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COSMOVISÃO CRISTÃ

Por Guilherme V.R. Carvalho

I. O QUE É UMA COSMOVISÃO?


Introdução:

A solução para a humanidade é Jesus Cristo, bem como para toda a criação. A
Igreja possui a missão de levar as Boas Novas para toda criatura, assim, o discipulado é
a essência da solução para tudo.
Portanto, ide e fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do
filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho
mandado. Mt.28:19,20a.

Porém, tais ensinamentos não são apenas sobre a vida individual.

Pois foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, e que havendo por ele
feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo todas as
coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus.Cl.01:19 e 20.

Ora, só aqui na terra há muitas coisas para serem reconciliadas, (pois o texto diz: todas
as coisas) mas, para isso temos que verdadeiramente discernir como são as coisas, de
acordo com a VERDADE DE DEUS. Por isso é necessário o entendimento sobre
cosmovisão.

1.1. UMA BREVE HISTÓRIA DO CONCEITO DE “COSMOVISÃO CRISTÔ

O termo alemão Weltanschauung foi cunhado por Kant e veio depois a ser uma
palavra chave na mentalidade do idealismo alemão e do romantismo, sendo transmitido
via Fichte para Schelling, Schleiermacher, Schlegel, Novalis, Hegel e Goethe. Por volta
de 1840, segundo Albert Wolters, o termo tinha se tornado "um item padrão no
vocabulário do Alemão educado" (p.15). Na década de 30 ele penetrou em outras
línguas, e desde Kierkegaard os filósofos tem buscado relacionar a nova idéia ao
conceito mais antigo de "filosofia".
Devido à sua origem, o termo traz uma carga idealista-romântica bastante forte.
Uma característica importante do período foi o "nascimento da consciência histórica",
marcada pela oposição ao intelectualismo grego-iluminista e pela ênfase no particular,
temporal e concreto.
Assim enquanto o termo "filosofia", de origem grega, pertence a uma
mentalidade orientada para o universal e essencial, o termo alemão weltanschauung
pertence a uma mentalidade dominada pela relatividade histórica.
O primeiro a utilizar a noção de weltanschauung para expressar a visão de um
cristianismo integral abarcando todas as dimensões da cultura foi o teólogo escocês
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James Orr (1884-1913). Suas palestras nas Kerr Lectures para 1890-91 foram
publicadas com o titulo The Christian View of God and Things. Nessa obra Orr afirma
que o modernismo deve ser enfrentado através do desenvolvimento de uma cosmovisão
abrangente, na qual princípio deve ser ordenado contra princípio. Declara também que

"... a visão cristã das coisas forma um todo lógico que não pode ser ... aceito ou
rejeitado por partes, mas permanece ou cai em sua integridade, e que pode apenas sofrer
com tentativas de amálgama ou compromisso com teorias que se apóiam em bases
totalmente distintas." (p. 95)

Nessa época Abraham Kuyper já era o líder inquestionável do neo-calvinismo.


Através de suas atividades como teólogo, jornalista, político e líder cultural Kuyper já
vinha desenvolvendo uma ampla reforma da sociedade holandesa a partir do calvinismo
e em combate com o modernismo. Mas segundo Peter Heslam, um estudioso de Kuyper,
foi o contato com a obra de James Orr que levou Kuyper adotar o conceito de
"weltanschauung" como forma de descrever sua visão do cristianismo. Diferentemente
de Orr, no entanto, ao invés de traduzir o termo como "visão de mundo", Kuyper
preferiu a expressão "sistema de vida", uma expressão bem mais orientada para a
prática. Ricardo Gouveia traduziu a expressão como "biocosmovisão".
Para Kuyper o calvinismo, que seria simplesmente a forma mais consistente de
cristianismo, não era exatamente uma teologia ou um sistema eclesiástico, mas uma
cosmovisão completa com implicações para todas as áreas da vida, incluindo politica,
arte, etc. O calvinismo deveria assim resistir a aliança com outros "ismos" culturais
opostos como o socialismo, o darwinismo, o positivismo e o liberalismo e desenvolver-
se a partir de seu princípio singular em busca da liderança cultural.
Entre as tarefas a serem realizadas estaria o desenvolvimento de uma filosofia
distintamente calvinística. Tanto Kuyper como Herman Bavinck e seu discípulo
Valentinus Hepp defendiam esse projeto.
Mas coube a D.H.T. Vollenhoven e Herman Dooyeweerd desenvolverem um
sistema maduro de filosofia reformada. Vollenhoven sempre seguiu Kuyper em sua
noção de que "filosofia não é o mesmo que visão de mundo e da vida; é sua posterior
elaboração cientifica." (p. 22)
Dooyeweerd divergia um pouco. Inicialmente identificava a wetsidee como a
caracteristica da cosmovisão que poderia “se tornar operacional como um fator
regulativo na formação de teorias cientificas”. Mas a partir da publicação de sua obra
principal em 1935 ele defendeu que a filosofia deveria ser guiada pela religião sem a
mediação da cosmovisão. Mas muitos acreditam que sua doutrina dos "Ground-
Motives" ele reintroduz subrepticiamente o papel determinante da cosmovisão.

1.2. DEFINIÇÕES BÁSICAS

Podemos definir cosmovisão, em geral, como um conjunto de crenças


fundamentais através das quais vemos o mundo. É a forma pela qual interpretamos e
percebemos a realidade ao nosso redor, seja de forma consciente ou inconsciente.
Esse conjunto de crenças nos diz, em primeiro lugar, o que as coisas são. Mas
isso não é tudo; uma cosmovisão também nos dá razões e direção para nossa forma de
viver. Nas palavras de James Olthuis, uma "cosmovisão funciona tanto descritivamente
como normativamente." (p. 29) Essa orientação prática foi bem destacada por Kuyper
em sua expressão "Sistema de Vida". Não se trata apenas de uma forma de "ver", mas
de uma forma de "ser".
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O conjunto total de crenças de uma pessoa compõe a sua cosmovisão. Mas nem
todas as crenças tem o mesmo "peso" dentro do sistema. As crenças que sustentamos
sobre o mundo estão inter-relacionadas de diversas formas, e tem diferentes funções.
Assim, embora num sentido mais lato, a totalidade das crenças de um individuo
constitua sua cosmovisão individual, o conjunto de crenças mais fundamentais, que
ocupam papel central na "imagem mental" do mundo de um ou mais indivíduos define a
sua cosmovisão.
Quais seriam essas "crenças fundamentais"? Segundo um autor, uma
cosmovisão seria “a visão ou conjunto de suposições e crenças que um determinado
indivíduo ou grupo possui da vida, do mundo, de Deus, de si mesmo, e suas inter-
relações”. Essa definição é bem ampla, mas indica aspectos chave: eu, Deus, o mundo, e
as relações entre eles.
Para identificar as crenças que tem um papel mais importante numa cosmovisão,
precisamos apelar para alguma descrição fenomenológica ou científica da cosmovisão.
Em principio, podemos dizer que as crenças mais importantes de uma cosmovisão são
aquelas crenças que tem a capacidade de englobar todas as outras, isto é, aquelas que
permeiam todas as regiões de nossa cosmovisão. Outro fator que torna uma crença
importante é seu impacto sobre as nossas vidas.
Esses dois critérios compreendem dois tipos básicos de crenças: (1) minha idéia
de totalidade, ou seja, o que acredito sobre o que a realidade é e como está estruturada e
(2) minha visão de mim mesmo, do meu lugar dentro dessa estrutura. Na verdade essas
duas perguntas são a mesma pergunta, a primeira de dentro para fora, a segunda de fora
para dentro. Essa pergunta dupla pode ser desdobrada em perguntas sobre a origem,
estado presente e o destino do mundo e do homem.

