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RIO DE JANEIRO
2017
Carolina Maia de Aguiar
Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação
Sentei-me para escrever esta seção apenas às vésperas da entrega da primeira versão
desta dissertação – da qual este, ainda assim, é certamente seu texto de geração mais longa:
seu conteúdo vem sendo elaborado em minha cabeça desde antes do começo do meu campo,
já nos primeiros semestres do curso. Talvez porque eu queira, aqui, agradecer não apenas aos
apoios que recebi para a realização do estudo que agora finalizo, mas em todo o caminho que
me trouxe até aqui.
Se seguir carreira acadêmica era um sonho antigo, desde meus primeiros contatos com
a pesquisa na graduação, em parte é pelo incentivo que meus pais sempre me deram para ler
muito e estudar sempre. Agradeço à minha mãe, Carla Regina Maia, e ao meu pai, Luiz
Fernando Lopes de Aguiar, primeiramente por seus exemplos de dedicação e constante busca
por novos conhecimentos, por terem feito (e ainda fazerem) tudo o que estava ao seu alcance
para que eu e meus irmãos, Rodrigo e Luiza, tivéssemos sempre a melhor educação possível,
pela compreensão e apoio inestimáveis a esse projeto talvez louco de abandonar um cargo
público estável para correr atrás do sonho de uma carreira tão apaixonante quanto incerta.
Meus colegas de setor no IBGE, Vera Lúcia Ferreira, Vera Regina Silveira, Norma Lúcia
Souza, Ademir Koucher e Sônia Zanotto (ela também pós-graduanda) foram muito
compreensivos. Ainda em relação ao IBGE, agradeço aos “dezoitanos” Alessandra Kasprczak,
Tássia Coser Normann e Alexandre Nunes pelo exemplo. Entrar para o mestrado no Museu
Nacional envolveu, além desta, outras mudanças drásticas: sair da cidade onde morei
praticamente a vida toda, Porto Alegre, e o fim de um relacionamento amoroso. Para encarar
essas mudanças, agradeço imensamente o apoio de meus amigos da faculdade – Alexandre
Lucchese, Cristina Rodrigues, Débora Gastal, Fernanda Schossler Igor Natusch, Ismael
Cardoso, Kauê Ferreira, Natália Pianegonda, Paula Bianchi e Vander Corrêa. A esses últimos,
em especial, pela acolhida calorosa (a Paula é um dos meus portos seguros no Rio) e pelo
encorajamento do Vander, meu amigo-irmão, a “perseguir o sonho inteiro, não meio sonho”.
Ao falar de compreensão, acolhida, apoio e encorajamento para esse novo projeto de vida,
preciso agradecer acima de tudo à Germana Etges, minha ex-companheira e hoje amiga para
toda a vida. Ela sabe melhor do que ninguém o impacto dessas mudanças todas para a vida de
nós duas, e também ela sempre soube dos desejos que terminaram por me mover até este
mestrado. Me faltam palavras para agradecer a ela por todo o amor até aqui e por seu apoio
incondicional a esse projeto (como a tantos outros), e ao agradecer a ela, agradeço também à
Nyh Vignoli, por ter estado tão presente no caminho dela. Agradeço também às Putinhas
Aborteiras – Kacau, Dani, Hari, Chica, Ge, Ciça, Gabi, Bá, Gisáh – por sua participação na
construção de minha autonomia. À Nathalia Cadore e ao Pedro Cassel, por fomentarem em
mim tanto tempo atrás o interesse por aprofundar minhas compreensões sobre gênero e
sexualidade para além do que eu tinha acesso na militância LGBT e no curso de Jornalismo.
Esta pesquisa tem seu germe, uma inquietação inicial, em minha monografia de
graduação – e o acompanhamento da Profª Virginia Fonseca e de minha co-orientadora,
Marcia Veiga, me fizeram compreender a importância de uma boa relação de orientação.
Agradeço à Marcia também pelo exemplo de ousadia, pelo diálogo e por nossa amizade desde
então. Ao deixar de seguir o plano de fazer mestrado em Comunicação, como era inicialmente
o plano, se abriram portas para seguir mais dedicadamente outro curso que foi formador para
mim: a Especialização em Gênero e Sexualidade (EGeS), onde pude delinear meu primeiro
projeto para o que viria a ser este trabalho. Lucas Tramontano (professor de minha turma),
Raphael Bispo (orientador de meu TCC), e os colegas Lucas Freire, Jaqueline Sant'Ana,
Vanini Lima, Luiza Lena Bastos, Carolyna Barroca, Marvel Nessa, Livia Rodrigues foram
importantes parcerias neste trajeto cimentado no BelaCap, me ajudando a elaborar também a
possibilidade real de vir morar no Rio de Janeiro. Ao comentar isto, devo destacar novamente
a acolhida da Paula Bianchi, que me integrou em seu grupo de amigas e em sua vida na
cidade. À Mariana Araújo, por todos os dias compartilhados no período da seleção.
Tempos atrás, um amigo compartilhou uma notícia sobre um estudo acerca das redes
de pesquisadores e sua mútua influência dos trabalhos de uns sobre os outros. Neste sentido,
me sinto muito feliz e estimulada pelas relações que o PPGAS me proporciona, desde antes da
prova de seleção, quando Michel Carvalho me pôs em contato para trocar bibliografias com
Nathália Gonçales e Camila Beviláqua. O espaço destes agradecimentos é muito curto para
falar de todas as formas em que foi importante para mim, enquanto recém chegada nessa
cidade que – como diz uma personagem de João Ubaldo Ribeiro – adota todo mundo, mas não
mima ninguém, poder contar com tantos colegas também de fora, com a abertura de todos
para novas amizades e colaborações. Anderson Pereira, Ana Paula Lino, Bianca Marcossi,
Camila Beviláqua, Francesca Repetto, Nelly Barbosa, Osmar Carlos da Silva, Oswaldo
Zampiroli e Telma Bemerguy certamente entenderão por que razões não dedico um tempo
maior para escrever mais cuidadosamente esta seção de agradecimentos, mas registro aqui o
quanto gosto de nossa turma e o quanto tem sido importante ter sua companhia (em especial
nessas últimas, atribuladas semanas). Dentro e fora do palácio imperial onde estudamos, o
PPGAS também me oportunizou trocar ideias e cervejas com Barbara Pires, Lucas Freire,
Everton Rangel, Lorena Mochel, Samara Freire, Morena Freitas, Daniela Alarcon, Leonardo
Ferreira, Aline Rabelo, Gabriela Pereira, Carolina Castellitti, Camila Fernandes, Dennis
Novaes, Daniela Alarcon, Leo Ferreira, Lorena Mochel, Samara Freire, Marlise Rosa, Morena
Freitas, Aymara Escobar, Lucas Bártolo, Dibe Ayoub, apenas para citar alguns entre os mais
presentes em nossos encontros extra-Museu. As aulas da profª Adriana Vianna me renderam
contatos com Annelise Gutterres, Adriana Fernandes e Juliana Farias, a quem agradeço o
incentivo à minha pesquisa, e da primeira disciplina que assisti da profº María Elvira Díaz-
Benítez, guardo a amizade de Felipe Moreira, Nathanael Araújo, Malu Graúna e Raquel
Oscar. Raquel, Felipe Abrahão, Georgia Pereira, Lilian Gomes, Paulo Guimarães e Taiguara
Moreira foram companhias queridas ao longo dos dias passados dentro do CCBB escrevendo
meus trabalhos. A todos estes, por cada momento de escuta sobre os dramas e alegrias de
minha pesquisa, meu muito obrigada. Abrir espaço para nomear as pessoas mais próximas
certamente abre margens para muitos esquecimentos – peço desculpas a quem posso ter
deixado de fora, justificando mais esta incompletude que caracteriza toda formalização de um
texto enquanto escrita possível dentro de seu contexto.
Em um trabalho que fala de estabelecimento de redes, colaborações escritas e
circulação de textos, é mais do que necessário agradecer às parcerias que tive ao longo da
escrita dessa dissertação. Como já disse em outras comunicações mais privadas, é uma honra
e um privilégio contar com o acompanhamento de pesquisadores que admiro e respeito tanto.
Em primeiro lugar, agradeço à María Elvira por ter me aceito como sua orientadora, por sua
leitura tão cuidadosa e perspicaz que tantas vezes me fez compreender mais agudamente o
que eu mesma estava tentando fazer, por todas as suas sugestões, dicas de leitura, por sua
compreensão, carinho e incentivo. Mais do que isso, pela forma de trabalho adotada com os
orientandos do NuSex e as possibilidades de discutirmos semanalmente nossos trabalhos entre
colegas, o que foi fonte de muitos insights e estímulo. Por isso, pela colaboração verdadeira
(momento precioso de troca e crítica sem a competitividade que infelizmente é comum na
academia), pela fineza das sugestões e pelo fortalecimento de nossas amizades nesse
processo, agradeço ao Everton, ao Lucas, à Samara e à Camila, e também à Profª Fátima
Lima. À Barbara, em especial, por sua acolhida quando eu precisava de uma cerveja depois de
terminar um texto importante, por se dispor a ler passagens de meu trabalho que me deixavam
insegura, ou simplesmente para desabafar por cinco minutinhos de desespero (e, aqui, retomo
agradecimentos ao Vander e à Gê, por me ouvirem longamente nos momentos em que minha
escrita travou de maneira mais dramática, e ao Thomas por sua sempre impressionante
capacidade de me ajudar a me organizar e cortar um pouco a procrastinação). Ao Ozi e à
Nath, por isso tudo e também pelo apoio mútuo nesses dias finais que antecedem a entrega e a
defesa de nossas dissertações. Às profas Adriana Vianna, Maria Luiza Heilborn e Regina
Facchini, por sua leitura cuidadosa de meu trabalho, pelas sugestões, críticas e incentivos
fornecidos no momento da banca. As professoras Eide Paiva, Carla Ramos e Patrícia Lessa
também ofereceram auxílios preciosos na localização e acesso a documentos e potenciais
interlocutoras.
Se lá no começo mencionei algumas pessoas que me ajudaram a empreender o
caminho que chegou até o mestrado, agradeço também pelos apoios recebidos no dia a dia: à
equipe da secretaria do PPGAS, Adriana Valcarce, Anderson Arnaud e Maristela Santiago de
Souza, e da Biblioteca Francisca Keller, Dulce Maranha Paes de Carvalho, Carina Volotão e
Márcio Nunes de Miranda, por sua disposição de auxiliar os alunos do Programa. Nas figuras
do Dilson e do Roberto, agradeço também a todos os funcionários do CCBB/RJ, entre
bibliotecárias, ascensoristas, auxiliares de limpeza e atendentes de balcão, cujos sorrisos e
breves conversas (muitas vezes, literalmente de elevador) ajudam a tornar menos solitária
minha presença quase diária na biblioteca daquele espaço. Ao mencionar espaços cotidianos,
há outro, crucial: a casa. Morar sozinha no Rio de Janeiro com renda de bolsista não é
exatamente uma opção, mas por sorte tive e tenho a chance de dividir meus dias com amigas,
mais do que com colegas de apartamento. Agradeço, então, à Bianca, à Anita e ao Darlon, por
tornarem mais fácil o aprendizado de como se mora de galera e, mais do que isso, a facilitar o
processo de transição para minha nova vida. Esse apartamento parece, de verdade, um bom
espaço para novos começos. Vanessa Costa, Laila Queiroz, Alline Pedrotti (e Nayara Cristina,
nossa hétero de estimação): morar só com sapatão é maravilhoso! Agradeço a cada uma pelas
noites em que o bar preferido é nossa casa, pela receita de caipirinha de conhaque, pelo nosso
dia a dia, pelas conversas na sala, na cozinha, na área de serviço, pelo funcionamento
descomplicado da casa, por me permitirem aprofundar a amizade com a Gabi e com a Thalita.
Falando em sapatão, essa cidade felizmente tem um monte, e dentre elas gostaria de agradecer
também à Camila Puni e à Halina Juno (em especial por me lembrarem que ir à praia é
importante), à Gabriela Maia e à Helena Azevedo (foi conversando com elas que tive o
primeiro “click” de levar mais a sério os anúncios em minha pesquisa). Os happy hours com
Fernanda Alves, Juliana Teodoro, Aline Ferreira e Sarah Alves podem ser mais fama do que
fato, mas a sua companhia sempre próxima no meu telefone são mais um pontinho pra me
fazer sentir acolhida no Rio de Janeiro. (Aproveito a menção ao Whatsapp para valorizar a
companhia sempre presente de minhas famílias: com os grupos de Maias e Aguiares, me sinto
menos longe do pago.) Registro também, para que outros olhos humanos leiam, o
reconhecimento pelo afeto diário e pelas barrigas gostosas dos meus dois felinos, Oprah e
Bakunin, embora definitivamente não agradeça a este último o gesto de derrubar um copo de
água no meu notebook em um fim de semana vital para minha produção (ao Lula/Pudim,
agradeço sua busca de colaborar com meu trabalho digitando novas passagens em meu texto
com suas patinhas de filhote, sugestões que infelizmente não puderam ser incorporadas). Se
até aqui de alguma maneira separei o texto em tópicos relativamente demarcados, talvez por
cacoete depois de meses tentando criar linhas de argumentação coerentes, faço aqui meus
agradecimentos a uma pessoa que mistura todas essas categorias: à minha namorada, Laura
Carvalho (a.k.a Hartemís Y Azú/Maria Júlia Cheiroso), por todo o amor, por me oferecer
tantos “pedacinhos de saúde” no meio dessas rotinas loucas que a academia cria, por nossas
longas conversas de todos os dias, por tanta troca de ideias e bibliografias, por discutir comigo
cada entrevista feita, por me fazer atentar, lá no começo, para a importância da afetividade nas
minhas análises (e na vida). Minha escrita (e seus processos) não teriam sido os mesmos sem
sua presença.
Agradecimentos neste tipo de trabalho parecem ter atualmente duas informações
mandatórias: o agradecimento às agências financiadoras e a explicitação de que qualquer
falha do texto cabe inteiramente ao seu autor, de maneira a eximir seu orientador. Sobre o
primeiro, embora reconheça o privilégio que é receber uma bolsa de pós-graduação, acredito
que o financiamento de pesquisa deva fazer parte de políticas não apenas de desenvolvimento
científico, mas de garantia de manutenção dos estudantes no ensino superior (em especial
quando vindos de família de menor poder aquisitivo). Fui bolsista Capes no primeiro ano do
mestrado, e a pesquisa foi conduzida apesar dos atrasos do pagamento da bolsa FAPERJ Nota
10. Diante do cenário político que se coloca, com ameaças de cortes de verbas e
sucateamentos já em curso de universidades públicas, me parece melhor expressar vigilância
do que gratidão. Quanto ao segundo ponto, a profª María Elvira sabe melhor do que ninguém
quais das suas sugestões busquei seguir à risca e quais não fui capaz de implementar no
período necessário – ficam, espero, para nossas próximas colaborações.
Como é possível ler nas próximas páginas, a decisão por discutir lesbianidade – e,
mais especificamente, as produções escritas do que chamo de imprensa lésbica brasileira e os
efeitos de sua circulação – neste trabalho parte de motivações existenciais minhas em um
nível muito profundo. Se hoje é possível afirmar-se lésbica enfrentando menores durezas em
nosso país, muito disso se deve aos esforços das ativistas e escritoras lésbicas que precedem a
minha própria vivência enquanto tal, e sou profundamente grata ao trabalho árduo que elas
empreenderam e seguem empreendendo. Agradeço especialmente a acolhida das mulheres
que participaram da construção desta pesquisa, recebendo-me em suas casas, compartilhando
comigo suas memórias, mostrando seus escritos e fotos, respondendo a e-mails e mensagens
por Whatsapp, me ensinando tantas coisas. Seria no mínimo simplista dizer que esta pesquisa
não teria sido a mesma sem a colaboração de Jane Pantel, Laura Bacellar, Maria de Lourdes
Motta, Marisa Fernandes Miriam Martinho, Monica Camargo, Neusa das Dores Pereira, Rita
Colaço, Theresa Thomé, Yone Lindgren e Zora Yonara, que tão generosamente acolheram
meu projeto e meus questionamentos. Mais do que isso, acredito ser possível afirmar que, sem
o trabalho destas e de outras ativistas, a própria construção da identidade política lésbica no
Brasil possivelmente teria tido outros contornos. A cada uma delas, a cada mulher que lutou e
luta na defesa dos direitos e afetos das mulheres que se relacionam com mulheres, meu
agradecimento mais profundo: é para elas que dedico este trabalho.
The words are purposes.
The words are maps.
I came to see the damage that was done
and the treasures that prevail.
This dissertation discusses the possibilities for creating social networks among lesbian women
from the circulation of periodicals that took them as their public (and as potential writers).
Therefore, it starts by recovering the emergence of one of the first Brazilian lesbian activist
groups, called Lésbico-Feminista or simply LF, which was created in São Paulo at the turn of
the 1980s. This short memorial also addresses their proximities and tensions with the gay and
feminist movements of that time. Then, from an outlining of the constitution of the Brazilian
lesbian press (built from literature review, document analysis and interviews with ten activists
involved in this field), the 21 issues of the newsletter Um Outro Olhar, published by the
Grupo Ação Lésbica Feminista (later called Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar)
between 1987 and 1994. Although this collective was based in São Paulo, its production
involved the collaboration of its members who lived in different cities of the country and also
the contact with international activists. Thus, one of the central arguments of this work is the
assumption that the circulation of such materials makes networks, both among lesbian,
feminist and gay activists and between the associated members of the group, considering that
they also carry the potential to destabilize already existing social networks and relations. By
considering that many readers sought there the possibility of establishing contacts through
correspondence with other women who were sexual and emotionally (as well as politically)
interested in with other women, it is possible to think of the "closet" as a dispositive that
produces relations. Finally, taking into account the polyphonic nature of these publications,
from which distinct recognizable, unedited voices emerge, their pages are analyzed as places
where the associated members of the group could produce writings of their selves.
Keywords: lesbian activism, female homosexuality, gay and lesbian press, network studies,
writing the self.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15
2.1 Circulação de papéis articulando redes: contatos com outros grupos a partir dos
boletins Um Outro Olhar........................................................................................................85
2.2 Caixas postais como saídas para o armário: os papéis da Rede no combate à solidão
das leitoras.............................................................................................................................107
3.3 Eliane Di Santi: toda lésbica que se preze gosta de escrever poesia...........................162
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................179
REFERÊNCIAS....................................................................................................................185
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INTRODUÇÃO
Meados de 2002. Sem acesso à Internet em sua própria residência, uma adolescente
entreouve as explicações da professora de informática enquanto aproveita a conexão do
laboratório da escola para ver seus e-mails. Encontra uma mensagem de M., contato recente
de uma sala de bate-papo acessada em alguma madrugada na casa do pai. A amiga parece
nervosa e pede seu endereço residencial para enviar-lhe uma carta. Suas possibilidades de
escrita na web também são restritas, ela explica, e precisaria de tempo e espaço para escrever
uma narrativa difícil – para desabafar um segredo terrível, algo que só poderia ser contado
sem ressalvas a alguém que não participasse de seu cotidiano imediato. Preocupada e um
tanto curiosa, a menina pergunta se está tudo bem e digita seu endereço. Dias depois, chega às
suas mãos uma carta, enviada do ABC paulista. Nela, M. conta que passou uma noite com
uma amiga e, um tanto hesitante – “por favor não vomite na carta ao ler isso” –, revela o que
estava difícil de pôr em palavras por outros meios: ela e a amiga se beijaram. A respiração da
leitora se entrecorta, não com nojo, como receava a missivista, e sim com curiosidade: então
isso é possível? Um sentimento até então confuso e amorfo ganha desenhos e cores – então é
isso. Uma mulher pode se interessar por outra – e a leitura segue – e elas terminarem
transando! Minimamente assentadas as ideias, a adolescente escreve à nova, instantânea
amiga, uma resposta compreensiva e acolhedora, perguntando por mais detalhes do que
seriam efetivamente necessários para acolher e compreender uma experiência alheia,
provavelmente para elaborar suas próprias – as que ainda viriam e aquelas outras sensações
amorfas, incômodas, que ela buscava fingir que não percebia. As duas se corresponderam por
cartas por muitos meses ainda, até que o crescimento na oferta e demanda por acesso à
Internet de banda larga tornasse o serviço um pouco mais acessível e, para membros das
classes médias urbanas dos grandes centros, quase obrigatório em suas residências. Com isso,
essa adolescente – que, a partir de agora, podemos tirar do anonimato e chamar de Carolina
Maia – passou a poder acessar reflexões, narrativas e outras produções que diversas mulheres
publicavam na web sobre suas experiências sexuais e afetivas com outras mulheres.
Espero que este relato não soe como mera autoexposição: é a minha alternativa aos
preâmbulos de narrativas antropológicas clássicas. Nestas, seja através de canoas singrando
mares e rios rumo a ilhas ou povoados distantes, seja ao buscar montar seu acampamento
mais próximo ou mesmo dentro da aldeia a ser estudada, o pesquisador relata seu afastamento
progressivo de sua própria casa, de sua própria cultura, e sua aproximação dos espaços e
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sujeitos que procura compreender. Aqui, procuro trazer como questões que um dia viriam a
ser minhas preocupações dentro de uma pesquisa – lesbianidade (e como ela foi tematizada
em produções escritas), isolamento, correspondências – me encontraram dentro de minha
própria casa. Mais de dez anos antes de sequer imaginar a presente pesquisa, temas que hoje
se configuram como meu campo começavam a me constituir. Em meados de 2002, as
publicações impressas para lésbicas que menciono em maior detalhe neste trabalho ou já
haviam deixado de circular ou estavam em declínio. Talvez por ter testemunhado alguns dos
primeiros passos das produções lésbicas brasileiras na Internet, em blogs e sites voltados para
a temática da homossexualidade (especificamente de mulheres, ou seções de sites “mistos”), é
que eu me interesse por buscar compreender como era antes. Antes da Internet, como
mulheres que se interessavam afetiva e sexualmente por outras mulheres no Brasil podiam ter
acesso a reflexões sobre essas experiências? Como encontravam umas às outras, como
buscavam e mantinham contato?
Ciente de que esta certamente não seria a única possibilidade, esta dissertação discute
uma forma possível: através da leitura de periódicos feitos por grupos de lésbicas,
participando de diversas formas nas redes em que estes circulavam, replicando, repassando e
contribuindo com conteúdos, e correspondendo-se com outras leitoras e escritoras. Desta
forma, assim como não há entrada épica em meu campo, também dele não há um mapa
preciso: o que discuto é a circulação de envelopes pelo país, levando boletins fotocopiados,
recortes de jornal, textos datilografados, de e para diversos pontos do País e mesmo fora
destas fronteiras, iniciando-se no começo dos anos 1980 e adensando-se na década seguinte,
sobre a qual recai minha atenção mais detidamente. Colocando de forma mais precisa, esta
pesquisa elenca um rol de publicações impressas, produzidas por e para mulheres interessadas
sexual e afetivamente por mulheres, que tiveram circulação periódica no Brasil entre 1981 e
2016. Meu trabalho de campo teve início ao buscar a contribuição, através de entrevista, de
editoras e colaboradoras que participaram da produção destes materiais, com a intenção de
discutir as motivações para criar este tipo de iniciativa, como se dava a criação desses boletins
e revistas, a trajetória destas ativistas e um pouco da atuação e história dos grupos de que
participavam no movimento em defesa dos direitos das mulheres lésbicas. Por fim, como
explico nas próximas páginas e detalho na terceira seção do primeiro capítulo desta
dissertação, selecionei um dos títulos listados para análise documental; nesta, procurei
compreender também como as leitoras participavam das – e compunham as – redes de
circulação destes materiais.
Estudos no campo da História (Lessa, 2007; Selem, 2007; Navarro-Swain, 2000)
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alertam para o risco de apagamento das histórias e experiências das mulheres que se
relacionam sexual e afetivamente com outras mulheres, devido ao baixo número de trabalhos
trazendo as lésbicas como tema. Na mesma linha, em uma apresentação de trabalho, Suane
Soares (2014, p. 1440) desabafa sobre a dificuldade de se conduzir pesquisas sobre o
movimento lesbofeminista1 no Brasil: “escrever sobre nós é um desafio que guarda uma
peculiaridade. Somos demasiadamente invisíveis para registrar nossas histórias”. Falta de
registros, invisibilidade e o baixo número de publicações tratando especificamente de
homoerotismo de mulheres e do movimento em defesa das lésbicas no Brasil são fatores que
se retroalimentam: não apenas há carência de documentos, mas é difícil encontrá-los, o que
dificulta a definição de objetos para pesquisa neste tema; mais que isso, como Soares mesmo
aponta (e concordo), mesmo a busca por referências teóricas pode se tornar um desafio.
Grupos ativistas lésbicos dificilmente constituem o foco substancial de trabalhos sobre o
movimento LGBT (ou “movimento homossexual”, nos anos 1980-1990). Em relação às
publicações periódicas editadas por lésbicas, ocorre algo semelhante: especialmente em
análises que focalizam a emergência deste tipo de publicações no País, no início dos anos
1980, as publicações lésbicas costumam aparecer no interior de outros nichos da chamada
imprensa alternativa, seja relacionando estes títulos aos da imprensa homossexual
(majoritariamente composta por publicações para homens, com características de produção e
circulação bastante diversos dos das lésbicas), seja inserindo tais iniciativas no campo da
imprensa feminista presente no Brasil desde meados dos anos 1970 (ver, por exemplo,
Cardoso, 2004). A carência de fontes documentais – e, mais do que isso, a restrição destas aos
acervos pessoais das ativistas – certamente contribui para que poucos destes materiais estejam
caracterizados na literatura, uma limitação a que esta pesquisa não ficou imune.
Desta forma, o primeiro capítulo deste trabalho dedica-se a delinear, a partir da
literatura disponível, um breve histórico das publicações lésbicas impressas e distribuídas
periodicamente e, a partir daí, a explicitar as condições em que se deu minha entrada no
campo, com minhas intenções iniciais e o recorte do material que acabou se impondo como
necessário à consecução desta dissertação. O ponto de partida para tal discussão é uma
reflexão, a partir de revisão bibliográfica, sobre a segmentação de periódicos por gênero, a
partir dos trabalhos de Dulcília Buitoni (1981, 1986) e de Constância Lima Duarte (2016),
autoras que se debruçaram, respectivamente, sobre a caracterização da imprensa feminina
1 A autora explica que, neste trabalho, emprega o termo “lesbofeminista” para referir-se ao movimento como
junção dos termos “lésbico” e “feminista”, não ignorando que há outras conceitualizações possíveis. Em
meu texto, até pelas tensões relatadas por minhas interlocutoras entre os movimentos lésbico e feminista no
Brasil (discutidas no cap. 1), opto por não efetuar esta junção, ainda que houvesse (e haja) também
aproximações entre os dois movimentos, inclusive na destas mulheres mesmo.
18
campo, a partir de redes atuais entre lésbicas que foram acionadas para mobilizar o
engajamento destas mulheres para contribuírem com meu trabalho. Cabe ressaltar que estas
redes foram acionadas a partir de um ponto – e, no caso, eu mesma posso ser considerada
como integrante de algumas redes formadas por lésbicas, pesquisadoras e/ou ativistas. Assim,
este trecho faz uma breve reflexão sobre como já entrei em algumas interações apresentada
como “jovem pesquisadora lésbica”, e também sobre como as informações trazidas por
minhas interlocutoras partiram também da leitura do meu corpo e da minha subjetividade a
partir de determinados marcadores que elas leram em mim: lésbica, jovem, branca,
acadêmica. Por outro lado (e reciprocamente), a minha própria interpretação do que estas
mulheres me narraram e mesmo a leitura que fiz das publicações que elas editaram está
necessariamente atravessada por esses mesmos marcadores e como eles me viabilizaram (ou
não) determinadas experiências. Assim, considerando que a produção de saber na academia se
dá de forma situada (Haraway, 1995); vejo-me neste campo como uma halfie, à maneira de
Abu-Lughod (1991) – alguém que compartilha ao menos parcialmente uma identidade com
outros sujeitos que participam da pesquisa.
Minha entrada em campo, portanto, partiu do acionamento de redes de ativistas
lésbicas de alguma maneira próximas a mim, e motivou também algum acionamento de redes
das mulheres que vieram a participar efetivamente da construção desta pesquisa. Seja através
da indicação de nomes ou, já nas entrevistas, a menção ao trabalho de outras ativistas, minhas
interlocutoras apontaram caminhos e ajudaram a compreender as ligações entre seus grupos.
