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NATUREZA E OBJETO DA TEOLOGIA

Sobre o que se exerce a reflexão cristã? Qual o seu


assunto? Qual a área da realidade que lhe compete? Seu
interesse diz respeito aos dados da revelação, da
realização da graça, sobre a resposta da fé, sobre a
salvação e a vida cristã. Trata-se de realidades
extremamente complexas em si mesmas, mas tanto mais
se pensamos no diálogo e confronto com o mundo e a
cultura não cristã, com a evolução da história que traz
sempre novas questões e experiências. A Teologia, como
estudo sistemático, tem que procurar se organizar. Existem
e existiram muitas propostas de organização interna dos
assuntos que entram no campo do interesse teológico.
Chama-se Teologia fundamental o estudo da revelação
como um fato, a partir dos sinais da história. Trata-se de
averiguar a credibilidade da fé e as condições que tornam o
homem receptivo. É preciso dar-se conta das razões que
levam o crente a aceitar que Deus se revelou realmente,
dos critérios que o levam a individuar a voz de Deus sem
confundi-la com outras. Abrange também a Teologia da
Teologia, ou a epistemologia Teológica, que estuda a
natureza da própria Teologia: — é o que está sendo
apresentado nestas apostilas. A Teologia sistemática é
denominada ainda de Sistemática Geral, Teologia
Especulativa e Teologia Dogmática. O sentido dado a
essas expressões não é unívoco, isto é, não há consenso
entre os teólogos a respeito do que essas denominações
abrangem. Às vezes, dogmática é colocada como parte da
sistemática, ao lado da Teologia moral, aquela se
ocupando da fé, esta outra dos costumes ou do agir do
cristão. Segundo o sentido mais óbvio de cada expressão,
dogmática é o estudo e a defesa dos dogmas da Igreja, isto
é, das verdades definidas como tais pelo Magistério;
Teologia sistemática é a apresentação organizada,
segundo suas concatenações internas e seu dinamismo

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próprio, de todos os temas da fé; Teologia especulativa é o
desenvolvimento, com todos os recursos ao alcance, dos
dados revelados e dos dogmas. A sistemática pode ser
vista assim como a soma da dogmática e da especulativa.
Recapitulando: — a extensão do que se entende por
Teologia na tradição cristã abrange espaços diferentes, que
em ordem crescente se apresentam assim:

1 – Estudo de Deus, Uno e Trino.


2 – Estudo de Deus e das obras de Deus.
3 – Estudo de Deus e de suas obras de modo sistemático,
especulativo.
4 – Estudo de Deus, de suas obras e da resposta humana
a Deus na ordem moral.

Dentro da Sistemática, recebe o nome de tratado ou de


matéria o estudo de um campo específico, pois as obras de
Deus formam conjuntos amplos com uma unidade própria
bastante clara. Na prática atual os tratados são os
seguintes: — Teologia Trinitária, Cristologia e Soteriologia,
Eclesiologia, Antropologia I (Deus criador e criaturas),
Antropologia II (o homem em comunhão com Deus),
Mariologia, Escatologia, Teologia Sacramentaria e Teologia
Espiritual. Esses mesmos tratados podem receber o nome
de disciplina pelo fato de coordenarem uma série de
procedimentos teóricos e práticos, de pesquisa e
aprendizagem, aptos a transmitir, a adaptar e a fazer
progredir o conhecimento. O termo tratado é mais próprio
da sistemática, enquanto que matéria parece mais
adequada para cursos e estudos de outras áreas (cf. mais
adiante) e das disciplinas auxiliares (arqueologia, arte
cristã, hebraico, etc.). Cada tratado concentra – em ordem
decrescente de abrangência – uma série de temas, de
questões, de problemas e enfim de perguntas, procedentes
tanto do próprio dinamismo da fé como das interrogações
do homem no mundo do seu tempo. A Teologia prática