1.3. COMO SE FORMA UMA COSMOVISÃO?

Uma cosmovisão é basicamente um conjunto de idéias. É inegável que as idéias


tenham um importante papel na conformação da vida humana. Mas há teorias
contemporâneas que negam a prioridade das idéias, submetendo-as a condições
psicológicas, econômicas, sociais ou linguísticas. Na verdade a perspectiva que alguém
sustenta a respeito da relação entre as idéias e a ação já reflete a sua cosmovisão! Na
perspectiva materialista marxista, por exemplo, os blocos fundamentais da cultura estão
ligados as condições materiais da vida. Opondo-se aos materialistas, os idealistas
afirmam que estes blocos são as idéias.
Na perspectiva bíblica, a base da cultura se encontra em sua dinâmica religiosa e
em suas expressões, tanto nas estruturas materiais da vida como nas idéias. Desse modo,
concordamos em parte com os materialistas: as condições econômicas determinam em
grande parte a forma de pensar e formam hábitos comportamentais difíceis de modificar
sem ações de transformação. Também concordamos em parte com os idealistas: as
idéias compõe os alicerces da cultura, onde todas as instituições vão se basear.
Entretanto, não podemos concordar com materialistas e idealistas localizando a
base da cultura em idéias ou em condições materiais de vida. Como colocou muito bem
Paul Tillich, em certa ocasião, “A religião é a essência da cultura, e a cultura a forma da
religião”. É a orientação religiosa fundamental que guia a cultura. Essa orientação
religiosa se expressa em conceitos e também em comportamentos.
Mas há um modo de experiência humana que tem a primazia na expressão da
religião. Segundo James Olthuis, uma cosmovisão depende, para a sua validação e
correção, de diversos modos de experiência humana. Nossa cosmovisão reflete nosso
contexto histórico, intelectual, social, e psicológico. Mas há um modo de experiência
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humana que tem um papel chave na constituição de nossa visão de mundo: a fé. A fé é a
dimensão da nossa vida que nos dá o horizonte último de todo o que somos e fazemos;
ela tem o poder de organizar todas as nossas crenças e dar sentido a elas à luz do que
consideramos supremo para nós.1
As questões últimas da existência, sobre a vida e a morte, o mal e o sofrimento, a
natureza humana e o seu destino estão além do poder da razão. Por isso o homem
sempre busca essas respostas esperando que elas "se revelem" de algum modo a ele.
Nesse nível o homem se abre para o transcendente e espera que o sentido último venha a
emergir diante dos seus olhos, exercitando fé Por essa razão podemos dizer que aquelas
idéias mais centrais em nosso sistema de crenças, as que tem o poder de originar e
dirigir nossa cosmovisão são recebidas por nós a partir da fé.
Dito isto, devemos admitir que diferentes condições de vida afetam
profundamente o sistema de crenças de alguém. Para que uma cosmovisão tenha
sucesso em orientar a vida, ela deve ser capaz de iluminar a experiência apontar
caminhos. Ou seja: ela deve ser consistente com os fatos da experiência. Como as
condições da experiência variam bastante, temos às vezes cosmovisões (no sentido de
conjunto total de crenças) divergentes emergindo dos mesmos compromissos básicos de
fé. A visão de mundo Anabatista, por exemplo, é diferente da visão de mundo
Calvinística. Naturalmente, é legítimo perguntar qual cosmovisão está mais de acordo
com a Bíblia. Mas também devemos admitir que condições de experiência diferentes
podem levar a diferentes ênfases e novas descobertas sobre a verdade bíblica.
Que tipo de experiência pode afetar nossa cosmovisão? A vida emocional, por
exemplo. Sentimentos enraizados de abandono podem afetar a integridade da fé.
Pessoas que foram submetidas ou testemunharam abusos freqüentes de autoridade
podem moldar sua cosmovisão de tal forma que o poder seja sempre identificado com o
mal. Pessoas que nunca conheceram a miséria e a exploração de perto podem adotar
uma visão otimista da sociedade e apoiar teorias econômicas liberais. Conflitos pessoais
podem causar uma ruptura entre o que é confessado na fé e a prática, e alguém pode
tentar fechar essa brecha alterando não a prática, mas a confissão de fé. A vida social
também pode nos levar a uma alteração de cosmovisão. O desejo de manter privilégios
sociais pode nos levar a adotar posturas que justificam a opressão. Ou podemos ser
levados a aceitar como corretos certos comportamentos imorais devido à pressão da
maioria.
Temos então que a cosmovisão tem sempre duas fontes: (1) nossas crenças
fundamentais, fornecidas pela orientação religiosa fundamental, através da fé, e (2)
nossas experiências e condições de vida, incluindo condições materiais, sociais,
emocionais, intelectuais, etc. Podemos dizer que ela serve como um mediador entre a fé
e essas condições de vida:

1
Olthuis, On Worldviews, p. 33.
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Como a figura indica, é preciso admitir que comportamentos e práticas sempre


surgem associados a idéias, e que estas tem o poder de gerar comportamentos. Ou seja,
mesmo não sendo independentes das condições da experiência, as idéias tem uma
função “mediadora” na vida humana, através de nosso sistema de crenças que orienta o
comportamento.
O sistema de crenças da coletividade compõe sua cosmovisão, aquilo em que o
povo acredita e a forma como interpreta a realidade. Tudo o mais em sua vida será
grandemente determinado por esse sistema: o valor do ser humano para aquela cultura, a
família, os relacionamentos, as leis, questões de ética, o valor da ciência e do trabalho,
questões da moral e da justiça, modelos econômicos, a importância de Deus na
sociedade, etc.

1.4. A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E COSMOVISÃO

Albert Wolters distingue cinco concepções principais sobre o relacionamento


entre a cosmovisão e a filosofia:

(1) A cosmovisão repele a filosofia - neste modelo há uma tensão inevitável entre o
pensamento teórico e a as crenças de vida. É o modelo presente no
existencialismo.
(2) A cosmovisão coroa a filosofia - nessa perspectiva a cosmovisão é a mais alta
manifestacão da filosofia.
(3) A cosmovisão flanqueia a filosofia. Conforme este modelo a filosofia e a
cosmovisão devem ser distinguidas e separadas. Essa visão influenciou Husserl e
Max Weber.
(4) A cosmovisão produz a filosofia. Nessa perspectiva a filosofia não fundamenta
a cosmovisão, mas dá expressão cientifica a cosmovisão. É a posição de Dilthey.
(5) A cosmovisão e a filosofia. Nessa visão a filosofia é a verdadeira
weltanschauung cientifica. É a perspectiva de Engels sobre o materialismo
dialético
A perspectiva neo-calvinista tem sido de utilizar a noção de que a cosmovisão
produz a filosofia, associada ou não à (3), e negando ao mesmo tempo as propostas (2) e
(5).
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II. PRINCIPAIS COSMOVISÕES


2.1. TIPOLOGIAS DE COSMOVISÃO

Como já dissemos, cada indivíduo sobre a face da terra, quer esteja consciente
disto ou não, possui uma cosmovisão. Portanto, são várias as cosmovisões, pois são
muitos os elementos que as determinam. A cosmovisão é como uma fita cassete que fica
tocando uma música dentro da mente da cada pessoa. A maioria de nós ainda não se deu
conta do nível de influência que esta percepção da realidade tem em nosso
comportamento, mas ela está muito presente e produz efeitos em todas as esferas da
vida.
Não só para realizar as tarefas básicas da igreja, evangelizando, discipulando e
defendendo a fé cristã, mas também para realizar o mandato cultural de forma efetiva e
transformadora, precisamos conhecer num nível profundo três cosmovisões: a nossa
própria, a daqueles a quem vamos servir, e a cosmovisão bíblica, que é aquela que
queremos transmitir, bem como a referência para a nossa própria.
Cada indivíduo possui a sua própria interpretação particular da realidade, como
vimos. Nesse sentido há tantas cosmovisões quanto são as cabeças. Mas há padrões que
se repetem na formação de qualquer cosmovisão. Assim, podemos tentar classificar as
cosmovisões.
Investigando o tema, percebemos que há diversas tipologias de cosmovisão, com
diferentes ênfases. Na verdade, temos razões para crer que até mesmo as diferenças
tipológicas refletem diferenças de cosmovisão!

a) A Tipologia “Histórica” Kuyperiana

Uma das primeiras classificações do ponto de vista cristão foi a realizada por
Kuyper, em suas Stone Lectures. Ele identificou quatro cosmovisões principais: o
Paganismo, o Romanismo, o Modernismo e o Calvinismo. O Paganismo corresponderia
às cosmovisões religiosas primitivas, anteriores ao advento da ciência. O Romanismo
seria uma tentativa de fundir o paganismo com o cristianismo. O Modernismo seria a
cosmovisão naturalista-científica da modernidade, e o Calvinismo a melhor expressão
moderna da cosmovisão cristã.
A tipologia de Kuyper foi posteriormente aprofundada e desenvolvida por
Dooyeweerd e Vollenhoven, na sua teoria dos Ground-Motives, ou “motivos-base” da
cultura ocidental. Vamos tratar dessa tipologia mais adiante.

b) A Tipologia “Estrutural” de Darrow Miller

Darrow Miller, um autor contemporâneo bastante influenciado pela cosmovisão


reformada, classifica as cosmovisões em três grandes grupos distintos e antagônicos
entre si. Segundo D. MILLER. (2002), embora relativamente genérica, esta
classificação de agrupamentos representa bem as idéias e percepções que imperam nos
corações e mentes dos homens de uma forma em geral. Resumidamente são:

1) Secularismo: a realidade é primordialmente física. Tudo o que existe é o mundo


material. A dimensão espiritual não existe, ou, se existe é uma incógnita. Através da
evolução da natureza física a formas de vida inferiores se desenvolveram e tornaram-se
conscientes de si mesmas. É o caso da humanidade, que superou a superstição de Deus
usando a tecnologia para tornar mais confortável sua vida sem propósito. Esta evolução,
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principalmente em sua vertente científica, não abre possibilidade para o sobrenatural,


deste modo tudo é uma mistura impessoal de matéria com tempo e acaso. O
conhecimento se dá por informação na mente humana. A verdade não corresponde à
realidade, mas ao que o indivíduo acredita em sua razão. A natureza do cosmo é apenas
física, estando nas mãos da humanidade. É um conjunto de recursos materiais
impessoais que formam um sistema fechado. O ser humano age como um consumidor, e
as leis da natureza são regidas por sua vontade exploradora. Por exemplo, não é a lei da
natureza que determina que um urânio enriquecido seja elaborado durante anos, mas
sim o ser humano que decide obtê-lo, nem que seja necessário enriquecê-lo. Assim, o
ser humano termina por ser apenas um animal, que precisa ser satisfeito, viver e morrer.
É uma vida que evoluiu e que vive sem nenhum propósito, a não ser o de aproveitar
enquanto a morte não chega. A ética é situacional, depende da situação, se for eficiente,
útil e desejável, então é certo, senão, é errado. Tal pragmatismo leva a uma conjuntura
de imoralidade, pois um quebrará a moral subjetiva do outro. O pressuposto é uma
moral violada. A história é uma correria sem propósito, pois estão acabando os recursos,
o tempo está passando e o final é nada! É preciso aproveitar, senão depois será tarde. Se
existe pobreza, é porque faltam recursos materiais, ou porque uns têm muito e outros
têm pouco. Afinal, como não há Deus, a vida humana é uma mera manifestação física e,
portanto, tem pouco valor. Somos animais racionais, fruto da evolução. O mundo
sobrenatural não existe ou simplesmente não temos acesso a ele. É a cosmovisão que
prevalece no moderno ocidente e se espalha pelo mundo todo, manifestando-se sob a
forma de hedonismo, consumismo, e excessiva tolerância, etc.

