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São Paulo | nº 15 | jul-dez | 2017 | ISSN: 2177-4273

A radiografia do golpe:
entenda como e por que você foi enganado

André Gobbo1

RESUMO
Nessa resenha apresentamos as ideias principais do sociológico Jessé Souza na radiografia que faz sobre o golpe
arquitetado pelas elites financeiras e intelectuais desde a chegada do Partido dos Trabalhadores à Presidência da
República culminando com a derrotada de tal projeto em 2016. O livro, publicado em 2016, retoma alguns
conceitos por ele tratados em ‘A tolice da inteligência brasileira’ em que a pseudociência legitima as causas da
concentração da riqueza social e a exclusão da maioria em benefício de uma minoria dominante, constituindo o
Brasil como uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta. A seguir o autor lança sua análise aos
fatos orquestrados pela mídia, pelas elites financeiras, pelo Congresso e pelo próprio poder judiciário, que
acabaram por desferir o golpe contra a nação ao promoverem o impeachment de Dilma Rousseff por meio da
demonização do Estado e a virtualização do mercado capitalista que se embebe do veneno midiático aqui
produzido. Esta é uma oportunidade para se entender as em profundidade mazelas contemporâneas que assolam
o Brasil.

Palavras-chave: Brasil. Democracia. Golpe. Dilma Rouseff.

Em ‘A radiografia do golpe’ (2016) o sociólogo Jessé Souza conduz o leitor a entender o


como e o porquê a sociedade brasileira foi enganada no mais recente e torpe golpe de Estado,
vivenciado em 2016, contra a Presidente Dilma Rousseff, e que acaba por instaurar um novo momento
político para todos os atores decisivos da vida política.
Com seu discurso incisivo o autor nos leva a se contrapor à leitura dominante e superficial de
mundo que domina os grandes veículos de comunicação. Para isso, o mesmo inicia sua análise do
golpe apresentando uma perspectiva histórica da sociedade brasileira, porém, antes disso, ainda no
prefácio, já anuncia as críticas aos responsáveis pelo golpe que colonizam o espírito do povo e sua
capacidade de refletir: a elite financeira; o poder judiciário chantagista e a grande imprensa que,
conforme ele, é “[...] sócia na rapina executada pela elite do dinheiro sobre o bolso de todos” (p. 16).
No primeiro capítulo Souza resume sua tese apresentada na sua obra anterior ‘A tolice da
inteligência brasileira’. Inicialmente trata sobre a colonização do espírito das classes ditas como

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Doutorando em Educação Científica e Tecnológica (UFSC, 2016). Possui graduação em Comunicação Social, habilitação
em Jornalismo, pela Universidade do Vale do Itajaí (1999), especialista em História, Ensino e Pesquisa em Santa Catarina
(2001) e em Ensino e Docência no Ensino Superior (2014). Mestre em Ciências da Educação (Universidade Federal da
Paraíba, 2010), acumula 14 anos de experiência na docência do Ensino Superior em diferentes cursos da Faculdade Avantis,
de Balneário Camboriú (SC), onde também coordena o Núcleo de Apoio Técnico e Pedagógico (NATEP) e é membro do
Comitê de Ética. Autor dos livros 'Dom José Gomes: escudo dos oprimidos' (Paulinas, 2002); 'Passaporte para a história:
Itapema e sua alma feminina' (Arcus, 2009) além de capítulos de livros da Pimenta Cultural e outras editoras.

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‘inferiores’ pela ‘superiores’ de modo que convença que a dominação que explora e subordina os
primeiros é para seu próprio bem. Nesse sentido é que a elite do dinheiro se utiliza de outras elites,
entre elas a intelectual, para manter-se como a exploradora material e econômica e ser vista como
merecedora disso tudo e justa. A própria ciência está entregue aos interesses dessa elite dominante e
não à verdade.

Compra-se primeiro a elite intelectual cuja opinião possui o prestígio e o condão de


influenciar a opinião de muitos, depois de compra a elite política de modo direto
financiando eleições e compra-se depois, direta ou indiretamente, a elite jurídica,
jornalística, literária etc. (p. 22-23).