De maneira um tanto irônica para um trabalho que se volta para um período pré-Internet (ou
ao menos para um período em que o acesso à web era menos disseminado e pervasivo),
algumas destas ativistas só puderam ser localizadas através de um uso intenso de buscadores
online (para ser mais específica, no Google), do envio de diversos e-mails e também através
de sites de redes sociais (no caso, notavelmente o Facebook). Isso me fez compreender mais
agudamente a importância da disponibilização dos endereços postais de grupos militantes e
ativistas individuais nos boletins e revistas que analisei, produzidos numa época em que tal
tipo de busca seria inviável. Conforme acordado nos encontros com cada uma destas
mulheres, e atendendo a um pedido explícito de algumas, elas serão identificadas por seus
próprios nomes, até para dar visibilidade às suas atuações e posicionamentos. Consegui
localizar e entrevistar, entre abril de 2016 até agosto do mesmo ano, as seguintes ativistas:
Miriam Martinho (São Paulo/SP: ChanaComChana, Um Outro Olhar – boletim e revista),
Maria de Lourdes Motta (Salvador/BA: Amazonas), Rita Colaço (Rio de Janeiro/RJ:
Xerereca), Theresa Thomé, Monica Camargo e Laura Bacellar (Santos/SP: Femme), Neusa
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inclusive rechaçado por algumas mulheres que se relacionam sexual e afetivamente com
outras mulheres e que preferem outras formas de nomear suas identidades e desejos. Meinerz
(2011) faz uma observação semelhante e menciona também o posicionamento de mulheres
que, apesar de suas práticas e afetividades homoeróticas, evitam a definição de sua identidade
a partir da sexualidade. Em resumo, e retomando: embora gênero, sexualidade,
heteronormatividade não recebam aqui uma seção à parte, tais temas atravessam a escrita do
trabalho inteiro. Interesso-me menos em pensar as causas das interdições a relacionamentos e
práticas homoeróticas entre mulheres do que como algumas delas (especificamente, as
integrantes do Grupo Ação Lésbica Feminista e da Rede de Informação Lésbica Um Outro
Olhar) compreendiam tais interdições e como utilizavam a participação no boletim – do qual
emergem histórias de culpa, solidão e isolamento, mas também de encontro, colaboração,
amizade e amor – e nas redes de correspondência que este propiciava como formas de burlá-
las e combatê-las.
O interesse pela constituição de redes não é apenas uma premissa minha: não à toa, o
grupo cujas publicações discuto aqui adotaria o nome Rede de Informação Lésbica Um Outro
Olhar. Através de correspondências e trocas de materiais, suas integrantes mantinham contato
com ativistas ligadas aos movimentos lésbicos, feministas e homossexuais oriundas de
diferentes lugares do Brasil e do mundo – colaboração particularmente relevante na década de
1980, em que o ativismo homossexual no país arrefecera em virtude do avançar da epidemia
de HIV/Aids. O segundo capítulo deste trabalho, portanto, debruça-se sobre as redes de
colaboração e correspondência que viabilizavam a produção do periódico analisado,
considerando que o grupo que o produzia agia como uma espécie de hub, ou ponto central de
distribuição de informações, gerenciando a participação de diversas colaboradoras. Em seu
conteúdo estão presentes, por exemplo, materiais enviados por ativistas de outros países (em
especial da Europa e da América do Norte, embora a Rede fosse participar da criação da Rede
Latino-Americana de Lésbicas Feministas), cuja tradução envolvia o esforço de diferentes
associadas ao GALF e, posteriormente, à Rede. Através da associação – forma encontrada
para viabilizar financeiramente o funcionamento destes coletivos, que envolvia o pagamento
de uma quantia mensal –, as integrantes destes grupos tinham acesso à assinatura do boletim e
também a um serviço de solicitação de cópias de livros, periódicos e outros materiais
enviados por ativistas nacionais e internacionais ao grupo sediado em São Paulo. O boletim
servia, inclusive, como forma de divulgação dos títulos disponíveis para consulta e xerox: a
cada edição, uma listagem de “Materiais Recebidos” informava as aquisições e recebimentos
mais recentes, muitas vezes com um pequeno resumo de seu conteúdo. Além disso, as
25
próprias associadas podiam remeter cópias de recortes de jornal sobre temas considerados de
interesse (tratando de lesbianidade, homossexualidade ou violência contra a mulher, por
exemplo), alguns dos quais eram reproduzidos nas páginas do jornal, bem como colaborar
com seu conteúdo através do envio de contos, artigos, ou simplesmente fornecendo seus
depoimentos para que fossem compartilhados na seção sobre “Vivências” lésbicas. Assim,
sustento que esses boletins e revistas são simultaneamente espaços de criação de redes (entre
editoras, colaboradoras e leitoras; entre colaboradoras e outras leitoras, e entre leitoras entre
si) e formas de manifestação de sua existência, em uma dinâmica de constante
retroalimentação. Dito de outra forma, o boletim fazia redes e também era um nó na rede. É
por esta razão que argumento, no segundo capítulo deste trabalho, que estes periódicos devem
ser tomados enquanto objetos dotados de agência social, como postula Gell (1998), ou seja,
como causadores de sequências de eventos como se fossem dotados de intenções, originadas
nas pessoas que os liam e produziam. A partir de sua circulação, estes materiais criam e
aprofundam relações entre o grupo que o produzia e suas leitoras: como coloca o autor citado
acima, objetos podem multiplicar a presença dos sujeitos que estão por trás de suas ações,
substituindo-os. Através de traduções, reproduções, publicações de cartas, as próprias autoras
dos textos circulavam, estendendo pontes para quem as lia. Os periódicos, então,
multiplicavam a presença do GALF e da Rede junto a diversos grupos em diversos países,
bem como em diferentes cidades do Brasil; e faziam que estes mesmos grupos tivessem seu
alcance aumentado a partir da reprodução de seus conteúdos. A palavra “alcance”, na frase
anterior, também pode ser tomada como uma tradução de reachability, conceito de Mitchell
(1969) para definir com quantos passos uma pessoa pode chegar até outra em uma mesma
rede, de forma que a uso aqui também para salientar a forma com que as cadeias de contatos
para localizar determinados grupos ou conteúdos eram facilitados através da ação dos
periódicos. Já no começo dos anos 1980, o GALF começou a organizar uma biblioteca
contendo livros e periódicos recebidos através de suas relações com outros coletivos, ativistas
e escritoras. Através da associação ao grupo, anunciada já nas primeiras edições de Um Outro
Olhar, suas integrantes poderiam solicitar cópias dos itens divulgados na seção “Materiais
Recebidos” do boletim, que informava os títulos mais recentemente incorporados ao seu
acervo. Ainda na segunda parte do segundo capítulo, discuto como esta seção – bem como
outras, como a “Em Movimento”, que noticiava eventos e outras ações dos ativismos
nacionais e internacionais, não raro convocando suas redes para mobilizações específicas –
pode servir a uma análise acerca de quais eram alguns dos contatos mantidos pelo GALF com
outros grupos semelhantes através da troca de impressos. Argumento também que, se os
26
periódicos têm o potencial de fomentar redes, também o tem para desestabilizá-las: seus
conteúdos podem mesmo levar ao rompimento de vínculos.
Rompimento de vínculos, aliás, era uma das possíveis consequências para mulheres
que tivessem suas preferências e relacionamentos homoeróticos expostos. A segunda seção do
segundo capítulo discute como o periódico – como um arquivo de sentimentos, como já
colocado – reproduz e, assim, armazena memórias de afastamento de amigas, brigas com a
família e mesmo perda do emprego (para não falar de casos de agressão física e sua
onipresente ameaça) em casos que o segredo aberto da homossexualidade mantida no armário,
para usar uma expressão de Sedgwick (2007), tornara-se mais aberto do que segredo. Ficar
“no armário” – ou “ser enrustida”, como aparece nas páginas do boletim –, então, podia ser
considerado uma postura pouco valente, porém compreensível: a “vida dupla”, como coloca
Eribon (2001), por desgastante que fosse, ainda assim era uma forma de viabilizar
experiências sexuais e afetivas entre mulheres. Por outro lado, o cuidado para não revelar a
homossexualidade fazia com que fosse muito difícil para estas mulheres se reconhecerem
umas às outras como potenciais casos ou mesmo possíveis amigas, de forma que muitas delas
manifestavam, nas cartas enviadas ao GALF e à Rede, sentimentos de solidão. A construção
de redes é colocada, nas páginas do periódico, como uma forma de combater seu isolamento,
e com isso quero dizer não apenas que tal ideia era defendida em seus textos, mas que o
periódico mesmo buscava oportunizar contatos entre suas leitoras: a publicação de anúncios
pessoais permitia que novas relações se estabelecessem via correspondência, outra forma
através da qual o boletim ajudava a construir redes. Dito de outra forma, considerando o papel
de intermediação que estas publicações tiveram no estabelecimento de conexões e
correspondências entre essas mulheres, acredito que estes boletins e revistas podem ser vistos
também como lugares aos quais estas leitoras, na carência de (ou acesso insuficiente a)
outros, podiam dirigir-se para conhecer “outras como elas”, como no dizer de uma das
ativistas com quem conversei.
Opiniões publicadas na seção “Cartas na Mesa” – comentando tópicos das edições
anteriores, ou narrando acontecimentos das suas próprias vidas – também indicam que as
leitoras encontravam, ali naquelas páginas, um espaço onde dialogar acerca de temas que as
afetavam. De fato, boa parte do conteúdo do boletim era composta por cartas e outros textos
de tom mais pessoal – narrativas das primeiras paixões por mulheres (não raro, vistas como
impossíveis) e de tentativas de envolvimento com homens, experiências de discriminação,
depoimentos elaborando sentidos na construção pessoal da própria identidade enquanto
lésbica. O terceiro capítulo desta dissertação discute como o periódico aqui analisado, ao
27
oferecer tanto um espaço seguro (suas páginas) quanto a escuta de ouvintes específicas (as
demais associadas do grupo, suas leitoras) para os textos ali veiculados, oportunizava a
criação de narrativas em que era possível elaborar a própria diferença enquanto experiência,
enquanto relação social, como subjetividade e como identidade, nos termos propostos por
Brah (2006). Partindo de três colaboradoras frequentes no conteúdo de Um Outro Olhar –
Naná Mendonça, Nani Tobi e Eliane Di Santi –, este último capítulo toma algumas de suas
contribuições, em diversos gêneros textuais (contos, cartas, ensaios, poesias) como parte da
constituição de si mesmas enquanto sujeitos – e enquanto lésbicas – através da escrita, razão
pela qual utilizo o conceito de escrita de si, como proposto por Michel Foucault (1992).
Para resumir o que a leitora pode encontrar nas próximas páginas, encerro esta
introdução retomando a ideia central de minha análise sobre o boletim Um Outro Olhar: esses
papéis, em sua circulação, produzem redes, permitem a emergência de outras formas de
sociabilidade, conectam ativistas e seus grupos e fazem circular entre elas informações e
afetos. Talvez um último efeito a ser acrescentado à lista do que esses objetos são capazes de
produzir é a curiosidade que despertam, anos depois de terem parado de circular regularmente
pelos correios – ou talvez essa curiosidade seja apenas o efeito que eles produziram em mim,
da qual esta dissertação nasce como um resultado.
28
***
que fazem ou fizeram parte do movimento social em defesa dos direitos dos homossexuais 5 e
que foram poucas as revistas lésbicas brasileiras com um perfil mais comercial (e que essas,
de modo geral, tiveram vida curta, não logrando êxito em constituir um nicho de mercado).
Ainda assim, julgo pertinente trazer algumas reflexões sobre segmentação de gênero para
pensar a constituição de diferentes publicações (e seus públicos), o que abordo na primeira
subseção deste capítulo, que traz também uma caracterização da chamada “imprensa
alternativa” no País e a emergência de uma “imprensa feminista”, ligada àquela anterior, no
interior da qual algumas autoras (como, por exemplo, Cardoso, 2004) inserem o boletim
ChanaComChana. Essa discussão sobre segmentação de gênero – que coloca a questão de
uma possível “universalização” de tópicos vistos como de interesse dos homens – pode ser
relacionada também com o contexto de criação do GALF, a partir de sua cisão em relação ao
grupo Somos/SP, e o surgimento das primeiras publicações para lésbicas no Brasil, tema da
segunda subseção deste capítulo. Em seguida, passo a uma tentativa de elencar as publicações
impressas de caráter periódico (ou que tiveram essa intenção) no Brasil, desde sua emergência
até o presente, a partir de revisão bibliográfica e contando com os aportes de interlocutoras e
de minhas próprias experiências e redes. Por fim, de posse dessa lista – ou, como chamo,
desse “mapa do campo” –, passo à descrição de minha entrada em campo, de meus
investimentos afetivos nesse tema e da relação com minhas interlocutoras. Ao precisar a
definição do escopo de minha análise, trago também algumas limitações da pesquisa frente a
seu projeto inicial.
5 Sigo Facchini (2005) em suas definições de movimento homossexual e LGBT, bem como de “ONG” (sigla
organização não governamental) como um tipo de organização institucionalizada no interior desse
movimento, especialmente a partir dos anos 1990. A mesma autora aponta “grupo” como um termo êmico
desse campo e que pode ser aplicado a ONGs ou outros coletivos de caráter menos formal.
32
periódicos que estudo neste trabalho, e sim para introduzir uma discussão sobre como surgem
publicações dirigidas especificamente para as mulheres, diferenciando-se (em termos de
conteúdos e abordagens) daquelas de “interesse geral”. Sustento aqui que este “geral”, em
contraposição a “feminino”, por vezes mascara o “masculino”.
Maria Alceste Mira (2003), socióloga que estudou revistas femininas brasileiras,
defende que no a primeira segmentação a ocorrer no mercado de comunicações de massa é
por gênero. Tal processo de separação de publicações e conteúdos pode ser verificada mesmo
antes da consolidação de um “mercado de comunicações de massa”, considerando-se a
circulação das primeiras “folhas”, “folhinhas” e outros periódicos impressos no País. A
publicação de periódicos em território brasileiro só deixa de ser proibida com a chegada da
família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. Já em 1827, surge o primeiro periódico
brasileiro para mulheres, O Espelho Diamantino, editado na então capital federal por Pierre
Plancher (Duarte, 2016; Buitoni, 1986). Elizabeth Cardoso (2004) salienta o curto período de
tempo para que tal segmentação ocorresse, menos de 20 anos. Constância Lima Duarte (2016)
localiza em Porto Alegre, a partir de 1833, as primeiras folhas dirigidas por uma mulher, a
escritora Maria Josefa Barreto, intituladas Belona Irada contra os Sectários de Momo e Idade
d'Ouro; contemporâneas a estas, duas publicações escritas em primeira pessoa e sugerindo
autoria feminina6 circulavam no Rio de Janeiro (A Filha Única da Mulher do Simplicio e A
Mineira no Rio de Janeiro). A autora comenta o fato de que estas quatro não falavam de
assuntos “femininos”, e sim discutiam política e mesmo instavam as mulheres a participarem
mais ativamente deste campo. Tal fato torna-se ainda mais digno de atenção ao levar-se em
conta dados de alfabetização da época, que destaca que apenas 19,85% entre os homens e
11,5% das mulheres livres eram alfabetizados em 1872, data do primeiro Censo Demográfico
do país (como citado por Duarte, 2016). Cabe notar que nesse período começavam a circular
as folhinhas femininas de caráter mais contestatório, defendendo temas como a abolição da
escravatura e a emancipação feminina, defendendo o direito à instrução e ao sufrágio. Entre
estas, destaca-se o jornal A Família, publicado a partir de 1888 por Josephina Álvares de
Azevedo, irmã (ou prima, não há comprovação certa7) do poeta romântico de mesmo
sobrenome.
6 Destaco a incerteza contida na ideia de sugestão, uma vez que editores homens não raro criavam personas
femininas para assinar suas produções em periódicos para mulheres. A esse respeito, ver Sandra Lima
(2007).
7 Karine Rocha de Oliveira (2009) destaca a impossibilidade de localizar sua certidão de nascimento em
arquivos públicos. Como ela, Vanessa de Andrade Souto Maior (2004) também aborda a produção
intelectual e literária de algumas mulheres no período e contextualiza a atuação de Josephina Álvares de
Azevedo em prol do sufrágio feminino, como introdução à reprodulção do texto de uma peça teatral da
autora sobre este tema.
33
Ao mencionar aqui estas publicações, não pretendo estabelecer uma comparação entre
estas e as que fazem parte do meu campo nesta pesquisa, tampouco estou afirmando que os
cinco títulos mencionados no parágrafo anterior seriam os mais representativos dos jornais,
revistas e folhinhas para mulheres no século XIX. Embora muitas publicações fizessem uma
defesa dos direitos das mulheres, em especial à educação (Duarte, 2016), a chamada
“imprensa feminina” seria marcada pela presença da literatura (trazendo contos, poesias,
pequenas peças de teatro), da linguagem coloquial e emotiva, dicas de moda, culinária,
etiqueta (Buitoni, 1986). Como colocam Mira (2008) e Wojtowicz (2008), as pautas
feministas se imiscuem ao discurso da imprensa feminina, que as assimila; por outro lado, de
maneira geral esse tipo de publicação traz mensagens normativas sobre como deve ser o
comportamento das mulheres (Cohen, 2008; Buitoni, 1981; 1986). Nota-se, por exemplo, a
ênfase na família e uma idealização do papel da mãe nestas publicações. A esse respeito,
Constância Lima Duarte (2016) destaca como a maternidade seria simultaneamente um
argumento para a valorização das mulheres e para sua exclusão do espaço público, incluindo
do acesso à educação formal. A mesma autora (2016, p. 21) faz uma ponderação interessante
sobre alguns periódicos para mulheres, publicados por homens no século XIX:
Esta primeira segmentação por gênero, portanto, fez surgirem publicações não apenas
especialmente dirigidas para mulheres, mas também vistas como mais adequadas para elas,
seja pela seleção de assuntos, seja pela própria forma como eram abordados. Buitoni (1986),
em uma reflexão mais voltada para a criação e consolidação de nichos mercadológicos,
menciona que publicações cujo público-alvo seja explicitamente masculino só surgem depois
da emergência de uma imprensa marcadamente feminina. Aqui, acredito ser relevante dirigir a
atenção para como se relega a um segundo plano – ou a uma publicação separada – aquilo que
se consideram serem interesses das mulheres e/ou aquilo que deve corresponder ao
“feminino”, que, tomando gênero como categoria analítica como sugere Scott (1995), seria
menos valorizado. Considerando que “os conteúdos culturais completamente neutros em
aparência mascaram a essência masculina” (Singly apud Welzer-Lang, 2008, p. 471), de
forma que “os modos masculinos coincidem com a norma mais geral; recrudescem sua
posição reafirmando o feminino como desvio, inadequação, falta” (Fraga apud Veiga, 2010, p.
34
102), o caráter universal atribuído ao masculino faz com que a segmentação por gênero
diferencie a imprensa “em geral” da imprensa feminina. Cabe notar que diversas publicações
(impressas e online) voltadas para homens homossexuais no Brasil incluíram seções ou
colunas fixas tratando da lesbianidade. Em jornais como o Nós, por exemplo, revistas como a
Sui Generis ou o site MixBrasil, textos refletindo sobre experiências sexuais e afetivas de
mulheres com outras mulheres podem ser encontrados, em meio a ensaios fotográficos de
homens, dicas de moda masculina, anúncios de festas, bares e saunas de frequência
majoritária ou exclusivamente masculina e outros conteúdos tidos como de interesse de
homens com práticas homoeróticas (Rodrigues, J., 2010; Maia, 2011). Tal disponibilização de
espaço chegou a ser uma demanda de ativistas lésbicas em um congresso LGBT brasileiro
(ver Facchini, 2005), o que faz pensar tanto na valorização do alcance dessas publicações
quanto em uma possível dificuldade em participar destas. Com essas perspectivas em mente,
se não surpreende a “dificuldade de alguns gays de aceitar que o que vivem algumas mulheres
homossexuais seja diferente do que eles mesmos vivem” (Welzer-Lang, 2008, p. 471),
também não surpreende que lésbicas tenham considerado necessário estabelecer canais para
discutir suas demandas específicas.
A publicação de um conjunto de textos escritos por mulheres no Lampião da Esquina
– cena escolhida para compor a abertura deste capítulo – me parece, por várias razões, um
acontecimento significativo para os tópicos que discuto nesta pesquisa. Algumas destas
razões, já mencionadas, parecem até autoexplicativas: a importância deste momento para a
emergência do primeiro grupo de lésbicas do Brasil e o ineditismo histórico do fato de
mulheres publicarem reflexões sobre sua homossexualidade tecidas em conjunto 8. Além disso,
me parece interessante o fato de tal conteúdo ter sido preparado para um jornal cujo conselho
editorial, apesar de seus autoproclamados esforços para incluir mulheres, era formado
unicamente por homens, o que levava suas pautas (e mesmo sua linguagem) a refletirem
primordialmente as inquietações e vivências dos homens gueis ou entendidos, como aparecia
em suas páginas, ainda que o periódico tivesse como proposta a inclusão de diferentes
minorias em suas edições, estabelecendo diálogos com o movimento negro, com ecologistas e
indígenas, e buscando também complexificar os debates sobre sexualidades e identidades
(além deste número sobre o “amor entre mulheres”, houve debates acirrados entre os
colaboradores sobre bissexualidade, travestilidade, prostituição, estereótipos de gênero…) nas
8 Marco o “em conjunto” aqui pois a escritora lésbica Cassandra Rios já narrava envolvimentos sexuais entre
mulheres desde seu primeiro livro, publicado em 1948, A Volúpia do Pecado (ver Holanda et al, 2016;
Piovezan, 2005). Na pesquisa de Nadia Nogueira (2005) sobre a homossexualidade feminina no Rio de
Janeiro dos anos 1950-1960, esta autora aparece como “musa e heroína” para muitas mulheres.
35
edições do jornal. Mais especificamente sobre esta primeira aparição das lésbicas no conteúdo
do Lampião, me chama a atenção uma das informações trazidas por Edward MacRae (1990),
que narra este episódio como um primeiro estopim da autonomização das lésbicas no interior
do Somos/SP. Este autor menciona o fato de que as ativistas que posteriormente criariam o
GALF receberam o auxílio de uma jornalista para organizar os textos publicados neste
periódico. Infelizmente ele não traz maiores detalhes sobre esta jornalista, não mencionando
sequer seu nome9 ou em que grau ela era ligada ao Lampião ou seus editores, mas um dado
trazido mais adiante ajuda a pensar sua atuação neste momento: falando sobre os passos
seguintes do grupo exclusivamente lésbico que começava a se formar, MacRae (1990, p. 247)
conta que elas “tentaram retomar a ideia de escrever sobre o lesbianismo para o Lampião, mas
como nenhuma delas tinha muita prática de escrever, a ideia não foi adiante”. A primeira das
cinco páginas destinadas à lesbianidade na edição nº12 do jornal começa com as autoras
dizendo estarem “atrasadas”, por até então terem apenas comprado e vendido o periódico, por
terem adiado seu “desejo de encontrar algumas mulheres para conversar sobre nós”: “nós
estamos atrasados (sic) porque existimos, mas sempre abdicamos de existir. Existimos nos
cochichos, […] nas fantasias e sonhações que, na maioria das vezes, arquivamos desde
sempre” (Lampião, 1979, p. 7). Antes de não publicar (ou não ter acesso aos meios para tal),
portanto, há um não escrever sobre a lesbianidade – ou, como no trecho citado anteriormente
de Suane Felippe Soares, parece haver uma certa dificuldade de produção dos próprios
registros, no caso das lésbicas.
Denise Portinari (1989) considera que a homossexualidade feminina só pode ser
considerada silenciosa se contraposta aos gritos da homossexualidade masculina. Evitando
colocar as realizações dos homens gays como modelo e/ou parâmetro – um risco quando se
compara as diferenças entre os homoerotismos de homens e mulheres, como bem aponta
Nadia Meinerz (2011) – nessa comparação, acredito que os tempos de desenvolvimento da
imprensa gay brasileira oferecem um contraste interessante e, talvez, deem uma maior
densidade para a afirmação de “atraso” por parte das mulheres que escreveram os textos para
o Lampião. Simões e Facchini (2009) e também Flávia Péret (2011), apenas para citar dois
exemplos, partem do trabalho de James Green (2000), que elenca uma grande quantidade de
jornaizinhos e boletins como fontes para discutir a homossexualidade masculina no Brasil. Já
na década de 1960, grupos de amigos realizavam festas particulares entre homens em centros
9 Em entrevista (02/07/2016), Miriam Martinho – uma das mulheres que participaram da elaboração do artigo
para o Lampião e que seria uma figura-chave na imprensa lésbica brasileira – me comentou que elas
receberam o auxílio de uma “xará” sua para escrever para o jornal. Consultei algumas edições deste
periódico e não consegui localizá-la como colaboradora nos seus expedientes, mas anoto que Mirian Paglia
da Costa foi uma das repórteres a entrevistar Cassandra Rios, na edição de outubro de 1978 do Lampião.
36
urbanos do país, e alguns destes confeccionavam jornaizinhos para divulgar, junto às outras
turmas, os acontecimentos mais recentes em seus eventos. Estes periódicos eram produzidos
de maneira bastante artesanal, muitas vezes mimeografados, e seu conteúdo incluía fofocas e
opiniões sobre sexualidade em uma abordagem mais ligada ao humor do que a discussões de
tom mais marcadamente político, ao menos em seus anos iniciais. Mais do que caracterizá-las,
me interessa aqui pensar a sua circulação: estes jornaizinhos chegavam a diferentes capitais
do país, seus produtores conheciam a existência de uns e outros, de tal forma que chegou a
haver uma proposta de criação de uma Associação Brasileira de Imprensa Gay em 1968
(Simões e Facchini, 2009). Ou seja, sua existência serve como uma evidência (e fonte para
estudos) da formação de redes de contatos entre homens homossexuais no período. Admito
que foi com uma certa surpresa que li alguns dados da pesquisa de Nadia Nogueira (2005), em
que ela relata a existência de redes de homossociabilidade femininas no Rio de Janeiro, nas
décadas de 1950 e 1960, possivelmente semelhantes em alguns aspectos (por exemplo, o fato
de serem realizadas em espaços privados, convidando pessoas conhecidas) às turmas descritas
por Simões e Facchini (2009). As mulheres entrevistadas por esta historiadora (sua maioria, se
não todas, de classe média e alta) enfatizam que “tudo era muito velado” na época, e que
relações entre mulheres precisavam ser conduzidas com a maior discrição possível, uma vez
que muitas delas eram esposas e mães. Ter um caso com uma mulher descoberto nesse
contexto, diz a autora, podia significar rompimento de relações familiares, violências
(incluindo físicas) e mesmo internação em clínicas de saúde mental. Por essa razão, festas
particulares realizadas por grupos de amigas na Tijuca ou em Jacarepaguá acabavam sendo
preferíveis, uma vez que suas participantes ficavam resguardadas da atenção e escrutínio (e
frequentemente repressão policial) destinados a alguns bares de Copacabana associados a uma
clientela vista como potencialmente homossexual. As informações sobre esses grupos são
escassas10, de forma que parece pouco produtivo (além do potencial risco de colocar práticas
masculinas como parâmetro, como já descrito) buscar compreender – ao menos dentro dos
limites colocados pela presente pesquisa – por que razões os homens documentavam seus
eventos privados e, ao transformá-los em conteúdo de seus jornaizinhos, expandiam os
próprios limites deste “privado”, ao passo que as lésbicas ou não produziam esse tipo de
material, ou mantiveram bastante secreta a sua existência. Ainda assim, esse questionamento
permanece rondando minhas reflexões e minha escrita. Por que as mulheres não escreviam
10 A única fonte citada pela autora para estas informações são as entrevistas realizada para sua pesquisa, cujo
foco na realidade era o relacionamento entre Lota de Macedo Soares, idealizadora do Aterro do Flamengo, e
a poeta estadunidense Elizabeth Bishop. Simões e Facchini (2009) também mencionam bares frequentados
por lésbicas em São Paulo desde 1960, informação presente também em Brickman (1983).
37
sobre suas experiências homoeróticas? Seria pela necessidade de manter tudo muito velado,
como colocam as interlocutoras de Nadia Nogueira? Embora não seja minha pretensão
responder a essas perguntas aqui, o já mencionado texto sobre/por lésbicas no Lampião parece
ir por essa linha:
Nós estamos atrasadas porque temos medo, receio, cagaço mesmo de viver o que
somos. Porque não construímos o espaço do nosso viver. Porque vivemos na
clandestinidade. […]
A repressão perpassa todas as esferas do nosso existir. O fato de sermos mulheres
homossexuais duplica a repressão. Além de mulher, ser homossexual é muito, né?