2) Animismo: está em outro extremo em relação ao secularismo. A realidade é


primordialmente espiritual, e em alguns casos o mundo físico é considerado apenas uma
ilusão. Tudo é um “UM” espiritual. Há vários deuses e espíritos individuais
relacionados a este “UM”. A vida é um conflito entre essas forças espirituais, assim o
conhecimento não é possível, pois dependem dessa dinâmica de forças. O cosmo, bem
como a verdade é um mistério, incognoscível, pois dependem do acaso ou da sorte ou
do destino, tudo é irracional, pois tudo está aberto à intervenção espiritual, mas não
humana. A natureza é animada ou viva, divina. É como uma deusa para ser servida
enquanto consciência cósmica, é a “mãe natureza. As leis naturais são variáveis de
acordo com tais intervenções. O ser humano é uma entidade espiritual que está em
barganha com todas essas forças neste “UM” cósmico. O certo e errado, bem como o
bem e o mal não podem ser distinguidos, pois se interpenetram, e assim, o estado de arte
é amoral, ou seja, sem código definido. A história é cíclica, sempre em movimento. Não
há finalidade clara, nem nitidez de tempo, pois este é quase infinito ou imensurável.
Não há porque se preocupar com o tempo, se não for agora, será depois. A pobreza
existe por causa dos demônios ou da ira dos deuses, que trazem secas, terremotos,
enchentes, etc. Se alguém está doente, a causa é sempre espiritual. O objetivo do ser
humano é viver em paz e harmonia com a natureza e os deuses, apresentando sacrifícios
e oferendas para isto. Podemos “barganhar” com os deuses. Poder é mais importante
que caráter. Esta perspectiva está presente nas religiões antigas e tribais, bem como no
panteísmo oriental. O zen-budismo e o hinduísmo são variantes desta perspectiva. A
Nova Era é o reavivamento moderno do antigo animismo, sendo uma cosmovisão
eclética e altamente sincrética, apresenta uma perspectiva animista com elementos de
várias cosmovisões, como alguns pressupostos naturalistas e existencialistas. Todos
falsos para a edificação de vidas e comunidades. No Brasil, tem crescido as práticas e
conceitos animistas no seio da Igreja. Obviamente, é um animismo com roupagem e
símbolos cristãos, mas a essência da cosmovisão é basicamente animista. Isto pode se
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manifestar de várias formas: “superespiritualização” da realidade, sacrifícios a Deus


para se obter “bênçãos” (incluindo a “barganha” do dízimo), todos os problemas
atribuídos a demônios, etc.

3) Teísmo Bíblico: corresponde à visão bíblica. Apresenta um equilíbrio entre o


secularismo e o animismo. O mundo natural (criação de Deus) existe e é importante,
mas está aberto à interferência sobrenatural. Existe uma verdade absoluta que pode ser
conhecida. A pobreza e a fome existem como conseqüência do pecado e rebelião do
homem contra o Criador, portanto a solução está na transformação de corações e mentes
(arrependimento). O homem é muito importante porque foi criado à imagem e
semelhança de Deus. O teísmo bíblico produz uma série de fatores importantíssimos e
influências em todas as áreas da vida: desenvolvimento moral, o valor do trabalho, a
virtude do serviço e da solidariedade, a capacitação do homem controlar a natureza, a
mordomia da criação, o conhecimento e a aplicação da verdade, a capacidade criativa
do homem, etc. Todos estes fatores são fundamentais e exercem uma base sólida para o
desenvolvimento em todas as áreas da vida humana, tanto individual, como coletiva, ou
seja, também em relação a cultura, a arte, a política e o conhecimento de um povo. (Para
mais detalhes vejam o anexo: J. SIRE ( 2001:23-47).

A tipologia de Miller parece útil como análise dos padrões de pensamento que
encontramos na cultura ocidental hoje, tendo como vantagem principal a simplicidade.
No contexto brasileiro, ela retrata bem as tendências espiritualistas da religiosidade
popular, no caso da cosmovisão animista. Entretanto, por ser mais voltada para as
estruturas atuais de pensamento não fica clara a origem histórica desses padrões de
pensamento. Nesse sentido, a tipologia de Kuyper é claramente superior, ao indicar não
só os padrões de pensamento, mas também as origens de cada cosmovisão e as
civilizações que cada cosmovisão produziu.

c) A Tipologia “Filosófica” de James Sire

Uma abordagem bem diferente é a seguida por James Sire, que identifica as
cosmovisões como movimentos intelectuais ou culturais que tiveram grande influência
na história, sem tentar forçá-los num padrão pré-definido. Assim, em concordância com
o título de sua obra principal sobre o assunto, Sire nos apresenta um “catálogo”, ou uma
listagem das cosmovisões principais, que também poderiam ser descritas como
“filosofias de vida”. Oito cosmovisões são apresentadas: o teísmo cristão, deísmo,
naturalismo, niilismo, existencialismo, monismo panteísta oriental, nova era e pós-
modernismo. Vamos apresentar abaixo cinco delas (excluindo o teísmo, o panteísmo e a
nova era):

1) O Deísmo: surgiu no séc. XVII com o Iluminismo, onde a legitimidade do


conhecimento se dá pela revelação da razão. É algo similar ao teísmo dominado pelo
racionalismo humano. Deus existe e criou a realidade, mas a abandonou e a deixou
funcionar por conta própria. Ele é transcendente (está além da criação), mas não é
imanente, ou seja, está com ela. Não é completamente pessoal, nem providencial e não é
soberano. Ele simplesmente é indiferente ao que criou. A natureza é física, com leis de
causa e efeito conforme foi criado, mas está fechado à intervenção, não só do ser
humano, mas inclusive a do criador. O cosmo está em seu estado normal, não é caído, e
através deste pode-se conhecer a Deus. É a chamada revelação natural. O deísmo refuta
qualquer revelação além desta, pois Deus não se comunica com o ser humano, nem
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pelas escrituras. A ética é limitada à revelação geral, pois sendo o cosmo normal, isso já
revela o que é certo. No entanto, tal premissa já destrói a própria ética, uma vez que o
que existe é o certo, não há como haver o mal. Isto levou os deístas a muitas crises, pois
como preservar a ética cristã com tal fundamento? Por fim, a história é linear, sendo o
curso do cosmo definido na criação, aí estão as regras da natureza, bem como o
conhecimento de Deus. No que diz respeito à finalidade, não há propósito, pois deus
não está interessado na humanidade.

2) O Naturalismo: se no deísmo deus foi reduzido, nesta cosmovisão Ele inexiste. A


realidade é a matéria, e é esta tudo o que há eternamente. A natureza é um sistema
fechado e autônomo. O ser humano é somente matéria, assim como o cosmo, sendo sua
personalidade fruto de uma inter-relação de propriedades químicas e físicas ainda não
plenamente conhecidas. No campo da ética, os valores se dão pela humanidade,
diferentes do deístas, eles não advêm de revelação nenhuma. A história é linear e
vinculada por causa e efeito, mas sem proposta alguma. Tudo se inicia no big bang, para
os naturalistas a premissa é sempre a mesma: o processo foi ativado por si mesmo e não
por causa exterior.

3) O Niilismo: é antes de tudo, mais propriamente um sentimento. Tudo é sem sentido,


como a ética, o conhecimento e a realidade, isto é, só existem. Todos que não
experimentaram a ansiedade, o desespero ou o tédio, não imaginam como o niilismo
seria uma cosmovisão considerada. As angustias provenientes da falta de significado e
sentido, as dores do vazio humano, da vida sem valor e sem propósito são suas
características básicas. A proposta niilista, ela própria não pode ser niilista, pois se for,
em si mesma não terá sentido. O niilismo é fruto de um naturalismo sério, pois este
defende que tudo o que há é matéria uniformizada em relações, de causa e efeito,
autônomas num sistema fechado. Assim, qualquer ação humana, não teria sentido, pois
não seria deste, mas da determinação deste sistema fechado. Tudo seria advindo dessas
forças impessoais do cosmo natural, onde a eternidade passada determinaria a futura e
assim, ad infinitum. Qualquer autoconsciência ou conhecimento seria fruto desta
realidade de operação, inclusive a própria conclusão disto. Assim, o naturalismo leva ao
niilismo, mas nem todo naturalista é niilista, justamente porque nem todos levam o
naturalismo as ultimas conseqüências. Surge aí uma ironia, que é a de que o
naturalismo, influenciado pela idéia da razão humana como conhecimento, pelo niilismo
terminaria por refutar o seu próprio conhecimento. Do mesmo modo, o niilista em
relação a sua proposta. (Leia as descrições em J. SIRE, 2001:108 e 112, a primeira para
a contradição do próprio niilismo e o segundo para o sentimento).

