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PREFACIO A SEGUNDA EDIGAO FRANCESA, Este livrinho, que as Presses Universitaires de France agora reeditam, propunha-se, dez anos atrés [1990], mostrar de que maneira a paisagem fora pensada e construida como o equivalente da natureza, no decurso de uma reflexao sobre estatuto do andlogon e no decurso de uma pratica pictdrica que, pouco a pouco, ia dando forma a nossas categorias cog- nitivas e, conseqiientemente, a nossas percepgdes espaciais. Desse modo, a natureza s6 podia ser percebida por meio de seu quadro; a perspectiva, apesar de artificial, tornava-se um dado de natureza, e as paisagens em sua diversidade pare- ciam uma justa e poética representagao do mundo, Renunciar a essa ilusdo me parecia necessario, e por isso comecei a me desfazer dessas construgdes tacitas pelas quais fui embalada No entanto, se atualmente se admite que a idéia de paisagem e sua percepgao dependem da apresentagao que se fez delas na pintura do Ocidente no século xv, que a pai- sagem sé parece “natural” ao preco de um artificio perma- 8 ANNE CAUQUELIN nente, resta muito a fazer para defender e dar continuidade a essa posigao e ampliar seu alcance até a época inteira- mente contemporsinea, no proprio momento em que esto em fase de constituigdo abordagens sensivelmente dife- rentes da natureza, do real e de sua imagem. De fato, parece que a paisagem é continuamente con- frontada com um essencialismo que a transforma em um dado natural. Hé algo como uma crenga comum em uma naturalidade da paisagem, crenga bem arraigada e dificil de erradicar, mesmo sendo ela permanentemente desmen- tida por numerosas praticas. Antes mesmo de definir quais sao essas praticas, pre- ciso destacar um trago do mundo contemporaneo que se impée fortemente: o de uma ampliagao das esferas de ati- vvidade outrora limitadas, bem circunscritas. A mescla dos territ6rios e a auséncia de fronteiras entre os dominios sa0 uma marca bem propria do contemporaneo; a paisagem no foge a essa regra. Sua esfera se ampliou e oferece um panorama bem mais vasto em apoio a tese construtivista; ela compreende nogées como a de meio ambiente, com seu cortejo de praticas, ao passo que as novas tecnologias au- diovisuais propdem versées perceptuais inéditas de pai gens “outras”. Longe de essa ampliagao relegar a paisagem a.um segundo plano, ou de recobrir sua imagem, essas ex- tensdes dao a ver com muita preciso o quanto a paisagem 6 fruto de um longo e paciente aprendizado, complexo, ¢ 0 quanto ela depende de diversos setores de atividades. Vou aqui me limitar 8 evocagao de duas espécies de ampliagio e a seu impacto sobre a nocio e a pritica da paisagem. AINVENGAO DA PAISAGEM 9 Meio ambiente/Ecologia/Paisagem A primeira e mais facilmente perceptivel ampliagao ‘vem daquilo que parece mais préximo da paisagem: o meio ambiente fisico. Desolado, degradado, poluido, sobrecarre~ ¢gado, ele clama por socorro imediato, saneamento e reabi- litagdo. Como esse meio ambiente deplordvel se apresenta sob a forma de paisagens igualmente desoladas, assisti- ‘mos a uma identificacao entre meio ambiente e paisagem. A preocupagao ecolégica, com efeito, vem se enxer- tar no interesse pela paisagem, e “meio ambiente” se tor- na uma palavra-chave. Por uma espécie de deslocamento, que se deve em parte a inquietude em face das poluigdes, das responsabili- dades de tipo “satide publica’, uma prética de saneamento veio recobrir a idéia de harmonia natural, pela qual anti- gamente se definia a “bela paisagem’. Ecologia, ar puro satide rimam com natureza verde e animais protegidos. E essa constelagdo “em forma de paisagem” se estende as préticas urbanas, pelas