Quer ver muito mais? Mulher, negra, homossexual. Quer ver mais? […]
Nós estamos atrasadas, mas ninguém melhor do que nós para lutar contra a opressão
a que estamos submetidas. Já lemos n'algum lugar: “ninguém melhor do que o
oprimido para lutar contra sua opressão”.
Assim, pelo que tudo indica, chegamos em momento oportuno. (LAMPIÃO, 1979,
p. 7)
Independente das respostas para os meus questionamentos acima, o que importa para
esta pesquisa é que algumas mulheres, em conjunto, conseguiram ultrapassar seu medo,
receio, cagaço, e falar publicamente sobre sua homossexualidade. Mesmo atrasadas, elas
chegaram a tempo de serem as primeiras.
11 O nome “Somos” foi adotado após algum tempo de reuniões do grupo, e foi selecionado em homenagem a
uma revista homônima, editada de maneira artesanal e clandestina entre 1973 e 1976 pela Frente de
Liberación Homosexual argentina. No início dos anos 1980, surgiria no Rio outro grupo chamado Somos,
sem qualquer ligação formal com seu homônimo paulista apesar da denominação comum. Por esta razão,
eventualmente surge a distinção Somos/SP e Somos/RJ. Nesta parte do meu trabalho, dado o foco no grupo
Somos/SP para trazer a gênese do Grupo Ação Lésbico-Feminista, opto por escrever apenas “Somos”, como
seus integrantes o denominavam, o que também faz MacRae (1990) em seu trabalho, principal fonte para o
que discuto aqui. Sobre o Somos/RJ, ver Míccolis (1983).
38
defendia que poderiam enfraquecer sua unidade –, seus integrantes realizavam também
grupos de tom confessional e reflexivo, de forma a elaborar conjuntamente percepções sobre
as discriminações que sofriam e construir alternativas para vivenciar suas afetividades e
desejos homoeróticos. O número de participantes em cada um destes “grupos de
identificação”, posteriormente chamados de “grupos de reconhecimento”, era
intencionalmente mantido baixo para possibilitar um diálogo mais efetivo, de forma que todos
pudessem falar, o que passava pela necessária construção de intimidade e confiança para
expor suas vivências e opiniões. As primeiras mulheres a ingressarem no Somos, sempre em
número menor do que os homens, inicialmente foram distribuídas em diferentes grupos, de
forma a compartilhar suas perspectivas enquanto mulheres e homossexuais. O grupo apostava
na homossexualidade como uma força coesiva em seu interior, de forma que o
compartilhamento desta “condição” estabelecia um certo nível de igualdade entre seus
participantes – o que, ao fim e ao cabo, acabava também por mascarar suas diferenças e
dificultar o reconhecimento destas, na visão de MacRae. No prefácio ao livro deste autor, Fry
(1990, p. 12) avalia: “os militantes não eram tão iguais assim (...) as mulheres e os negros
homossexuais logo se sentiram suficientemente diferentes para formar seus próprios grupos
buscando escapar do machismo e do racismo dos outros para poder ‘trabalhar melhor suas
condições específicas’”.
Como já contado no início deste capítulo, as mulheres do grupo se reuniram pela
primeira vez (com integrantes de outros grupos, mas também para discutir entre si a questão
da homossexualidade feminina) para a elaboração dos materiais que seriam publicados na 12ª
edição do Lampião. Finda esta tarefa, restou-lhes a sensação de que o tempo dispendido fora
excessivamente focado na escrita das matérias, e que poderia ter sido mais bem aproveitado
para pensarem as suas especificidades enquanto lésbicas. A partir daí, elas passaram a
defender a demanda da realização de encontros somente entre mulheres, defendendo a ideia
de que
mas mantendo suas próprias discussões exclusivas para mulheres. Dada essa restrição, a
etnografia de MacRae pouco pode contar sobre suas dinâmicas, uma lástima frente à riqueza
da descrição dos demais encontros, mistos ou entre homens 12. Seria interessante pensar isso
em termos de como o gênero do pesquisador impacta e mesmo delimita seu campo, mas para
os propósitos da discussão deste capítulo, gostaria de trazer outro elemento narrado pelo autor
sobre este tópico. Cabe notar que os posicionamentos das “feministas” (assim demarcadas no
trabalho do antropólogo), eventualmente chamadas de “radicais”, não eram unânimes entre as
integrantes do grupo, causando mesmo sérias divergências e atritos – tanto é que, quando o
LF finalmente formaliza sua saída do Somos, outras mulheres permanecem no grupo. Para
mais detalhes das diferenças e tensões entre elas, remeto a leitura ao trabalho de MacRae;
trago tal ressalva mais com o intuito de evitar que se pressuponha a existência de alguma
“homogeneidade” entre essas mulheres e suas visões acerca de como lidar com as diferenças
de gênero nos encontros, assembleias e demais atividades, bem como nas pautas discutidas.
Na mesma linha, é importante ressaltar que alguns homens do grupo buscavam manter
contato com ativistas feministas de outras organizações, contato que, segundo MacRae, era
incipiente para as lésbicas; estes ativistas – eventualmente criticados por buscar criar uma
“cúpula” dentro do Somos, algo bastante malvisto devido às suas tendências marcadamente
antiautoritárias e sua pretensão à horizontalidade13 – buscavam compartilhar seus
conhecimentos sobre teorias feministas com as mulheres do grupo, como forma de auxiliar a
12 É bastante tocante a descrição que o autor faz do “casamento com o grupo”: com discursos sobre a
homossexualidade que se diferenciavam do “gueto”, onde predominavam papéis sexuais definidos – o que
Fry (1981) chamaria de modelo hierárquico”, marcadamente no caso dos homens, mas também das
mulheres, e relacionamentos monogâmicos, especialmente das mulheres, os integrantes do Somos
desenvolviam entre si amizades intensas, experimentações sexuais e relações afetivas de modelos mais
“abertos”, questionando as premissas da exclusividade sexual. Além disso, a afetividade entre os integrantes
do Somos era bastante expressa em suas reuniões, em que os participantes frequentemente podiam ser vistos
de mãos dadas, trocando beijos e outros carinhos. O “casamento com o grupo” vinha não só da progressiva
restrição (não necessariamente intencional) da manutenção de “casos” (e também de laços de amizade) ao
interior do Somos, mas também devido à intensificação de sua importância para a vida destes sujeitos.
MacRae (1990) conta que houve pessoas que largaram seus cursos universitários e mesmo empregos para
dedicar-se de maneira integral ao grupo.
13 Uma das alternativas que os integrantes do Somos empregavam para evitar a formação de “cúpulas” era a
rotatividade de algumas funções e o não estabelecimento de representantes oficiais. Contudo, como
demonstra MacRae (1990), alguns fatores como o tempo disponível para dedicação ao grupo e algumas
condições materiais (como, por exemplo, ter uma casa onde fosse possível sediar reuniões, posse de telefone
que facilitasse o contato, etc), bem como o reconhecimento de algumas características e marcadores pessoais
(como por exemplo “beleza”, mais associada à virilidade e aos homens brancos), fazia com que alguns
membros fossem mais influentes que outros. Num grupo onde sempre se buscava o consenso, mas o que
eventualmente vencia as discussões era o “cansaço”, a formação de “cúpulas” que tentassem impor seus
discursos também era vista com suspeita e desconforto. Com o crescimento do grupo e sua progressiva
diversificação interna (e menor coesão em termos de discurso político), essa foi uma das críticas feitas a
integrantes antigos que buscavam manter algumas características de seu início, como o antiautoritarismo e
mesmo o combate ao machismo. As mulheres do LF também foram acusadas de tentar estabelecer uma
“cúpula lésbica” pelas mulheres do Somos que discordavam de suas posições.
40
14 A dona do bar achava “feia” a palavra “lésbica”, opinião compartilhada por outras mulheres no “gueto
lésbico”, que preferiam “sapatão” (MacRae, 1990).
41
No II Congresso da Mulher Paulista, como conta MacRae (1990), houve uma tentativa
de exclusão das lésbicas com as justificativas que aparecem no começo do trecho citado de
Miriam Martinho; no III, integrantes do MR8 ameaçaram e atacaram mulheres presentes no
encontro para dissuadi-las de constituírem um movimento feminista independente das
organizações da esquerda. O tópico da “absorção individual” x “despolitização do
lesbianismo” após esses eventos é mais bem abordada por Pontes (1986). Para esta discussão,
interessa comentar que em um encontro de ativistas e organizações feministas, as mulheres do
LF se comprometeram com a participação na marcha do Dia do Trabalhador de 1980 em São
Paulo – e que o restante do Somos, já cindido por alguns rumores internos quanto ao risco de
“cooptação” do grupo por parte da Convergência Socialista – encontrava-se dividido sobre
sua adesão ou não à caminhada. Este momento cristaliza não apenas a dificuldade entre
estabelecer diferentes lealdades, entre o movimento feminista e o homossexual (ou, pensando
em termos mais amplos, entre priorizar serem “mulheres” ou “homossexuais”), no caso das
lésbicas, mas também o começo do fim do Somos e sua divisão em três: na mesma data,
desligaram-se do grupo as ativistas do LF e alguns homens que depois viriam a formar o
Grupo de Ação Homossexualista Outra Coisa. MacRae comenta que o “status” do LF dentro
do Somos já era questionado desde a realização do I Encontro de Grupos Homossexuais
Organizados, promovido pelo Lampião da Esquina em abril de 1980, em que aquele que
teoricamente era um “grupo de atuação” (o LF) dentro de um grupo maior (o Somos) pôde
indicar suas próprias representantes, em mesmo número que o destinado para os demais
grupos, o que, para MacRae, pode ter precipitado a decisão das mulheres de formarem um
grupo independente. Quando ocorre a cisão do Somos, o Lampião publica cartas públicas dos
dois grupos dissidentes. O rebatizado Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) publica seu
comunicado na edição nº27 do jornal, em agosto de 1980. Simões e Facchini (2009, p. 107)
comentam que, neste pronunciamento, “o GALF justificava a necessidade de sua organização
independente em vista da especificidade da sua questão feminista, tentando equilibrá-la com a
homossexualidade e, ao mesmo tempo, reconhecendo divergências entre elas próprias”, como
no trecho que estes dois autores selecionam a partir do Lampião e publicam em seu trabalho,
42
Não cabíamos no Somos enquanto mulheres […] Temos que nos organizar
separadamente para atender às nossas especificidades, o que não era absolutamente
o caso das bichas […] Queremos frisar que continuamos a ser um grupo lésbico e
que o feminismo apenas nos acrescentou novas frentes de luta […] Enquanto
estivemos ilhadas em um grupo masculino, nossas atenções foram repartidas em
função do inimigo comum: o machismo. Com nossa autonomia, concomitante ao
crescimento do grupo, as diferenças entre nós se acirraram, já que passamos a nos
preocupar com uma série de diferenças que antes não tínhamos nem condições de
aprofundar. Então, se por um lado a autonomia nos deu maior liberdade de atuação e
profundidade, por outro, também, aumentou a responsabilidade de nos
reconhecermos e de convivermos com uma série de divergências nunca afloradas,
por falta, inclusive, de um espaço específico (Lampião da Esquina, 1980, apud
Simões e Facchini, 2009, p. 107, supressões destes autores).
Na nota, elas enfatizam que sua independência já existia mesmo dentro do Somos, e
que agora passam a se dedicar com maior afinco à realização de atividades voltadas para
mulheres. Por exemplo, elas divulgam sua atuação no momento (“nossa atenção está voltada
para as mulheres que frequentam lugares homossexuais nos guetos”), o que incluía a
realização de encontros para debates, projeção de filmes, entre outras propostas. O texto
também menciona a criação de “comissões de trabalho, criadas para atender aos interesses
imediatos do grupo”. Um desses “interesses imediatos” era “a criação de um jornal lésbico-
feminista (‘Chana Com Chana’)” (Lampião da Esquina, 1980, p. 5). A primeira e única edição
deste jornal sairia meses depois, em janeiro de 1981. Mais de um ano depois, o título ressurge
em um boletim com “cara de fanzine, uma coisa anarquista, dentro da proposta punk da
década de 80 e dentro da proposta do feminismo radical” (Martinho apud Cardoso, 2004, p.
99), numa proposta que se estenderia até 1987.
Ainda que o título tenha permanecido, o ChanaComChana foi publicado como jornal
apenas uma vez, em uma edição sem número, em formato tabloide e composta em gráfica,
datada de janeiro de 1981 – o que o coloca como o primeiro jornal para lésbicas no Brasil 15. A
capa traz uma entrevista com a cantora Angela Ro Ro, intitulada “Não me envolvam, eu me
envolvo”. Patricia Lessa (2007), em cujo trabalho me baseio para descrever esta publicação 16,
15 A determinação do que teria sido o “primeiro periódico lésbico” no Brasil permanece indefinida, pois janeiro
de 1981 também é a data que consta na capa da única edição conhecida do boletim Iamuricumá, produzido
no Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que a maioria das publicações a que tive acesso em meu campo foi
chamada de “boletim”, com exceção do Visibilidade, eventualmente chamado de jornal, e da revista Femme.
16 Tomo tal decisão, apesar de ter tido acesso a todos os materiais publicados pelo GALF e pela Rede UOO,
43
comenta um fato que julgo curioso: na entrevista, a cantora recusa a categoria “lésbica”, que
ela compara à imposição de um “carimbo”, e diz que aceitar uma marca destas é “dar
continuidade à discriminação”. É interessante notar tanto que esta artista se manifeste contra
uma possível estereotipação a partir de uma prática pessoal – ou, como poderíamos dizer, a
essencialização da homossexual enquanto um “tipo específico de pessoa” (Foucault, 1983) –,
quanto o fato de que GALF tenha publicado tal opinião, que se contrapunha às próprias ideias
defendidas pelo grupo. Nas palavras de Lessa (2007, p. 105):
Lessa também detalha o conteúdo desta primeira edição, que incluiu um artigo
assinado por Maria Carneiro da Cunha sobre a vinculação entre os termos “lésbica” e
“feminista” (e os imaginários associados a ambos), levando algumas mulheres a terem medo
de adotá-los e portanto a rejeitá-los, e também um texto de Miriam Martinho, intitulado
“Exercício de liberdade”. O editorial deste jornal explica a escolha do título em que, na visão
da historiadora (Lessa, 2007, p. 103), “as lesbianas do Boletim constroem um projeto
discursivo no qual a criatividade brinca com o próprio nome que as encerra em uma
sexualidade desvalorizada”. Reproduzo aqui trecho deste texto, presente também na tese desta
autora:
em parte por limitações de tempo, mas também para sumarizar trabalhos já realizados sobre a temática.
Embora não concorde com algumas inferências feitas por Lessa acerca do material analisado, acredito que
ela faz um bom resgate da história destes grupos. Sua análise da vinculação dos discursos destes a vertentes
teórico-políticas do feminismo e da lesbianidade no período, por outro lado, merece ser lida com cuidado e
algumas ressalvas.
44
da primeira edição do boletim homônimo. Cardoso (2004, p. 98) coloca que isso foi motivado
tanto por falta de recursos financeiros quanto pela indefinição de uma linha editorial a ser
adotada: “o coletivo de mulheres que pretendia manter o Chana em circulação tinha muitas
perspectivas, mas pouca praticidade e acabou se dissolvendo”, conta a pesquisadora. A partir
de dezembro de 1982, contudo, o boletim ChanaComChana volta a ser publicado em
periodicidade irregular porém constante, com tiragem variável não muito alta (Cardoso, 2004,
menciona uma média de 200 exemplares por edição), através de fotocópias. O modelo
adotado, contando com a colaboração de leitoras e a montagem através de corte e colagem de
recortes e textos datilografados, praticamente não sofreu alterações até 1987, ano de sua
última edição e em que o GALF passa a publicar um outro periódico, o boletim Um Outro
Olhar (que, na realidade, em termos formais mantém essa proposta ao estilo “fanzine”, ao
menos em suas primeiras edições). A permanência do modelo adotado indica uma certa
estabilização da proposta editorial, enquanto a forma de produção, mais barata do que a
composição em gráfica com publicação em papel-jornal, conferiu maior autonomia para as
ativistas na publicação de seus materiais. Quando os valores provenientes das vendas,
assinaturas e pequenos anúncios feitos no boletim não eram suficientes para financiar a edição
seguinte, não raro as militantes do grupo investiam recursos pessoais próprios na confecção
dos periódicos (MacRae, 1990; Cardoso, 2004). Em entrevista a Cardoso, Miriam Martinho
explica a forma de produção do ChanaComChana:
recursos, foi uma marca das publicações feministas não só no Brasil mas em outros países,
como por exemplo os Estados Unidos, conta Woitowicz (2008). Além da forma de produção e
conteúdo contra-hegemônico (Woitowicz, 2008), o uso de uma linguagem escrachada –
marca, por exemplo, do famoso O Pasquim e também do Lampião da Esquina – é uma
característica presente em alguns dos veículos da imprensa alternativa, que acredito ter
influenciado a escolha pelo explícito nome ChanaComChana. Por tais razões, acredito que
parte do maior destaque conferido a este título, dentro de um universo de publicações lésbicas
pouco conhecidas, tenha a ver com essas múltiplas associações realizadas em relação ao
boletim e a seu grupo produtor: Somos/movimento feminista/LF; Lampião/imprensa
feminista/ChanaComChana. A maioria das ocorrências ao pesquisar por ChanaComChana no
buscador de trabalhos acadêmicos Google Scholar traz resultados de pesquisas que listam este
boletim no interior da imprensa feminista, sem, contudo, descrevê-lo. É talvez por este tipo de
presença nos estudos sobre imprensas alternativas e feministas que o boletim apareça na breve
lista de publicações feministas do século XX mencionada por Constância Lima Duarte (2016),
que, apesar de especificar um crescente leque de segmentações no interior da “imprensa
feminina”, não o caracteriza como uma publicação voltada para lésbicas.
Ainda sobre a relação entre as publicações lésbicas e a imprensa alternativa, cabe
lembrar que jornais de maior renome (e estrutura editorial) no interior desta última não
necessariamente abraçavam as questões feministas e, em especial, sobre sexualidades
dissidentes da heteronormatividade17; a própria imprensa feminista também não abriu muito
espaço para discutir a homossexualidade feminina. Cardoso reproduz um artigo em que
Miriam Martinho, no último número do boletim, de janeiro-maio de 1987, comenta isso:
17 Por exemplo, MacRae ressalta um episódio narrado por Aguinaldo Silva, que havia publicado nas páginas do
jornal de esquerda “Opinião”, um dos grandes nomes da imprensa alternativa, “uma crítica favorável ao
livro ‘Amor entre Mulheres’ [...]. Ele havia gostado desta obra da psicanalista Charlotte Wolff, porque nela
se falava de homossexuais de forma aberta e sem culpabilização. Porém, segundo diz, Raimundo Pereira,
editor do jornal, se colocou contra o livro justamente por essa mesma razão” (MacRae, 1990, p. 90).
47
mas talvez não só) como uma espécie de modelo de atuação nisso que chamo de imprensa
lésbica, semelhante ao que, na visão de Simões e Facchini (2009) ocorreu com o Somos/SP (e,
eu acrescentaria, ao Lampião da Esquina), do qual havia um maior número de registros e
estudos mais detalhados, como por exemplo o constantemente referido aqui, de MacRae
(1990). Ao fazer esta constatação, não minimizo a relevância da atuação do grupo. Pelo
contrário, ressalto aqui a importância de sua atuação continuada e reconheço a tenacidade que
lhes permitiu sobreviver aos anos 1980, em que boa parte dos grupos anteriores sucumbiu,
devido tanto à epidemia do HIV/AIDS quanto à falta de um “inimigo” facilmente
identificável, como era o regime militar (Facchini, 2005; Simões e Facchini, 2009). Assim, os
boletins ChanaComChana e Um Outro Olhar se configuram como importantes fontes
documentais para a discussão não apenas do ativismo lésbico e da história de sua constituição
enquanto movimento social (como Núbia Campos, 2016, os toma em sua dissertação), mas
também sobre como as diferentes vozes presentes em suas páginas registram diferentes
concepções sobre a homossexualidade feminina, proferidas por dezenas de mulheres, ao longo
das últimas décadas.
Como já mencionado anteriormente, o boletim Um Outro Olhar, publicado entre 1987
e 1995, traz poucas alterações em termos formais em relação ao seu predecessor. Patrícia
Lessa (2007) ressalta, contudo, o fato de que a mudança não fora meramente de nome: aos
poucos, vão emergindo as características que marcariam o encerramento do GALF e a criação
da Rede de Informações Lésbicas Um Outro Olhar, com seu foco explícito na construção de
redes para compartilhamento de informações entre lésbicas. A Rede seria formalizada, com
registro em cartório, em 1990, fato que foi noticiado no número 12 de seu boletim; o que
Lessa relaciona à consolidação do formato “ONG” ao longo dos anos 1990, fenômeno
discutido por Facchini (2005). Núbia Campos (2016) ressalta o fato de que este grupo seria o
primeiro a sediar uma biblioteca especializada em publicações lésbicas. Como o boletim Um
Outro Olhar é a publicação centro de minha análise, guardo para os capítulos seguintes a
discussão de suas características e também do formato de associação adotado pela Rede.
Reproduzo aqui apenas um trecho do editorial do primeiro número edição do boletim,
presente no trabalho de Lessa (2007, pp. 122-123), para demarcar as diferenças entre o
ChanaComChana e o Um Outro Olhar:
momento, o mais importante era ser (sexualmente) muito explícita e até mesmo
debochada… Hoje, entretanto os tempos são outros, e é outro o nosso olhar.
Queremos que esta nova publicação transpareça nossa visão cada vez mais límpida
de que as vivências lésbicas extrapolam em muito as relações sexuais,
determinando, por um lado, uma postura de resistência ao papel limitante que nos é
imposto pela sociedade machista e, por outro lado, possibilitando alternativas de
vida mais gratificantes, em vários aspectos, para todas as mulheres. Queremos
também que nossa publicação espelhe o jeito muito especial que as lésbicas têm de
se olhar, numa mistura de cumplicidade e desejo, onde os papéis de sujeito e objeto
são perfeitamente intercambiáveis. Finalmente, queremos que UM OUTRO OLHAR
possa trazer de fato novas maneiras de ver não só as relações entre mulheres, em
todos os níveis, como também, mais precisamente, o próprio ‘ser mulher’ nesta
nossa patriarcalíssima sociedade brasileira, buscando auto-imagens mais positivas e
perspectivas mais amplas em todas as direções (BOLETIM UM OUTRO OLHAR,
1987: 3).
21 As capas de todas as edições do ChanaComChana e dos boletins e revistas Um Outro Olhar podem ser
consultadas na dissertação de Núbia Campos (2016), que as digitalizou e inseriu no corpo de seu trabalho.
52
DeGeneres, ou as cantoras brasileiras Cássia Eller e Vange Leonel –, o que faz pensar num
investimento em um perfil mais próximo das publicações “comerciais”. De fato, em entrevista
a Elizabeth Cardoso (2004, p. 103), Miriam Martinho distancia esta publicação do tom mais
ligado a uma linguagem dos movimentos sociais de sua época: “Um Outro Olhar já nasce
com outra perspectiva, é uma revista diferenciada, mais palatável. Focada mais em
comportamento, dicas de lazer. A leitora não gosta de artigos políticos; hoje querem saber só
de romance e baladas”.
Isso não quer dizer que a publicação tenha deixado totalmente de lado seu lado mais
crítico e questionador, ou mesmo de trazer experiências de suas leitoras. Os relatos da seção
“Histórias de Heterror”, das quais Lessa analisa duas, pouco têm de “palatável”: na primeira,
uma leitora conta como sofreu com a impossibilidade de viver livremente seu amor por sua
vizinha, já que ambas eram casadas e isso resultou em um relacionamento às escondidas e
mesmo em episódios de agressão física por parte da filha de uma delas. Na outra, uma mulher
relata o estupro que sofreu por parte de um colega de trabalho, e a descoberta de que seu
agressor já respondia a diversas denúncias pelo mesmo crime. A autora analisa ambas as
narrativas à luz do conceito de “heterossexualidade compulsória”, formulado por Adrienne
Rich (2010/1978): no primeiro caso, o casamento com um homem configura-se como a única
alternativa possível, sendo o envolvimento com outra mulher duramente reprimido; no
segundo, mesmo no ambiente de trabalho o corpo da mulher aparece como sexualizado,
disponível e violentável. Reproduzo outro trecho da revista conforme citado por Lessa (2007,
p. 184), em que também vejo ecos do conceito de “continuum lésbico” formulado por Rich
(2010/1978):
Claramente influenciada pelo Girl Power (o poder das garotas), a versão juvenil do
feminismo dos anos 90, Xena, a Princesa Guerreira é uma celebração do amor
sexual ou não, entre mulheres. De fato, poderíamos dizer que todas as teorias
feministas se resumem numa relação como a das protagonistas de Xena: a amizade e
a fidelidade (aqui num sentido bem amplo) entre ambas está acima de qualquer outra
coisa. Se pelo menos metade das mulheres seguisse tal exemplo, o patriarcado já
teria caído. Enfim, considerando a importância dos mitos para a identidade dos
grupos sociais, as novas heroínas televisivas são super-bem-vindas da pura diversão,
não deixe de vê-las (REVISTA UM OUTRO OLHAR, 1999: 20).
separatismo lésbico. Tendo isso em mente, é interessante notar que uma das edições da revista
traz uma entrevista com uma garota de programa lésbica, buscando compreender seu
relacionamento com uma outra mulher e como se dão as relações com os clientes e com
homens em geral. No contexto atual, em que diferentes vertentes do feminismo se opõem
acerca da possibilidade de regulação da prostituição, chega a ser surpreendente que uma
ativista supostamente tão ligada ao feminismo radical, como a considera Lessa, não se
aproxime das posições abolicionistas em relação ao trabalho sexual, ao menos não no texto da
entrevista. Uma outra entrevista citada pela historiadora em sua tese, realizada por Miriam
Martinho com Silvio de Abreu, questiona o dramaturgo acerca dos rumores de que sua
próxima novela contaria com personagens lésbicas. Abreu garante que sua intenção é “abrir a
cabeça do público”, não causar frisson e polêmica. Dezoito anos depois, sabemos o desfecho:
as cabeças dos telespectadores infelizmente se mostraram mais rígidas do que se esperava, e o
casal acabou morrendo na explosão do shopping de Torre de Babel.
A revista Um Outro Olhar deixa de circular em 2002. Martinho explica a Péret (2011,
p. 77) as razões para deixar de publicá-la em meio impresso: “Nós não tínhamos condição
financeira para aumentar a tiragem, conseguir uma distribuidora que fizesse a revista chegar a
mais lugares22, foi ficando difícil. Nosso trabalho era voluntário. Era um trabalho muito
grande e um retorno muito pequeno”. A partir dessa data, os conteúdos que poderiam parar na
Revista Um Outro Olhar passaram a ser veiculados exclusivamente no site da Rede de
Informações Lésbicas Um Outro Olhar23, que continua no ar. Embora suas atualizações sejam
menos frequentes, Miriam Martinho ainda elabora conteúdos para alimentá-lo – como, por
exemplo, o livreto sobre a invasão do Ferro's Bar citado anteriormente. Tomando-se os anos
entre a publicação do jornal ChanaComChana (1981) e a última edição da revista Um Outro
Olhar (2002), temos um arco temporal de mais de três décadas – a mais longeva dentre as
iniciativas editoriais para lésbicas no país, e certamente uma das mais duradouras também se a
colocarmos em um ranking da “imprensa homossexual” brasileira.
22 Em entrevista, Miriam Martinho me contou que a revista chegou a ser vendida em algumas bancas de São
Paulo. Embora ela julgue que o alcance não foi o suficiente (e o fato de, mais de dez anos depois, ainda ter
exemplares originais de todas as edições da revista para me encaminhar, faz pensar de fato em quantas
teriam ficado como “encalhe”), cabe notar que nenhuma das outras publicações feitas por lésbicas a que tive
acesso circulou dessa maneira. Algumas publicações para, mas não por lésbicas chegaram a ser vendidas em
bancas e livrarias, mas este tópico será tratado mais adiante neste trabalho.
23 <www.umoutroolhar.com.br>.