4) O Existencialismo: surge antes do séc. XX, mas se consolida após o niilismo deste
período. O existencialismo ateísta surge como resposta ao naturalismo que levou ao
niilismo, já o existencialismo teísta, como uma reação à ortodoxia morta do
luteranismo.
O existencialismo ateísta aceita as seguintes proposições do naturalismo: A matéria
existe eternamente; deus não existe. O cosmo existe como uma uniformidade de causa e
efeito num sistema fechado. A história é uma corrente linear de eventos ligados por
causa e efeito, mas sem uma proposta abrangente. A ética está relacionada apenas aos
seres humanos. Porém, o existencialista muito mais, em relação ao naturalista, pelo ser
humano, bem como sobre como podemos ser significativos em um mundo
insignificante. Assim, mesmo sendo a realidade, primordialmente material, esta se
apresenta ao ser humano em duas formas: objetiva e subjetiva. A objetiva é exatamente
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como é no naturalismo, já a subjetiva é a determinada pela apreensão do sujeito, onde o


eu apreende o “não eu” e faz deste parte de si mesmo. O sujeito apreende o
conhecimento, não como uma garrafa, mas como um organismo assimila um alimento.
Nesta perspectiva, o ser humano faz o que ele é, segundo Sartre: “Antes de tudo, o
homem existe, cresce, aparece em cena e, somente depois, define-se a si mesmo”.
Somos autônomos, criamos nossos próprios mundo e os governamos, os nossos valores
segundo nós mesmos. Assim, o mundo objetivo parece-nos um absurdo, por não se
adequar às regras estipuladas por nós como o mundo subjetivo. É aí que o
existencialista vai além do niilismo, pois se revolta com o mundo objetivo ao criar e
priorizar o seu próprio mundo através da subjetividade.
Já o existencialismo teísta aceita as seguintes proposições do teísmo: Deus é
infinito e pessoal (triúno), transcendente e imanente, onisciente, soberano e bom. Deus
criou o cosmo ex nihilo para operar com a uniformidade de causa e efeito num sistema
aberto. Os seres humanos são criados a imagem e semelhança de Deus. Podem conhecer
alguma coisa de Deus e do cosmo e podem viver significativamente. Deus pode e
estabelece comunicação conosco. Fomos criados bons, mas agora estamos caídos e
necessitamos ser restaurados através de Cristo. Para os seres humanos, a morte é ou o
portão para a vida com Deus ou separada Dele. A ética é transcendente e baseada no
caráter de Deus. Deste modo, o existencialismo teísta é mais um conjunto de ênfases no
teimo do que uma cosmovisão separada, porém tais ênfases o colocam em desacordo
com o teísmo, principalmente devido suas relações com o existencialismo ateísta e com
a teologia do séc. XX. As ênfases estão mais relacionadas com a natureza humana e sua
relação com o cosmo e com Deus do que a natureza destes. Os seres humanos são
pessoais e quando estes chegam a sua consciência plena, descobrem-se a si mesmos
num cosmo alienado. Se Deus existe ou não isso não deve ser resolvido pela razão, mas
pela fé. O início não se dá a partir de Deus. No teísmo assume-se Deus com um dado
caráter, e as pessoas são definidas a partir Dele. No existencialismo teísta chega-se a
mesma conclusão, contudo o ponto de partida é o ser humano ao conscientizar-se de si
mesmo. Deus sempre se revelará ambiguamente, e mediante a isso somado ao conflito
advindo do mundo objetivo e subjetivo a indivíduo, em sua solidão, deve escolher dar
um passo radical de fé em direção a religião, de forma que tal atitude possibilitará as
proposições do teísmo. No entanto a subjetividade será a definidora do estilo de vida do
sujeito nesta circunstancia. Toda a primazia se dá pela subjetividade pessoal, pois a
realidade é um paradoxo que só Deus resolve, a nós cabe a escolha de confiar Nele e
mediante nossa subjetividade partirmos para a ação. A história em si é desprezível
enquanto fato, mas como mito, ou significado religioso é importante para o presente a
ser vivido.

5) O pós-modernismo: com o existencialismo abre-se a porta para o pós-modernismo,


pois somos nós que fazemos de nós o que devemos ser. O pós-modernismo não é
propriamente uma cosmovisão, pois seria fruto de não haver mais uma história a ser
contada, mas várias válidas, cada uma legitimando o seu grupo social. Haveria os
naturalistas, os cristãos, os orientais panteístas e assim ad infinitum. As questões não
são: O que existe? Ou O que podemos conhecer? Mas sim: Como a linguagem funciona
para construir o significado? A verdade da realidade está sempre oculta, o que se pode
fazer é narrar histórias. Os seres humanos fazem o que eles são através das linguagens
que usam para construir a si próprios. A ética e o conhecimento são construtos
lingüísticos, assim como o bem social é o que a sociedade assumir ser.
A classificação de Sire tem a vantagem de incluir a cosmovisão panteísta
oriental e de diferenciar entre “modernismo” e “pós-modernismo”. Por outro lado, Sire
11

não mostra como diferentes cosmovisões refletem condições religiosas mais profundas.
Além disso várias cosmovisões diferenciadas por ele (deísmo, naturalismo, niilismo,
existencialismo, pós-modernismo) podem ser descritas como variações dentro de um
padrão mais amplo que Miller descreve como “secularismo” e Kuyper como
“modernismo”. De certo modo, “existencialismo” e “niilismo” são mais “filosofias”
dentro de uma cosmovisão do que cosmovisões claramente distintas.

2.2. A PRINCIPAIS COSMOVISÕES (PERSPECTIVA REFORMACIONAL)

Do ponto de vista kuyperiano, é preciso procurar o ponto de partida de uma


cosmovisão e, simultaneamente, o diferencial entre diversas cosmovisões na sua
orientação religiosa fundamental. Essa orientação define as crenças mais centrais de
uma cosmovisão.
Muitas pessoas, hoje, se dizem cristãs, católicas ou evangélicas. No entanto, é
comum encontrar “cristãos” que dedicam sua vida ao dinheiro, ou à carreira
profissional, ou a um relacionamento. Na perspectiva bíblica, essa é a verdadeira
religião da pessoa.
Examinando a questão por esse ângulo, imediatamente perceberemos que, a
despeito da multiplicidade de cultos religiosos que pululam em nossa sociedade, a
maioria das pessoas, mesmo as “religiosas”, vive em torno de valores e tesouros
“seculares”, como o mercado, as filosofias políticas, e os ideais humanistas de vida.
Muitos daqueles que praticam cultos como o candomblé, por exemplo, são pessoas
altamente secularizadas e comprometidas com ideologias humanistas de esquerda.
Nesse caso, o que é a religião profunda dessa pessoa? Provavelmente, o humanismo.
Nesse nível profundo é que devemos encontrar os principais adversários do
cristianismo. Religiões que meramente oferecem um consolo às pessoas, ou um meio de
obterem a satisfação de seus desejos (como o baixo espiritismo) podem ser muito
perigosas para os indivíduos que as praticam, mas não são tão perigosas quanto
parecem, por uma razão simples: elas geralmente não são sistemas de vida integrais, não
são religiões formativas. Elas não têm o poder de moldar totalmente a vida das pessoas,
mesmo quando tem grande influência. Por exemplo: é praticamente impossível
encontrar um professor de história adepto do espiritismo, que busque explicar a história
humana através dos princípios do espiritismo. Isso mostra que essa religião é
inerentemente fraca. Ela não é capaz de proporcionar às pessoas uma visão abrangente
do mundo, que guie toda a vida da pessoa. Entretanto, esse tipo de religião pode ser
associada a uma cosmovisão dualista, permanecendo no lado mais fraco do dualismo,
ou no lado mais forte. Nesse caso, ela pode fortalecer grandemente uma outra
cosmovisão.
Podemos distinguir, na atualidade, alguns sistemas totais de vida que se opõe ao
cristianismo. Nem todos estão presentes em nossa cultura, mas é importante conhecê-los
pois sua influência é enorme.
Há vários sistemas religiosos diversos; mas há essencialmente três tipos de
cosmovisões, que se dividem e se misturam formando as outras: o monismo oriental, o
dualismo ocidental, e o teísmo bíblico. Esses três tipos se distinguem basicamente pela
forma como relacionam a divindade, ou aquilo que consideram “supremo”, e o restante
do cosmo.2 O monismo oriental identifica Deus com a totalidade do Cosmo, sendo
assim panteísta. O dualismo ocidental tende a identificar Deus como uma parte do
Cosmo, procurando assim sujeitar a parte “inferior” à parte “divina”. O dualismo pode

2
Essa forma de distinguir as cosmovisões foi proposta por D. T. H. Vollenhoven.
12

vir em suas formas “pagãs” ou numa forma científica moderna. O Teísmo Bíblico
estabelece uma diferença qualitativa infinita entre o Criador e a criatura:

1) O Monismo Panteísta

A perspectiva oriental manifesta grande tendência para o monismo. O monismo


é a crença de que a realidade inteira é uma única essência. Tudo o que podemos
conhecer – Deus, o homem, a matéria, o espírito, os animais, o passado, o futuro, os
seres vivos e inanimados, a “verdade” e a “mentira”, o prazer e o sofrimento, “eu” e
“tu”, – tudo isso é uma única essência pura, o “todo”. O Monismo Pode ser representado
da seguinte forma:

Conforme essa perspectiva, as


diferenças que encontramos em nossa
experiência são na verdade ilusões.
Uma pessoa iluminada por meio de
uma experiência mística
compreenderá que na realidade tudo é
uma coisa só. Esse tipo de monismo
influenciou bastante o movimento da
“nova era”. É por isso que às vezes
encontramos místicos que dizem que
Na cosmovisão monista, “tudo é Deus”, e que o segredo da
representada no hinduísmo, no budismo, felicidade é nós descobrirmos que
e em filósofos e teólogos ocidentais como Deus está “dentro de nós”, ou que
Schelling e Paul Tillich, a divindade é o todos somos “Deus”.
infinito, e a realidade não divina é apenas
aparentemente não divina.

