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EntreLivios Attica Caminhos da ficcao da Africa portuguesa Nomes como Mia Couto, José Luandino Vieira e Pepetela despontam na literatura dos pafses colonizados pelos portugueses. No uso da lingua, os escritores reafirmam a diversidade. Nas tramas dos livros, combinam histéria recente e mitos do passado mais antigo. Em muitos casos, prevalece o olhar irénico POR RITA CHAVES E TANIA MACEDO ue lugar pode ocupar a litera~ ‘ura num continente devasta~ do pela miséria, pelo analfa- betismdsPélos conflitos armados, pela precariedade da vida? Se nos deixamos levar pela I6gica das estatisticas, temos de assinalar que, de fato, a atividade literéria na Africa nao supera a marca do traco. Porém, segundo Mia Couto, um de seus mais prestigiados escrito- res, essa durissima realidade no pode ser vista como um impedimento para 0 Jugar do sonho que a literatura também pode abrigar. Aos escritores, cabe, por- tanto, encarar como um desafio o ato de eserever num quadro atravessado por ‘0 duras contradigbes. Em se tratando dos paises coloniza~ dos por Portugal, a situacao é verdadei- ramente complicada. A inconsisténcia do projeto de colonizasao, o proprio atraso da metrépole eo prolongamen- to da empresa colonial estio na origem das dificeis condigées de vida em An- gola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Mo- sambique ¢ Sao Tomé e Principe. Nos anos 70, quando o colonialismo tusi- tano foi interrompido pela vitéria das lutas de libertaglo, encontravam-se as populagdes afticanas mais distantes dos padrdes ocidentais no que refere 20 do- minio da ciéncia e da tecnologia do que quando ele ali se instalou. As elevadis- simas taxas de analfabetismo eram ape- nas um dos reflexos do completo fiasco da “misao civilizadora”, Com excegio de Cabo Verde, que apresentava um quadro educacional menos constrangedor, os territérios cocupados caracterizavam-se por baixis- simos indices de escolaridade. A phura- lidade lingiiistica, que poderia ser vista como sintoma da riqueza cultural, tor nnava mais complexa a situagiio dos pai- ses. Mocambique, por exemplo, contava mais de duas dezenas de linguas. Reco- nhecendo a incomunicabilidade entre 0s Virios segmentos que passaram a ser parte de um territério comum como um dos mais cruéis legados do siste- ma colonial, os escritores enxergaram no exercicio literatio a possibilidade de reforcar um patriménio comum que @ historia, mesmo A revelia, havia criado. reforso dessa convergencia seria uma estratégia importante para a libertaglo. A atividade literéria converteu-se desde muito cedo em ato de resisténcia e um problema que logo se colocou foi o da escolha da lingua em que se realizaria © projeto de integracio que a literatura chamava para si. E Nio acreditando noutras hipéteses, os escritores, sem ignorar a dimensio do problema, assumiram o portugués como tum instrumento a ser utilizado a seu fa- vor. A nacionalizacdo da lingua trazida com a invasio seria uma estratégia para conquista maior. Esse movimento de nacionalizacio traduziu-se num esforgo para conferir ao idioma conotado com a ‘metrépole marcas que o tornassem tam- bem um espago de idéntidade cultural Passados mais de 30 anos desde a in- dependéncia, o:pragmatismo que esti na base da escolha da kingua oficial, embora tenha resolvido a questio principal, nfo cons oneasieto Paulina Chiziane, Abdulai Sila e Mia Couto, icionistas da Africa de lingua portuguesa afistou completamente aspectos que cer- cam a literatura. Vez por outra, o debate ressurge, sugerindo que essa é uma espé- cle de rea minada, pois a preocupasao com o problema permanece no imaging tio de fecundos escritores. Em indmeras vvezes, José Luandino Vieira, um dos maiores ficcionistas angolanos, defendeu aiddia de