54
análise – ou, no mínimo, limita o escopo do que pode ser abordado. Como exemplo, cito o
livro de Simões e Facchini (2009), em que os autores citam o baixo número de estudos para
justificar a menor presença das lésbicas em seu trabalho, frente ao espaço ocupado pela
homossexualidade masculina. Por outro lado, creio que este viés por si só não dá conta de
pensar a questão da baixa produção sobre lesbianidades, inclusive no caso de pesquisadoras
lésbicas. As suspeitas que usualmente recaem sobre quem pesquisa temas ligados à
sexualidade, mencionadas por Carole Vance em A antropologia redescobre a sexualidade,
ganham outro tom quando, simultânea a elas, se soma a possibilidade de homofobia
institucional, tema abordado pela antropóloga lésbica estadunidense Esther Newton (2000a)
em Too queer for college, um ensaio datado de 1987. Nele, a autora comenta suas
dificuldades, em comparação com suas colegas, para estabelecer-se enquanto professora
apesar de ter uma produção bibliográfica condizente com o cargo, e que sua lesbianidade
nunca foi explicitamente citada como justificativa para o tratamento diferencial – mas que,
ainda na graduação, ela havia sido ameaçada de expulsão da universidade por ter sido vista
acompanhada de outra mulher em uma cabine telefônica. A autora cita um estudo da
American Sociology Association, publicado em 1982, que relata como pesquisadores
reconhecidos como homossexuais corriam riscos de discriminação em suas buscas por
emprego, de forma que muitos permaneciam no armário e não elegiam a homossexualidade
como tema de pesquisa. Newton, que estudou artistas que faziam drag, comenta como ela
própria optou por não expor-se no texto de seu trabalho: “não ousei mencionar em minha
dissertação que o fato de eu ser lésbica tinha qualquer coisa a ver com minha escolha de tema,
minha perspectiva, ou a relativa facilidade com que ganhei a confiança de meus informantes”
(2000a, p. 221, tradução minha). Caso tais dados pareçam distantes no tempo, trago para
reflexão uma história mais recente, vivenciada por uma amiga. Érica Sarmet 24, no simpósio
temático “Cinema Queer e Feminista” do XX Encontro SOCINE (2016), teve seu trabalho
sobre cinema lésbico atacado por um comentador que não acreditava ser possível falar em
“cinema lésbico” e que os filmes analisados pela pesquisadora deveriam ser vistos apenas
como exemplos de um “cinema feminino”. Acredito que tal comentário, expressando uma
negação das especificidades das lésbicas em relação a um conjunto mais amplo de produções
audiovisuais de mulheres, reflita a dificuldade não somente de tornar visíveis as experiências
e produções culturais feitas por lésbicas, mas também seja um exemplo dos obstáculos postos
à constituição de uma agenda de pesquisas sobre a lesbianidades. Ainda pensando nos
impactos desse tipo de constrangimento sobre a produção acadêmica sobre
Como essas experiências afetaram minha carreira? Face a isto, fui restringida,
menos bem remunerada e desrespeitada por muitas pessoas com quem trabalho.
Mais profundamente, a homofobia me forçou a enquadrar minha vida no interior de
seus imperativos. Sem ela, eu não poderia me identificar tão fortemente com outros
homossexuais. Meu trabalho poderia ter se centrado nas pontas de flecha do
Paleolítico em vez de pessoas marginais e diferentes. Encontrei minha voz
intelectual no silêncio que a sociedade tratou de me impor (Newton, 2000, p. 224,
tradução minha).
25 A pesquisa de Cardoso incluiu os seguintes arquivos: Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), localizado na
Unicamp, Campinas (SP), Biblioteca da Fundação Carlos Chagas, em São Paulo (SP) e Biblioteca do Centro
de Informação da Mulher (CIM), também sediada em São Paulo (SP).
57
jornal de moda”, caracterização de que Duarte discorda, “uma vez que a literatura, a política e
a defesa da instrução feminina tiveram bem mais espaço no periódico do que a moda”
(Duarte, 2016, p. 16).
Uma importante fonte para identificar os títulos de publicações lésbicas no Brasil é a
lista elaborada por Miriam Martinho e publicada no site da Rede de Informações Um Outro
Olhar (Martinho, 2012a), que abrange o período 1980-2000. Novamente, como já comentado
na seção anterior, nota-se a veia memorialista dessa ativista e sua importância para a
documentação da história do movimento lésbico no Brasil. Ariana Silva (2015), por exemplo,
reproduz esta lista como anexo em sua pesquisa; em Imprensa gay no Brasil, livro ao estilo
reportagem que busca contar a história da imprensa homossexual no país como um todo, a
jornalista Flávia Péret dedica um capítulo às publicações lésbicas, em que também parece
seguir o trabalho de Martinho em seu capítulo dedicado unicamente a publicações lésbicas –
um indício para isso é o fato de reproduzir algumas das (poucas) imprecisões e ausências
constantes do levantamento da ativista de São Paulo, que discuto a seguir. Como estas duas
autoras, também parto desta lista. No quadro abaixo, trago tanto as informações já elencadas
por Martinho quanto algumas outras que emergiram da pesquisa (tanto bibliográfica quanto
no próprio campo); em seguida, comento as razões para excluir ou incluir títulos na minha
versão do levantamento e algumas informações adicionais.
Período de
Publicação circulação
Responsável pela publicação Sede
A4 dobrado ao meio, impressas em preto sobre papel sulfite. A revista Femme é dos poucos
periódicos para lésbicas que estão acessíveis em arquivos: alguns exemplares podem ser
consultados na seção de periódicos da Biblioteca Nacional e outros, que foram adquiridos
pela Biblioteca do Congresso estadunidense, atualmente se encontram na biblioteca da
Universidade de Austin29. A revista, que iniciou em um formato bastante simples – algumas
folhas A4 dobradas ao meio, contendo textos datilografados e alguns escritos a mão –, com o
passar do tempo passou a ser composta com softwares gráficos (ainda em papel sulfite,
embora a capa fosse impressa em duas cores sobre papel couché) e atingiu altas tiragens,
chegando a 5 mil, quando o Grupo Afins conseguiu ter acesso a financiamentos internacionais
para sua produção.
A Alternativa L é uma pequena revista em papel couché com impressão colorida,
inicialmente publicada em formato A6 e atualmente no tamanho A5. Até outubro de 2016,
sete edições desta revista haviam sido publicadas. Não tive acesso a cópias das demais
publicações (com exceção do Iamuricumá, que descrevo a seguir, do ChanaComChana e Um
Outro Olhar, já descritos na seção anterior, e da revista Femme). Martinho (2012a) informa
que o boletim Xerereca era publicado por “Rita Colaço e independentes”; Péret (2011, p. 78)
chama a publicação de “jornal”, acrescentando que este era “editado pela jornalista Rita
Colaço no Rio de Janeiro”. Em entrevista30, Colaço – que, em vez de jornalista, é formada em
Direito – me contou que, na realidade, o Xerereca foi idealizado por uma colega sua na
Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, feminista, que queria fazer um boletim para discutir
o machismo de alguns estudantes da instituição. Como outras publicações presentes na lista, o
boletim teve apenas uma edição31, em que a homossexualidade feminina ocupou um espaço
bastante reduzido. “Lésbica era eu, não o Xerereca”, ela brincou32, o que me fez pensar em
retirar o título da listagem, mas acabei mantendo-o ao encontrar, no boletim Um Outro Olhar
nº 1 (1987), uma notinha que o descrevia como “publicação político-poética-lésbica carioca”.
Ao falar de Rita Colaço, vale mencionar que ela escreveu um jornalzinho para gays e lésbicas,
o Boca Negra, que circulava em um bar que frequentava no início dos anos 1980, bar esse
descrito em sua dissertação de mestrado (Rodrigues, 2006). Colaço também é autora de Uma
conversa informal sobre homossexualismo (Colaço, 1984), descrito por Mott (1987) como o
29 Agradeço à Profª Carla Ramos por me oportunizar o acesso a digitalizações destes exemplares.
30 Realizada no dia /19/05/2016, em um barzinho na Lapa.
31 É o caso, por exemplo, do Iamuricumá, do qual há apenas uma edição conhecida, e do Lesbertária, segundo
Marisa Fernandes, que colaborou com a publicação. Também foi esta ativista, que participou da criação do
LF (e da escrita da matéria para o Lampião da Esquina) e atualmente integra o Coletivo de Feministas
Lésbicas – CFL, quem me passou a informação sobre as editoras do Lesbertária, em comunicações pessoais
via e-mail entre 04/10/2015 e 10/11/2015.
32 Na mesma entrevista, no dia 19/05/2016.
61
primeiro livro sobre homossexualidade escrito por uma lésbica no Brasil 33, e de dois livros de
poesia.
O boletim Iamuricumá foi descrito da seguinte maneira por Lessa:
Péret (2011) traz poucas informações adicionais sobre algumas das outras publicações
presentes na lista de Martinho. Sobre a Femme, esta autora (2011, p. 78) comenta que seu
conteúdo “trazia notícias sobre a comunidade lésbica, além de artigos sobre cultura,
comportamento, literatura, turismo, saúde, entrevistas e uma seção de correio sentimental”.
Seu trabalho também comenta a Sobre Elas, editada pela “jornalista e DJ paulistana Nina
Lopes”, “responsável por um site de sucesso 34, que chegou a ter 250 mil acessos”: “a revista,
que teve apenas duas edições, era distribuída gratuitamente em bares e boates e enviada pelo
correio para outras cidades” (2011, p. 79). A jornalista ainda menciona a Entre Ellass,
comentando que “as imagens e as representações que fazia das mulheres se aproximavam
mais da pornografia produzida para consumo de homens heterossexuais” (2011, p. 79), sem,
contudo, explicitar que o próprio editor da revista se enquadraria neste público (Maia, 2011;
Venceslau, 2007). A proposta era realizar uma tiragem alta (65 mil exemplares) e distribuí-la
em todo o Brasil (Venceslau, 2008), mas Péret conta que o projeto enfrentou dificuldades
financeiras e deixou de circular ainda em 2008, ano de sua primeira edição.
A Editora Ondas também publicou outra revista de nu feminino retratando pares
homoeróticos, a Ela & Ela, vinculada ao selo Big Man International, voltada para o consumo
masculino. Menciono esta revista por duas razões. A primeira é o fato de que uma de minhas
interlocutoras trabalhou nessa publicação, fotografando alguns ensaios, escrevendo contos
eróticos publicados sob pseudônimo, auxiliando a pensar a linha editorial e contribuindo com
33 Cabe notar que, um ano antes dela, a lésbica e poeta ligada à imprensa alternativa Leila Míccolis (1983)
havia publicado um ensaio sobre homossexualidade no livro Jacarés e lobisomens: dois ensaios sobre
homossexualidade, dela e de Herbert Daniel.
34 O site em questão é o Dykerama. Antes disso, Nina Lopes escreveu para o MixBrasil, site voltado para gays
e com seções específicas para outros públicos, como as lésbicas e travestis e transexuais (Maia, 2011; 2015).
Atualmente, o Dykerama parece estar sob a responsabilidade do jornalista gay Paco Llistó.
62
conteúdos como a elaboração de guias de locais frequentados por lésbicas35. Outra é o fato de
que publicações deste tipo, embora tivessem como público-alvo homens heterossexuais, eram
consumidas também por mulheres, que eventualmente publicavam mensagens anônimas em
suas seções de recados para conhecerem outras mulheres interessadas sexualmente em
mulheres. Foi graças a um anúncio neste tipo de publicação que Theresa Thomé e Monica
Camargo se conheceram36 – anos depois, as duas elaborariam um boletim para lésbicas (que
não consta da lista de Martinho, tampouco da minha – o folheto não tinha nome e suas
produtoras não guardaram cópias deste material) e, a partir dessa experiência, criariam a
revista Femme.
Uma outra publicação para lésbicas deixou de ser incluída em meu levantamento: a
revista Lés, ausente de toda a literatura que consultei, com exceção de minha própria
monografia de graduação (Maia, 2011). Sua inclusão naquele trabalho veio da minha própria
ligação com o tema (e da minha intenção, já presente então, de “fazer existir” o que estava
excluído dos registros acadêmicos): eu sabia de sua existência por ter visto seu nome não em
algum estudo sobre imprensa homossexual, e sim na divulgação de seu lançamento, em 2005,
nos sites gays de notícias que eu acompanhava então e que por muito tempo foram a fonte das
únicas informações que tive sobre a revista e sua editora-chefe, Ana Azevedo, da AZM
Editora (hoje AZM Comunicações). Depois de mais de dez anos carregando esta curiosidade
(e uma série de pressuposições, das quais não tinha consciência e sobre as quais não havia
refletido antes de entrar em campo), foi com surpresa que descobri que Ana Azevedo não era,
como eu esperava que fosse, uma lésbica interessada em produzir conteúdos para outras como
ela. Heterosssexual, Ana Azevedo é uma profissional da área do jornalismo especializado e
co-proprietária de uma empresa de comunicação no ramo. Acostumados a trabalhar com
públicos com interesses bastante específicos e inspirados pela imprensa gay, ela e Mauro
Mello, seu marido e sócio, acreditaram que as lésbicas poderiam ser um nicho de mercado
ainda não explorado. A revista bimestral não teve o sucesso pretendido e, com medo de
maiores prejuízos para a empresa, a AZM interrompeu sua publicação após seu número 4, de
novembro de 200537.
Encerro esta seção com um trecho do trabalho de Isadora Lins França, que discute as
aproximações e tensões entre a militância LGBT e os atores do mercado GLS, conforme
35 Entrevista com Yone Lindgren, realizada em apartamento em Copacabana em 20/05/2016.
36 Informação fornecida nas entrevistas com Laura Bacellar (em um restaurante em São Paulo, 12/06/2014) e
com Theresa Thomé e Monica Camargo (em um centro cultural em São Paulo, 27/08/2016)
37 Entrevista com Ana Azevedo e Mauro Mello, na sede da AZM Comunicações (São Paulo), 13/06/2016.
Agradeço a ambos pela confiança ao me emprestar suas únicas cópias da revista, e pela solicitude em me
conceder a entrevista tão logo consegui localizá-los.
63
citado por Simões e Facchini (2009). Um dos interlocutores de França, um empresário gay,
comenta como a relação com esse público, e a própria manutenção destas iniciativas, é
diferente de acordo com a identidade sexual de seus empreendedores:
Tem uma coisa que é o seguinte: é um mercado que eu acho que se você não é gay,
você não vai adiante. Por uma questão muito simples: não é um mercado tão
interessante assim como se faz parecer. [...] O que acontece é que quem é gay, você
tem isso quase como uma missão...Tudo tem um peso social na hora de você fazer,
que um hetero, quando está entrando no mercado, não tem. Eu acho que essa é a
diferença. Acho que negócio gay tocado por hetero é fadado ao fracasso, porque ele
lida com outro tipo de realidade, você não tem muito anunciante. No exterior é
impensável um negócio gay que não seja gerido e de propriedade de gays. Esse é o
princípio lá fora. Aqui não tem muito isso, mas mesmo assim, você pega o S..., ele
vai gastar um dinheiro fazendo show de drag que um empresário hetero jamais
gastaria, porque ele é gay, porque é da cultura dele, porque ele acha o máximo. E
ele vai fazer com fogos de artifício, vai gastar pra fazer um show de uma noite, que
pra ele é importante. Um cara hetero jamais vai entrar numa coisa dessas. E isso faz
uma diferença (França apud Simões & Facchini, 2009, p. 145, grifos meus).
39 A inclusão das mulheres bissexuais na denominação do evento foi decidida em plenária realizada no 9º
SENALE, realizado em 2014 na cidade de Porto Alegre/RS.
66
trabalha essa ideia ligada à noção de um (meio) pertencimento étnico, nacional ou cultural:
“pessoas cuja identidade nacional ou cultural é misturada devido a migração, educação no
exterior ou criação”. Ainda assim, acredito que posso utilizá-lo, nem que seja analogicamente,
também aqui. Afinal, embora eu compartilhe (e seja reconhecida como compartilhando) com
minhas interlocutoras uma identidade de mulher homossexual (bem como outros marcadores,
como os de classe – média, urbana, com ensino superior – e raça – branca – com a maioria
delas), e tenha inclusive atuado como militante em um grupo LGBT e também na produção de
textos relativos às lutas por direitos dos sujeitos que esta sigla abarca, a própria diferenciação
etária faz com que essa identificação seja cindida e demarcada por uma série de experiências,
e as elaborações feitas a partir destas, que não marcaram minha trajetória e que entram para o
olhar que dirijo ao meu campo. Este olhar, nos termos de Haraway (1995), é um olhar situado,
produzindo um conhecimento necessariamente parcial. Não que o olhar distanciado e
pretensamente neutro (o do homem branco e heterossexual), como esta autora mesma coloca,
não esteja necessariamente situado: este apenas não se explicita como tal, mascarando sua
própria parcialidade. Na mesma linha, Abu-Lughod coloca que, se as verdades da
antropologia são parciais, como diz Clifford (1986), elas são também sempre posicionadas.
Esta autora ressalta como a antropologia constrói objetos marcados pelo gênero (mulheres) ou
não marcados (“sociedade”, frequentemente descrita a partir de instituições masculinas),
refletindo uma universalização do masculino (tendência presente na segmentação da imprensa
por gênero e mesmo na produção acadêmica sobre este tipo de conteúdo, como já discutido
anteriormente). Feministas e halfies de diferentes maneiras compartilham uma “habilidade
bloqueada de assumir confortavelmente o self da antropologia” (Abu-Lughod, 1991, p. 140,
tradução minha). Mais do que isso,
A autora marca, então, como tanto o eu dos antropólogos como os outros que a
antropologia estuda são sempre construções, e discorre sobre “o que acontece quando o 'outro'
que o antropólogo está estudando é simultaneamente construído como, ao menos
parcialmente, como um eu” (Abu-Lughod, 1991, p. 140, tradução minha). Outras etnografias
citadas nesta pesquisa mencionam questões semelhantes sobre posicionalidade. Pontes (1986),
por exemplo, descreve sua atuação no grupo SOS Mulher enquanto pesquisadora e militante
68
feminista; MacRae (1990, pp. 37-38) reflete sobre como os integrantes do Somos/SP eram
muito semelhantes a ele próprio: “o problema do estabelecimento de alteridade se agudizou,
pois uma parcela significativa dos integrantes do grupo eram quase idênticos a mim em
termos de classe social, nível educacional, ocupações e filosofia de vida”. Em casos como
este, o autor também menciona um risco – que Eunice Durham (1983, apud MacRae, 1990)
chamou de “armadilha positivista” – de que a uma excessiva identificação com o campo faça
com que o pesquisador parta mais de explicações nativas do que da teoria antropológica. Uma
postura oposta seria a exemplificada por Abu-Lughod (1991, p. 139) no caso de certas
etnografias conduzidas nos Estados Unidos ou na Europa, em que uma forma de manter a
“identidade enquanto antropólogos é fazer com que as comunidades que estudam pareçam
‘outras’”.
Em meu trabalho, mais especificamente, minhas interlocutoras – que talvez para
outros olhares pudessem se constituir enquanto outras – eventualmente apareceram como
possíveis eus. Neste sentido, acredito ser pertinente citar Esther Newton (2000a) e sua
observação de que diversos antropólogos comentam como experiências pessoais suas os
levaram a compreender de maneira mais aguda algumas características de seu campo. Um
exemplo óbvio disto em meu trabalho seria a minha própria sensação de isolamento na
adolescência, já descrita na introdução desta dissertação, e como essa experiência me levou a
me sentir conectada às tentativas de criar e fomentar redes de contatos entre mulheres que se
relacionam com mulheres através da produção e circulação de periódicos impressos. Outros
exemplos disso só apareceriam ao longo do trabalho de campo e da construção da escrita, em
que minhas próprias re(l)ações com/a algumas características dos ativismos e produções
lésbicas foram sendo reelaboradas a partir de tentativas de buscar compreendê-las a partir de
um olhar antropológico. Ao mesmo tempo, eventualmente foram as “explicações nativas” que
deram sentido a reflexões sobre alguns afetos tecidos em campo, incluindo a própria sensação
de identificação mais presente com algumas de minhas interlocutoras, com quem os encontros
foram descritos em diário de campo com a adição da divagação “como eu serei depois dos 50
anos?” – reflexão esta que, hoje penso, talvez seja explicada por uma das motivações descritas
por Zora Yonara para a criação do boletim Ponto G: “há vinte anos […] não tinha muitas
referências, não tinha muitas pessoas, né, pra gente se espelhar” 40. Em momentos como este,
diferente do que ocorre com etnografias em que a “distinção entre o self e o outro” é mais
nitidamente marcada, a construção do meu próprio self no campo acontece não pela
diferenciação, mas pela proximidade.
40 Entrevista com Zora Yonara Torres Costa, realizada em 01/04/2016, no Instituto Federal de Brasília.
69
41 A mais jovem entre as mulheres com quem tive contato ao longo da pesquisa tinha 43 anos na data da
entrevista; a mais velha, 74. A maioria delas oscilava entre meados de 50 anos e início dos 60.
70
atividades (organizadas por área de atuação42) compõem o restante do material. Mesmo uma
formulação (que se demonstrou pouco adequada) de uma das perguntas de meu questionário
de entrevista explicitam esta diferença entre as formas de comunicação de hoje e as daquela
época. Quando perguntava “como era o contato de vocês com outros grupos?”, eu esperava
ouvir sobre frequência de interação, nível de proximidade (geográfica e/ou política), tipo de
informações compartilhadas, forma e conteúdo de publicações trocadas, entre outras
possibilidades, mas várias vezes a resposta foi simplesmente “por correio”.
Esse tipo de resposta (ainda mais para alguém que passou boa parte de sua vida tendo
acesso regular à Internet), por contraste, evidencia como hoje é fácil localizar informações –
não apenas conhecer grupos ativistas e/ou outras mulheres que se relacionam com mulheres (e
estabelecer contatos com estas e aqueles), mas também encontrar (e guardar e atualizar)
contatos, endereços, notícias (sem contar artigos e livros). A lista de periódicos elaborada por
Miriam Martinho (2012a) identifica apenas os grupos que os realizavam e a década em que
foram feitos. Já conhecendo alguns nomes de suas realizadoras e/ou colaboradoras, em boa
parte graças ao auxílio de Marisa Fernandes, foi relativamente fácil localizar algumas delas.
Marisa não chegou a me passar nenhum endereço de e-mail ou outra forma de contato, mas
indicava que algumas delas estavam em sua lista de amigos no Facebook: “face nela!” 43,
chegou a incentivar. De fato, foi através do Facebook que consegui localizar e contatar boa
parte de minhas interlocutoras, como Yone Lindgren, Neusa Pereira, Jane Pantel e Laura
Bacellar. Consegui encontrar os contatos de Zora Yonara, Monica Camargo e Theresa
Fernandes após algumas sequências de diferentes buscas através do Google. No caso das
últimas duas, essa localização só foi possível graças a algumas informações complementares
além de seus nomes – e inclusive de seu nome no caso de Theresa, que assinava como Tânia
na Femme – fornecidas por Laura Bacellar.
Se foi relativamente fácil localizar estas mulheres, não posso dizer o mesmo das
publicações que elas editavam. Segundo Norma Mogrovejo, que realizou um amplo estudo
sobre o movimento de lésbicas na América Latina através da metodologia da história oral,
42 Cabe notar que, neste documento, o endereço de uma caixa postal e o nome de três integrantes do GALF
(Maria Luiza Marques, Miriam [Martinho] Rodrigues e Rosely Roth), juntamente à informação de que
editavam “a revista Chana Com Chana” (e de que esta poderia ser assinada), estão na parte de “grupos de
mulheres com atuações diversas”. Fora o GALF, descrito como “grupo de atuação e reflexão sobre o
lesbianismo e feminismo”, não há nenhum outro grupo de lésbicas. Rosely Roth (então pós-graduanda em
Antropologia na Unicamp) aparece também na parte de “mulheres desenvolvendo teses e pesquisas”. Junto a
seu endereço, há a informação de que ela desenvolvia “tese de mestrado sobre lesbianismo”.
43 Marisa Fernandes, comunicação pessoal por e-mail, 08/10/2015.
71
É nesse sentido que trouxe, no começo desta seção, a imagem do caminho esburacado
de que fala Péret (2011). A tentativa de mapear, da maneira mais exaustiva possível 44, o que
aqui chamo de “imprensa lésbica brasileira” – propósito ambicioso que eu me colocava, no
momento de minha entrada em campo – encontra obstáculos não somente pela dificuldade de
localizar algumas figuras-chave que permitiriam reconstruir essa história, fosse através de
entrevistas ou de acesso aos documentos que compuseram esta imprensa. Ciente da carência
de arquivos de acesso público onde estes materiais pudessem estar depositados no Brasil,
como aponta Mogrovejo, eu imaginava que a única forma de acessar este tipo de publicação
seria através de arquivos mantidos por suas próprias produtoras. Contudo, mesmo isto se
provou mais precário do que inicialmente eu previa. Dada a inexistência de locais
reconhecidos como aptos e adequados a gerirem este tipo de acervo, muitos dos materiais que
poderiam ser incluídos em uma pesquisa como esta a que me proponho foram perdidos,
danificados ou mesmo descartados, por razões que incluem doação a instituições que
deixaram de existir e/ou não os mantiveram, deterioração devido a fatores ambientais dos
espaços de armazenamento e desconexão pessoal destas mulheres com as propostas ativistas
que realizaram.
Por exemplo, o término conturbado 45 do Grupo Lésbico da Bahia, no início dos anos
2000, acabou levando à perda de um rico acervo documental, que incluía as cartas recebidas
pelo grupo, as publicações que este produzia (folders, panfletos, cartilhas e o boletim
trimestral Ponto G) e também as edições remanescentes do boletim Amazonas, produzido
pelo Grupo Libertário Homossexual nos anos 1980, que haviam sido conservadas por
Lourdinha após seu afastamento do grupo em 1987 e posteriormente repassadas ao GLB. A
44 Vale notar que, além das dificuldades de acesso aos documentos que relato a seguir, uma das dificuldades de
conhecer o número total de edições de cada título se deve a um sistema de numeração que não segue uma
série linear ao longo do tempo, e sim reinicia a cada ano. Como a periodicidade desse tipo de publicação é
bastante instável (podendo variar, para um mesmo periódico, da intenção de bi- ou trimestralidade a duas
edições por ano). O boletim Visibilidade e a revista Alternativa L são exemplos desse tipo de numeração.
45 Sobre este tópico, ver Allen (2015, pp. 41-42) e as declarações de Eide Paiva a Irina Bacci (2016). A
discussão da dinâmica do “casal fundador” feita por Guilherme Almeida (2005) também ajuda a iluminar o
caso em questão.
72
ex-coordenadora do grupo e uma das produtoras destes materiais, Jane Pantel, não conservava
consigo nenhum dos documentos produzidos por ele; Zora Yonara, ex-companheira de Jane e
também uma das produtoras do Ponto G e outros materiais do GLB, disponibilizou-me cópias
de dois desses boletins e mais algumas cartilhas. Yone Lindgren contou-me que parte do
arquivo do Movimento D'Ellas foi deteriorado após fortes chuvas que atingiram sua sede, e
infelizmente não tive acesso ao material restante; Rita Colaço também perdeu boa parte de
seus materiais para o mofo causado pela umidade do cômodo onde guardava seus arquivos, e
seu distanciamento do movimento LGBT ao longo dos anos 1990, causado por uma “volta ao
armário”, fez com que ela descartasse o que havia restado dos materiais do Grupo de Atuação
e Afirmação Gay (GAAG), o primeiro coletivo homossexual organizado do estado do Rio de
Janeiro, surgido em julho de 1979 e que reunia homens e mulheres da Baixada Fluminense
(Míccolis, 1983). Algumas publicações produzidas por esta autora, os jornaizinhos contendo
discussões políticas e fofocas das festas de um bar em São José do Meriti no começo dos anos
1980 (ver Rodrigues, 2006), foram doados ao Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro – e
aparentemente perdidos dentro desta instituição46. O afastamento em relação à militância
também levou Monica Camargo e Theresa Fernandes a doarem o acervo do Afins – Grupo de
Conscientização e Emancipação Lésbica (ou ao menos a parte que a maresia de São Vicente
não havia embolorado) para outras organizações, cujos nomes estas duas mulheres
infelizmente não conseguiram recordar, e a destruírem as cartas que haviam recebido das
leitoras da revista Femme – ato este motivado pelo receio de possíveis consequências caso
estas missivas caíssem em mãos erradas, expondo suas remetentes e a intimidade das
confissões que realizavam em suas mensagens. Uma exceção é o acervo do GALF e da Rede
de Informações Um Outro Olhar, mantido atualmente por Miriam Martinho em sua residência
e ao qual ela possibilita a consulta enviando cópias a pesquisadoras que solicitam seus
materiais47. Duas de minhas outras interlocutoras, impossibilitadas no momento da entrevista
de me cederem acesso às publicações de que participaram, me remeteram a ela: Rita Colaço
me disse que já não guardava cópias do Xerereca, mas acreditava que Miriam as tivesse48;
sobre o tópico da imprensa lésbica brasileira, Yone Lindgren complementou: “a Miriam é a
46 Minha tentativa de agendar uma consulta a estes materiais foi impossibilitada porque eles não puderam ser
localizados no acervo, embora constem da lista de publicações da coleção de imprensa alternativa do
Arquivo.