Na prática religiosa monista o segredo da realização é o indivíduo se harmonizar


com a realidade que está oculta sob a aparência. Assim, não existe interesse em
“transformar a realidade”. Pelo contrário, é preciso dedicar-se à meditação para receber
a iluminação mística, e compreender que o sofrimento e o mal são na verdade “parte da
vida”. No hinduísmo, por exemplo, o místico busca aprender a conviver com a dor, e a
superá-la por meio de vê-la como uma ilusão (maya).
Historicamente, esse tipo de sistema favoreceu a constituição de sociedades
muito estáticas, tradicionalistas e fechadas. Não se desenvolveu qualquer noção de que
o universo teria uma espécie de ordem lógica que poderíamos estudar – assim, esses
sistemas nunca produziram nada parecido com a ciência ocidental.
Um exemplo disso é o que os ocidentais usam para pensar e argumentar: as leis
da lógica. Segundo essas leis, por exemplo, uma coisa não pode ser verdadeira e falsa ao
mesmo tempo. Por exemplo, a lâmpada não pode estar acesa e apagada ao mesmo
tempo. Entretanto, na visão monista, tudo é uma coisa só; a verdade e a mentira fazem
parte da mesma essência. Portanto, o monismo não favorece a noção de que
argumentação lógica possa levar a uma melhor compreensão da realidade.
Além disso, a estrutura social era considerada algo imutável. Se havia injustiça
social, o indivíduo era levado a superar a dor por meio da meditação, ao invés de acabar
com a dor por meio da transformação do mundo. Quem irá combater o mal, se
13

consideramos que o mal é apenas uma ilusão a ser superada por meio de experiências
místicas?

2) Dualismo Pagão

Nas formas pagãs de religião, a divindade é identificada com “uma parte,


aspecto força ou princípio no universo criado”.3 A divindade é uma subdivisão da
realidade, um segmento dentro do todo que é o cosmo. Religiões da natureza adoram
um poder divino na terra como o sol, a água, os ventos, etc.
O paganismo freqüentemente conduz à formação de algum tipo de dualismo
religioso. Enquanto o monismo oriental tende a ver tudo como sendo uma única
essência, o dualismo tende a ver a realidade como sendo uma composição de duas
substâncias ou forças contrárias. Na religião Babilônica antiga, acreditava-se que o
mundo nasceu de uma batalha cósmica entre Marduque, o Deus supremo (princípio
masculino), e Tiamat, o dragão que representava o caos (princípio feminimo).
Marduque venceu Tiamat, e de seu corpo fez o mundo.

É interessante notar que nesse


tipo de perspectiva, toda a realidade era
uma luta sem fim entre dois poderes, a
ordem e o caos, o masculino e o
feminino. O seguidor dessa religião
nunca via a realidade como sendo
harmoniosa; ela era vista como uma
contradição. Esse tipo de cosmovisão
acaba sempre favorecendo alguns
aspectos da realidade e tratando os
outros como malignos e perigosos.

Outro sistema dualista que influenciou muito o mundo antigo foi o dualismo
persa, presente no Zoroastrismo e no Maniqueísmo. Conforme essas religiões, há uma
luta incessante entre o bem e o mal, que são duas forças iguais e contrárias.
O sistema dualista que mais influenciou a nossa cultura foi o dualismo grego.
Em determinado ponto de sua história, os gregos começaram a ver o mundo como fruto
da união entre duas realidades distintas: a forma e a matéria. O mundo das formas era
também chamado de mundo das “idéias”. Esse era o mundo da mente ou do espírito; era
povoado pelas idéias perfeitas, governado pela razão. Já o mundo da matéria é um
mundo inferior, o mundo do caos, daquilo que é temporário e corruptível.

3
Clouser, Roy, The Myth of Religious Neutrality, p. 36.
14

Essa visão dualística do mundo levou a uma consciência dualista. Assim os


gregos, que inicialmente cultivavam bastante a beleza corporal, aos poucos foram se
tornando pessimistas para com o corpo. Eles passaram a valorizar muito a filosofia e as
atividades do espírito humano; ao mesmo tempo, consideravam a vida “terrena” como
sendo algo corrupto, decadente e infeliz. Assim surgiu um provérbio famoso que
descreve sua visão da vida: “soma sema”, que significa “o corpo é um túmulo”. O grego
via a si mesmo como um espírito aprisionado em um corpo decadente.
Um pouco mais tarde, na época do Novo Testamento, surgiu um movimento
herético que prejudicou bastante a igreja primitiva: o gnosticismo. Os gnósticos
começaram a dizer que o mundo material teria sido criado por um deus inferior,
chamado de “demiurgo”. Esse deus teria aprisionado espíritos de luz em corpos físicos
corruptos. Então o Deus supremo, no mundo das formas, enviou um dos primeiros
deuses (Jesus) para libertar esses espíritos de sua prisão material e fazê-los
“transmigrar” de volta para o mundo do espírito.
Não é preciso dizer que esse tipo de religião produziu sérias consequências
práticas. Os gregos, embora amassem a filosofia, achavam que o trabalho “material” era
inferior. Assim, desprezavam a pesquisa empírica e o trabalho artesanal. Por essa razão
o mundo ocidental, enquanto esteve preso à influência grega, foi incapaz de produzir
pesquisa científica e tecnologia industrial. Só com a renascença e a Reforma essa atitude
dualista foi superada.
O dualismo grego afetou profundamente a religião cristã. Os cristãos gnósticos,
por exemplo, desprezavam o corpo físico. Sua espiritualidade era dedicada à reflexão e
iluminação. Assim eles não buscavam justiça social, não ajudavam os pobres, e
buscavam desligar-se de tudo o que consideravam “terreno”. Havia dois partidos: os
gnósticos ascéticos negavam os desejos do corpo e o maltratavam para ganhar a
iluminação. Os gnósticos libertários buscavam satisfazer todos os desejos do corpo,
raciocinando que isso não poderia tirar a pureza de seu espírito interior. Assim, “caiam
na gandalha”!. O que eles tinham em comum? Ambos eram dualistas: valorizavam o
espírito e detestavam tudo o que era material, terreno.

3) O Teísmo Bíblico

Em oposição aos sistemas monistas e dualistas, está o teísmo bíblico. Na


perspectiva teísta, Deus e o cosmos são duas realidades distintas. Deus é Deus, e o
cosmo é o cosmo. Deus é infinito, perfeito, eterno, indivisível. O cosmo foi criado por
Deus, estando sob sua soberania. Como o cosmo foi criado bom, não há nada de ruim na
criação. Não há uma parte da criação que seja ruim ou inferior a outra (como no
15

dualismo grego). A queda do homem lançou o mundo no caos. Assim, o mal existe, não
sendo uma ilusão (como no monismo), mas não pode ser identificado com uma criatura.
O mal é a corrupção que atinge as criaturas. Vamos examinar a perspectiva bíblica mais
detalhadamente mais adiante.

As três cosmovisões acima são os tipos básicos de cosmovisão, examinadas sob


o ponto de vista da orientação religiosa fundamental. Elas também correspondem às três
grandes tradições filosófico religiosas do mundo: o panteísmo oriental, as diversas
formas de dualismo pagão, que dominaram no ocidente e também ocorreram no oriente,
e o teísmo encontrado no Judaísmo, no Cristianismo e no Islã.
Além dessas três cosmovisões primárias, temos uma série de variações
relacionadas aos diferentes contextos históricos em que elas se desenvolveram. Assim
há variedades de dualismo pagão, de panteísmo e de teísmo cristão, conforme a
consistência dos cristãos em manter sua própria cosmovisão.
O mundo ocidental viu dois tipos singulares de dualismo emergirem como forças
culturais de dominaram por séculos a civilização e até hoje exercem sua influência: o
dualismo Romanista Natureza/Graça e o dualismo Moderno Natureza Liberdade.