que a lingua portuguesa é uma espécie de despojo de guerra, portanto 0 seu uso & um direito dos afticanos e néo um sinal de alienagao. © fato € que dos dilemas que arelagio guarda tém nascido paginas belissimas dessa literatura. Entre 0s ficcionistas, ha pelo menos trés que se tém destacado pelo trabalho de reinvencio da lingua que operam em. seus textos: 0 proprio José Luandino Vieira e seu conterrineo Boaventura Cardoso e 0 moambicano Mia Couto. Dividindo-se entre 0 conto e o roman- ce, esses autores trabalham a lingua portuguesa buscando enfatizar a sua diversidade, Em seus textos, recorrem 20 uso de neologismos, desobedecem a norma culta, empregam palavras das linguas de seus paises, tornando-as, portanto, mais préximas das realidades EnveeLivios A apanhadas pelo texto literério, Diante de seus textos, o leitor percebe logo que © autor nfo é um portugues. Ao leitorbrasileiro, essa produgio vai lembrar o nome de Guimaries Rosa, uma vez. que, tal como o brasileiro que fez do sertio um espaco privilegiado, esses escritores, além de transformarem a lingua com a interferéncia de constru- Ges um tanto insdlitas, procuram tra~ zee para a literatura certa dindmica da oralidade. Nao se trata simplesmente de recontar as lendas, os mitos e as fabulas que compdem as suas tradig6es, mas de EntreLivios: revitalizar a escrita através do questio- rnamento dos modelos ocidentais. Dessa forma, eles exprimem 0 impasse criado entre a recusa de uma tradigio imposta pelo sistema colonial e a impossbilida- de de retomar integralmente a tradigao que fora submetida ao amordagamento pelo mesmo sistema. A necessidade de resgaticla em novas bases vai orientar a procura de novas falas que a literatura precisa abrigar. Em Angola, onde a ficso se consoli- dou mais cedo, essa urgéncia de romper com a convengo que se tentou impor também condicionou logo a invengio de novos espagos a predominancia de personagens que durante a dominagio foram desconsiderados pela chamada literatura colonial. Os pobres, 05 ne~ 0s, os excluidos ganham a cena na prosa de flosio, algados ao estatuto de protagonistas do que se pode chamar de ‘uma outra hist6ria. Nos anos que ante- cederam a independéncia e no periodo imediatamente posterior, as obras publi- cadas empenhavam-se em oferecer ver- ses da histéria que se contrapusessem as imagens disseminadas pelo discurso co- Tonial, Os silenciados exercitavam 0 di- reito 4 voz conquistado com a libertagio. Romances como Mayombe, de Pepetela, 6 A noticia correu muito depressa, como aquele vento maluco que desde a ponta da Ilha sobre até a Lixeira, varre todo 0 musseque até o fundo da Calemba e da Maianga, pra ir morrer lé Jonge nos confins da Samba. Foi assim mesmo, com um vento assanhado que trazia atrapalhagio nas nuvens carregadas de chuva, que 0 caso comecou naquele dia tao triste como esquina da Mutamba sem gente. Porque a raiva desse vento é que foi sacudir as vigas de ferro, fez voar os luandos ¢ 0s zincos e, com um barulho muito grande, deixou cair a antiga kitanda de Xé-Mavu. As kitandeiras ficaram sem 0 negécio, sem o dinheiro, muitas mesmo sem a vida. Naquele dia, rios de sangue correram no meio do peixe, dos kiabos, da takula, do jipepe e jisobongo, os gritos nao calaram na boca dos feridos. ‘Trecho de Estorias do Musseque, de Jofre Rocha € 08 contos de Sim, eamarada, de Manuel Rui, vio revelar novos herdis, em textos que celebram a resisténcia. Curiosamente, esses mesmos au- tores, ainda nos tempos de euforia Subirbio de Luanda, em Angola, cenério de Pepetela e Ondjaki revolucionaria, publicam dois textos de forte contetido critica. O cdo ¢ os ca- Tuandas, do primeiro, ¢ Quem me dera ser onda, do segundo, com uma pers- pectiva muito irénica, que contamina a

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