A isso essa elite do dinheiro é vista pela sociedade como virtuosa, a única capaz de gerar o
progresso, empregos e conforto; e por influência desse domínio ela mesma define no imaginário social
o que é crime e corrupção na sociedade moderna: criminosos são os batedores de carteiras, pequenos
traficantes, assaltantes de rua. Já o assalto especulativo de fundos de investimento é tido como obra de
“gênios financeiros” que estampam as capas das grandes revistas.
A construção dessa hegemonia do dinheiro no Brasil não é de hoje, mas seu início é
registrado na década de 30 quando essa elite perdeu o controle do Estado com a ascensão de Getúlio
Vargas ao poder. A construção da USP por essa elite criou uma contra-hegemonia ideológica à Vargas
a qual foi concretizada com a publicação do livro ‘Raízes do Brasil’, em 1936, por Sérgio Buarque de
Holanda, por meio do qual demoniza-se o Estado e se sacraliza o mercado que atualmente, sem muitos
perceberem, age e se sustenta de modo selvagem ao drenar os recursos de 99% da sociedade brasileira
para os bolsos de uma hegemonia liberal-conservadora composta por 1% da população. Esse
movimento, legitimado por uma ciência servil, até hoje acaba por imbecializar a massa que age contra
seus interesses mais diretos.

Do mesmo modo que os ricos e seus lacaios na mídia e no sistema judiciário do


Brasil atual dizem estar comprometidos com a “limpeza moral do país”, e não com
encher mais ainda os próprios bolsos e os bolsos dos nossos endinheirados. Do
mesmo modo, os intelectuais e pensadores mais festejados do Brasil tiram e tiraram
onda de críticos quando apenas estavam e estão legitimando a dominação injusta de
poucos (p. 28).

A construção desse mito nacional construído e legitimado pela ciência, as ditas “vacas
sagradas” impera até os dias atuais. Foi a visão de Buarque que venceu a imagem cunhada por
Gilberto Freyre (de que mestiço is beautiful) e se tornou a autoimagem oficial do Brasil que domina as

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ciências sociais até hoje no Brasil e que se vende com ares de crítica. Ela é fruto de um ‘racismo
científico’, preconceituoso, conservador e superficial que faz com que o brasileiro se perceba como
um vira-lata em relação ao estrangeiro (em especial o americano e os europeus), tido sempre como
superior, racional e incorruptível; enquanto nos vimos como moralmente inferiores, burros e
inconfiáveis. Essa visão legitimada pela ciência evidencia o racismo cultural em que vivemos ao
dividirmos as ‘culturas de espírito’ e as ‘culturas de corpo’, por meio da qual:

[...] na vida social, separamos o tempo todo, quer tenhamos consciência disso ou
não, as classes do espírito e do conhecimento, que são as classes superiores, das
classes do corpo, do trabalho manual, que são as classes inferiores. O espírito
diviniza os homens e mulheres, e o corpo os animaliza. A solidariedade entre as
classes do privilégio se dá pela legitimação dessa aura de superioridade conferida
pelo espírito e pelo conhecimento (p. 33).

A hierarquia que o autor se refere é opaca, porém seus efeitos práticos são visíveis e
palpáveis que levarmos em consideração que das 500 maiores empresas do mundo, 492 são
comandadas por homens. Do mesmo modo, temos as culturas de espírito (do intelecto, da reflexão e
da moralidade), e as culturas do corpo (da sexualidade e do afeto irrefletido e amoral), onde tendemos
a incluir o povo brasileiro pressionados pelo poder da pseudociência.
O domínio das ideias de Buarque reproduz a visão de demonizar o Estado patrimonial e
corrupto e o endeusamento do mercado como reino de todas as virtudes o que faz com que essa pecha
sirva a dois propósitos, a saber: “[...] tornar invisível a corrupção legal e ilegal no mercado dominado
pela elite do dinheiro e permitir a legitimação de todo governo comprometido com o uso do orçamento
público para a maioria da população” (p. 38). Prova disso é que até pouco tempo, só o servidor público
podia ser acusado de corrupção.
Adiante o autor analisa o comportamento da sociedade brasileira dos últimos tempos que
convergiram para o golpe espetacularizado em 2016. Antes disso, afirma ele que o Estado deixou de
ser demonizado para se demonizar apenas o poder Executivo, sendo que o legislativo foi comprado e o
judiciário funciona como um partido corporativo para poder manter as suas regalias e privilégios.
Afirma o autor que todas as nossas instituições brasileiras foram moldadas pela escravidão onde o que
vale é a lei do mais forte e do mais rico. Essa é a lei que prevalece no Brasil contemporâneo: a elite
não tem projeto para o país, apenas quer assalta-lo por meio da privatização de suas riquezas. Essa é a
lei que prevalece no Brasil contemporâneo: a elite não tem projeto para o país, apenas quer assalta-lo
por meio da privatização de suas riquezas. É uma elite extrativista e escravocrata que ganhou espaço
no Governo de Fernando Henrique Cardoso o qual teve sua política apoiada pela mídia conservadora.