4) O Dualismo Natureza/Graça

Quando o cristianismo nasceu, a maior parte do mundo ocidental e médio-


oriental seguia algum tipo de dualismo. O mais influente era o dualismo grego, que
havia se espalhado por todo o império romano. Durante os primeiros séculos do
cristianismo, enquanto o evangelho se espalhava em todas as direções, o dualismo grego
foi penetrando nas igrejas e moldando a própria teologia cristã. Os filósofos gregos que
mais influenciaram o cristianismo foram Platão e Aristóteles. Inicialmente, com a
influência do platonismo, muitos cristãos começaram a entender a espiritualidade como
uma espécie de “visão mística”, e a salvação como uma libertação do mundo presente.
O cristianismo influenciado pelo platonismo não dava muita atenção às questões
“terrenas”. Nesse período surgiu o movimento monástico, que buscava se aproximar de
Deus afastando-se das coisas terrenas (sexo, alimento, política, diversão, rotina de
trabalho, etc). Essa é uma das razões porque até hoje o sacerdote católico não pode se
casar, devendo permanecer casto.
No final da idade média, o grande teólogo Tomás de Aquino realizou uma
síntese entre o dualismo grego forma/matéria e o teísmo cristão. Ele procurou adaptar a
perspectiva grega à perspectiva cristã, desenvolvendo o sistema natureza/graça.
Conforme esse sistema, a queda não teria corrompido totalmente a natureza, mas
apenas a enfraquecido, fazendo-a perder a graça sobrenatural. A salvação seria o retorno
do dom sobrenatural da graça ao mundo. Ou seja, para ele, a graça não era a
renovação da própria natureza, mas um complemento, um acréscimo à natureza.
A partir dessa teologia, Aquino considerou que a natureza funcionava
adequadamente, mesmo sem a graça. A razão humana, por exemplo, precisava da luz da
graça para operar melhor, mas em si mesma não havia se corrompido. Assim, ele
concluiu que nossa visão sobre o que a natureza é poderia ser baseada numa filosofia
pagã, produzida pelo homem natural. A filosofia que Aquino usou para explicar o
mundo foi a filosofia de aristóteles. E o dualismo forma/matéria encontrou seu caminho
para dentro do cristianismo.
Diversos pensadores evangélicos apontaram que o sistema natureza/graça foi um
erro fatal para o cristianismo. Ao aceitar esse esquema, os cristãos aceitaram que as
realidades da criação, como o pensamento filosófico, a educação, a família, a política, e
16

até a moral, fossem consideradas parte da “esfera da natureza”, devendo seguir suas
próprias leis. E a fé em Cristo, a igreja, etc., seriam parte da esfera da graça, que é
adicionada à natureza. Sob influência dessa visão, os homens foram pouco a pouco
reivindicando em cada uma dessas áreas a liberdade de toda influência da “esfera da
graça”. A religião foi sendo tratada como uma questão “de igreja”, ou então “de foro
íntimo”, e sua influência sobre todas as questões “naturais” foi anulada. Na linguagem
de Francis Schaeffer, quando Tomás de Aquino deu liberdade à natureza, “a natureza
devorou a graça”.

5) O Dualismo Natureza/Liberdade

À medida em que a idade média findava, os pensadores europeus começaram a


buscar alternativas em relação à filosofia grega. Na Reforma, os protestantes rejeitaram
de forma decidida o dualismo grego forma/matéria. Afirma-se, por exemplo, que Lutero
disse o seguinte: “Foi-me ensinado que ninguém pode entender Paulo sem Aristóteles.
Mas eu aprendi que é impossível compreender Paulo com Aristóteles!”
No período renascentista desenvolveu-se o humanismo ocidental. A marca
principal do humanismo é a noção de que o homem encontrará sua realização plena por
meio de uma libertação plena de toda opressão. Os humanistas surgiram de um período
de intensa opressão política e religiosa (a idade média), e abominavam a limitação da
liberdade de pensamento, da ação, da liberdade política, e em muitos casos, da liberdade
moral e sexual.
Ao lado de uma valorização crescente do homem e da liberdade humana, os
humanistas defendiam um controle racional da realidade. Através da crítica racional, da
pesquisa científica e da tecnologia o homem poderia não só derrotar as forças que o
oprimiam, mas também ganhar o controle da criação, com o fim de satisfazer a todas as
necessidades humanas. Isso levou a uma perspectiva mecânica do mundo, como se ele
fosse uma máquina que podemos compreender e dominar por meio da matemática e da
indústria.
Surgiu assim no mundo ocidental um outro dualismo que se tornou o princípio
dinâmico por trás da nossa cultura: o dualismo natureza/liberdade.
Conforme esse dualismo moderno, o homem é essencialmente um espírito
racional, ansiando por liberdade para se realizar. Mas o principal obstáculo a essa
realização é a natureza, que impõe limitações à liberdade. O homem entra então em luta
com a natureza buscando controlá-la por meio da tecnologia.
O dualismo moderno é profundamente contraditório. Um exemplo evidente
disso, é o fato de ter levado o homem a um choque com a natureza. O que vemos, de
fato, é que após a etapa inicial da modernidade, quando a ciência evoluiu bastante,
ocorreu a revolução industrial. A busca do controle tecnológico de toda a natureza para
fins econômicos gerou uma destruição enorme do meio ambiente do homem. Assim,
chegamos ao princípio do século XXI metidos numa grave crise ecológica.
Para controlar a natureza, o homem construiu uma explicação mecanicista e
materialista da natureza. O evolucionismo darwiniano, por exemplo, é uma tentativa do
homem de explicar a origem da vida de forma naturalista, sem se apoiar na fé em Deus.
Nasceu assim o naturalismo filosófico, que buscam explicar a natureza a partir da
natureza, como se ela fosse um mecanismo com leis determinísticas.
Este é o problema principal do dualismo moderno. Para afirmar sua liberdade
absoluta, o homem moderno excluiu Deus. Para controlar a natureza em seu benefício,
explicou a natureza como um mecanismo determinista. Entretanto, o próprio homem é
parte da natureza! Assim, o homem também poderia ser explicado a partir das leis da
17

natureza, como um produto do mecanismo evolutivo. Mas se isso for verdade, o homem
não pode ser realmente livre!
Ou seja: na busca desenfreada por liberdade, o homem moderno construiu uma
ciência naturalista que a cada dia nega que o homem tenha qualquer liberdade. Assim,
no evolucionismo, o homem é meramente o produto da evolução biológica; no
socialismo marxista, o homem é meramente produto do sistema econômico; em várias
teorias sociológicas, o homem é produto da sociedade; para muitos psicólogos, o
homem é produto de seu subconsciente.
Os efeitos dessa perspectiva estão entre nós. Vivemos numa sociedade que
acredita ser possível construir a liberdade, e assim, a felicidade humana por meio da
ciência. Há vários exemplos disso. Nas relações afetivas, por exemplo. O homem
moderno considera o casamento e a família tradicional como obstáculos à liberdade.
Assim, a família tradicional foi bombardeada de todos os lados: mudanças na legislação,
ridicularização na mídia cultural, estudos acadêmicos que a consideram um obstáculo
para o desenvolvimento humano. Em lugar da família tradicional, propõe-se a liberdade
para o indivíduo construir seus relacionamentos. Modelos novos de família, como as
famílias matriarcais, ou abertas, ou famílias compostas (fruto de vários casamentos),
famílias homossexuais, etc., são defendidos como formas válidas.
Temos assim uma “reengenharia da família”, na qual psicólogos, sociólogos,
sexólogos, e legisladores buscam construir artificialmente, por meio de controle
científico racional, sistemas humanos mais humanos. O efeito disso, no entanto, é
impossível de esconder. Os casamentos duram cada vez menos, e os filhos desses
relacionamentos desenvolvem distúrbios psicológicos e morais. O custo financeiro
desses divórcios é enorme, bem como o custo psicológico. As pessoas vivem cada vez
mais sós e assim tornam-se cada vez mais consumistas, favorecendo o sistema
capitalista de exploração. A quantidade de mães solteiras aumenta assustadoramente, e a
liberdade sexual dificulta o controle de doenças ao mesmo tempo em que alimenta redes
de prostituição e pornografia, geralmente associadas ao consumo de drogas.
As pessoas mergulhadas no sistema moderno de vida e pensamento vivem
existências intensamente contraditórias. Permanecem o tempo todo numa intensa fúria
libertária, buscando se livrar de tudo que as “oprime”: leis morais, família, tradições
religiosas, governo, leis da natureza, envelhecimento, dor, etc. Mas no processo, negam
sua própria liberdade; tornam-se elas mesmas parafusos da grande máquina.

2.3. A PRINCIPAIS COSMOVISÕES E O CONTEXTO BRASILEIRO

Como podemos descrever a situação no Brasil?