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(mas essa denominação não é usada por todos!) pretende
dar uma interpretação das atividades humanas realizadas à
luz da fé, segundo três grandes áreas: — a prática do
específico cristão, a colaboração cristã nas atividades
humanas, o sentido cristão do saber. Distinga-se bem a
realização e atuação da vida cristã na celebração, na
pastoral, na experiência, do estudo teológico sobre essas
realidades, constituindo, por exemplo, a Teologia
missionária ou missiologia, a Teologia da educação, a
Teologia do político, etc. Devido ao grande
desenvolvimento dos estudos teológicos, fala-se hoje,
especialmente nos cursos de formação, das várias áreas
da Teologia. Em geral, reconhecem-se quatro: — a área da
Sagrada Escritura e estudos bíblicos com todas as
matérias afins (línguas bíblicas, geografia bíblica,
arqueologia, etc.), a área da Sistemática (sem a moral e
sem a Teologia espiritual), a área da vida cristã
(abrangendo a moral, a Teologia espiritual, a Patrística, a
história da Igreja e o direito canônico) e a área da Pastoral
(catequética, missiologia, ecumenismo, pastoral da
comunicação e outras). Naturalmente, não há possibilidade
de uma distribuição rigorosa das matérias dentro de cada
área. Chama-se curso a organização de todas as matérias
com um fim didático para a formação de professores de
Teologia, de pesquisadores ou de ministros da Igreja. Mas
curso é também um estudo mais particular ou mais
reduzido no tempo e nos meios simplesmente para ajudar
na formação da fé. Cada curso tem o seu currículo ou
programa, isto é, o elenco de todas as matérias julgadas
necessárias e suficientes, com a respectiva carga horária,
para um determinado fim. Hoje em dia, entende-se por
Teologia tudo o que estuda num curso para a formação dos
presbíteros ou ministros da Igreja. Enfim, fala-se de
Teologia quando outras igrejas ou religiões expõem
sistematicamente os seus temas próprios: — Teologia
judaica, islâmica, budista, umbandista, etc. Como se vê,

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somente no século XX o termo Teologia atingiu sua
máxima extensão. A afirmação que a Teologia é um saber
científico e não só experiencial, não é aceita por todos.
Logicamente, tudo depende do que se entende por
Teologia e por ciência. Por puro preconceito o homem
moderno, secularizado, pensa que não é possível existir
uma ciência a respeito da revelação e da fé, pois para ele
esta última é irracional. Para nós, porém, a fé não é
absolutamente irracional, mas também não está sujeita aos
ditames de uma razão autossuficiente, incapaz de aceitar o
convite para ir além dela mesma, ou melhor, de estender
seu interesse para além do que descobre sozinha. É
possível, necessário e proveitoso, além disso, que fé e
razão dialoguem e se confrontem em vista do bem comum
que é o desenvolvimento humano. Pode-se dizer que, entre
tantas religiões, a cristã é a que mais tem se mostrado
interessada e capaz de um diálogo com a ciência, frutuoso
para ambos dialogantes. A Teologia é capaz de integrar no
seu corpo criticamente as descobertas científicas, e de
levar a sério as dificuldades para crer. Essa é um dos
aspectos que evidenciam a catolicidade da Igreja. A fé não
foi diluída pela ciência, nem recuou temerosa frente às
suas investidas. A Teologia que temos hoje não seria como
é, se não tivesse reconhecido o valor das contribuições dos
vários campos do saber e do viver humanos. Devido à
maior abrangência que o termo “ciência” assumiu na
linguagem atual, pode-se afirmar sem rebuços que a
Teologia é ciência porque tem um objeto próprio (a
revelação cristã) e um método adequado para o seu objeto
estabelecido criticamente. Quando as conclusões são
certas, racionais e universais fala-se de “episteme”, mas
essa expressão grega não é comum. A Teologia hoje,
especialmente após o Concílio Vaticano II, está sofrendo
um longo e profundo processo de renovação e de revisão,
à procura do que vem sendo chamado de um novo modelo,
ou seja, um modo diferente de organizar, articular e

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desenvolver os temas teológicos tendo presente o
dinamismo da fé vivida na cultura e no mundo de hoje.
Modelo constitui um quadro de referência, ou mesmo uma
espécie de gabarito, mais amplo e completo do que uma
mudança de matriz. Logicamente, cada época com sua
cultura formou, mesmo que não intencionalmente, o seu
modelo próprio. Um foi o modelo gnóstico-sapiencial
patrístico e da alta Idade Média, outro o modelo
escolástico, outro o positivo-escolástico da Idade moderna,
e outro o que se busca hoje (cf. C. VAGAGGINI Teologia,
in “Nuovo Dizionario di Teologia”, Paoline, Milano,
1985, p. 1607 – 1655). Nos últimos vinte anos alguns
teólogos acharam insuficiente falar de modelos e passaram
a falar de mudança de paradigma, recorrendo a uma
linguagem procedente da filosofia das ciências. Não há
consenso sobre o uso desse termo na Teologia, e há
teólogos que julgam essa categoria um modismo
desnecessário. Em todo o caso, ao se falar de mudança de
paradigma pretende-se indicar algo mais profundo e radical
do que uma mudança de modelo. Por paradigma entende-
se um modelo abrangente de organização dos dados
revelados em coerência com a maneira como a vida é
vivida e entendida numa certa época. O paradigma precisa
mudar quando o conjunto de explicações já elaboradas e
pelo menos aparentemente satisfatórias não consegue
mais dar conta de novos fatos ou de novas compreensões.
Ora, o mundo moderno trouxe uma série impressionante
desses fatos e conhecimentos em torno da secularização,
fato inédito na história da humanidade, e mais
recentemente a emergência da religiosidade sob várias
denominações. A mudança de paradigma não significa uma
mudança nos fatos e afirmações já acertados pelo
testemunho da fé, mas uma nova maneira de relacioná-los
e fundamentá-los no conjunto da realidade. Veja-se a
discussão em Márcio FABBRI DOS ANJOS (org.), Teologia
e novos paradigmas, SOTER – Loyola, 1996. ID., Teologia