quais as lixeiras também so ver- des, diferentes para cada tipo de lixo e assépticas. Pratica social, ela impée prioritariamente aos paisagistas um am- plo leque de obrigagSes singulares: despoluicao e protecio, ‘© que também significa classificagdo das espécies naturais € dos sitios. Assim como no caso de muitas outras profis- ses, aqui se assiste a uma mescla. A profissio de paisagista equivale atualmente & do administrador de espagos paiblicos necessitados de renova- 10 [ANNE CAUQUELIN «lo; 0 urbanista nao esté longe disso, assim como também nao 0 estdo 0 ecdlogo ou o agrnomo... Por conseqiiéncia, a economia, gestio calculada desse ambiente, a administra- sao, alertada pelas degradagdes, a politica, com as decisées necessdrias acerca do quadro de vida, a técnica e as pes- quisas tecnocientificas voltadas para 0 manejo dos solos, tudo isso forma um tecido complexo e tende a transmitir a idéia de paisagem em segundo plano, como se se tratasse de um estetismo inttil. Contudo, nao se pode negligenciar o papel da paisa- gem na articulagdo desses diversos exercicios: 0 artificio superior de uma anélise e de uma encenagao dos elemen- tos naturais~a dgua, a terra, o fogo e oar, que, separada- ‘mente, permaneceriam invisiveis se nao fosse pela arte do cenquadramento e da composigio, é retomado ¢ assumido pelo conjunto dos atores. Os setores de suas diversas ati- vidades pormenorizam e definem essa construgao, pois se trata da vida dos homens em seu proprio planeta; trata-se também, sempre, de formar e de garantir 0s quadros de ‘uma percepgao comum. Muito mais que um “rétulo” esté- tico, a paisagem confere uma unidade de visio as diversas facetas da politica ambiental. A ecologia desempenha aqui o papel de guarda-natu- reza e, portanto, de guarda-paisagem. Mesmo que com es- se “portanto” a paisagem pareca ser uma drea dependente da ecologia e que, como seu “suplemento”, permaneca de fato como 0 valor implicito ao qual se refere toda opera- do de tipo ambiental. f sempre a idéia de paisagem e a de /AINVENGAO DA PAISAGEM n sua construgio que dio uma forma, um enquadramento, medidas a nossas percepcdes — distancia, orientagao, pon- tos de vista, situagao, escala. Garantir 0 dominio das con- digdes de vida equivale a reassegurar permanentemente uma visio de conjunto, composta, enquadrada, Os dados do ambiente fisico mantém um contato estreito com os da- dos perceptuais formados pela paisagem. Nao podemos I quidar a nogo de paisagem em sua versio “forte’, isto 6, formadora, sob pretexto de que o que tem prioridade so © saneamento e a ecologia: eles 56 sao possiveis no ambito de uma “idéia de paisagem’, de um horizonte, Aqui, dois exemplos da atualidade nos instruem: 0 do jardim, cuja moda se amplia. Fechado, detalhado, especifi- cado, o jardim evoca e invoca uma natureza em obra—a qual corresponde uma atividade de jardineiro -, um pouco forco- samente, se assim posso dizer. Se desperta o interesse dos homens por sua morada (ecologia vem de oikos, casa) e Ihes revela sempre mais para diante os segredos de uma natu- reza prodiga, essa obra fornece a prova superabundante de que uma “paisagem natural” é 0 produto de um artificio la- borioso, algo como uma criagao continuada, Para Rousseau, o jardim de Jélia s duplo trabalho ~ de apagar as marcas da jardinagem. outro exemplo, extraido do campo das artes visuais, 6 0 da land art. Aqui, podemos avaliar diretamente a cor- respondéncia e a quase-fusio da paisagem (o sitio) com a seria natural se se tomasse 0 cuidado ecologia. Os artistas da land art compdem a partir do pré- prio ambiente, utilizando os recursos da arte da paisagem:

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