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A ressaca da privataria com dinheiro público do BNDES e da fara rentista, drenando


recursos de todos para a meia dúzia de aves de rapina que compõe a elite do
dinheiro, levou à nova possibilidade de acesso de um partido ligado a movimentos
populares ao poder (p. 46).

Foi nesse contexto que Lula chega ao poder herdando um país dividido entre os muitos ricos
(que votavam nos partidos de elite) e os muito pobres (que votariam no PT). Lula procurou uma
política de conciliação e compromisso com os donos do dinheiro, ao mesmo tempo em que garantiria
o apoio dos mais pobres institucionalizando políticas de transferência de renda e de apoio à economia
popular. Tal situação levou a elite de endinheirados a desconfiarem desse novo projeto que iniciava no
país e aí é que a mídia conservadora, controlada por poucas famílias, passa a servir à tal elite por meio
da desinformação, distorção e manipulação do tema ‘corrupção seletiva’ que, por meio do processo do
Mensalão às vésperas da reeleição de Lula, tentou tirá-lo do poder já em 2006.
Pelo exposto, observa-se que tanto o governo de FHC quanto o de Lula tiveram de conviver
com as chantagens da elite e de um legislativo fragmentado e irresponsável que se vende por cargos,
concessões público e/ou dinheiro vivo.
“O Mensalão foi o ensaio geral para o golpismo de agora [...]” (p. 50), assevera o autor,
sendo que para ele a mídia-partido não tem interesse em combater a corrupção, mas sim novelizar a
política e reduzi-la a um embate entre mocinhos e bandidos:

O bandido é o PT e as classes populares, assim como o projeto de sociedade que eles


representam. O mocinho é o aparato jurídico-policial elevado à condição de paladino
da higiene moral da nação. O pano de fundo da corrupção “apenas estatal”, para
tornar invisível a corrupção da elite no mercado que domina, legal e ilegal, é a
compreensão hegemônica que permite que toda a farsa funcione (p. 50).

O empoderamento dos excluídos garantiu a reeleição de Lula e com isso aflorou-se de


maneira mais explícita o racismo de classes. Políticas de transferência de renda, aumento real do
salário mínimo, facilidade de crédito movimentaram a economia de baixo para cima. Do mesmo
modo, o aumento do número de universidades públicas e de escolas técnicas federais garantiram o
acesso das classes populares ao capital cultural.
Em 2010 Dilma chega ao poder e em uma jogada arriscada tenta “[...] romper o acordo
rentista que havia possibilitado a relativa tranquilidade do segundo mandato de Lula como presidente”
(p. 53), o que acabou por aflorar um sentimento de ‘novo orgulho de ser de direita’.

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Se na elite econômica a regra é a indiferença blasé em relação ao povo, nas frações


conservadoras da classe média o desprezo e até o ódio às classes populares, que só
agora se expressa abertamente, sempre foram a regra. São sentimentos típicos de
toda sociedade de raiz escravocrata que nunca criticou essa herança (p. 55).