O monismo oriental praticamente não tem influência no Brasil. O dualismo
grego forma/matéria tem alguma influência indireta. Mas as forças religiosas que
operam mais profundamente em nossa terra são o cristianismo católico dualista e o
sistema moderno natureza/liberdade.
O cristianismo católico é um cristianismo de síntese. A perspectiva dualista
natureza/graça divide a vida em duas esferas: a esfera “religiosa” e a esfera “secular”.
Na esfera religiosa domina a igreja e a teologia. Na esfera secular está a vida pública, a
ciência, a mídia, a arte, etc. Isso gera uma contradição muito forte: o católico
geralmente não tenta encontrar uma coerência entre sua fé e sua vida “secular” (afinal,
são duas esferas separadas); assim, ele é religioso na igreja, participa da missa,
confessa-se católico, mantém alguns valores morais (às vezes). Mas suas idéias e
práticas que pertencem à natureza são dominadas pelo humanismo secular – o sistema
natureza/liberdade. Assim encontramos a situação extremamente contraditória de
18

católicos marxistas, por exemplo, ou católicos que defendem valores morais totalmente
anticristãos.
Além dos católicos, que são tipicamente dualistas, há aquelas pessoas altamente
secularizadas, que tem uma visão de mundo completamente naturalista. Para essas
pessoas, o homem é meramente produto de forças naturais+tempo+acaso. Elas
acreditam que o futuro do homem está na ciência. Através de melhor tecnologia, de
administração pública justa e educação de alta qualidade, todos os problemas humanos
podem ser resolvidos. Elas vivem na religião do controle tecnológico.
Essas pessoas geralmente não são muito conscientes da contradição em que
vivem. Elas são otimistas quanto ao poder da ciência de resolver seus problemas.
Eventualmente, no entanto, elas experimentam, através de uma experiência religiosa, ou
através de uma desventura qualquer, a percepção de que suas vidas nesses sistema não
fazem sentido nenhum. Para atingir essas pessoas, é preciso mostrar a elas que se tudo o
que somos é pó e acaso, não podemos dizer que existe de fato o bem, ou o mal, ou a
beleza, ou a justiça, ou a racionalidade; e que a vida delas não passa de um esforço
inútil.
O que devemos pensar de religiões como o espiritismo, que cresce bastante no
Brasil? O espiritismo é um tipo de dualismo pagão, pois segundo ele a essência no
homem é o espírito imaterial. O corpo não é da essência do homem. Tanto que um único
espírito pode passar por vários corpos. Trata-se, assim, de uma perspectiva dualista.
Por isso mesmo, o espiritismo não pode se tornar uma visão integrada da
realidade. Ele não pode dar respostas a questões concretas da vida, como a política, a
filosofia, a ciência, a economia, a moralidade (até certo ponto), a arte. Entretanto, essa é
a sua força. Ao fornecer uma espiritualidade para o indivíduo moderno, sem entrar
necessariamente em choque com a cultura moderna, o espiritismo torna-se uma religião
bastante confortável. O indivíduo pode ser altamente secularizado, aplicando as
pespectivas humanistas em todas as áreas da vida e vivendo a religião do controle
tecnológico, e manter simultaneamente a crença num mundo espiritual, numa
retribuição futura, permitindo que essa crença afete no máximo sua ética pessoal e sua
vida psíquica.
E quanto aos evangélicos? A fé evangélica tem suas origens na reforma, que foi
um movimento cristão integral, nem dualista, nem monista. Entretanto, a igreja
evangélica também foi infectada pelo dualismo católico natureza/graça. Isso não está
presente apenas na teologia de algumas igrejas evangélicas, como os Luteranos e os
Metodistas. A grande maioria dos cristãos evangélicos hoje tende a pensar que temos
uma vida “espiritual”, com Deus, e uma vida “secular”. Esse dualismo é fácil de
perceber: basta perguntar se os crentes tem desenvolvido um pensamento filosófico
cristão, ou uma ação política ideologicamente cristã, ou se tem fundado ongs cristãs.
Para sermos justos, é preciso admitir que os evangélicos tem feito muitas coisas
ultimamente. O movimento de Escolas Cristãs, por exemplo, expressa o ideal de uma
educação cristã e de uma cultura cristã. Mas há muitas áreas ainda sem ser tocadas. Não
temos arte cristã, por exemplo. Temos arte sacra (música religiosa); mas arte cristã não.
A Igreja evangélica brasileira precisa de Reforma. Ela precisa deixar de ser uma
religião de fim de semana e se transformar num sistema total de vida e pensamento.

III. O IMPACTO DA COSMOVISÃO NA VIDA HUMANA4

4
Para mais detalhes sobre o conteúdo, a partir deste Item, vejam: CUNHA, Maurício José Silva. (2003).
O reino entre nós: transformação de comunidades pelo evangelho integral. Viçosa: Ultimato.
19

A cosmovisão atua como um par de óculos na mente. Os óculos que usamos


afetam a forma como enxergamos, porém não aquilo que enxergamos. Da mesma forma
cada indivíduo, quer saiba disto ou não, possui na mente um par de óculos, uma forma
pela qual define e interpreta a realidade. É impossível não ter este par de óculos, pois o
ser humano precisa deles para manter a ordem interior e não permanecer no caos.
Muitas vezes estes óculos estão embaçados, distorcendo a realidade. Por exemplo, se
uma pessoa se vê como sem valor, ou pouco amada, provavelmente carregará
sentimentos de depressão, angústia e procurará viver isolada. Por outro lado, quando
alguém se vê como uma pessoa cheia de potencial, amada, e de muito valor, terá em si
mesma sentimentos de alegria, entusiasmo e auto-realização que vão influenciar
decisivamente no seu comportamento. Está aberto o caminho para a auto-realização.
Assim, a maneira de alcançarmos vidas mais plenas, de acordo com este exemplo, é
corrigindo as distorções das visões que temos a respeito de nós mesmos, das outras
pessoas, do mundo, da vida e de Deus.
Da mesma forma, falando coletivamente, o conjunto de valores e crenças de um
grupo de pessoas afetará enormemente a realidade do grupo. São estes valores e
crenças, ou seja, a forma como o grupo “interpreta” a realidade, que o levarão a
desfrutar de melhores ou piores níveis de vida. Como já dissemos, a cosmovisão atua
como um par de óculos: afetam o que nós vemos, e não o que está sendo visto.
Provocam uma mudança na percepção. É muito mais uma questão de interpretação do
que da realidade em si.

A cosmovisão que provê as respostas para as questões básicas do ser humano em


relação à realidade percebida e a vida. Por exemplo:

1) Questões metafísicas (questões relacionadas com o “ser”) – o que é a


realidade? Há um Deus? O que é o homem? A História caminha para algum
lugar? Como eu concebo a natureza, o tempo?
2) Questões morais – há certo ou errado? O que é errado, o que é certo? De onde
vem o mal?
3) Questões epistemológicas (questões relacionadas com o conhecimento) – o
que eu posso saber e conhecer? Como eu posso conhecer?

Nós sabemos que a Bíblia traz respostas a todas estas fundamentais. E é parte da
missão cristã a correção dessas as crenças (cosmovisão) falsas, com suas conseqüências
deletérias, pela Verdade de Deus, que traz vida e crescimento. Uma reforma plena da
vida e da sociedade depende de uma transformação radical em nossos padrões de
pensamento:

E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso
entendimento,...Rm.12:02a
Pois os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os
meus caminhos, diz o Senhor. Is.55:08.

Como os textos deixam claro, a transformação de nosso sistema de vida de tal


modo que ele não seja determinado pelo mundo depende da renovação da nossa mente;
e não podemos supor que seja possível obter pensamentos adequados sem buscá-los
diretamente nas Escrituras, pois os pensamentos de Deus não são os nossos!
A Missão da Igreja vai além de evangelizar. Precisamos levantar um debate
sobre as cosmovisões das pessoas ou nações, estudando a sua história, a sua arte, as
músicas que estão cantando e todas as outras manifestações que refletem o que
20

acreditam, valorizam, anseiam e crêem, para trabalharmos no sentido de desmascarar e


substituir as mentiras do diabo pela Verdade de Deus. Isto faz parte do discipulado, pois
o ser humano não é somente um ser individual, mental e emocional; mas também um
ser político, social e cultural.

1.1. A ÁRVORE DA COSMOVISÃO

A cosmovisão de um indivíduo ou comunidade pode ser comparada à raiz de


uma árvore. Estas crenças vão gerar valores (tronco). Estes valores, por sua vez,
determinam o comportamento (galhos) dos indivíduos, que vão originar as
conseqüências (frutos). A premissa “idéias trazem conseqüências” é fundamental neste
sentido. Os corações e mentes dos indivíduos são guiados consciente ou
inconscientemente por um sistema de idéias, que vai se refletir nos seus valores,
comportamentos e nas conseqüências oriundas destes padrões. A cosmovisão e os
valores que temos é que vão determinar a nossa história, e não o contrário. Muitas
vezes, tem-se tentado solucionar os problemas apenas ao nível das conseqüências, ou
seja, atuando nos “frutos” da árvore. Arrancamos o fruto, mas ele volta a nascer e
crescer, porque a raiz não foi transformada.