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aberta ao futuro, SOTER – Loyola, 1997; Carlos PALÁCIO,
Deslocamentos da Teologia, mutações do cristianismo,
Loyola, 2001; Hans KÜNG, Teologia a caminho, Paulinas,
1999, p. 150 – 240. Para a teoria científica de Th. S. KUHN
veja-se, por exemplo, G. REALE, História da filosofia,
Paulus, 1991, vol. 3, p. 1042 – 1046. Parece mais sensato
não imaginar um grande número de paradigmas em ação,
e nem que tenhamos que começar agora a elaboração de
um paradigma apropriado para o mundo atual (moderno?
Pós-moderno? Moderno avançado? Pós-cristão?
Globalizado? Afinal como enquadrar esse nosso mundo?).
A mudança está sendo feita lentamente e
espontaneamente de um paradigma mais mecanicista para
um mais holístico ou orgânico. As verdades da fé não são
mais examinadas por partes e em seguida juntadas e
encaixadas, mas como um todo onde cada elemento está
em relação total com todos os outros. Assim, por exemplo,
podem ser inseridos na compreensão da fé o que a
mentalidade moderna aprofundou no que é denominado
historicidade do ser humano e subjetividade da pessoa. O
racionalismo moderno, que tanto determinou também a
elaboração teológica, não consegue valorizar e aproveitar o
que não encontra lugar numa explicação racional e lógica,
não se encaixa no sistema estabelecido, o que então é
chamado de “diferente”, de “diversidade”, ou mesmo de
“anômalo”. Por inspiração proveniente da prática
tradicional da interpretação das Escrituras e da filosofia
hermenêutica (Dilthey, Gadamer, Ricoeur), alguns
identificam a mudança de modelo na transição de uma
Teologia dogmática, segundo a forma que assumiu na
época moderna, para uma Teologia precisamente
hermenêutica, que estabelece uma correlação crítica entre
a interpretação da tradição e a da nossa experiência atual
(cf. Cl. GEFFRÉ; Como fazer Teologia hoje, Paulinas 1989,
p. 17 – 88). Embora num sentido rígido somente o nível
científico constitua o saber teológico, num sentido mais

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amplo e mais realista, podemos considerar como teológica
qualquer reflexão séria sobre a experiência cristã, a saber,
toda reflexão realizada por uma pessoa ou comunidade
realmente comprometida como o evangelho, para, através
dessa reflexão, entender melhor a fé em vista de vivê-la
mais autentica e intensamente, crescendo assim para uma
fé mais madura. Numa atitude dessas é impossível que não
estejam presentes, talvez de um modo meramente
espontâneo não reflexo, as notas acima citadas que
caracterizam o saber científico, não sendo indispensável
que atinjam um grau elaborado. Podemos agora explicitar
melhor as várias funções do estudo teológico em relação
às pessoas e à Igreja. Afinal, para que construir e estudar
Teologia? Para que refletir sobre a revelação? Não basta
vivê-la? Elenquemos dez funções:

1 – Função especulativa: — compreender, aprofundar,


unificar, interpretar as várias manifestações da revelação,
para chegar a uma visão unitária e unificante da fé.
2 – Função contemplativa: — olhar de maneira saborosa e
complacente cada elemento particular dentro do conjunto
do plano de Deus.
3 – Função doxológica ou orante: — reconhecer que tudo é
manifestação da sabedoria, do amor e do poder de Deus,
louvando e agradecendo por isso.
4 – Função hermenêutica: — entender porque acontecem
certas coisas e outras deixam de acontecer segundo os
seus contextos; dar-se conta do rumo dos fatos da história.
5 – Função de atualização: — como pensar a fé dentro de
categorias e formas de pensamento do mundo
contemporâneo; como estabelecer um diálogo que tenha
sentido para a Igreja e para o mundo.
6 – Função crítica: — discernir, julgar, compreender e
apreciar cada elemento da revelação e cada experiência na
sua colocação e na sua contribuição para o todo; distinguir

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o que é e o que não é revelação, assim como o modo pelo
qual é revelação.
7 – Função pedagógico-diretiva: — promover o crescimento
da vida cristã; introduzir na experiência cristã; tirar proveito
das experiências da vida.
8 – Função mistagógica: — introduzir na experiência
mística do mistério.
9 – Função de socialização do saber e do compreender: —
criar uma linguagem comum, um acordo sobre pontos
fundamentais, preparar declarações do Magistério,
declarações oficiais ou representativas.
10 – Função de diálogo interdisciplinar com a cultura e as
religiões em nível científico tendo em vista a compreensão
mútua e a complementaridade.

Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa.

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