47 No momento de minha entrada em campo, sem saber que Miriam mantinha exemplares de materiais de
outros grupos, solicitei a ela somente cópias do ChanaComChana (jornal e boletim) e Um Outro Olhar
(boletim e revista). Em entrevista, ela me ofereceu a possibilidade de realizar cópias de outras publicações,
contudo explicitando que seu próprio acesso a estes materiais estava dificultado devido a uma reforma em
sua casa – o que, juntamente ao tempo disponível para a realização deste texto, impediu minha consulta a
outros periódicos de seu acervo.
48 Rita Colaço, em entrevista, 19/05/2016.
73
dona da porra toda. Fala com ela”49. Sem deixar de reconhecer a importância do trabalho
continuado desta ativista para a construção e manutenção de registros da história do
movimento lésbico no Brasil, cabe contudo ressaltar as dificuldades impostas à pesquisa pelo
fato de ser este um arquivo pessoal, sujeito a possíveis limitações na disponibilidade de sua
mantenedora e da gestão do espaço de sua residência. Durante meu trabalho de campo,
Miriam conduzia uma reforma em sua casa, o que levou nossa entrevista a ser realizada por
Skype e a consulta às publicações ser feita unicamente via remessa de cópias.
Em resumo, meu esforço de pesquisa esbarrou em três problemas: a falta de retorno de
algumas mulheres importantes para uma caracterização mais densa de suas iniciativas
(somada ao fato de que algumas mulheres publicavam sob pseudônimos, por preocupação
com a repressão); o fato de que a maioria das minhas interlocutoras não guardou cópias dos
materiais que produziram; e, por fim – o que passo a abordar agora –, o tempo disponível para
análise do material coletado e escrita da dissertação. Mogrovejo, na citação que trouxe nas
páginas anteriores, sinaliza também para a importância do registro de depoimentos de história
oral para a reconstrução de trajetórias individuais dentro do movimento de lésbicas e, a partir
destas, da história deste movimento mesmo. Esta foi uma de minhas motivações para a
realização das onze entrevistas que pretendia abordar aqui, tarefa que contudo se demonstrou
excessivamente ampla para o período disponível para a conclusão deste trabalho – tanto pelo
volume e complexidade das informações que me foram confiadas quanto pela carga de
leituras que seriam necessárias para dar conta das tensões presentes na trajetória de cada uma
de minhas interlocutoras em suas interfaces com diferentes movimentos como o movimento
LGBT, o movimento feminista e o movimento negro 50. Mesmo que eu tenha conseguido
acessar muito menos publicações e histórias do que eu gostaria, a riqueza das narrativas
produzidas pelas interlocutoras nas entrevistas comigo mereceriam muito mais atenção e
cuidado, o que espero poder dedicar em um próximo trabalho. Narrativas de pesquisa tendem
a enfatizar seus sucessos, mas acredito que cabe aqui registrar também uma certa frustração,
não só pelo meu investimento afetivo nesse tema e no próprio campo (pela percepção das
da Rede de Informações Lésbicas Um Outro Olhar, ganharia sua forma final enquanto produto
impresso através da revista homônima. A produção do boletim selecionado inclusive
documenta a passagem do modelo do GALF para a criação da Rede, formalizada em cartório
em 1990 e noticiada no boletim de número 11, de 1990. Mesmo a emergência de novas
possibilidades técnicas para a confecção de publicações impressas pode ser vislumbrada ao
longo dos números do Um Outro Olhar, que progressivamente vai abandonando a máquina de
escrever e adotando a diagramação através dos então recentes (e pouco acessíveis)
computadores pessoais.
A década de 1990 também foi marcada por outras transformações no campo dos
ativismos LGBT, incluindo os grupos destinados especificamente às causas das lésbicas.
Facchini (2005) e Simões e Facchini (2009) relatam como, após uma brusca diminuição do
número de coletivos homossexuais ao longo da década de 1980 devido tanto aos impactos da
epidemia de HIV/AIDS quanto a mudanças na própria conjuntura política do país ao longo do
processo de redemocratização pós-ditadura, os anos 1990 veem o nascimento de novos grupos
destinados à defesa dos direitos dos homossexuais e a crescente adoção, por estes, do modelo
de organização não-governamental (ONG), atuando em interface com o Estado brasileiro e
recebendo recursos deste e de instituições internacionais como forma de financiar suas
atividades. Pegar este momento de adensamento de redes entre ativistas (ainda na ausência da
Internet) também foi uma das razões para optar por centrar a análise nesta década, mais um
critério que colabora a escolha do boletim Um Outro Olhar em vez do Ponto G ou do
Visibilidade, que circularam mais próximos à virada do século (ambos a partir de 1998). Ao
definir este marco temporal, cheguei a pensar em incluir na análise a revista Femme, que
circulou entre 1993 e 1995 e também trazia, em seus conteúdos, muitas possibilidades para
discussões sobre constituição de redes e colaboração entre produtoras de materiais impressos.
Tendo pouco tempo para esta tarefa, e para manter-me na busca de uma etnografia do
particular, acabei abandonando este plano.
Como já indicado, não foram muitos os periódicos a que eu tive acesso ao longo do
trabalho de campo. Com exceção do Ponto G (que teve apenas uma experiência,
malsucedida53, com sua tentativa de inserir um “correio sentimental”), todos os periódicos
consultados incluíam uma seção para publicação de anúncios pessoais. Tendo iniciado a
pesquisa com a intenção de levantar, catalogar e caracterizar as publicações que constituiriam
a imprensa lésbica brasileira a partir principalmente de suas formas de elaboração e circulação
(inicialmente motivada, como já apontei, por um interesse em ler as diferenças entre a
imprensa gay e a imprensa lésbica a partir de gênero como categoria analítica, como coloca
Joan Scott [1995], evidenciando acessos diferenciais a bens e recursos), demorei a perceber a
importância deste tipo de conteúdo, mesmo que já percebesse a importância deste tipo de
material impresso para romper o “isolamento” percebido por mulheres lésbicas sem contato
com o movimento LGBT ou com os chamados “guetos”, como fora o meu caso na
adolescência. Admito que levei um certo tempo até adotar as premissas da abordagem não-
diretiva (Abu-Lughod, 1988) e admitir que o que se apresentava para mim possibilitava
chaves de análise mais interessantes do que aquelas que haviam me levado ao campo. As
seções “Troca-Cartas”54, “Correio Sentimental”55 ou “Pomba-Correio”56 são simultaneamente
um indício da vontade destas mulheres de conhecerem outras mulheres e uma forma
encontrada para estabelecer este tipo de contato – ou seja, a discussão das seções de cartas é
explicada pela (e joga luz sobre) própria sensação de isolamento, vinculada à necessidade
dessas mulheres de “permanecerem no armário”, que as produtoras e colaboradoras de
periódicos entrevistadas apontam como alguns dos motivos para justificar a criação deste tipo
de justificativa.
Nos capítulos seguintes, portanto, analiso as edições do boletim Um Outro Olhar de
forma a trazer suas características, detalhar em linhas gerais os tipos de conteúdo que
veiculavam e quem os produzia, e também abordo os efeitos de sua circulação na criação e
consolidação de redes entre mulheres lésbicas, bem como as possibilidades de narrativa de si
encontrada naquelas páginas pelas associadas do GALF/Rede UOO.
Março de 1988. Lançado no final do ano anterior, o boletim Um Outro Olhar chega à
sua segunda edição e anuncia uma nova forma de atuação do GALF, agora através de um
“sistema de associação”, no qual o boletim passa a ser o “principal veículo de comunicação”:
Como já indicado no capítulo anterior, acredito que o boletim Um Outro Olhar possa
ser visto como parte de um processo de transição que leva do ChanaComChana, seu
antecessor, até a edição da revista Um Outro Olhar. Sua produção também documenta a
passagem do Grupo Ação Lésbica Feminista para a Rede de Informação Lésbica Um Outro
Olhar, com a adoção do modelo de organização não-governamental. Através de conteúdos
próprios, de cartas de leitoras, de tradução de artigos de ativistas lésbicas de outros países e da
reprodução de matérias de jornais brasileiros, as ativistas do GALF – posteriormente Rede 57 –
buscavam atingir seu propósito de politizar e conscientizar as lésbicas brasileiras, através da
disseminação de discussões feministas, algumas ligadas a concepções oriundas do feminismo
radical e do separatismo lésbico, como aponta Lessa (2007) 58 – posicionamentos que as
levaram a manter uma certa proximidade, ainda que tensa, com o movimento feminista
brasileiro, e a estrategicamente apostar em alianças com o movimento homossexual dos
grupos “mistos” apesar de eventualmente discordar de suas táticas, ao mesmo tempo
buscando promover a criação de redes entre militantes lésbicas tanto no Brasil como no
57 A partir daqui, a grafia Rede com inicial maiúscula aparece para abreviar Rede de Informação Lésbica Um
Outro Olhar. Com inicial minúscula, utilizo “rede” para referir-me a um conjunto de indivíduos, alguns
mantendo relações de diferentes níveis de proximidade entre si, e analisável a partir de uma ancoragem
(Mitchell, 1969) que, neste estudo, tanto pode tomar alguma das ativistas produtoras de periódicos como um
ego, ou mesmo estar situada a partir dos próprios boletins pesquisados.
58 Dado que esta autora analisou mais extensivamente em sua tese as proximidades do GALF e da Rede em
relação às supracitadas vertentes feministas, opto por deixar de lado uma discussão mais específica sobre,
por exemplo, as concepções de gênero e sexualidade destes grupos conforme veiculadas em seus boletins.
78
exterior. O boletim, assim, é também uma forma de apresentação do GALF e da Rede, seus
posicionamentos e atividades, para outros grupos, bem como de trazer para suas associadas o
conteúdo das publicações e ações que outras ativistas produziam; mais do que isso, os
conteúdos de Um Outro Olhar frequentemente se destinam também a registrar, manter e
construir a memória do movimento lésbico no Brasil – ou, mais especificamente, do GALF e
da Rede, com frequentes críticas (embora não nominalmente direcionadas) a outros grupos,
suas estratégias e conflitos. Para além das informações mais diretamente ligadas ao ativismo
organizado, as seções de cartas das leitoras e de anúncios para troca de cartas fomentavam o
estabelecimento de contatos entre mulheres interessadas em conversar com outras cujo
interesse erótico e afetivo – e frequentemente político – voltava-se também para mulheres.
Em linhas gerais, estes são os temas que procuro analisar neste capítulo, paralelamente
descrevendo, quando oportuno para a discussão, algumas das características do boletim Um
Outro Olhar.
Seleciono o trecho reproduzido acima por acreditar que ele sumariza boa parte das
intenções do grupo que o produzia, e que foram concretizadas ao longo do período de
publicação deste periódico – com exceção da periodicidade, que se manteve pouco regular ao
longo dos quase sete anos de circulação do Um Outro Olhar59. Todos os serviços listados no
primeiro parágrafo desta citação (que reproduz quase na totalidade o editorial da segunda
edição do boletim) realmente aparecem nas edições consultadas, que vão de 1987 a 1994, de
forma que a elaboração do periódico vai ganhando um caráter central nas atividades do grupo.
O boletim é parte dos serviços prestados às cerca de cem associadas 60 do grupo – uma forma
de informá-las, por exemplo, quais são as novas publicações a que elas poderiam ter acesso
através de fotocópias ou para quais endereços poderiam remeter cartas na busca de novas
correspondentes para amizade, transa ou compromisso. Ele também serve de espaço para que
estas mulheres compartilhem reflexões suas (ou sua criatividade artística, na forma de poemas
e desenhos), num diálogo simultaneamente íntimo e relativamente público – íntimo pelos
tópicos e formas de narrar, público porque exposto a um número desconhecido de leitoras, das
quais tudo que se presume é que teriam no mínimo algum interesse em, e idealmente uma
identificação com, as experiências divididas através da escrita. O pedido de colaborações é
[…] o negócio é botar a boca no mundo. Não é preciso sair às ruas e levantar a
bandeira (isso fica para as mais corajosas), basta escrever sobre suas próprias
vivências, suas dúvidas, certezas, seus erros, acertos, etc, enfim sobre tudo aquilo
que caracteriza os seres humanos, demonstrando para héteros e homos que somos
como todo mundo, embora diferentes, e que nossos direitos têm que ser respeitados.
Então, vamos utilizar UM OUTRO OLHAR para, além de trocar endereços – o que
é ótimo – também trocar ideias e informações – o que [é] divino!!!!!!!!! (Um Outro
Olhar, n. 3, 1988, p. 1).
61 Além dos aportes de Foucault (1992) sobre escrita de si, a ideia de elaboração narrativa da experiência,
construção de identidades narrativas no momento da fala (e, aqui, escrita) e a própria centralidade da
narrativa, sempre carregada de interpretações e avaliações valorativas, na tarefa (e possibilidade) de
compreender o mundo, vem sobretudo de Meccia (2016). O capítulo seguinte desta dissertação trata destes
temas em maior profundidade.
62 Termos em itálico, quando não referenciados como vindos de algum texto em particular, são expressões que
se repetem ao longo dos documentos consultados – termos êmicos, portanto.
63 A menção à “sociedade” como detentora de opiniões preconceituosas e, portanto, passível de intervenção
através do ativismo é frequente em muitos textos do boletim. Strathern (2006) comenta como pesquisadoras
feministas, ao explicitarem desigualdades de gênero em contextos ocidentais em que “a sociedade” é
percebida como hegemonicamente masculina, acabam por fissurar a própria concepção de “sociedade” como
um todo relativamente homogêneo. Acredito que esta reflexão é relevante para pensar a visão que as
associadas da Rede expressam sobre a “sociedade” como algo de que elas fazem parte e da qual,
simultaneamente, se diferenciam.
82
(1998) em sua discussão sobre a escrita etnográfica pós-moderna. Ainda que este autor
proponha estas reflexões com vistas a produzir novas e diferentes formas de escrever
antropologia, e não como categorias de análise, acredito que suas formulações sejam
aplicáveis para caracterizar as edições destes boletins. Por exemplo, Clifford pondera que,
mesmo com o mínimo de interferência intencional por parte dos e das antropólogas nos textos
provenientes de seus campos no momento de dar-lhes forma escrita (dentro das convenções
textuais do gênero, na língua e linguagem empregadas na edição final, levando em conta o
que se espera de sua audiência) e publicá-los, a seleção do material, em última instância,
passa pelas mãos de quem escreve estas etnografias. Nos boletins que analisei, estão presentes
transcrições diretas (mantendo sua estrutura original e eventualmente mesmo erros de grafia,
segundo as organizadoras do material) de relatos enviados por correio, publicação de missivas
aparentemente na íntegra (mantendo trechos destinados diretamente a uma ou outra das
integrantes do GALF e da Rede envolvidas com a produção do boletim), reprodução de
notícias e reportagens de outros veículos não necessariamente acompanhadas de alguma
reflexão por escrito do grupo, opiniões discordantes entre si (também como incitação ao
debate). Desta forma, mesmo que as responsáveis pela definição do que entrava ou não em
cada edição exercessem um papel determinante sobre o conteúdo através dessa atividade de
seleção, diferentes vozes emergem – reconhecíveis, pessoais, diferentes entre si – da leitura
desses periódicos. Após ler alguns números de Um Outro Olhar, cheguei mesmo a buscar
antecipar a autoria de certas cartas já em seus primeiros parágrafos. Em alguns casos, o nome
presente ao final da correspondência lida confirmava minhas intuições.
Como já apontado, o boletim passou por mudanças graduais ao longo de seus anos de
produção e circulação. A mais aparente delas, no que diz respeito à forma, tem a ver com as
tecnologias empregadas e o progressivo abandono da composição gráfica a partir de textos
datilografados e colagem de desenhos, fotos e outras imagens, como realizado nas primeiras
edições. Até a edição de número 11, a partir de uma comparação visual das fontes tipográficas
empregadas, é possível facilmente verificar o uso de diferentes máquinas datilográficas para a
digitação dos textos, o que permite supor que ao menos alguns deles eram enviados por suas
autoras já prontos para a diagramação do boletim. Esta suposição é apoiada, também, por uma
nota no Um Outro Olhar nº2 (1988, p. 4) em que, ao solicitar às associadas da Rede que
enviem “seus artigos, desenhos, etc. para publicação”, as organizadoras do periódico
estipulam que “os artigos, de preferência, devem vir datilografados em colunas de 25 toques
cada” – talvez para facilitar o trabalho de montagem 64. Novas ferramentas – máquinas
64 Com este número de toques, é possível encaixar três colunas de texto em uma página A4 no formato retrato.
83
Na edição 4 (1988, p. 6), a especificação passa a ser: “os textos devem ser datilografados em máquina IBM
(de preferência), espaço 1, em colunas (2) de 36/38 toques”. A maioria dos textos das edições seguintes estão
formatados em duas colunas, de largura variável – e a própria ausência de padronização mais rígida na
apresentação gráfica do periódico aponta para um certo nível de descentralização na realização destas
tarefas, embora alguns números do boletim identifiquem a(s) responsável(is) pela digitação de ao menos
parte de seus textos.
65 Acredito que, pelo menos em parte, isso se deva à atuação de Nani Tobi, publicitária e profissional de TI,
como diagramadora do boletim. Discuto a participação dela em Um Outro Olhar no capítulo 3.2 desta
dissertação.
66 Ao menos esta foi a forma com que recebi os boletins. Em entrevista (02/07/2016), Miriam Martinho fez
referência a uma edição do ChanaComChana “que tem uma capa azul”. Infelizmente não aprofundei esta
questão naquele momento, ficando sem saber se a cor era do papel, da tinta usada na capa, se o uso de cores
foi frequente ao longo da produção do Chana e mesmo se teria se estendido ao Um Outro Olhar.
84
texto do capítulo quando pertinente, em vez de proceder a uma descrição mais pormenorizada
de cada uma delas.
Nas seções seguintes deste capítulo, analiso os conteúdos do boletim Um Outro Olhar
a partir de dois eixos: em primeiro lugar, aparece o papel desempenhado por este periódico na
constituição e articulação de redes entre ativistas, em especial com outros grupos militantes
alinhados às lutas lésbicas, feministas e homossexuais. A partir de uma aproximação com o
separatismo lésbico, as ativistas do GALF e da Rede se empenham na construção de um
movimento especificamente lésbico. Dessa forma, paralelamente aos contatos mantidos com
outras organizações semelhantes (inicialmente mais no exterior e, com o passar do tempo,
também no Brasil, onde coletivos lésbicos emergem em maior número nos anos 1990), estas
mulheres investem na valorização dos laços entre mulheres que se relacionam com mulheres –
e o boletim, em sua circulação, age como criador, fomentador e mantenedor de relações entre
elas. Através de suas páginas, as mulheres que o leem encontram possíveis amigas e
confidentes (bem como casos e possíveis namoradas) e elaboram narrativas de isolamento e
encontro. A segunda seção deste capítulo explora justamente essas temáticas: como a
repressão da sociedade frequentemente levava mulheres a permanecerem enrustidas quanto à
sua opção; como isto muitas vezes traduzia-se em sentimentos de estranheza e solidão; e os
impactos destes fatores sobre suas vidas sexuais e afetivas – e, por “afeto”, aqui incluo
também os vínculos com suas famílias e amigos. A participação em grupos ativistas aparece
então não somente como forma de estabelecer novos vínculos com outras mulheres lésbicas,
mas também é apontada como necessária para o combate à discriminação que afeta a todas.
Dessa forma, a circulação de diferentes envelopes pelo correio – levando boletins e outros
materiais daqui para lá e de lá para cá, conectando mulheres em suas correspondências
relativamente institucionais e/ou mais íntimas –, ao criar redes, fomenta saídas para o
isolamento.
2.1 Circulação de papéis articulando redes: contatos com outros grupos a partir dos
boletins Um Outro Olhar
GALF. Estes dois grupos mantinham uma relação de proximidade, como indicam as cartas do
GGB publicadas em Um Outro Olhar e em seu antecessor, o boletim ChanaComChana, em
que também se fazem presentes as missivas de João Antônio Mascarenhas, do grupo
Triângulo Rosa, do Rio de Janeiro. Cabe notar, contudo, uma diferença de atuação entre esses
grupos: enquanto os dois grupos mistos de predominância masculina detinham uma faceta
mais institucional, em interface com o Estado brasileiro67, o GALF buscava aproximar-se de
seu público-alvo, as lésbicas, para estabelecer canais de diálogo e reflexão não apenas sobre
sexualidade, mas também sobre machismo. Como já discutido no capítulo anterior, estas
ativistas de São Paulo afastaram-se do grupo Somos por compreenderem, à época, que seria
mais proveitoso aproximar-se do então crescente movimento feminista para melhor
abordarem as opressões e violências sofridas enquanto mulheres, entendendo que o
patriarcado oprimia a todas. A recepção das lésbicas – ou, melhor dito, da lesbianidade
enquanto pauta política – neste movimento, contudo, foi conturbada. Neste ponto, cabe
mencionar a dissertação de Heloisa Pontes (1986) a partir de sua etnografia no SOS-Mulher,
grupo feminista voltado ao combate da violência de gênero e do qual integrantes do GALF
também participavam, que demonstra como este coletivo acolhia de maneira afetuosa as
práticas homoeróticas entre suas participantes (inclusive oportunizando algumas
experimentações por parte de mulheres que até então haviam se relacionado sexualmente
apenas com homens). Ainda assim, eventualmente houve uma polarização interna entre as que
acreditavam que o SOS-Mulher deveria ter como uma de suas pautas a discriminação sofrida
por mulheres que se relacionavam com mulheres e aquelas que, embora não vissem a
homossexualidade como impedimento à atuação política no interior deste movimento,
julgavam ser inoportuno encampá-la em suas discussões, por receio de que pudesse
comprometer a recepção do movimento feminista pela população de mulheres que este
deveria atender (alegando temer a rejeição por parte das mulheres oriundas da periferia que
porventura precisassem de atendimento para enfrentar situações de violência). Como me disse
Miriam Martinho em entrevista68, “é o que eu chamo de ‘o armário feminista’. Foi todo
mundo pro armário. Era só lésbica, todo mundo sabia que era, mas politizar, não podia” 69. As
67 O Grupo Gay da Bahia esteve bastante envolvido com a retirada da homossexualidade da lista de doenças do
INAMPS, ao passo que o Triângulo Rosa, especialmente na figura de Mascarenhas – um dos idealizadores
do Lampião da Esquina –, atuou na Assembleia Constituinte com o intuito de fazer constar na nova Carta
Magna do país a vedação à discriminação por orientação sexual, ideia que não foi levada a cabo pelos
legisladores.
68 Por Skype, em 02/07/2016. Salvo quando explicitar o contrário, as demais falas de Miriam neste capítulo são
todas provenientes desta mesma conversa.
69 Discuto o dispositivo do armário na segunda seção deste capítulo. Para esta passagem, cabe destacar a
imagem proposta por Eve Kosofsky Sedgwick (2007) para descrevê-lo, a ideia do “segredo aberto”, em que
a homossexualidade de outrem pode ser simultaneamente (re)conhecida e ignorada até que alguma
87
que se recusaram a “ir para o armário feminista” após a cisão do SOS Mulher ou passaram a
dedicar-se exclusivamente ao GALF, ou migraram para o Terra Maria – Opção Lésbica,
coletivo acerca do qual a literatura sobre o tema pouco diz, de forma que é difícil saber quanto
tempo esta iniciativa durou. Grupos de mulheres homossexuais no Brasil no período, de
maneira geral, tiveram baixa longevidade. Seja por isso, seja talvez por ausência de contato e
decorrente desconhecimento, em 1986 o Grupo Gay da Bahia anuncia em seu boletim de
número 1270 a última edição do ChanaComChana, qualificando o GALF como o único grupo
brasileiro de lésbicas em atuação na época (Mott, 2011, p. 128). A sensação, conta Miriam
Martinho em entrevista, era de isolamento:
[…] é uma coisa engraçada, […] o GALF foi muito sozinho, porque o movimento
homossexual praticamente se desmobilizou, ficaram pouquíssimos grupos em
meados da década de 80. Você tinha o GGB, o Triângulo Rosa, aí aquele tinha
aquele grupo lá em Sergipe, o Dialogay, depois aparece um lá no Rio, que é o
Atobá… era só isso que tinha, praticamente, grupos que tiveram um pouco de
sequência, porque pipocavam, como eu te falei, e desapareciam logo. […] O GALF
ficou muito sozinho e o nosso diálogo fundamental… com o movimento feminista, a
gente só brigava. Então, o nosso diálogo fundamental era com o pessoal do exterior.
O pessoal do exterior estava vivendo uma realidade, as brigas próprias delas lá,
principalmente a gente tinha muito contato com o pessoal dos Estados Unidos.
Todos os grupos citados por Martinho neste trecho são grupos homossexuais
(presumidamente) “mistos”, isto é, compostos tanto de homens como de mulheres – e se digo
“presumidamente”, faço-o por não saber ao certo como se dava a participação de mulheres em
seu interior. Como bem observa Facchini (2005), há grupos que se intitulam “mistos” mesmo
que seus integrantes sejam apenas homens (ou, dito de outra forma, grupos do movimento
LGBT atual não se dizem exclusivamente masculinos, ainda que eventualmente o sejam). O
“pessoal do exterior” – e o “diálogo fundamental” – a que Martinho se refere são, portanto,
grupos de lésbicas do exterior. Entre o trecho citado acima e o que trago a seguir, a interação
afirmação inequívoca dela perturbe esse desconfortável equilíbrio. Também vale antecipar o argumento de
Gail Mason (2002) de que o armário é um lugar instável, do qual não se pode estar totalmente fora nem
completamente dentro, e também as discussões que esta autora faz sobre o gerenciamento da visibilidade da
homossexualidade diante da percepção de possíveis riscos e potenciais recompensas.
70 Ao longo da década de 1980, a relação do GALF com oGGB parece ter sido bastante próxima: enquanto o
grupo baiano divulgava com frequência os boletins das paulistanas, estas publicaram em seus periódicos
muitas cartas dos coordenadores do histórico grupo gay. A compilação dos periódicos do GGB, hoje
disponível em livro (Mott, 2011), também é uma fonte interessante para analisar as relações entre tais
coletivos e outros, uma vez que eles divulgavam endereços dos demais grupos com quem mantinham
contato – incluindo um Grupo Gaúcho de Lésbicas Feministas (boletim GGB n. 13, 1986) e também o
paulistano Deusa Terra (n. 23, 1990/1991). A relação com as ativistas de São Paulo parece azedar em
meados dos 1990, em virtude das críticas desferidas ao livro de Luiz Mott sobra história das lésbicas no
Brasil (Mott, 1987): no boletim n. 28 do GGB (1993/1994), o antropólogo baiano espinafra as paulistanas,
acusando-as de “beligerantes amazonas” e de “separatistas” por afirmarem que apenas lésbicas poderiam
afirmar-se especialistas em lesbianidade.
88
entre nós duas foi marcada por dois momentos de diferenciação entre “aquela época” e o
agora. No primeiro, ao comentar “as brigas próprias delas [as mulheres no movimento de
lésbicas] lá”, a ativista paulista menciona brevemente as chamadas “sex wars” e as disputas
entre
Em primeiro lugar, destaco que ao comentar que a realidade do GALF era “a realidade
delas lá”, Miriam Martinho permite refletir sobre como a ausência de contato mais próximo
com outras ativistas lésbicas feministas no Brasil, em especial nos anos 1980, resultou no
acúmulo de conhecimento baseado especialmente em referências euroestadunidenses (e
majoritariamente brancas). Em segundo, a menção ao “déjà vu” me faz pensar que, pelo visto,
não estou tão sozinha ao situar na passagem do tempo algumas interrogações: a interlocutora
virtual de Miriam questiona-a sobre a permanência de certos debates – ou, talvez
inversamente, surpreenda-se não tanto com sua permanência e sim com o fato de a discussão
já ter sido posta, décadas atrás; minha pesquisa se volta para ver como se davam as relações
de compartilhamento de informações entre lésbicas no período anterior à chegada e
disseminação do acesso à Internet no Brasil (cuja emergência marcou o contexto no qual
cresci e iniciei a construção de minha própria identidade enquanto lésbica); ao passo que
Martinho, por sua vez, observa a repetição do já vivido e presta atenção a algumas diferenças:
“o pessoal [hoje] se xinga mais, briga muito mais do que naquela época, que o pombo-correio
evitava tantos, né… tanta raiva”73. Sobre o conteúdo teórico-político destes debates, ela
conclui: “o feminismo vai de ondas mesmo, as ondas retornam”, admitindo não saber se “a
geração de vocês” (no caso, a minha) está “pegando essa onda direitinho como foi naquela
época, mas pelo menos é uma espécie de reciclagem”. Se, por um lado, a passagem do tempo
é enunciada através do marcador geracional que nos diferencia (a geração dela x a minha
geração, que talvez inclua a “menina do Facebook”), há também uma presunção de
participação em algo comum: na fala dela, eu faço parte de um “vocês” (lésbicas? E/ou
feministas?) que ainda surfa (eventualmente tomando alguns caldos) nas ondas de um mar
alimentado por diferentes vertentes do feminismo, onde ela mesma mergulha há anos. Mais
do que esse “vocês”, a própria menção – sem maiores explicações – a “sex wars”, “butches”,
“femmes”, “libfems” e “radfems” faz pensar que Miriam possivelmente pressupunha que eu
no mínimo conheceria os termos desses debates.
