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INTRODUCAO Ainda cremos em Histéria? Eu que fui a bela Clio, to adulada. Como eu triunfava to tempo dos meus jovens feitos. Depois veto a idade [...]. Entdo eu tento me enganar. Hu me dedico a trabalhos [...] Eu, a histéria, engano o tempo.! Ainda cremos em Historia? E o que significa hoje responder sim ou nao a essa questo? Esta é a pergunta inicial desta investigacao e desta reflexao. Acreditamos em Hist6ria como se acreditou a partir do século XIX: com a mesma forga ¢ a mesma fé? Quando ela se tornou uma evidéncia, quando comegamos a pratica-la metodica- mente, com a ambigio de alc4-la 4 posig3o de ciéncia, no modelo das ciéncias da natureza. Quando a literatura se apossou vivamente dela, quando o romance assumiu por tarefa escrever esse mundo novo atravessado pela Histéria. Adquirindo entdo consciéncia do seu poder, encontramo-nos acometidos pela sua forga de condugio, até reconhecer nela uma figura nova do destino. Seu avanco suscitou a rever€ncia, sua capacidade de triturar paises e vidas causou pavor. No final dos anos 1940, Mircea Eliade chegou a denunciar 0 que ele nomeava o “terror da Historia”. Durante todo um tempo, con- fiou-se em seu tribunal, ela foi convocada em inumeraveis campos de batalha, em seu nome se justificaram ou se condenaram politicas as mais opostas. Quantos discursos, liricos ou-realistas, ela inspirou? » PEGUY, 1992, p. 998. CCRER EM HISTORIA, Quantas obras rastrearam seus segredos (livros de histéria, romances historicos, romances)? Quantos tratados filos6ficos buscaram desco- brir suas leis ou denunciar suas pseudoleis? Quantas Clio, pintadas ou esculpidas, mais ou menos pensativas, vieram tronar nos edificios? Em seu Grande Diciondrio (Grand Dictionnaire), publicado entre 1866 e 1876, Pierre Larousse fazia-se seu ardente profeta: O movimento histérico, inaugurado no século XVII por Bos- suet, prosseguido no XVII por Vico, Herder, Condorcet, e desenvolvido por tantos espiritos remarcaveis do nosso século XIX, nio pode deixar de se acentuar ainda mais num futuro préximo. Hoje, a histéria se tornou, por assim dizer, uma religiio universal. Ela substitui em todas as almas as crengas destruidas e abaladas; ela se tomou o lar e a critica das ciéncias morais, cujas auséncias ela supre. O direito, a politica ¢ a filoso- fia lhe emprestam suas luzes. Ela esta destinada a se tornar, em meio 3 civilizagio moderna, o que a teologia foi na Idade Média ena Antiguidade, a rainha e moderadora das consciéncias.” Eis ai uma vigorosa profissio de fé, a qual muitas outras, aqui € além na Europa, nos mesmos anos, poderiam ecoar; ainda que Pierre Larousse fosse longe demais, reconhecendo na Historia wm estatuto equivalente ao que havia precedentemente ocupado a teologia como discurso criador de sentido das sociedades entio religiosas. Trata-se ai do crer em, como cremos em Deus, no mais alto grau da crenga.? Em um grau inferior, existe 0 crer na: crer na Histéria, crer que existe uma historia ou histéria em acio de uma maneira ou de outra. Postula-se que a contingéncia no é tudo e que se pode apreender uma certa ordem no que se manifesta ou se produz, ¢ se estima que vale a pena relatar, tanto quanto se pode, o que se passou, para se Jembrar, para se servir dela. Esbogar um quadro ou fornecer uma visio 2 LAROUSSE, 1866-1876, p. 301 (verbeve Histoire). > Minha proposigio nfo € de modo algum percorrer a via aberta por Karl Léwith em seu livro, publicado em 1949, Histoire et Salut (Histéria e Salvagio], com seu subtitulo perfeitamente explicito, Les Présupposés théologiques de la philosophie de Phistoire [Os pressupostos teoldgicos da filosofia da historia} (2002). Tampouco seguir o debate que ele susciton sobre a “secularizagio” (ef. MONOD, 2002). 10 AINDA CREMOS EM HISTORIA? sindptica, para a instrugdo ou para o prazer (ou os dois) de um leitor, é possivel e mesmo itil. Tal era j4, no século II antes da nossa era, a ambigao de Polibio na introdu¢io de sua histéria universal. Fornecer uma visdo de conjunto que mostrasse o que acabava de se passar: a conquista tio r4pida do Mediterraneo por Roma. Desta crenga de segundo escalio (que pode muito bem se confundir com a primeira na Historia providencial), existiram diferentes modelos. Entre os mo- dernos, os mais deterministas acreditaram nas causas € nas leis, outros recorreram a invariantes antropolégicas, procuraram forgas profundas, atualizaram as regularidades e construiram séries, buscando identificar a mudanga através daquilo que pouco e imperceptivelmente mudava. Desconfiados dessa pesada aparelhagem, outros jamais deixaram de acreditar nos atores, nas ages e nas contingéncias: o acontecimento €seu elemento, o grande homem, seu sujeito. Mas voltemos, um instante ainda, a Larousse. E, para mensu- rar o radicalismo do sew discurso, transportemo-nos a um século antes, em 1751, quando d’Alembert redigia 0 Discurso Preliminar da Enciclopédia (Discours préliminaire de ? Encyclopédie), a futura Biblia das Luzes. Que lugar era reconhecido 4 Histéria no preambulo desse grande diciondrio racional dos saberes? AHistéria, na medida em que ela se vefere a Deus, contém ou arevelacio ou a tradi¢ao, e se divide, sob esses dois pontos de vista, em hist6ria sagrada e em histéria eclesiastica. A histéria do homem tem por objeto, ou suas aces, ou conhecimentos; ¢ ela é por consequéncia civil ou literdria, quer dizer, divide-se entre as grandes nacGes e os grandes génios, entre os reis e os homens de Letras, entre os conquistadores e os fildsofos. En- fim, a histéria da navureza é aquela das imameriveis produgdes que se observam, ¢ forma uma quantidade de especialidades quase igual a0 niimero dessas diversas produgées. Entre essas diferentes especialidades, deve-se colocar com distingio a historia das artes, que nZo é nada mais do que a histéria dos usos que os homens fizeram das produces da natureza, para satisfazer as suas necessidades ou A sua curiosidade. Estamos longe ainda, como se pode ver, da Histéria processo, dirigida pelo progresso, Nao hd, para d’Alembert, uma Histéria, in

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