Dando prosseguimento o autor faz uma reflexão sobre as lutas de classes que domina o
cenário político brasileiro nos últimos anos e para isso se contrapõe ao economicismo liberal que
confunde as classes sociais com faixas de renda (A, B, C, D, E), onde os primeiros são superiores pela
capacidade de consumo que possuem; e os de classe mais baixa, em explicações “meritocráticas”, são
preguiçosos e burros. Para ele, no Brasil contemporâneo existem quatro classes sociais principais que
podem ser subdivididas em classes específicas, a saber: 1) os endinheirados; 2) a classe média e suas
frações que “suja suas mãos” com o trabalho diário da dominação social realizada em nome dos
endinheirados; 3) uma classe trabalhadora; 4) a classe dos excluídos, que está abaixo da linha da
dignidade.
Frente ao exposto, o autor enfatiza que as classes dominantes se sustentam pelo dinheiro, pelo
conhecimento, mas também pelo capital social de relações pessoais que lhes dão acesso às alianças, às
amizades, aos casamentos bem-sucedidos, etc. Já os filhos da classe média têm dedicação exclusiva
aos estudos, crentes na meritocracia. No entanto o autor pontua que:

É, antes de tudo, o exemplo vivenciado que constrói as classes de vencedores ou de


perdedores [...] perceber a socialização familiar diferencial entre as classes é tão
importante. Sem isso, não percebemos o privilégio agindo como mais gosta de agir,
ou seja, silenciosamente e de modo invisível, e reproduzimos todo tipo de
preconceito como se existissem pessoas que tivessem escolhido serem pobres e
humilhadas (p. 62).

A isso entende ele que as famílias brasileiras pobres não carecem apenas de recursos
econômicos, mas também cognitiva que tende a se alongar em miséria moral e afetiva e, nessa
situação, fecha-se o ciclo da dominação vez que a vítima do abandono se vê como a causa do próprio
infortúnio. No entanto, é o acesso ao capital cultural valorizado que mudará efetivamente a vida dessas
pessoas e políticas recentes permitiram que esses excluídos pudessem ascender a empregos formais e a
chances de consumo que até pouco tempo eram privilégios das elites.
A legitimação dessas injustiças sociais é fruto do capitalista que se diz igualitário e justo a
todas as classes, ao tempo em que impõe hierarquias morais, opacas e invisíveis, que possibilitam o
tratamento desigual dos indivíduos de acordo com a classe a que pertencem. Com essa concepção,

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Jessé Souza entende que foi justamente a luta de classes, ciente ou não, que se constitui como o motor
mais importante para o golpe de 2016, “[...] típico de ‘república de bananas’” (p. 67).
Adiante o autor trata da produção invisível da desigualdade marcadas por duas linhas
invisíveis de classificação e de desclassificação social que vão além do dinheiro e do poder: a da
sensibilidade e a da dignidade; as quais se tornam a base da solidariedade e do preconceito e
legitimam a diferença e os privilégios das classes média e alta em relação ao ‘povo’. Essas linhas
separam os sensíveis e de ‘bom gosto’ dos animalizados e vulgares de ‘mau gosto’ (classes populares).
Sobre a linha da ‘dignidade’ o autor afirma que é ela quem separa os indivíduos e as classes sociais em
dignos e indignos de respeito e consideração por sua capacidade de desempenho na esfera do trabalho,
vez que, “Para qualquer um o que importa para uma ‘vida significativa’ é sucesso no trabalho e no
amor” (p. 75). Já em relação à linha da ‘sensibilidade’ separa o ‘humano’ do ‘sub-humano’, as classes
dos privilegiados – supostamente inato e de berço – o que acaba por justificar a sua superioridade
sobre os demais e isso:

[...] é, obviamente, uma indignidade produzida por uma sociedade perversa, tola e
desigual. Perversa, porque culpa a vítima do abandono, como se alguém pudesse
escolher ser pobre e humilhado. Tola e desigual, porque não percebe a importância
de uma estratégica inclusiva de longo prazo para a riqueza e o bem-estar de toda a
sociedade (p. 78, grifos meus).