Essas discussões, como de maneira geral o próprio tema do exercício da sexualidade,
estiveram mais presentes no mais explícito ChanaComChana do que no moderado Um Outro
Olhar, objeto da presente análise. As memórias de Miriam em relação ao Chana na entrevista
foram mais detalhadas e trouxeram referências mais vivas, o que ela atribui ao fato de estar
relendo este primeiro periódico do GALF como parte de seu projeto de escrever um livro 74.
Vale lembrar que o segundo boletim herda muitas de suas características de seu predecessor.
Uma delas é a seção de “Materiais Recebidos”, em que as ativistas do GALF divulgavam
artigos e livros disponíveis para consulta e xerox. É a partir deste pioneiro periódico (e de um
texto mais recente de Martinho, datado de 2012) que Núbia Campos (2016) traz a informação
de que o grupo estaria começando a construir, já em 1983, a primeira biblioteca do Brasil
especializada em assuntos lésbicos. De fato, diversas edições do Chana informam o
recebimento, por exemplo, dos informativos do International Lesbian Information Service
(ILIS), dentre outros. Já nesta época, portanto, começam a surgir e estreitar-se os laços das
ativistas do GALF com outros coletivos lésbicos ao redor do globo, participando da formação
de redes internacionais de compartilhamento de informações. Aqui, entra a segunda
comparação de Miriam entre a década de 2010 e os anos 1980, quando ela contrapõe a
instabilidade da conexão que permitiu nossa conversa por Skype à forma com que era
possível então tecer contatos a distância, e em seguida passa a me contar maiores detalhes
sobre a emergência de articulações de redes entre lésbicas em nível mundial:
[…] naquela época era tudo por correio, né? Às vezes funcionava melhor do que o
vídeo [da nossa conversa]! (Risos) Mas, é… a gente aqui no Brasil era o único grupo
lésbico. Houve outros grupos lésbicos que se formaram nos anos 80 mas eles não
perduraram, né, então o GALF ficou sendo o único grupo que perdurou durante toda
a década de 80 e se tornou referência. Começaram a surgir outros grupos também na
América Latina, no Chile, no Peru. No Peru […] tinha um outro [grupo chamado]
74 Cf. Pollak (1992), que destaca como a memória, ao ser enunciada, é influenciada por questões e
preocupações do presente.
90
GALF75, né […] que eu acho que até existe ainda. No México, na Costa Rica… ou
seja, começaram a pipocar grupos lésbicos, todos feministas também, alguns nem
tanto, mas todos com uma certa perspectiva feminista, e a gente começou a se
contatar. Aí eu não sei te dizer exatamente como é que a gente se conheceu, acho
que pelas publicações, acho que pelos contatos mesmo, enfim, do movimento. Na
Europa também tinha, começou essa ideia de grupos do movimento lésbico, como o
ILIS, o serviço de informação lésbica internacional, que era um grupo que foi uma
dissidência da ILGA, que na época era só IGA, exatamente pela mesma razão 76, as
lésbicas se achavam secundarizadas e queriam uma coisa específica e formaram esse
grupo. Esse grupo também ajudou muito a unir. Elas fizeram uma conferência em
Genebra em 1986, se não me engano, e que reuniu lésbicas da América Latina toda,
da Europa, da Ásia, da África, da Europa… e foi uma grande conferência.
uma determinada rede deve ser feita a partir da ancoragem em um ego, cujos vínculos serão
rastreados. Tal procedimento se faz necessário para diferenciar as redes de relações de cada
participante de uma mesma rede social – afinal, por mais próximas que sejam as pessoas
numa destas redes e por mais alto que seja seu número de conhecidos em comum, pessoas
diferentes mantêm entre si vínculos de intensidades diferentes, apenas para citar um fator que
dificultaria a comparação entre estudos com ancoragens em diferentes egos, ainda que
debruçando-se sobre as mesmas redes. Não é minha intenção neste trabalho traçar as redes do
GALF e da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar a partir dos critérios estabelecidos
por Mitchell77, mas se o fizesse, poderia partir de outro ponto sustentado por este autor – o de
que os nós da rede podem ser pessoas ou instituições – para ancorar a análise nestes dois
coletivos, tomando seus boletins como documentos a partir dos quais alguns vínculos da rede
podem ser localizados e descritos.
A seção “Materiais Recebidos” do boletim Um Outro Olhar (e de seu antecessor
ChanaComChana) mereceria um estudo à parte, cuja extensão não sou capaz de cobrir dentro
do tempo disponível para a construção desta pesquisa. Um dos motivos para isso é a
quantidade de publicações listadas sob esta rubrica. Como já mencionado, uma das atividades
centrais do GALF e mantida pela Rede foi a construção de uma biblioteca tendo “como
objetivo incentivar a leitura e/ou a pesquisa sobre lesbianismo, feminismo e
homossexualidade” (Um Outro Olhar, n. 5, 1988, p. 16). Na última edição do boletim (Um
Outro Olhar, n. 21, 1994, p. 41), consta que este acervo já contava com “2.600 itens entre
publicações, artigos de revistas e jornais e livros” – dos quais cerca de 640 78 são mencionados
nas páginas da seção “Materiais Recebidos”. Além da profusão numérica, impressiona a
77 Ao partir de diferentes estudos de redes de relações sociais, Mitchell recomenda a consideração de diversas
variáveis que podem enriquecer a análise deste tema, como a densidade das relações no interior de uma rede,
o alcance possível entre seus integrantes e a necessidade de “ancorar” o estudo a partir de um ponto da rede.
Por outro lado, a ênfase matemática do modelo, sua preocupação com as possibilidades de análise
quantitativa acerca das possibilidades de influência sobre o comportamento social dos integrantes de uma
rede e, em especial, a busca por delinear procedimentos que permitam a reprodução e, assim, a
verificabilidade dos resultados obtidos fazem com que seu “rigor admirável”, como coloca Hannerz (1983,
p. 181, tradução minha), seja “acompanhado de limitações práticas”, de maneira que “atingir este potencial
de exatidão é extremamente difícil e exige o investimento de muito tempo, a não ser em unidades de redes
bastante pequenas”. Diante dos propósitos desta pesquisa, que, em vez de detalhar e quantificar as redes de
circulação dos boletins Um Outro Olhar, busca discutir os motivos pelos quais suas leitoras buscavam
constituir relações entre si e como os periódicos permitiam tais associações, tomo o trabalho de Mitchell
como inspiração por considerar, como o autor mesmo coloca, que a consideração de variáveis como as
citadas evitam que a rede, em última instância, torne-se mais uma metáfora do que de fato um tema de
análise.
78 O número, que também inclui vídeos, catálogos de editoras e arquivos públicos, boletins parlamentares,
calendários de grupos militantes e outras formas de divulgação destes, é certamente subestimado: numa
contagem rápida das entradas nas seções “Materiais Recebidos” e na mais rara “Dicas de Leitura”, não
contabilizei individualmente cada um dos periódicos recebidos, por exemplo – não raro, uma mesma edição
de Um Outro Olhar noticiava o recebimento de mais de um número de cada título.
92
79 As datas entre parênteses são as do boletim Deusa Terra. Cabe notar que, como acontece em Um Outro
Olhar, este periódico também tem seu período de circulação indicado por estações do ano.
93
um arquivo lésbico84. De maneira semelhante, acredito que uma análise que combinasse os
títulos (e tópicos) presentes na seção “Materiais Recebidos” de Um Outro Olhar, bem como
os temas de outros textos presentes ao longo das páginas do boletim, poderia trazer reflexões
interessantes sobre o que emerge como sendo considerado de interesse e relevo para mulheres
lésbicas e feministas. Por ora, limito-me a reforçar o que já foi colocado no capítulo anterior
(e que já foi discutido extensamente por Lessa, 2007) acerca dos conteúdos deste e de outros
periódicos do GALF e da Rede: dada a aproximação destes grupos a parte dos ideários do
lesbianismo feminista e do feminismo radical, questões relativas à “violência contra as
mulheres” ocupavam um espaço bastante importante no boletim, assim como as próprias
discussões sobre homossexualidade feminina. Mais à frente neste subcapítulo, trago um
exemplo deste tipo de conteúdo. Mais do que os próprios tópicos discutidos no boletim (e
seus pormenores), me interessa discutir aqui como sua circulação oportunizava a constituição
de redes (assim como essa produção e troca de materiais constituía, também, a própria forma
de atuar destas redes, como comento a seguir). Como anunciado páginas atrás, um autor
interessante para pensar esta questão é Alfred Gell.
Ao delinear uma teoria antropológica para o estudo da arte, Gell (1998; 2009) confere
especial atenção à atuação dos objetos (em sua teoria, de arte), considerando que estes são
produzidos e circulam em contextos relacionais. Para a discussão tecida aqui, interessa
“explorar um domínio em que ‘objetos’ se fundem a ‘pessoas’ em virtude da existência de
relações sociais entre pessoas e coisas, e pessoas e pessoas através de coisas” (Gell, 1998, p.
12, tradução minha). “Coisas” ou “objetos”, na proposição do autor, podem substituir pessoas
e agir como elas: “mais precisamente”, diz ele (2009, p. 253), “os objetos de arte equivalem a
pessoas, […], a agentes sociais”. Através de um tipo de inferência chamada “abdução”, os
objetos são percebidos pelas pessoas como sendo dotados de agência, conceito que Gell
(1998, p. 16) define da seguinte forma:
Agência é atribuível àquelas pessoas (e coisas […]) que são vistas como iniciadoras
de sequências causais de um tipo particular, ou seja, eventos causados por atos da
mente ou vontade ou intenção, em vez da mera concatenação de eventos físicos. Um
agente é alguém que “causa o acontecimento de eventos” em sua proximidade.
Assim, objetos derivam sua agência de outros agentes sociais (humanos, no caso) 85 e
são percebidos como causando eventos e gerando efeitos em outros agentes. Além disso, cabe
militantes, GGB e Atobá, que também remeteram seus próprios protestos) e, assim, dá um
exemplo às suas leitoras para fazerem o mesmo; uma notícia publicada sob o cabeçalho
“Histórias de Heterror86” traz a história de uma mulher injustamente acusada de assassinar sua
companheira (acusação esta motivada, dizem elas, por discriminação à relação de ambas) e a
sugestão de que as associadas da Rede escrevam mensagens de apoio para ajudá-la a enfrentar
não só a morte da esposa como também a crueldade da atribuição preconceituosa da culpa
pelo crime; também sob a rubrica “Histórias de Heterror”, Um Outro Olhar noticia (a partir de
cartas enviadas por outras ativistas) a forte censura que o governo da Nicarágua impôs ao
Encontro de Lésbicas Feministas da América Latina e do Caribe, que lá se realizaria: após
esta informação, a página seguinte do boletim informa alguns endereços governamentais para
onde devem ser enviadas moções de repúdio, e compartilha também os endereços das
organizações responsáveis pela organização do evento para possíveis mensagens de apoio.
Um outro exemplo parece representativo não apenas das interações no interior dessas
redes entre ativistas, mas também para abordar alguns tipos de conteúdo presente nos boletins
e a participação da própria rede de associadas ao grupo. Na edição de número 11 do boletim –
o primeiro após a formalização em cartório da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar
–, é publicada uma carta assinada por 22 ativistas lésbicas de Montréal, no Canadá, que
solicita a publicação de um artigo comentando um recente caso de violência contra mulheres
naquela cidade. O artigo, traduzido do francês por Malu (uma professora universitária
moradora de São Gonçalo, Rio de Janeiro), informa que um homem chamado Marc Lépine,
motivado por seu “ódio às feministas”, entrou em uma escola e matou 14 mulheres a tiros.
Mais do que publicizar tal assassinato misógino, as ativistas canadenses queriam denunciar a
forma com que a mídia local estava abordando o caso, tratando Lépine como “um louco”, e
propondo que, em vez disso, se pensasse em como, numa sociedade organizada a partir de
hierarquias e desigualdades entre homens e mulheres, os primeiros se sentiriam autorizados a
dispor da vida das últimas e inclusive a atos de violência, como o denunciado, letais.
Pensando desta forma, o ataque às mulheres em Montréal não foi realizado por um louco, e
sim por um homem comum87. Além de atender ao pedido de publicação do artigo (e da
própria mensagem que pedia sua reprodução), a Rede endossa o posicionamento das
cortar vínculos. Como coloca Gell (1998), postular a agência dos objetos (e sua derivação da
agência humana) não quer dizer que a capacidade de desencadear eventos dos objetos seja
necessariamente controlável ou que replique satisfatoriamente as intenções humanas; se
agentes sociais são aqueles que, em contextos relacionais, causam sequências de
acontecimentos, tampouco isso quer dizer que tais sequências sejam previsíveis. Embora o
peso das palavras escritas receba diferente ênfase dependendo de quem conta a história que
narro a seguir, pode-se dizer que uma edição de Um Outro Olhar – inscrita numa malha de
relações entre ativistas, elas próprias tendo suas relações de diferentes conteúdos afetivos no
interior dos movimentos feministas e de lésbicas – foi um dos acionadores (embora,
evidentemente, não o único fator relevante para sua ocorrência, tampouco o mais importante)
de uma sequência trágica de rupturas de vínculos.
Já sinalizei em alguns pontos deste trabalho o fato de que este boletim – como outros
do mesmo grupo – prestam-se como fontes para o estudo da história não só dos grupos que os
produziam, mas também de sua versão da história do movimento lésbico no Brasil. No artigo
“1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil”, esta intenção é explícita, e a
narrativa dessa história se dá a partir do ponto de vista de sua autora, Miriam Martinho:
Falar dos últimos dez anos de ativismo lésbico, em apenas um artigo de boletim, não
é tarefa fácil. Mesmo tendo optado por enfocar apenas os pontos mais marcantes da
trajetória percorrida, ou seja, aqueles que determinaram mudanças significativas no
rumo dos acontecimentos, sei que não darei conta de transcrever toda a imensa gama
de experiências, sentimentos e aprendizados ocorridos.
Apesar disso, decidi assumir o desafio do empreendimento com o intuito não só de
deixar um registro da história lésbica recente como também para que este possa
servir como possível referencial para futuros grupos lésbicos. Esclareço, ainda, que
o histórico a seguir refere-se fundamentalmente aos grupos de que participei, a
saber, o GRUPO LÉSBICO-FEMINISTA (LF) e, em particular, o GRUPO AÇÃO
LÉSBICA-FEMINISTA (GALF), embora tenham existido outros grupos, de
estrutura mais informal, que citarei no final deste artigo (Um Outro Olhar, n. 9,
1989, p. 8).
Paulo com quem o GALF teve conflitos, levando à conclusão de que o ideal seria construir
um movimento lésbico independente tanto do feminismo quanto dos grupos homossexuais,
mantendo com ambos, contudo, relações de proximidade estratégica. Acima de tudo, como a
própria autora pontua em seus primeiros parágrafos, que reproduzi acima, o artigo é um
resgate da história do GALF, a manutenção da memória deste grupo (e de seu ideário) em
particular, numa narrativa entremeada com a própria trajetória de Miriam no movimento. Ela
narra, por exemplo, que seu primeiro contato com o Somos foi na companhia de sua
namorada da época, ou que, ainda que os protestos no Ferro's Bar tenham sido de grande
proeminência pública para o grupo, a ação que ela havia gostado mais de realizar foi uma
performance teatral em que, portando máscaras, ela e outras ativistas denunciavam a
dificuldade de assumirem suas “questões específicas” enquanto lésbicas no movimento
feminista – uma crítica endereçada diretamente às ativistas do SOS-Mulher. Além disso, o
balanço de dez anos de atuação marca o encerramento das atividades do grupo enquanto
GALF e anuncia os planos de formalização da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar,
que seria registrada em cartório em abril do ano seguinte. A maneira como o texto fora
construído e publicado – e especialmente como foi recebido, no interior de outras teias
relacionais próximas –, contudo, levaria ao acionamento de outras redes e ocasionaria o
afastamento mais drástico da recém-criada Rede em relação a alguns grupos feministas da
época, e nem tanto pelas avaliações que Martinho nele havia feito de que envolver-se com
este movimento (bem como com o movimento homossexual) muitas vezes era um gasto
desnecessário de energia…
Em entrevista, quando perguntei a Miriam Martinho acerca deste distanciamento entre
seu grupo e a militância feminista, ela me respondeu que isso havia ocorrido depois da morte
de Rosely Roth. Intrigada com esta informação – pois, a partir de uma primeira leitura dos
boletins, fonte de boa parte da história do GALF e da Rede, jamais fiz tal associação –,
questionei se haveria alguma relação entre os dois eventos, ao que ela relutantemente me
respondeu que sim, passando a me relatar outras questões sobre o funcionamento da Rede,
cuja fundação se dera na mesma época. As conexões que faço aqui, portanto, baseiam-se nesta
entrevista e também em um relato concedido a Norma Mogrovejo (2006) por Marisa
Fernandes, uma das primeiras integrantes do grupo de mulheres do Somos (por sinal, a
“namorada da época” que Miriam não nomeia no texto resumido acima) e que nos anos 1990
seria uma das fundadoras do Coletivo de Feministas Lésbicas de São Paulo. Ainda que de
maneiras diferentes, ambas mencionam a frágil saúde mental de Rosely no período e que esta
101
Quando ela comenta que “não havia a quem citar, com exceção da própria Rosely”,
acredito que ela refira-se ao fato de esta ter sido a figura mais pública do GALF, enquanto
fizera parte mais ativamente do grupo. Numa época em que mesmo as ativistas deste grupo
receavam expor-se enquanto lésbicas, ela foi das poucas a se fazer efetivamente visível. Ao
comentar comigo a invasão do Ferro's Bar, Miriam riu-se do fato de que, enquanto Rosely
subia nas mesas e discursava em frente às lentes dos fotógrafos, outras frequentadoras do
espaço escondiam seus rostos, por medo de aparecerem no jornal (de fato, o incidente foi
noticiado na Folha de São Paulo, apenas para citar uma reportagem a que tive acesso 90). Mais
do que isso, um marco para a visibilidade do GALF (e expansão do alcance de suas
mensagens) foi a participação de Rosely Roth no programa de Hebe Camargo, em 1985, o que
ocasionou respostas desgostosas de oficiais da Censura da época e uma enxurrada de cartas na
caixa postal do grupo, já que a ativista aproveitou a oportunidade para divulgar seu número
em cadeia nacional. Em entrevista a Mogrovejo (2000, p. 304), Marisa Fernandes comenta o
89 Em produção mais recente celebrando a memória de Rosely Roth, Miriam Martinho (2012) caracteriza tais
surtos como manifestações de sintomas esquizofrênicos.
90 Brickman (1983).
102
impacto desta ação: “milhões de lésbicas estavam vendo e recebemos milhares de cartas que
diziam ‘não vou mais me matar, porque sei que não estou sozinha’, cartas emocionadíssimas.
Todas foram respondidas”. O alcance da mensagem foi expandido por uma matéria na Folha
de São Paulo de 01/06/1985 (Pinto, 1985), que aprofundou a controvérsia entre os
participantes do programa (além de Rosely, lá estavam o psiquiatra Ronaldo Pamplona e a
funcionária pública Maria Amélia Rocha de Souza, que lamentava o fato de sua filha ser
lésbica91) e cedeu novo espaço para que Rosely não apenas divulgasse novamente o endereço
da caixa postal “62.618-SP” como também comentasse seu interesse de, enquanto estudante
de pós-graduação em Antropologia, “defender uma tese de mestrado sobre lesbianismo”.
Localizei esta reportagem em um arquivo virtual público de Miriam Martinho, que – ao
rememorar, como já mencionado, a invasão ao Ferro's Bar, segue destacando a atuação da
ativista judia, sua ex-namorada (segundo o relato de Marisa Fernandes), em seus escritos.
De fato, no ChanaComChana Rosely se fez bastante presente. Em Um Outro Olhar,
contudo, a ativista e pesquisadora (ou talvez já não se dedicasse a isso, já que um perfil seu na
Wikipédia92 – escrito por quem? – indica que ela esteve na PUC-SP apenas até 1986) publicou
apenas um artigo, resenhando o filme Vera e refletindo sobre gênero e sexualidade. O relato
de Marisa Fernandes a Norma Mogrovejo indica que a carta de repúdio questionando o
histórico de Miriam fora, na realidade, um desdobramento de outras questões já em curso,
bem como pontua que Rosely não era a única que poderia – deveria – ser citada naquele
balanço:
Diante disso, admito que meu próprio argumento de que fora o boletim que
91 A maior visibilidade, contudo, também ocasionaria por parte de algumas mulheres um cuidado maior com a
discrição em relação aos seus interesses homoeróticos. Em sua tese, Lessa (2007) ressalta uma passagem do
ChanaComChana em que as ativistas contam que uma menina relatou que não poderia comprar o boletim
porque sua mãe, depois de assistir ao programa da Hebe, estava se inspirando em Maria Amélia e
vasculhando os pertences da filha em busca de comprovações de sua homossexualidade.
92 Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Rosely_Roth> Acesso em 15 jan. 2016.
103
desencadeara a sequência de eventos que descrevo perde força. De fato, uma das razões para
este argumento fora o fato de que a própria memória de Miriam Martinho ancora-se neste
histórico (talvez como forma, consciente ou não, de minimizar seu papel nos eventos que se
seguiriam), conferindo, contudo, maior centralidade à “manipulação” da fragilidade de Rosely
por parte das feministas cariocas. A memória, assim como, eu poderia dizer, a escrita de uma
análise acadêmica, seleciona alguns fatos para dar sentido aos demais93 – e, no caso,
provavelmente ambas minimizam outro fator central: os “problemas psiquiátricos” que
Rosely enfrentava.
A capa do número 12 do boletim Um Outro Olhar, publicado na primavera de 1990,
traz uma grande foto de Rosely Roth, encimada por suas datas de nascimento e óbito. Em 28
de agosto daquele ano, a mulher cuja aparição televisiva havia feito outras rejeitarem a ideia
(a temerosa percepção de uma possível necessidade) de se matarem cometeu suicídio. O
interior da edição é, em grande parte, uma homenagem à sua memória – juntamente ao
editorial de Miriam Martinho, que lamenta sua morte e tece críticas ao cenário conflitivo da
militância feminista, há um histórico das publicações de Rosely, tanto nos boletins do GALF
quanto de seus trabalhos acadêmicos (não apenas seus ensaios sobre homossexualidade
feminina, mas mesmo um texto sobre Lévi-Strauss e Pierre Clastres). Vera Lúcia,
companheira de Rosely à época, publica dois poemas sobre sua ausência e rememora suas
últimas atividades antes de seu ato final – última refeição, tema de suas últimas reflexões,
suas últimas leituras (incluindo o boletim ChanaComChana) e também correspondências
(listando uma carta para Miriam Martinho). São correspondências, também, que compõem
boa parte do conteúdo desta edição do periódico: de amigas lamentando sua partida,
rememorando sua inteligência e ousadia (da qual o próprio ato de tirar a própria vida foi
tomado como manifestação extrema), ou simplesmente reagindo à triste notícia. Tal conteúdo
ocasionaria publicações semelhantes: nas edições seguintes, novas cartas viriam se somar à
lista de condolências e ao interesse por saber mais sobre essa mulher que, agora as leitoras
ficavam sabendo, havia mobilizado sua própria imagem para conferir um rosto à luta pelos
direitos das lésbicas. Após sua morte, Rosely se fez mais presente em Um Outro Olhar do que
jamais havia sido: como na edição 15 do periódico, de 1991, que traz uma reprodução da
matéria que havia sido publicado no ChanaComChana após a invasão do Ferro’s Bar, outras
seguiriam buscando gravar seu nome na história do ativismo lésbico. O cabeçalho que intitula
a página destinada a esse conteúdo na edição 18 (1992/1993, p. 15) deixa explícita a intenção:
“a memória não morrerá”.
Figura 7: Capa do boletim Um Outro Olhar nº 12 (1990) noticiando o falecimento de Rosely Roth
105
Vale notar que, embora tais acontecimentos tenham levado a Rede a não mais
participar de eventos organizados por organizações feministas, o grupo, como já indicado nas
páginas anteriores, não deixou de manter contato com estes via recebimento (e possivelmente
envio) de materiais, bem como de divulgá-los em seu boletim; e também é importante
ressaltar que parcerias com algumas das mulheres mencionadas na tal moção de repúdio
seriam retomadas posteriormente. Por exemplo, as edições finais do periódico da Rede
documentam uma reaproximação desta com o Coletivo de Feministas Lésbicas, do qual uma
das fundadoras foi Marisa Fernandes, como parte da organização do V Encontro de Lésbicas
Feministas da América Latina e do Caribe; contudo, elas também registram a ruptura da
comissão organizadora deste evento devido a atritos entre os coletivos que a formavam – e, de
quebra, algumas críticas de Miriam Martinho não apenas à atuação de algumas das ativistas
que fizeram parte dessa rusga, mas também ao que ela percebia como uma tendência dos
grupos ativistas para o conflito, de maneira geral. Se faço tais apontamentos (tanto acerca
dessas instabilidades no relacionamento entre militantes como da própria história da morte de
Rosely Roth), não é por uma intenção de resgatar histórias de disputas políticas internas ao
movimento ou de reavivar memórias de distanciamentos que remetem tanto à esfera destas
disputas como a outras questões de caráter mais íntimo, e sim para contrabalançar a
argumentação, feita até aqui, de que a circulação de boletins criava redes: tais ponderações
sustentam minha opinião de que estes materiais também são capazes de desencadear rupturas
de vínculos, ou, melhor dizendo, de alterar os conteúdos das redes, como na formulação de
Mitchell (1969). Ao trazer o depoimento de Marisa Fernandes e salientar que havia fatores já
em curso que contribuiriam para a produção do distanciamento entre o GALF e as
organizações feministas, gostaria também de pontuar que Miriam Martinho ressalta como a
relação com este movimento era conflitiva já desde o início dos anos 1980. De fato, seu
histórico dos dez anos do GALF, escrito em 1989, rememora tensões já à época antigas entre
seu grupo e outros coletivos feministas de São Paulo – o que quer dizer que os conteúdos
destas redes de relações envolviam, além de possíveis colaborações conjuntas, conflitos e
disputas de significados acerca de suas ações políticas. Como Epstein (1969) busca mostrar
em sua discussão sobre circulação de fofocas e discussão de valores normativos no interior de
uma rede social, mesmo os “burburinhos” podem ser tomados como forma de influenciar as
ações de outros sujeitos nas mesmas redes. Acredito que as críticas (ainda que sem nomear
aquelas a quem estas se endereçavam) presentes em diversos textos de avaliação política dos
ativismos feminista e lésbico nas páginas de Um Outro Olhar podem ser vistas sob essa
mesma luz, tanto como uma forma de denunciar posturas alheias vistas como
106
contraproducentes quanto como uma busca de fortalecer vínculos entre outras que pudessem
concordar com tais críticas. A ruptura de vínculos a que faço menção nesse caso tem a ver
com a recusa do GALF de seguir colaborando e participando de eventos do movimento
feminista. Dito em outras palavras, a partir desse episódio, o aspecto conflitivo do conteúdo
dessas redes ganha força.
Tais considerações ajudam a equilibrar, também, a ênfase colocada sobre os objetos
até aqui, a partir da teorização de Gell (1998). Dizer que objetos têm agência, que são capazes
de dar início a sequências de acontecimentos, não significa dizer que eles sejam os únicos
fatores aos quais atribuir a função de causalidade em seus desencadeamentos. Ao mencionar o
pano de fundo sobre o qual se desenrolou a história que narro aqui, gostaria também de
salientar que nem o artigo de Miriam nem a moção de repúdio das feministas cariocas (à qual
também se deve dar o devido destaque enquanto dotada de agência nesse cenário) criaram os
conflitos que fizeram parte da história deste afastamento: ambos são apenas mais dois agentes
contribuindo para uma cadeia de acontecimentos cujo desenvolvimento já estava em curso – o
que eles desencadeiam, um em resposta ao outro, é mais um foco de disputa no interior do
movimento, no caso, acerca da construção de sua memória, cujo ápice inesperado e trágico
termina por cimentar o afastamento entre suas envolvidas. Por outro lado, o trabalho de
enquadramento da memória (Pollak, 199294) realizado por Miriam ao escrever o tal histórico e
também o fato de este ter sido contestado, a partir da exigência de um maior detalhamento (e
reconhecimento) acerca de quais ativistas haviam participado da constituição do GALF,
indicam a importância conferida por essas mulheres a este tipo de texto e sua capacidade de
materializar trajetórias de militância no papel. A intensidade das respostas emocionais ao
episódio e seus desdobramentos igualmente aponta para a profundidade dos afetos investidos
nestas redes – cujos conteúdos envolviam não apenas a atuação política do movimento, mas
também, em níveis mais pessoais entre os diferentes nós e seus vínculos que as constituíam,
amizades, amores, desejos de valorização e reconhecimento público.
