

[41]Ibidem, p. 82.

[42] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000, p.
574.

[43] Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
2003, p. 153.

[44] Ibidem.

[45] Ibidem.

[46] Ibidem.
[47] Miguel Reale, Fontes e Modelos do Direito, 1ª ed., Editora Saraiva, São Paulo,
1994, p. 107.

[48] Ibidem.

[49] Ibidem, p. 14.

[50] Ibidem.

[51] Ibidem.

[52] Ibidem.

[53] Ibidem, p. 15.

[54] Ibidem.

[55] Ibidem, p. 67.

[56] Ibidem.

[57] Idem, p. 68.

[58] Ibidem.

[59] Ibidem, p. 69.

[60] Ibidem, p. 70.

[61] Ibidem.

[62] Ibidem.

[63] Ibidem, p. 72.

[64] Ibidem.

[65] Ibidem, p. 73.

[66] Ibidem.

[67] Ibidem.

[68] Ibidem, p. 74.

[69] Ibidem.

[70] Ibidem, p. 75.


[71] Miguel Reale, Variações 2, 1ª ed., Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,
2003, p. 26. Nesta recém-editada obra do jus-filosofo brasileiro, analisando a questão da
cultura, ele anota que”...podendo-se afirmar que a cultura é “objetivação das
intencionalidades humanas ao longo da história”, a partir da noção de que ” conhecer é
conhecer algo no mundo”.

Oportunidades em todo o Brasil.

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