Frente ao exposto o autor entende que pelo fato de nunca termos criticado nosso passado
escravocrata - de onde herdamos o cinismo e a indiferença; subpessoas de todas as cores e raças - o
mesmo está condenado a voltar em outras vestes, como podemos evidenciar na exploração da mão de
obra dos trabalhadores pobres e excluídos que estão à serviço da classe média para que essa possa se
dedicar a atividades muito mais rentáveis e produtivas. Ajudar os pobres, para a classe média, sempre
foi visto como populismo o que gera o racismo de classe, inicialmente silencioso e exercido apenas no
mundo provado, alimentado pelo desprezo e até mesmo pelo ódio que foi evidenciado nos protestos
contra os Governo de Lula e Dilma, a partir de 2013.
É essa mesma classe média que se autointitula melhor e mais racional do que os outros.
Considera-se superior, mais bem-informada e a única com um voto legítimo. Ao mesmo tempo,
alimenta-se de doses diárias de veneno midiático e se deixa manipular pelos interesses dos
endinheirados com o pretexto de combater as políticas redistributivas, vez que esses poderosos têm
interesses racionais e irracionais “[...] na permanência de baixos salários para os pobres [...] na
destruição do frágil Estado de bem-estar construído para o aprofundamento do processo de inclusão

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[...] na ampliação da distância física e social das classes populares (p. 84-85). Frente ao exposto o
autor entende que:

Foi a união entre uma violência simbólica inaudita, comandada pela imprensa, com
uma base social que ansiava por travestir seu ódio e seu desprezo de classe,
reprimidos durante todos os anos anteriores de governo petista, em uma bandeira
hipócrita mas “racional” de guardiã da decência e da moralidade. Esse é o
componente proto-fascista do golpe. Ele envolveu a manipulação consciente do
medo de uma classe social que se percebia ameaçada (p. 86).

No segundo capítulo do livro, o autor trata ‘O golpe “legal” e a construção da farsa’ surgido
inicialmente pelas manifestações de junho de 2013 e que culminaram com o impeachment de Dilma
Rousseff em abril de 2016, graças aos ataques sem tréguas. Numa análise retrospectiva o autor lembra
que as manifestações foram capitaneadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), tendo como bandeira
principal a o aumento do preço das passagens no transporte público em diversas capitais, o que acabou
por unir estudantes de classe média, mas também da periferia. No Quadro a seguir apresentamos de
forma cronológica os fatos registrados em 2013 que originaram o impedimento de Dilma Rousseff,
fruto do sucesso total da violência simbólica alimentada pela mídia.

1 0 d e Acontece a primeira referência do Jornal Nacional (JN) às manifestações, enfatizando o


junho tumulto, o prejuízo ao trânsito e o incômodo à população.

1 2 d e JN fez novas menções negativas ao movimento e a palavra ‘vandalismo’ tornou-se


junho recorrente como modo de designar o movimento.

1 3 d e Pela primeira vez a PEC 372 foi mencionada pelo JN.


junho

1 5 d e O JN mostra reportagem favorável aos produtores rurais contra os índios e a política de


junho demarcação de terras da Funai.

A cobertura das manifestações continuava sendo negativa.

1 7 d e O protesto passou a ser definido como pacífico e a bandeira brasileira passou a ser seu
junho símbolo. O sentido mudou de negativo para positivo.

1 8 d e Bandeiras do Brasil e rostos pintados como nas ‘Diretas Já’ apareceram por todos os lados.
junho Começava a criação estética e moral do movimento antigoverno federal. Em vez de jovens e

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Limitava a atividade de investigação criminal às polícias federal e civil dos Estados e do Distrito
Federal, o que contrariava o desejo dos integrantes do Ministério Público.

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estudantes, tínhamos agora famílias de classe média com perfil de renda alta.

1 9 d e Registra-se a federalização dos protestos, com o objetivo de atingir a figura da presidente.


junho Pela primeira vez registra-se queda na popularidade da presidente Dilma.

2 0 d e Dia de grandes comícios com ampla maioria da classe média. O fim da corrupção já se
junho tornara a palavra mais importante depois que as tarifas de ônibus foram abaixadas,
transformando-se na bandeira central de todo o movimento conservador.

2 1 d e O JN deu cobertura à matéria do New York Times sobre as manifestações, que as


junho interpretava como reclamação contra os ‘serviços públicos precários’.

2 4 d e O governo propôs uma reforma política para combater a corrupção e cinco pactos: transporte
junho público, reforma política, corrupção como crime hediondo, médicos estrangeiros e a
destinação de 100% do pré-sal para a educação.

2 9 d e O JN mostra pesquisa segundo a qual a aprovação popular da presidente despencara em


junho queda livre (-27%).