Tudo isto posto, tais ponderações buscam complementar e complexificar a ideia de
que os boletins poderiam perturbar redes e relações já existentes. Na realidade, estas
94 Em Memória e identidade social, este autor discute os complexos processos através dos quais memórias –
individuais e coletivas – são construídas através de esforços tanto de historiadores quanto dos próprios atores
que participam de momentos chave para a constituição de identidades sociais (novamente, tanto no nível
coletivo quanto no da identidade individual). Pollak destaca também os processos conscientes e
inconscientes através dos quais a memória se acomoda e é retomada a partir do momento histórico a partir
do qual é evocada, levando em conta preocupações do momento presente. Estes tópicos devem ser
retomados num próximo esforço de pesquisa para pensar a atuação de Miriam Martinho enquanto uma das
“historiadoras orgânicas” do movimento lésbico brasileiro (particularmente na documentação dos grupos de
que fez parte e das redes em que estes se inseriram), bem como para discutir as disputas acerca da
construção desta memória – das quais o episódio que narro aqui faz parte.
107
2.2 Caixas postais como saídas para o armário: os papéis da Rede no combate à solidão
das leitoras
vezes serem enrustidas. Desta forma, este subcapítulo busca analisar como o boletim Um
Outro Olhar buscou viabilizar a construção e articulação de redes entre as associadas do
GALF e da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar, como alternativa para o encontro
entre mulheres que compartilhavam a identidade lésbica e as reflexões sobre as vivências que
a caracterizavam.
Ao demarcar este horizonte temporal – sendo “no período” citado acima as duas
últimas décadas do século XX, em especial a virada dos 1980 para os 1990, foco de minha
pesquisa –, de maneira alguma pretendo sugerir que o que minhas interlocutoras (tanto as que
me concederam entrevistas como aquelas cuja presença emergiu das leituras de seus textos
nos periódicos analisados) chamam de “repressão” estaria de todo ausente no momento atual.
Pelo contrário: ainda que, em entrevistas, muitas delas tenham reconhecido avanços tanto em
termos de direitos quanto à própria possibilidade de manifestar afeto publicamente entre
pessoas do mesmo sexo (avanços estes muitas vezes indicados em referência a mim e à
“minha geração”), o fato de que boa parte de meu campo tenha sido realizado em meio a um
conturbado cenário político no Brasil95, com parlamentares justificando seus votos a favor do
impeachment da presidenta Dilma Roussef a partir da defesa de instituições como a “família”
ou mesmo com referências explícitas a “Deus” a partir de diferentes vertentes da fé cristã, fez
com que estas mulheres muitas vezes me manifestassem preocupações em relação a possíveis
retrocessos nesse sentido. Apenas para trazer mais um exemplo do campo, novamente
acionando meus marcadores, minha aparência (uma vez que a combinação de cabelos curtos e
vestuário advindo das seções ditas “masculinas” das lojas é frequentemente associada, quando
em mulheres, à homossexualidade) foi pelo menos uma vez ressaltada como razão para temer
agressões físicas; além disso, em alguns momentos a própria realização desta pesquisa – e o
fato de falar explicitamente sobre lesbianidade – foi mencionada como um empreendimento
corajoso. De qualquer forma, coloca Eribon (2001), mesmo em contextos em que a
homossexualidade (e as pessoas que se identificam a partir da elaboração desta categoria) é
mais visível e as reprimendas sociais ao seu exercício e à sua afirmação se tornam mais
brandas, de qualquer maneira os homossexuais, diferentemente dos heterossexuais,
necessitam eventualmente enunciar-se enquanto tal – ou, para usar a expressão de Sedgwick
(2007), abrir de vez as portas do “segredo aberto” e “sair do armário”. Feita esta ressalva,
posso finalmente iniciar as discussões centrais deste subcapítulo: a relação entre enrustimento
95 Realizei a primeira entrevista no dia 1º de abril de 2016. Pouco mais de duas semanas depois, aconteceu a
votação pelo impeachment de Dilma Roussef na Câmara dos Deputados; em 31 de agosto, o Senado
ratificou a cassação de seu mandato. A última entrevista realizada para esta pesquisa havia ocorrido quatro
dias antes desta data.
109
algumas na cidade de São Paulo, informando ainda que endereços de serviços semelhantes em
outras cidades poderiam ser solicitados por correspondência a elas. Além dessas informações,
Miriam faz as seguintes ponderações:
Sonia, a única possível base legal para detenção, no caso citado, é a do “ultraje
público ao pudor”, artigo 232 do atual código penal, que determina reclusão de 3
meses a um ano, ou multa, “pela prática de ato obsceno em lugar público, ou aberto,
ou exposto ao público”. Evidentemente, a definição do que é, ou não, obsceno fica
por conta dos “agentes da lei” e pode variar desde o trottoir e as práticas
exibicionistas até a um simples beijo na boca.
É importante salientar, no entanto, que demonstrações afetivas entre mulheres (como
beijos e abraços), em lugares públicos, ainda são comuns e dificilmente tornam-se
passíveis de punição legal. […]
De qualquer maneira, não há nenhuma lei, no Brasil, que criminalize diretamente o
lesbianismo, ou a homossexualidade, e pelo que sabemos, a não ser em casos
envolvendo menores, não existe base legal para justificar atos repressivos. Pode ir
aos hotéis!!! Agora, é claro, neste nosso país de desmandos e corrupção, as leis não
são levadas muito a sério e a violência contra as mulheres, em geral, é disseminada.
Em outras palavras, homens, fardados ou não, agridem mulheres independentemente
de qualquer base legal para tanto. Na verdade, suas ações têm respaldo é na
impunidade (Um Outro Olhar, n. 3, 1987, pp. 4-5).
Dito de outra forma, a ativista alerta tanto para o risco de ações discricionárias dos
policiais quanto para a possibilidade de que expressões de afeto entre mulheres não sejam
reconhecidas como parte de uma relação sexoafetiva e, portanto, que passem despercebidas
para a definição de “obscenidade”. Cabe mencionar novamente o argumento de Cláudia
Oliveira (2015), que comenta o menor investimento em legislar (e punir) relações
homoeróticas entre mulheres já no Brasil colônia, que resulta também no número menor de
registros documentais nos arquivos judiciais do país para o período, se comparados aos
processos por “sodomia” entre homens, dificultando a pesquisa histórica sobre o tema. No
caso acima, esta lógica parece se inverter: se por ausência de cerceamento e punição (ao
menos na esfera inquisitorial) as relações entre mulheres acabaram pouco documentadas e,
portanto, pouco visíveis no estudo de séculos passados na história brasileira, a argumentação
de Miriam faz pensar que por carência de visibilidade da lesbianidade tais relações sejam
possivelmente menos reprimidas. Por outro lado, ela salienta a compreensão de que mulheres
lésbicas, como outras mulheres, estão sujeitas a outras violências por conta das hierarquias de
gênero – lésbicas, ou não, correm o risco de agressão por homens, fardados ou não. Eribon
(2001, pp. 32-33, tradução minha) comenta que
saber negociar a cada instante a relação com o mundo que os rodeia: saber onde é
possível pegar a mão de seu companheiro, onde se pode deixar transparecer o afeto
por uma pessoa do mesmo sexo e onde vale mais a pena evitá-lo. Este saber prático,
tão interiorizado que raramente emerge à consciência, não necessita em absoluto
explicitar-se para entrar em ação e organizar as condutas adaptadas. Os erros de
avaliação podem, de fato, ter consequências muito dolorosas. A experiência da
agressão física ou a percepção de sua ameaça obsessiva estão tão presentes na vida
dos gays que as encontramos em quase todos os relatos autobiográficos e em
numerosas novelas cujos personagens são gays. Às vezes, nenhum gesto é
necessário: a aparência ou as roupas bastam para desatar o ódio. Tanto para os gays
mais aguerridos quanto para aqueles que o são menos ou não o são em absoluto,
para os que se “exibem” e para os que dão provas de “discrição”, a possibilidade de
agressão verbal ou física é onipresente e, em todo caso, frequentemente tem sido
determinante na maneira em que se constrói sua identidade pessoal, ao desenvolver
uma capacidade especial para perceber o perigo ou para aprender a controlar muito
estritamente seus gestos e palavras.
A citação anterior de Eribon é relevante para pensar, também, outro aspecto subjetivo
da percepção da possibilidade de agressão: este autor (2001) considera que a experiência do
insulto homofóbico (ou a mera expectativa de que este ocorra) é formativa na construção da
112
Figura 8: Seção "Deu no Jornal" (Um Outro Olhar, n. 7, 1989) destaca notícias de "violência contra a mulher"
113
identidade dos homossexuais, seja pelo temor de que sua sexualidade seja exposta (o que
poderia acarretar alterações nas relações com outras pessoas), seja mesmo porque sua
nomeação, através da agressão verbal, tem efeitos performativos, no sentido colocado por
Butler (2010). Eribon cita Sara Miles para exemplificar o efeito desse tipo de insulto para um
homossexual: “na primeira vez que alguém me chamou de ‘bicha’ e compreendi que era eu
[…], o mundo se revelou brutalmente com essa simples palavra que brota da frase como uma
explosão, algo de ruim que fiz, algo que não deveria ser, ‘bicha’” (Eribon, 2001, p. 29,
tradução minha). Em uma entrevista concedida para o boletim (abordada em maior detalhe no
capítulo seguinte), Nani Tobi conta – ou melhor, narra elaborando e organizando sentidos,
como diria Ernesto Meccia (2016) – uma experiência semelhante: “quando adolescente, a mãe
de uma colega chamou-me de sapatão. Isso foi suficiente para que eu desencadeasse todo um
processo de reflexão sobre minha preferência”. A junção dessas duas citações permite afirmar
que o insulto indica o que não se deve ser, mas também talvez permita entrever alguma
possibilidade de ser algo – e que este algo é, no mais das vezes, visto como condenável, “algo
de ruim”.
O processo (passado) de autorreflexão de Nani, na narrativa supracitada, é evocado a
partir de um momento (presente) em que sua construção identitária pessoal incluía uma
valorização de sua lesbianidade e de sua negritude. Este não era o caso, contudo, da maioria
dos depoimentos recebidos por carta pelas integrantes do GALF, a maioria deles contendo
desabafos e/ou pedidos de ajuda97. Maria Luiza, que elaborou na primeira edição do boletim
uma compilação deste tipo de missivas enviadas ao grupo, calculou que “90%” dos relatos
eram “pessimistas”, trazendo mensagens de “amargura, tristeza, solidão, desânimo,
desamparo, desespero, depressão, bem como sentimentos de rejeição e medo, vergonha e
culpa – muita culpa” (Um Outro Olhar, 1987, p. 23) 98. Duas cartas, dentre as quinze
selecionadas para publicação sem identificar suas remetentes (através da troca de nomes,
mantendo a cidade de origem), explicitam a busca por não sentir mais atração por mulheres:
Lilian, de Bebedouro/SP, pergunta-se se há cura para a homossexualidade: “Desde quando eu
97 Cabe mencionar o trabalho de Heather Murray (2014) sobre as cartas enviadas para o grupo estadunidense
Daughters of Bilitis, fundado em 1955 e considerado o pioneiro na defesa dos direitos das mulheres lésbicas.
Através destas cartas, mulheres que se viviam distantes dos grandes centros podiam minimizar suas
sensações de isolamento, e ativistas que declaravam mais publicamente seu orgulho encontravam um espaço
para lidar com sentimentos menos agradáveis em relação à própria sexualidade. Murray destaca a atuação de
Julie Lee, ativista de New Jersey que atuava no acolhimento e aconselhamento das mulheres que
procuravam o grupo – terapeutas como psiquiatras e psicólogos eram vistos com desconfiança por muitas
delas, que esperavam deles posturas e atitudes patologizantes da homossexualidade. Nas correspondências
enviadas para as Daughters, sentimentos de culpa, incompreensão e isolamento (em especial de mulheres
vivendo em pequenas comunidades distantes dos grandes centros urbanos) encontravam um lugar para sua
elaboração.
98 Este artigo, do qual retiro todos os trechos citados, ocupa as páginas 23 a 29 da primeira edição do boletim.
114
nasci, eu gosto de meninas, e isso eu acho que não é normal gostar do mesmo sexo. Eu
gostaria de saber se eu posso parar de ser lésbica? […] Eu nasci com isso? Isso tem cura? (…)
Tomara que tenha cura”. Lourdes, de São Paulo/SP, conta que também já fez terapia “pra tirar
este sentimento de dentro de mim, mas ainda não consegui” (grifos do original). Muitos dos
depoimentos presentes na compilação de Maria Luiza mencionam a perda de vínculos:
familiares, empregatícios, de amizade. O de Laura, de Porto Alegre, traz alguns deles: ela
conta que amigas suas que não eram “entendidas” se afastaram dela quando souberam que ela
estava com uma mulher, e que seus amigos homossexuais tinham “medo e vergonha de
dizerem que são entendidos”. Além destes vínculos perdidos, ela conta que ela e a
companheira foram demitidas por discriminação: “na semana retrasada, eu e minha
companheira fomos colocadas na rua de nosso serviço e tenho certeza de que foi por sermos
lésbicas. Não falaram abertamente, mas quando fomos receber nossos direitos, começaram
com certas piadinhas insuportáveis”. Léia, da mesma cidade, também comenta ter sofrido
“perda de emprego e de amigos” em função de um relacionamento com outra mulher, fora a
“pressão por parte de minha família”. Por fim, apesar de ela ter “certeza de minha escolha e
do meu sentimento”, ela “não conseguiu dar conta” e “acabou cedendo”, levando ao término
do namoro. Silvia (Tribobó/RJ) também deixou a mulher amada por conta da “pressão” de sua
família (que ela descreve como sendo “de origem humilde” e cheia dos “vizinhos vitalícios”
que caracterizariam “o universo das famílias da zona norte – Rio”):
Experimentei a dor que corroía a alma. Uso palavras fortes não por exagero, mas
para tentar dizer da dor que experimentei. Além da dor da perda de alguém tão caro,
sofri na pele todo estrago e danos que o preconceito é capaz. Eu era ainda uma
menina. Passei vergonha. Me fizeram sentir um ser inferior e miserável. Não tive
apoio. Só o tempo me ajudou. […] Nunca mais me permiti qualquer relacionamento
com pessoas do meu sexo. Por receio. Porque me tranquei tornando-me tímida,
inibida. Minha vida afetiva é um zero.
Fora com ela, sim! Tinha certeza! Ouvira distintamente a colega mais antiga, aquela
com cara de hiena, dizer à colega novata: “Não ande com ela, senão poderá ser
confundida”. […] Bem, ela não se definiria como assumida. Nunca declararia com
palavras o seu modo de ser, não era muito de falar, não gostava de abrir seu íntimo
às pessoas. Mas o declarava com suas ideias avançadas, seu comportamento
liberal, seu modo de vestir acentuadamente masculino. […] Lembrou-se do olhar da
moça no qual identificara solidariedade. Sim, tinha certeza! Ela certamente era uma
enrustidona. Nunca teria coragem de defender ninguém nesse sentido para não se
descobrir na frente dos outros (Um Outro Olhar, n. 8, 1989, pp 8-9, grifos meus).
Figura 9: Seção Vivências (Um Outro Olhar, n. 8, 1989): cinco perfis de mulheres enrustidas
117
Sedgwick (2007) e, a partir dela, Eribon (2001) ressaltam como a pessoa “no armário”
busca ocultar sua sexualidade, mesmo acreditando que as pessoas com quem se relaciona
99 BUTLER, Judith. Imitation and gender insubordination. In Diana Fuss (ed.) Inside/Out: Lesbian Theories,
Gay Theories, New York: Routledge, 1991.
118
(familiares, amigos, colegas de trabalho) de fato “não saibam”; por outro lado, ao fingir “não
saber”, estas detêm o poder sobre a situação, o “poder de desconhecer”, como conceitua
Sedgwick. Nas palavras desta autora (2001, p. 35), a saída do armário “pode trazer a
revelação de um desconhecimento poderoso como um ato de desconhecer, não como o vácuo
ou o vazio que ele finge ser, mas como um espaço epistemológico pesado, ocupado e
consequente”. A mesma autora (2001, p. 27) sublinha que, nos discursos militantes, “a
imagem do assumir-se confronta regularmente a imagem do armário, e sua posição pública
sem ambivalência pode ser contraposta como uma certeza epistemológica salvadora contra a
privacidade equívoca oferecida pelo armário”. Ecos destes discursos aparecem ainda no texto
de Naná Mendonça, quando sua personagem
passou a considerar como seria bom se a colega a procurasse, se não tivesse medo de
enfrentar a opinião alheia, se encarasse o lesbianismo como uma opção de vida
normal e não como um estigma maldito que tivesse que carregar escondido durante
toda a vida. Seriam duas contra a turma, ambas se apoiariam mutuamente. […] Não
tinha esperanças quanto a isso, a colega era mesmo enrustidona! E devia ter suas
razões para ser assim, quem sabe o mundo de repressões que havia sofrido na vida!
E ela poderia por acaso condená-la? Por que ela própria não tinha contestado a hiena
[…]? Certamente com medo de que a hiena gargalhasse. Tinha horror ao ridículo!
Além disso, a coisa se espalharia e ela poderia ser expulsa da faculdade: repressão,
agressão. Sim, as armas usadas contra as pessoas como ela eram a tríade já muito
conhecida: a agressão, o desprezo e o ridículo (Um Outro Olhar, n. 8, 1989, p. 9).
como efeitos do enrustimento (e, antes disso, como causados pelos fatores que impulsionavam
para dentro do armário): a solidão e o isolamento.
A associada do GALF Cice, por exemplo, envia uma carta para Um Outro Olhar que
começa com sua apresentação enquanto “lésbica enrustida”, dizendo acreditar que sua irmã
também o seja – e que ambas se entendem “razoavelmente”. Sem esmiuçar o nível de
“entendimento” entre ambas, ela justifica a reserva: “nossa ‘sociedade’ é irônica e hipócrita, e
as pessoas não disfarçam a hostilidade diante de uma pessoa homossexual. […] Em relação à
família, essa então é a mais hipócrita, apenas fecha os olhos e só vê aquilo que lhe convém”.
Na correspondência, ela narra uma experiência de insulto – em que uma cunhada acusara sua
companheira de “bulacheira”, gíria pejorativa para “mulher que transa com outra” no
Nordeste – que desencadeou um processo de rupturas: a amiga-amante, como Cice assim a
denomina, queixou-se da injúria a seu marido, sargento da polícia, e este terminou por proibir
o relacionamento das duas. A alagoana reflete que somente aceitou este término
pois eu não tinha o pensamento que tenho hoje. Se tivesse, não teria me deixado
envolver por essa “minha amiga”. Com minha inexperiência me deixei envolver
facilmente, e esse foi meu erro. Na época, ela era bem mais experiente, me
conquistou e eu me apaixonei. Hoje, tenho certeza que ela não gostava de mim, pelo
menos não do jeito que eu era louca por ela (Um Outro Olhar, n. 6, 1989, p. 3).
Na mesma edição do boletim, Nani Tobi relata comoela, por desconhecer como se
davam as relações entre mulheres, acabou vivendo um relacionamento opressivo em que era
sexualmente objetificada enquanto mulher negra. Com a “mudança de pensamento” através
do tempo e de processos reflexivos sobre sua própria condição, Cice e Nani conseguem
romper com este tipo de relação. Mara, da Bahia, havia publicado duas edições antes um
pequeno texto chamado “A despedida”, dedicado a uma colega de trabalho por quem
desenvolvera uma paixão platônica. Nele, ela conta de sua transferência para outra agência do
banco em que trabalhava e sonha com a ideia de que, em seu último dia no posto que
abandonaria, a colega se despediria dela com um beijo às escondidas (Um Outro Olhar, n. 4,
1988, p. 5). Na edição de número 5, a brasileira Ana manda uma correspondência dos Estados
Unidos, lamentando seu cansaço pelo fato de envolver-se muitas vezes com mulheres que se
diziam heterossexuais – o que, invariavelmente, terminava em tristeza e frustração para ela,
quando suas parceiras deixavam a relação e apareciam tempos depois em algum
relacionamento com um homem. Alguns anos depois, Luiza Granado escreve um artigo para o
periódico, publicado na seção “Em Debate”, discutindo os efeitos da solidão e do isolamento
sobre as mulheres lésbicas – um dos quais, no plano afetivo, seria justamente a dificuldade de
120
encontrar parceiras e de, neste cenário, envolver-se com outras mulheres que talvez não
atendam necessariamente às suas expectativas:
A alternativa proposta para sair desse círculo vicioso é a construção de uma “rede de
solidariedade lésbica”, com a construção de vínculos não apenas de casais de mulheres, mas
entre lésbicas de maneira geral, como forma de possibilitar diálogos e o fortalecimento da luta
por direitos e em especial por uma maior aceitação social da homossexualidade feminina,
como pode-se entrever a partir do texto de Naná Mendonça citado algumas páginas acima. A
falta de engajamento das associadas do GALF e da Rede neste projeto seria um ponto bastante
incômodo para as ativistas do grupo, como discuto adiante. Antes disso, vale jogar um pouco
de luz para uma das alternativas propostas para estabelecer outros canais de comunicação que
vazassem os limites do próprio boletim: a seção Troca-Cartas.
Anúncios pessoais estiveram presentes desde a segunda edição do boletim
ChanaComChana, como um pedido das próprias leitoras, e aparecem já na primeira edição do
boletim Um Outro Olhar. Cabe notar que outras publicações semelhantes, posteriores,
também manteriam seções semelhantes, como na revista Femme (que circulou entre 1993 e
121
1995) e no boletim Visibilidade (que teve três edições em 1998 e voltou a ser publicado em
2002), mesmo este sendo bem mais curto, com suas quatro páginas tamanho A4; no Ponto G,
contemporâneo ao Visibilidade, a breve experiência de publicar anúncios foi considerada
malsucedida e não foi levada adiante. Das demais publicações listadas no capítulo 1 desta
dissertação, pouco posso dizer, devido à impossibilidade de ter acesso a estes materiais. Cabe
notar que anúncios pessoais também eram publicados por mulheres buscando contato com
outras mulheres em publicações masculinas, como nas revistas Ele Ela e Elas & Elas, da Big
Man International. O próprio GALF buscava divulgar seu trabalho nessas revistas, e em sua
edição nº 9 há uma carta assinada por M.M.S., moradora de Foz do Iguaçu (cidade que ela
descreve como tendo “muitos preconceitos, embora haja um número considerável de
entendidas[os]”) que preferiu permanecer anônima, comemorando o fato de que a revista
havia oportunizado o contato com o grupo. A alegria que ela descreve ao encontrar não só este
tipo de publicação (no caso, a revista masculina, mas tratando de relações entre mulheres),
mas o próprio grupo, faz pensar na importância pessoal conferida à possibilidade de estender
seus contatos para além da cidade povoada pelos “preconceitos de tantas cabeças
mentecaptas”:
Perdoe-me pela maneira com a qual inicio esta, mas creio que somos todas da
mesma família. […] Já ouvi falar do GALF faz algum tempo (talvez uns três anos),
porém não pude obter o endereço e também não encontrei meios para consegui-lo.
Entretanto, ontem, caminhando pelo centro da cidade, resolvi entrar em uma livraria
e qual foi a minha surpresa ao deparar-me com a revista “ELAS & ELAS”.
Comprei-a imediatamente e, mesmo no meio da avenida, passei a folheá-la
avidamente, muitíssimo interessada nos conteúdos ali presentes. Em um
determinado instante, observei um espaço que continha o endereço de vocês. Fiquei
deveras com uma alegria tão imensa que é impossível descrevê-la. Senti-me como se
realmente estivesse no paroxismo; foi realmente muito bom. Tão bom que cá estou a
escrever para vocês (Um Outro Olhar, n. 9, 1990, p. 2).
Figura 10: Anúncios pessoais na seção "Troca-Cartas" (Um Outro Olhar, n. 8, 1989)
124
novas amigas, esta médica pernambucana, um pouco mais velha do que a maioria das
associadas que escreviam nesta seção, reconhecia que “‘uma força’, o apoio moral e o afeto
de uma amiga” (Um Outro Olhar, n. 1, 1987, p. 34) poderiam ser necessários para outras
mulheres lésbicas que talvez tivessem dificuldades em encontrar interlocutoras capazes de
compreendê-las e aconselhá-las em relação a um aspecto de suas vidas cuja própria admissão
e nomeação pareciam marcadas por um interdito. Como coloca Eribon,
A questão de dizer é crucial na experiência dos gays e lésbicas. É preciso revelar que
se é homossexual? Quando fazê-lo? O problema reside sempre em saber para quais
pessoas é aconselhável dizê-lo. Esta possibilidade de falar é oferecida, em primeiro
lugar, pelo encontro com outros homossexuais. Trata-se de poder ser o que se é sem
escondê-lo, ainda que apenas por algumas horas por semana ou com um número
seleto de pessoas. Esta é uma função que sempre foi cumprida pelos bares, clubs e
associações (Eribon, 2001, p. 80, tradução minha).
Nas páginas a seguir, retorno aos motivos que fizeram Miriam classificar esta seção
125
como “uma eterna dor de cabeça”. Importa mais, aqui, ressaltar sua avaliação de que “para as
anunciantes” o serviço fora bem-sucedido (teriam elas recebido muitas mensagens de
agradecimento?), e o próprio interesse das leitoras e suas amigas (que, queixa-se Miriam,
repassavam a lista de correspondentes para não associadas ao grupo) neste tipo de conteúdo
indica que corresponder-se com outras mulheres que se relacionavam com mulheres era, de
fato, uma possibilidade valorizada. Neste ponto, acredito que o trabalho de Nathália Padovani
(2015) oferece contribuições para pensar este tipo de comunicação. Em sua tese, Padovani
discute os amores e afetos de mulheres detidas em penitenciárias femininas, conferindo
especial atenção às correspondências amorosas mantidas por elas com seus companheiros,
não raro eles também apenados. O poeta e filósofo Rubem Alves diria que “uma carta de amor
é um papel que liga duas solidões” (2016, p. 25), ou mesmo que “cartas de amor são escritas
[…] para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel” (p. 128); nos
casos de relacionamentos com ou entre pessoas condenadas ao regime fechado, as missivas
podem fazer as vezes de corpos ausentes. Cartas e pequenos presentes que às vezes as
acompanham, na visão de Padovani, carregam “substâncias” que circulam através dos muros
das prisões e constituem não apenas documentos das relações, ou materializações destas,
“mas são, também, os artifícios dos veículos de afeto que agenciam escapes, linhas de fuga
[…] a estas mesmas regulações” (Padovani, 2015, p. 136) que controlam e circunscrevem as
circulações de corpos e quais relações podem-se dar com aqueles no interior dos presídios. A
cadeia, ressalta ela, é também produtora de relações (como, por exemplo, entre “irmãs de
caminhada”, mulheres com quem a relação se constrói no cotidiano da penitenciária), e
destaco aqui aquelas tecidas por correspondência com homens detidos em outras unidades. As
cartas, destaca a autora, materializam também a porosidade da instituição carcerária, o
estabelecimento de “vasos comunicantes” (Godoi, 2010) através dos quais substâncias
conseguem circular. Ainda que a penitenciária e o armário evidentemente imponham
diferentes maneiras de circunscrever a mobilidade e a circulação (conceitos que a
pesquisadora diferencia, colocando o segundo como menos restrito) de quem está dentro
dessas estruturas, acredito que uma analogia seja possível aqui. Se as detentas da Penitenciária
Feminina da Capital, por estarem lá detidas, não têm acesso direto ao “mundão” de fora, este
mesmo “mundão” também circunscreve o tipo de interações possíveis entre mulheres que se
interessam sexual e afetivamente por outras mulheres. Como já apontava o texto de Luiza
Granado, reproduzido páginas atrás, o dispositivo do armário e seu imperativo de não falar
constituíam um impeditivo para que mulheres lésbicas se reconhecessem e estabelecessem
contatos entre si. Correspondências entre elas (assim como poderia o ser a frequência a bares
126
A solidão faz com que muitas mulheres se limitem a buscar freneticamente uma
companheira – simplesmente – e em grande parte não se permitam fazer uma
ligação entre o trabalho da Rede e a quebra do isolamento. […]
Eu acredito na necessidade de uma “saída do gueto”, desenvolvendo uma ética de
solidariedade lésbica.