CONSEQUÊNCIAS
(frutos)

COMPORTAMENTO
(galhos)

VALORES
(tronco)

CRENÇAS
(raiz)

PRINCÍPIO RELIGIOSO
(Terreno)

1.2. UM EXEMPLO: O IMPACTO DA COSMOVISÃO SOBRE O DESENVOLVIMENTO

Esta relação RELIGIÂO - CRENÇAS – VALORES - COMPORTAMENTO –


CONSEQÜÊNCIAS é muito importante para uma compreensão adequada de algumas
questões ligadas ao desenvolvimento e ao empobrecimento sócio-econômico. Muitas
crenças (idéias), ao nível da cosmovisão, vão contribuir para a constituição da realidade
em que vivemos. É essencial investigarmos as crenças que tem gerado pobreza, miséria,
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violência e discriminação, para atuarmos no sentido de transformá-las. Vamos examinar


um exemplo:

Nível da crença - vamos supor que um grupo de indivíduos tem uma crença
comum acerca do trabalho: “o trabalho é uma maldição.” Esta crença pode ser expressa
de diversas formas. Muitas vezes, ela pode ser verbalizada diretamente pelos membros
da comunidade. Algumas vezes ela é inconsciente, e pode ser vista apenas nas
entrelinhas. Geralmente, as crenças de uma cultura se percebem na forma das pessoas
agirem, na música que o povo canta, nas artes, nas leis, na literatura, nos heróis e ídolos
do povo.
Que tipo de valores esta crença gera?

Nível dos valores – como o nome já diz, os valores se referem à comparação de


valor entre fatos, idéias e pessoas. O que vale mais e o que vale menos? O que é melhor
e o que é pior? O que é mais ou menos importante?
Se “o trabalho é uma maldição”, então o que vale mais é não trabalhar. Está
aberto o precedente para eu me livrar desta maldição da forma que eu puder. Se eu
puder trabalhar menos para ganhar mais, mesmo que tenha que recorrer a meios
escusos, é válido. Se eu puder levar vantagem sobre alguém ou precisar recorrer a
alguma forma de corrupção, não tem problema, pois o mais importante é trabalhar
menos. O desejável é não trabalhar ou trabalhar pouco, ganhando dinheiro fácil de
alguma forma. Há também tipos de trabalho que valem mais do que os outros.
Trabalhos braçais ou externos valem menos, são menos dignos que os trabalhos de
escritório, por isso não devem ser muito valorizados. Por mais que me digam o
contrário, o que realmente penso é isso. É isso que interpreto, é isso que vejo na vida
dos outros, é isso que a vida tem provado ser verdade.
Que tipo de comportamento isto pode gerar na coletividade?

Nível do comportamento – com o conjunto de valores acima, abre-se


precedente para uma série de padrões comportamentais: corrupção, deslealdade,
acomodação, indolência, falta de compromisso, vontade de querer levar vantagem em
tudo, etc. Por mais que sejam coisas condenáveis, acabam sendo praticadas no dia a dia,
pois a crença que está por trás ainda não foi afetada.
Quais as conseqüências oriundas deste tipo de comportamento?

Nível das conseqüências – pobreza, miséria, corrupção e subdesenvolvimento


são apenas algumas conseqüências geradas por este padrão coletivo de comportamento.
Então, como podemos combater estas coisas?
Temos visto que quase todas as causas relacionadas à pobreza, a nível genérico e
excluindo os casos localizados de fatores naturais, climáticos ou catástrofes, tem sua
origem numa crença coletiva (cosmovisão). Idéias trazem conseqüências. A questão é
mais profunda do que normalmente se imagina. Como pessoas interessadas em trabalhar
com desenvolvimento de comunidades, precisamos estar bem cientes destas coisas,
direcionando a nossa ação em função destas questões.
A verdade de Deus é libertadora, traz vida, desenvolvimento e crescimento. No
exemplo específico que exploramos acima, podemos ver o que a Bíblia tem a nos dizer
a respeito do trabalho. Sempre encorajado e elogiado na Palavra de Deus, ao contrário
do que muitos pensam, o trabalho já era atribuição do homem antes da queda. Ao
homem foi dada a ordem de cultivar a terra, administrando-a, e dar nome aos animais.
Este é o primeiro mandamento para o desenvolvimento. Os reformadores introduziram
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no século XVI o conceito de “chamado” para todos os cristãos, segundo o qual cada
pessoa é chamada e exercer o seu trabalho com um senso de chamado pessoal e para a
glória de Deus, fazendo para ele o melhor. O trabalho é, portanto, uma bênção. Esta
ética foi uma das grandes responsáveis pelo enorme desenvolvimento alcançado pelos
países mais influenciados pela reforma protestante.

Nível da Religião – a orientação religiosa fundamental de alguém pode produzir


um resultado decisivo nessas condições, dependendo de qual ela é e de como é
apropriada pelo indivíduo ou pela comunidade. Se, por exemplo, essa pessoa segue uma
religião pagã dualista, que leva ao desprezo pela matéria e que vê a história como algo
repetitivo, tenderá a aceitar com facilidade a noção de que o trabalho é algo inútil. Mas
se ela segue uma religião que conduz à valorização não só da matéria, mas da ação
humana como tendo poder de mudar a história, pode eventualmente alterar suas crenças
(cosmovisão) e vir a transformar suas condições de vida.

As mentiras de Satanás – A palavra de Deus nos avisa: “Ele (o diabo) foi


homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade.
Quando ele profere a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da
mentira” (João 8:44) “lançou-o (o diabo) no abismo, fechou-o, e pôs selo sobre ele,
para que não mais enganasse as nações até se completarem os mil anos” (Apocalipse
20:3)
Podemos ver que um dos ministérios de Satanás é mentir, e ele mente tanto para
indivíduos como para nações. Quando olhamos para as raízes das árvores das culturas,
encontramos muitas mentiras aceitas pela cultura. Estas mentiras geram valores,
comportamentos e conseqüências em nossas vidas, comunidades e nações. Isto é fruto
da queda do homem, que o tornou vulnerável e ignorante da Verdade. Num encontro em
Fortaleza, em 1999, desafiamos os participantes a detectar e refletir sobre algumas das
mentiras que Satanás contou ao povo brasileiro, e que foram aceitas pela cultura. Entre
muitas outras, podemos apontar:

- você vale aquilo que tem (perspectiva materialista – a realidade física é a primordial,
o meu objetivo na vida é conseguir ter coisas. “Comamos e bebamos, que amanhã
morreremos”. Muito presente no moderno ocidente e de influência crescente no
Brasil.)

- pau que nasce torto morre torto (origem no fatalismo – o meu destino está pré-
determinado “nas estrelas” ou pelos “deuses”. Não há nada que eu possa fazer para
mudá-lo, devo apenas aceitar passivamente aquilo que me está determinado, mesmo
o mal. Carma. Não abre espaço para a mudança, a reinvidicação, o
desenvolvimento. O fatalismo é parte da cosmovisão animista e também de algumas
formas de secularismo.)

- …é coisa do destino…(paganismo)

- o Brasil não tem jeito (paganismo, secularismo)

- O Poder Corrompe (dualismo moderno)

- as mulheres e os negros são inferiores (origem na mentalidade da escravidão, que


está ligada ao paganismo – há seres humanos superiores e seres humanos inferiores
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em valor. Deus nos fez assim. Os inferiores devem, de algum modo, servir aos
superiores. As mulheres são mais pecaminosas que o os homens. Embora
concepções como estas raramente sejam verbalizadas, até porque já são
consideradas crime no Brasil, manifestam-se claramente no dia a dia da vida
nacional, no machismo, na violência contra a mulher, no apartheid social brasileiro)

- o trabalho é uma maldição (origem na mentalidade da escravidão – relacionado ao


dualismo medieval + fatores locais. O trabalho é uma maldição a ser suportada, e
não uma bênção de Deus para que eu possa exercer a minha criatividade, obter meu
sustento e trabalhar para a glória d’Ele. Os inferiores trabalham para os superiores.
Quero ser chefe para trabalhar menos)

- a culpa é do Governo (origem na mentalidade da escravidão – uns poucos mandam


e têm toda a responsabilidade na condução das coisas. Eu preciso aguardar que “os
senhores” que detêm o poder venham e resolvam o meu problema. Não tenho co-
responsabilidade, não tenho poder para transformar nada, dependo dos outros para a
minha vida e o meu futuro)

- todos as caminhos levam a Deus (sincretismo religioso – ausência de uma verdade


absoluta que governa, como descrito na Bíblia. Cada um tem a sua própria verdade)

- o importante é levar vantagem em tudo ( origem no paganismo - os “deuses” do


animismo, são misteriosos e têm o poder determinar a minha sorte, mas têm um
caráter corruptível. Posso “barganhar” com eles, oferecer sacrifícios, aplacando a
sua ira e conquistando o seu favor. Posso manipulá-los. Isto abre todo um
precedente para corrupção nos relacionamentos humanos. No paganismo, o poder é
importante, não o caráter. Como tornamo-nos parecidos com os deuses a quem
cultuamos, o paganismo tem trazido este legado de imoralidade e corrupção sobre a
nossa cultura)

- vote em quem rouba mas faz (paganismo/secularismo)

- sempre há o jeitinho brasileiro que consegue tudo (dualismo católico/secularismo)


- etc…

Queremos esclarecer que nosso objetivo aqui não é esgotar cientificamente esta
problemática, mas apenas gerar o início de uma consciência na Igreja para lidar com
estas questões. Para uma análise científica mais aprofundada, faz-se necessário a
aplicação de ensaios sociológicos que possam averiguar se estas mentiras são de fato
universalmente aceitas.
No entanto, é óbvio que estas mentiras têm trazido consequências tristes para a
nossa nação.

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