Quadro 1: O comportamento do Jornal Nacional em junho de 2013 rumo ao golpe

Fonte: Adaptado de Souza, 2016

Aqui convém lembrar que o próprio Jornal Nacional apontava que os “amarelinhos” quando
saiam às ruas agiam espontaneamente, enquanto os ‘vermelhinhos’ eram militantes profissionais
sectários; isso fez com que a própria classe média, branca e bem-vestida se visse como representante
do ‘interesse nacional’. Diferentemente do Mensalão de 2005, agora conseguiu-se o elemento popular
indispensável ao golpe.
Frente aos atos registrados consolidou-se o casamento entre a mídia e a classe média
conservadora que mais tarde receberiam o apoio do aparelho jurídico-policial do Estado. Enquanto a
mídia conseguia manipular as pautas populares e enfraquecer o poder Executivo, a classe média se viu
com medo de que seus privilégios de classe e seus empregos fossem ameaçados pelo registro da
expansão da educação superior para os setores populares. Frente a isso passaram a condenar o
‘populismo’ dos governos petistas, sobre o que o autor sabiamente analisa:

A acusação de populismo é muito interessante. Ela indica que alguém estaria se


aproveitando da ingenuidade dos pobres para se consolidar no poder. O “bom” nesse
caso seria continuar a esquecer e abandonar os pobres, como a maioria havia feito
até então, já que assim eles não seriam feitos de tolos (p. 98).

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Nas eleições de 2014 o país se mostrou dividido e, inconformados pela quarta derrota
consecutiva, as forças conservadoras passam a flertar com o complexo sistema jurídico-policial do
Estado, ao qual caberia proteger a democracia. “O combate à corrupção torna-se pornograficamente
seletivo, uma vez que persegue a esquerda, enquanto blinda a direita” (p. 105). A partir de então a elite
do dinheiro tem a seu favor uma base social altamente motivada e engajada e não apenas seus
congressistas aliados, por eles financiados. De massa de manobra essa ‘elite’ se vê como protagonista
de um discurso anticorrupção que traveste os interesses da elite econômica e de seus aliados. Nesse
mesmo ano, a Lava Jato passa a dominar os debates públicos com a criminalização do Partido dos
Trabalhadores e, unidos, o complexo jurídico-policial do Estado e a mídia conservadora criaram uma
atmosfera de linchamento político, por meio da manipulação das emoções que o público sente, mas
não compreende. Sobre isso o autor assevera:

Como o público em geral tem dificuldade em compreender o funcionamento da


sociedade e de suas diversas esferas de alta complexidade, como a economia ou a
política, a personalização da corrupção não nos ajuda em um centímetro a
compreender essa complexidade, que desafia inclusive os especialistas. Ao
contrário, ela confere a falsa impressão de que a vida social é regida por
intencionalidades individuais, como nas novelas. Divide-se a vida em bandidos e
mocinhos, e com isso se infantiliza e se imbeciliza uma sociedade como um todo
(p. 111, grifo meu).

Continuando sua radiografia sobre o golpe o autor denuncia a corrupção “legal” promovida
pela elite financeira e acobertada pela própria mídia, que compreende a gigantesca evasão de impostos
por meio de paraísos fiscais no exterior – fato esse muito maior do que a corrupção estatal combinada,
mas a qual a mídia não destaca, vez que é comprada e parcial, o que compromete nossa qualidade
democrática, posicionando-se claramente com o objetivo de criminalizar a esquerda e a perseguição
seletiva de seus líderes.
Ao fazer uma análise dos veículos de comunicação nacionais, o autor destaca que os mesmos
reúnem comentadores que apenas concordam entre si, digno dos tempos ditatoriais, divulgando visões
distorcidas, parciais e interesseiras sobre a realidade. A isso, assevera: “Isso não é informação decente
em nenhum lugar do mundo. É veneno midiático” (p. 116).
Outra crítica deferido pelo autor é contra o poder judiciário, personificado na figura do juiz
Sérgio Moro, figura maior da direita, que conduz a operação Lava Jato sob a manipulação midiática.
Nesse caso, denuncia o autor, não assistimos apenas a judicialização da política, mas, sobretudo, a
politização da justiça. Nesse contexto, o autor denuncia:

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Um esquadrão de tucanos que formavam a equipe de delegados da Lava Jato, e que


havia participado ativamente – e nem sempre de modo adequado – da guerra
eleitoral de 2014, se une a correligionários, os quais, unidos à mídia conservadora,
constroem passo a passo a atmosfera favorável para o golpe. A construção da grande
fraude envolveu ilegalidades o tempo todo. Vazamentos ilegais e seletivos de
depoimentos e de delações premiadas expostos na televisão todos os dias criaram o
clima midiático para o verdadeiro linchamento televisivo. Como todo linchamento,
séculos de desenvolvimento jurídico e aprendizado moral foram para o esgoto. Ele
envolvia manipulação de informação, seletividade de conteúdos, simplificação de
questões complexas, estímulo aberto a pré-julgamentos, além da eliminação do
contraditório e do direito de defesa. A presunção de inocência, marco fundamental
da ordem jurídica democrática, foi para o brejo. O bombardeio era diário. A ordem
era não deixar pedra sobre pedra (p. 123).

Dentre as ilegalidades e parcialidades cometidas nos últimos tempos por essa casta jurídica
que se coloca na posição de ‘vanguarda moral’ do povo brasileiro e a qual a própria presidente Dilma
ingenuamente apoiou de início, pode-se citar a condução coercitiva de Lula em março de 2016 e o
vazamento ilegal do mesmo com a presidente Dilma antes de assumir a Casa Civil.
Ao apresentar suas conclusões, Jessé Souza ratifica sua tese de que o golpe vivido em 2016 é
resultado de um amplo acordo entre as diversas elites, sob o comando da elite financeira que, por
interesses econômicos e apoiada pela casta jurídica que se julga ser melhor do que o restante da
sociedade, deu certo. Sem a politização do judiciário brasileiro o golpe não teria se consumado, no
entanto, golpearam a democracia e as garantias constitucionais em nome de certa justiça e moralidade.
Ademais, atribui a responsabilidade também ao Congresso reacionário, eleito pelo financiamento
dessa elite financeira, bem como a tola classe média que saiu às ruas e se dispôs a ser uma base social
para o banquete de privilégios de alguns acreditando que estaria renovando o país.

Foi golpe, e um golpe torpe, pelas piores e mais mesquinhas razões desse mundo. E
todos sabem. Quem fez tem vergonha e por conta disso quer tapar o sol com a
peneira. E quem apoiou de fora, nas ruas, se achando protagonista de alguma coisa,
foi coxinha no começo, depois se sentiu trouxinha, e finalmente virou escondidinho
na piada popular (p. 135).

Por fim, destaca que não se aprende esquecendo o passado (como fizemos com a nossa
história sobre a escravidão), afinal, quem esquece o erro corre o risco de repeti-los; logo devemos
lembrar constantemente como fomos formados e, portanto, quem somos:

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Esse golpe malfeito, apressado, errado, pelos piores motivos, pode ser, finalmente,
nossa chance de aprender alguma coisa com nossa história. Nossa desigualdade, seja
pela indiferença de uma elite vampiresca e míope, seja pelo desprezo de uma classe
média boçal e tola, é uma continuidade direta com a escravidão nunca assumida
efetivamente e nunca criticada em sua continuidade até os dias de hoje (p. 136).

Nesse sentido, entende que o golpe é ilegítimo, fruto de oportunistas liderados por Eduardo
Cunha que conduziram todo o processo em ritmo célere com objetivos de rapinar as riquezas nacionais
levantando a bandeira da opressão aos trabalhadores do campo e da cidade.
Convém destacar que esse livro é fundamental para se entender as mazelas pelas quais o país
passa, no entanto, recomendo antes fazer a leitura de ‘A tolice da inteligência brasileira’ onde o autor
detalha mais precisamente o conteúdo do primeiro capítulo dessa obra, permitindo entender melhor as
bases do culturalismo e do economicismo que sustentam a sociedade brasileira. Disso tudo fica uma
certeza que Souza destaca como a epígrafe desse livro: “Transformam o país inteiro num puteiro, pois
assim se ganha mais dinheiro” (CAZUZA).

REFERÊNCIAS

SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro:
Leya, 2016, 144 p.

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