A Rede é um espaço importante, já que, como grupo político, interfere socialmente
100 Na edição de número 9, o mesmo texto citado acima de Miriam Martinho comenta “que o fato do Troca-
Cartas ter se tornado independente do boletim representou um avanço” (Um Outro Olhar, n. 9, 1989, p. 19).
Na edição nº 18 (1992/1993, p. 8), elas divulgam novamente no boletim seu “serviço de correspondência,
por anúncio, para mulheres de todo o Brasil”, e o Troca-Cartas reaparece no conteúdo do periódico em seus
números seguintes.
127
Antes de adentrar o próximo tópico, gostaria antes de anotar que essa busca por apenas
“conhecer alguém” e seguir sem manter um grande contato com grupos militantes poderia ser
analisado à luz de Saba Mahmood (2005) e suas ponderações acerca do desejo de habitar a
norma, reconhecendo que aí também há e pode haver agência; além disso, como pontua
Eribon (2001) a partir de Butler, vale lembrar a “melancolia” (no sentido freudiano, de
vinculação a um objeto perdido) sustentada por muitos homossexuais em relação às próprias
instituições que os excluem – como, por exemplo, o casamento 101. Em que pese o
investimento pessoal da ativista fundadora na construção do grupo, a crítica de Miriam
Martinho à “fissura por socialização” parece não levar em conta justamente as dificuldades,
reconhecidas por Luiza Granado, que mulheres interessadas em mulheres enfrentavam para
conhecer outras que compartilhem esse desejo; mais que isso, parece deixar de lado a
importância atribuída à vivência do amor e da sexualidade, tão presente em textos como os de
Naná Mendonça, que discuto no capítulo seguinte. O estabelecimento de parcerias sexuais e
afetivas, a conjugalidade – tão valorizada por díades homocorporais femininas, como coloca
Heilborn (1992; 2004) –, nesse discurso, acaba minimizado em frente ao ideal coletivo de
construção de redes mais amplas entre lésbicas. Embora não caiba, aqui, aprofundar esta
discussão, acredito que estas considerações permite outros caminhos para pensar por que
razões mulheres que realizaram publicações impressas para mulheres lésbicas (não apenas
Martinho, mas outras interlocutoras como Monica Camargo, Theresa Fernandes e Laura
Bacellar102) hoje avaliam suas iniciativas como “muito esforço para pouco retorno”. No que
diz respeito a Um Outro Olhar, me parece que o “retorno” que suas organizadoras se
esforçavam para conquistar através de seu trabalho era justamente a construção da Rede
enquanto espaço de conscientização e mobilização política de suas associadas – o que, dado o
maior investimento de muitas destas em construir outras redes (as de “socialização” e busca
101 Não chego a discuti-lo aqui, mas Luiza Granado faz em Um Outro Olhar (n. 19/20, 1993, pp. 18-19) um
interessante artigo em que, a partir de um posicionamento feminista, rejeita o matrimônio enquanto possível
parte da agenda lésbica na interface com o Estado, por considerar o casamento uma instituição patriarcal; e
sugere outras possibilidades legais para a constituição de parcerias no intuito de resguardar os direitos de
casais formados por duas mulheres. Este é um exemplo interessante para pensar como a proximidade com o
feminismo lésbico leva a um afastamento de algumas pautas do movimento homossexual.
102 Sobre a frustração de Bacellar com o desinteresse das mulheres lésbicas enquanto consumidoras de produtos
voltados especificamente para elas enquanto público, ver Araújo (2016).
128
por parcerias sexuais e afetivas), acabou nem sempre correspondendo às expectativas das
ativistas mais ligadas ao GALF e à Rede.
Essa falta de engajamento com as iniciativas culturais e políticas capitaneadas por
outras mulheres lésbicas é considerada, nas páginas do boletim, como exemplo da
“autossegregação” das lésbicas. Esta “autossegregação” também se manifestaria na resistência
de algumas mulheres a estabelecerem amizades com outras mulheres lésbicas. A edição de
número 10 do boletim traria um texto assinado por Lita, de Salvador, em que esta faz uma
crítica contundente ao desinteresse das lésbicas por uma “boa e fraterna amizade”,
sustentando que estas mulheres veem umas às outras como potenciais casos ou como
inimigas, que elas só “querem se aproximar para transar, fazer caso ou trair” e concluindo que
“à sociedade interessa nos ver divididas, acuadas, cheias de medo e solidão” (Um Outro
Olhar, n. 10, 1990, p. 1). A solidão, portanto, é tomada como tema de reflexão política, como
fica mais explícito em mais esta passagem do texto já citado de Luisa Granado: “lutar contra a
solidão é lutar contra uma das violências que atingem as lésbicas, pois na maioria das vezes
temos que usar uma máscara no cotidiano que nos isola, nos segrega, nos guetariza” (Um
Outro Olhar, n. 17, 1992, p. 10). Para quem ainda não se sentia capaz de – ou mesmo disposta
a – prescindir da “máscara” que a dupla vida do armário impõe, uma alternativa era participar
do espaço seguro das redes construídas a partir do GALF e da Rede.
Em sua formulação de uma proposta para o estudo de redes sociais, Mitchell (1969, p.
15, tradução minha) propõe o conceito de reachability para avaliar o quanto um indivíduo
“pode usar essas relações para acessar outras pessoas que são importantes para ele ou,
alternativamente, o quanto as pessoas que são importantes para ele podem contatá-lo através
dessas relações”. Em seguida, ao diferenciar esta ideia da noção de densidade (o quanto as
pessoas que participam da rede de um mesmo ego se conhecem entre si), o autor explica que
“a ideia de reachability meramente implica que cada pessoa específica pode ser contatada a
partir de um certo número de passos a partir de qualquer ponto de origem” no interior de uma
rede. Desta forma, ao ver o boletim como agente na abertura de “vasos comunicantes”,
podemos pensá-lo (e o grupo que o produzia) como um nó central, um hub, um centro
distribuidor (e receptor) de informações, incluindo os nomes e endereços de potenciais
correspondentes – ou, a partir das formulações de Mitchell, como um passo necessário para
que as associadas do coletivo entrassem em contato umas com as outras, ao menos em um
primeiro momento.
Cabe notar, contudo, que a formação destas redes para reflexão e apoio entre lésbicas
não se dava unicamente pela via dos escritos, embora estes tivessem um importante papel para
129
o aumento da difusão do ideário do grupo. Através das páginas do boletim, é possível saber
que o GALF e a Rede também mantinham encontros presenciais, tanto dos “grupos de
identificação” quanto de encontros para estudos e discussão. Estes últimos, segundo o mesmo
balanço de Miriam em que constam as ponderações sobre o funcionamento do “Troca-
Cartas”, infelizmente foram pouco produtivos, pois com a “heterogeneidade das mulheres que
procuravam o GALF, com diferentes níveis de formação e informação, vindas de diferentes
classes sociais e com diferentes interesses”, as tais “reuniões de estudo, comuns a todas,
acabavam se tornando opressivas para as menos acostumadas a ler, falar e a debater em
público” (Um Outro Olhar, n. 12, 1990, p. 21). O “comuns a todas” do trecho acima
diferencia tais reuniões, abertas às associadas, das reuniões de trabalho do coletivo. Além
destas, o grupo também buscou realizar encontros presenciais para as associadas, com
exibição de filmes e proposição de tópicos para discussão. Neste mesmo texto – que marca
finalmente o encerramento do GALF, ao avaliar os erros e acertos de sua atuação, de forma a
criar marcos para a atuação da Rede, sua sucessora –, Miriam Martinho ressalta o fato de que
os dois encontros realizados pelo GALF com suas associadas em 1987 foram bem-sucedidos,
em parte por conta de ter sido realizado em um espaço seguro e facilmente acessível para as
participantes. O mesmo não ocorreria no primeiro evento semelhante da Rede, realizado no
dia 28/08/1990103: um breve relatório deste encontro conta que o espaço alugado para sua
realização, apesar da solicitação de exclusividade para seu uso feita pelo GALF ao locador,
estava sendo usado simultaneamente por “um grupo de rock”, cujo “assédio” constrangeu as
participantes, o que tornou “tímida” a “pequena reunião” (Um Outro Olhar, n. 12, 1990, p.
21), da qual participaram 15 integrantes da Rede, sendo uma carioca, uma mineira 104, e as
demais de São Paulo.
Na mesma edição, duas cartas lamentam (e justificam) a impossibilidade de suas
remetentes de participar do encontro. Numa delas, Eliane, de Laranjal Paulista (que
protagoniza uma das seções do próximo capítulo), explica que estivera acamada e por isso não
pudera deslocar-se até a capital, e complementa: “de qualquer forma, quero saber tudo o que
rolou, tim-tim por tim-tim, viu?” (Um Outro Olhar, n. 12, 1990, p. 11). Os encontros seguintes
de fato gerariam relatórios bem mais detalhados: neles, as participantes se dividiriam em
pequenos grupos para discutir tópicos específicos e, ao final do evento, cada um destes grupos
geraria um texto resumindo suas reflexões para publicação no boletim. Desta forma, a
103 O boletim não o explicita, mas esta é a mesma data de morte de Rosely Roth. Em São Paulo, cidade do
encontro, a temperatura era “super-congelante”, segundo o relatório da reunião.
104 Em entrevista, Miriam Martinho contou-me que chegou a conhecer muitas das integrantes do GALF e da
Rede que não moravam em São Paulo através destes encontros.
130
Figura 11: Texto elaborado no II Encontro da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar (n. 13, 1991)
131
Numa primeira leitura desse relato, “ter quem apresentar” parecia servir para dar
alguma concretude à afirmação da homossexualidade – torná-la não apenas crível, mas
comprovável. Mais do que isso, a menção a uma parceria estável poderia servir para afastar
noções de promiscuidade, de dissolução, não raro associadas às sexualidades dissidentes da
heteronorma. Na edição seguinte, contudo, uma mensagem na seção “Cartas na Mesa” explica
melhor, indicando que a mulher que proferira esta opinião, na realidade, buscava afastar de si
mesma a ideia de que ser lésbica era ser só e, portanto, infeliz. Mary começa sua missiva
agradecendo à Rede UOO por seu apoio desde que começara a frequentar o grupo, e a partir
daí começa a tecer uma reflexão narrativa sobre sua própria identificação enquanto lésbica:
Tal passagem permite afirmar que um relacionamento sexual e afetivo com outra
mulher parecia estar fora do campo de possibilidades (Velho, 1994) em casos como o de
Mary. Não deixa de ser significativo que tal depoimento apareça na 17ª edição do periódico, a
mesma em que é publicado o artigo Solidão e solidariedade, de Luiza Granado: de certa
forma, é como se o relato da vivência de Mary parecesse exemplificar seus argumentos, ao
apostar na valorização de sua identidade e na busca do apoio de amigas como forma de “sair
do poço” para onde a solidão a empurrara. O fim da tristeza, ela esclarece em trecho que não
reproduzo aqui, não vem através de uma namorada, e sim de um encontro consigo mesma –
facilitado, inclusive, pelo acesso aos materiais do grupo:
Eu estou encontrando o grande valor de ser lésbica, estou me apaixonando por isso.
Estou me valorizando e saindo do fundo do poço. Preciso de tempo, amigas e
compreensão, isto é certo! Estou começando a ver uma luz no final do túnel que já
estava muito escuro e estreito. Acho que a conscientização que iniciei agora vai me
satisfazer mesmo que eu viva lutando e buscando sempre algo. O importante para
mim agora é saber quem sou: lésbica. E não perder essa minha identidade e a partir
daí buscar meus interesses.
Tenho feito muitas leituras e, principalmente, os boletins da Rede têm me ajudado
muito (Um Outro Olhar, n. 17, 1992, p. 23).
Por fim, ela revisita a declaração feita a Joyce, explicitando uma reflexão que a leva a
reformular seu sentido, colocando sua relação com a solidão – e com a lesbianidade e também
com a discriminação – em outros termos:
133
Continuo não tendo namorada mas acho que isso ainda não é o suficiente para mim,
ou seja, para que eu me sinta bem tenho que ter uma relação onde seja tomada pelo
amor de uma mulher pela outra.
Mas eu pensei um pouco sobre o que eu disse a Joyce e acho que, se eu, ou qualquer
outra lésbica, demonstrar segurança, equilíbrio e um objetivo de conquista, o fato de
ter ou não namorada não vai ser tão relevante nas críticas das pessoas. E aqueles que
criticarem é porque não são amigos. É só ignorá-los.
Ter namorada deve ser bem bom para satisfazer essa necessidade de segurança e
afeto que todos nós temos. Mas lutar por um ideal, mesmo estando nesta solidão, vai
fazer com que nunca mais eu pense que ser lésbica é ser infeliz (Um Outro Olhar, n.
17, 1992, pp. 23-24).
“Ser tomada pelo amor”, então, aparece como fundamental para uma relação –
ganhando mais importância do que o mero fato de “ter namorada”, o que novamente parece
refletir as ideias de Luiza Granado. Mary explicita também sua vinculação ao ideal da Rede
de “lutar por um ideal” e que isso a ajudaria a afastar a infelicidade – em parte, talvez, por
sentir-se irmanada nas fileiras da Rede. Mais do que isso, gostaria de salientar, ao encerrar
este capítulo, o fato de que a veiculação dos conteúdos dos debates das reuniões presenciais
do grupo permitem que novas opiniões se somem ao debate via correspondência, de maneira
que o próprio periódico constitui-se em uma espécie de lugar para o encontro – de
informações desconhecidas, de novas amigas e possíveis pretendentes através dos anúncios
pessoais –, para o diálogo e mesmo para a discordância. Neste caso, o fato de a réplica ter
partido da própria emissora da ideia original parece demonstrar também a capacidade dessas
discussões de fomentar nas leitoras – ou ao menos em algumas delas – novas reflexões sobre
si.
O próximo capítulo parte das participações de três associadas da Rede (Naná
Mendonça, Nani Tobi e Eliane Di Santi) no conteúdo do periódico para pensar como este
constituía, também, um espaço para a elaboração de narrativas sobre suas próprias trajetórias,
onde elas compartilhavam suas experiências e, ao fazê-lo, simultaneamente conferiam
sentidos a elas.
134
***
Pode-se dizer que boa parte dos textos que receberam maior atenção analítica no
capítulo anterior – em especial em sua primeira seção, que trata das formas como a Rede foi
articulada e se articulou em rede(s) – configuram uma espécie de faceta “institucional” do
grupo e do próprio boletim. Os editoriais assinados por Miriam Martinho, bem como seus
textos de avaliação crítica da história do GALF, trazem uma apresentação das atividades
(recentes ou não) do coletivo e suas proposições; os ensaios da mesma autora –
frequentemente citando diversos livros e artigos, boa parte deles em língua inglesa, que
compunham o acervo da biblioteca que o grupo construiu ao longo dos anos – evocam
concepções teóricas e políticas que dizem respeito não somente à atuação dos ativismos
lésbicos e em como estes, enquanto movimento, deveriam se nortear, mas também esmiúçam
debates sobre gênero (e a recusa de uma dicotomia entre masculino e feminino, rejeitando
ambos enquanto construções normativas105), o apagamento de mulheres da história106 e o
105 Ver resenha “Elogio da Diferença”, em que ela recusa a criação do paradigma de um “novo feminino” cujas
bases na realidade se assentam, em sua visão, em padrões já vigentes (Um Outro Olhar n. 18, 1992/1993).
106 Como em sua introdução à reprodução de uma extensa reportagem de Ana Maria Portugal sobre mulheres
cientistas (Um Outro Olhar n. 17, 1992) e em seus textos resgatando a história do matriarcado (p. ex, em
135
resgate (tanto no sentido de fazer emergir, mas também de propor um olhar positivo, enquanto
forma de resistência ao patriarcado) de figuras como as das amazonas107 e das bruxas108, sobre
alianças entre mulheres e a recusa à “autossegregação” das lésbicas, e mesmo a discussão de
práticas sexuais entre mulheres109. Além destes, bem como a tradução de artigos em língua
estrangeira e a manutenção de contatos com ativistas do Brasil e do exterior (o que resultou
em diversos relatórios de encontros de coletivos, seja por sua participação direta nestes, seja
ao organizar relatos recebidos de outras mulheres presentes), Martinho também desenhou
charges110 e capas para o boletim. Luiza Granado, namorada de Miriam, também publicou no
boletim textos longos e densos, versando, por exemplo, sobre saúde mental e ginecológica das
mulheres lésbicas111 (a partir de relatos e amparada em estudo argentino sobre o tema), sobre o
casamento enquanto instituição patriarcal que, portanto, não deveria ser uma reivindicação do
movimento lésbico112, sobre os dilemas enfrentados no mercado de trabalho e o risco de
discriminação113, e também sobre os impactos do isolamento sobre a vida afetiva (e política)
das mulheres cujos desejos sexuais e afetivos se direcionam a outras mulheres, texto que
norteou parte da discussão do capítulo anterior. Além dessa produção de caráter bastante
analítico – fortemente ancorado em discussões feitas por outras escritoras, pesquisadoras e
militantes –, ambas publicaram poesias no boletim. Um lado mais íntimo de suas vivências,
para utilizar um termo bastante presente neste periódico, da lesbianidade aparece neste tipo de
conteúdo. É a este lado mais pessoal – mas não por isso menos político, como diz a famosa
proposição feminista – destes materiais, que este capítulo se dedica, a partir da ideia de
escrita de si, conforme elaborada por Foucault (1992). O teórico francês propõe este conceito
a partir de sua discussão dos hypomnemata, diários detalhados em que filósofos gregos
registravam as atividades de seu cotidiano e teciam reflexões sobre as ponderações que
realizaram ao longo do dia. Tais anotações poderiam ser alvo de consulta pelos próprios
autores ou retomadas em cartas a seus pares quando estes lhes fizessem consultas sobre como
Um Outro Olhar, n. 14, 1991).
107 Na capa da edição nº 4 (1988).
108 Um Outro Olhar, n. 13 (1991).
109 No texto “Nossa Sexualidade” (Um Outro Olhar, n. 1, 1987), Martinho discute como a penetração pode ser
prática lésbica, não arremedo de relações heterossexuais, e sugere outras formas através das quais mulheres
que não se sentem confortáveis com esta prática podem obter prazer com suas parceiras.
110 Tirando graça de questões políticas acerca das perseguições à lesbianidade e mesmo tecendo críticas a outras
organizações políticas suas contemporâneas, os quadrinhos desta ativista estão presentes desde o
ChanaComChana. A “Miriam cartunista” mereceria uma atenção que infelizmente não tive a possibilidade
de oferecer dentro desta pesquisa. Cabe notar que charges e quadrinhos também estavam presentes na revista
Femme.
111 Um Outro Olhar, n. 21 (1994).
112 Um Outro Olhar, n. 19/20 (1993).
113 Um Outro Olhar, n. 18 (1992/1993).
136
lidar com situações específicas de suas vidas que eles já tivessem experimentado e/ou
meditado a respeito. Assim compartilhadas por correspondência, essas reflexões forneciam
modelos de conduta ética; mais que isso, o próprio ato de documentá-las tornava-se parte da
constituição do sujeito através (e indissociavelmente) da escrita – razões pelas quais acredito
que tal conceito aplica-se de maneira à discussão que faço aqui.
Como forma de destacar a atuação de mais mulheres que participaram da Rede e da
elaboração de seu boletim homônimo, para embasar este capítulo trago novas personagens.
Um Outro Olhar é composto das vozes de muitas mulheres, algumas se identificando por
completo, outras anônimas cujas cartas foram utilizadas para abordar algumas vivências vistas
como comuns àquelas cujos afetos e desejos sexuais se dirigiam a outras mulheres. Deste
amplo conjunto de textos, diversas escolhas de narrativas teriam sido possíveis. Malu, por
exemplo, assistente social e professora residente em São Gonçalo/RJ, enviou cartas refletindo
sobre experiências de discriminação e também um belo texto sobre como relacionar-se com a
solidão de maneira a viver melhor consigo114. Tiny, médica veterinária moradora de Belo
Horizonte, dava opiniões sobre a organização do boletim, participou do encontro da Rede que
gerou quatro textos sobre “quem discrimina as lésbicas” 115, elaborou um artigo comentando,
entre outros tópicos, a exclusão das mulheres do espaço público e o status jurídico das uniões
homoafetivas116, também foi autora de poesias e de um texto (poético, lembrando um conto,
numa fronteira borrada de gênero textual) para a seção Vivências 117. Zinélia, a Nelinha,
funcionária pública moradora do Recife, publicou um ensaio sobre a conscientização política
das lésbicas na segunda edição de Um Outro Olhar, e coescreveu um relato de um encontro
de grupos homossexuais118. Diversas outras colaboraram com cartas, poesias, recortes de
jornal. Como em outras seleções realizadas ao longo da escrita etnográfica, realizadas a partir
do olhar de quem pesquisa, a decisão do que “entra” e do que “sai” pode demonstrar-se um
tanto quanto arbitrária. A decisão de trabalhar principalmente com os escritos de Naná
Mendonça119, Nani Tobi e Eliane di Santi deve-se principalmente 120 a duas razões: a
assiduidade com que as três participaram do conteúdo do boletim, e as diferentes posições que
ocuparam tanto em sua produção como na sua relação com a Rede. Naná correspondeu-se
com leitoras do periódico, descreveu a cidade para onde havia se mudado e discutiu como era
ser lésbica “em um lugar distante”, escreveu contos, cartas e relatórios de eventos de que
havia participado, narrou a própria vida ao longo destas páginas. Fora da seção de anúncios
pessoais – onde já havia publicado desde a edição nº 3 –, Nani primeiro apareceu através de
sua participação em uma entrevista para o Um Outro Olhar sobre lesbianidade e negritude.
Além de colaborar com textos, desenhos e poesias, ela também se integrou de maneira mais
direta à equipe de produção do boletim em sua fase final enquanto publicação impressa:
participando, de início, da digitação dos textos recebidos, posteriormente assumiu a
diagramação do material. Eliane, por sua vez, escreve de um lugar um pouco menos próximo
do grupo responsável pela organização do periódico: suas cartas muitas vezes expressam uma
admiração pelas mulheres à frente da iniciativa editorial, dirigindo-se a um “vocês” que,
nestes elogios, soa quase distante. Ainda assim, foi uma missivista constante e dedicada,
comentando as edições quase na íntegra – eventualmente, suas palavras vazam da seção
“Cartas na Mesa” e atingem as páginas de poesias. Pela cronologia de suas aparições,
comecemos, então, por Naná.
acompanhei o desenrolar de suas histórias ao longo das edições. A página que traz poesias e desenhos de
Nani Tobi é uma das minhas preferidas dentre as que trazem este tipo de produção ao longo das edições. E
quando comentei, na abertura deste capítulo, sobre ler textos já buscando antecipar sua autoria, referia-me
especialmente às cartas de Eliane. De certa forma, foi como se através dos textos elas se tornassem minhas
conhecidas – efeito que, imagino, outras leitoras do boletim podem ter também experimentado.
138
Figura 12: Anúncios pessoais na seção "Troca-Cartas" da primeira edição de Um Outro Olhar (1987)
139
Naná Mendonça
Cx. Postal 483 – Recife – PE – CEP 50000
Coloca-se à disposição para trocar correspondências com mulheres lésbicas que
estejam necessitando de uma “força”, do apoio moral e do afeto de uma amiga.
121 ChanaComChana nº 12, fevereiro-maio de 1987. O germe do que um dia viria a ser o Troca-Cartas aparece
na segunda edição do Chana, em março de 1983, quando aparece uma pequena lista (trazendo apenas os
endereços de quatro mulheres, dentre as quais Naná, sem maiores informações sobre cada uma delas)
direcionada “pra quem gosta de escrever e quer conhecer novas pessoas”. Naná também publicou neste
número uma carta celebrando e comentando a edição anterior. Dois meses depois, o ChanaComChana nº 3
novamente traz seu endereço e mais uma carta, criticando o Grupo Gay da Bahia por uma passagem que ela
considerou machista em correspondência enviada ao boletim (o GALF publicava este tipo de missiva na
íntegra, eventualmente com alguma réplica). Após um silêncio de alguns anos, ela reapareceria somente na
última edição deste periódico, com o anúncio supracitado.
140
suas cartas agora devem ser remetidas ao Hotel Jocemel II, no município de Ariquemes,
Rondônia, distante 198 quilômetros da capital Porto Velho. Em março de 1988, na mais curta
edição do boletim, isso é tudo que ficamos sabendo sobre suas andanças. É preciso
acompanhar as edições seguintes para entender o porquê da mudança: Naná era médica e
havia se dirigido para esta cidade, à época com pouco mais de uma década de fundada e ainda
carente em serviços, para trabalhar no atendimento à população local. Na edição nº 3 de Um
Outro Olhar (pp. 6-8), ela publicou o texto “Ariquemes, Rondônia – uma visão lésbica sobre
um lugar distante”, em que descreveu, com seu olhar de quem vinha de fora, o Estado, a
cidade, seus habitantes e como a homossexualidade era encarada (e ocultada) por eles. Ela
destaca como a cidade vinha crescendo “incrivelmente rápido devido a essa afluência de
pessoas de outros estados”, em sua maioria provenientes do Sul, São Paulo, Mato Grosso ou,
em menor número, do Nordeste, motivadas pela possibilidade de “melhora financeira para si e
sua família”, participando de um projeto desenvolvimentista estatal, que doava terras para
quem quisesse trabalhar com agricultura na região. Os habitantes do município são então
diferenciados no texto a partir de sua origem, cor e educação – e, ao encadear com essa
caracterização uma discussão sobre machismo, Naná reproduz um imaginário colonial em que
pessoas racializadas são associadas a uma sexualidade agressiva (e em que as mulheres não
brancas são vistas como sexualmente disponíveis), como em um exemplo da argumentação de
Mara Viveros Vigoya (2008) de que o racismo, bem como o sexismo, operam a partir de
articulações em que sexualização e racialização são expressos em analogias da díade
natureza/cultura. Por fim, seu texto acaba por estabelecer uma aproximação entre os nativos e
os de fora a partir de sua baixa escolaridade e (o que ela vê como) sua consequente
incompreensão de sexualidades que fogem à heteronormatividade (mais adiante, ela comenta
como as mulheres da região são em geral “casadas ou comprometidas”):
Ariquemes é habitada por uma maioria de sulistas (cerca de 80% dos habitantes),
brancos, educados e cortezes [sic]. Os 20% dos habitantes nativos são morenos, mal
encarados e mal educados. Fazem lembrar os nordestinos, quanto ao machismo e as
atitudes atrevidas com as mulheres, contrastando com os sulistas que apenas lançam
um olhar de “paquera” e, se não são correspondidos, seguem seu caminho sem
molestar ninguém. As nativas, segundo comentários, são “fáceis”; as prostitutas se
vendem até por um maço de cigarros. A população nativa é quase toda analfabeta e
os de fora, na sua quase totalidade, são pessoas vindas de cidades do interior de
outros estados e, portanto, semialfabetizadas ou com grau de instrução precário. E
trazendo consigo aquela visão limitada das coisas, aquele espírito tacanho, que
caracterizam as pessoas nascidas e criadas em cidades do interior. Portanto, a
homossexualidade é olhada, tanto pelos habitantes nativos quanto pelos que vieram
de fora, como algo distante de suas vidas (Um Outro Olhar, nº 3, 1998, p. 7).
141
Transparecem, nesse texto, tanto algumas inclinações da própria Naná – sua oferta de
escuta e acolhimento, como aparece em seu anúncio – quanto concepções que orientam a
atuação do próprio GALF, como a valorização do encontro (e convivência) entre pessoas com
ideias semelhantes. Assim como alguns textos de Miriam Martinho criticam a “baixa
conscientização das lésbicas no Brasil”, aqui Naná coloca em termos de “imaturidade” e
“individualidade” a escolha das mulheres de Ariquemes que ela identifica enquanto lésbicas
de se manterem “discretas” – decisão essa que, como já colocado no capítulo anterior, poderia
ser visto também como uma estratégia para conseguir viabilizar relações entre duas mulheres
(Meinerz, 2011; Eribon, 2001) em um contexto de forte escrutínio ou mesmo violência
dirigida às sexualidades dissidentes da heteronorma (Mason, 2002). Contudo, também como
já discutido no capítulo anterior, as alianças entre mulheres que se relacionam com mulheres,
ainda que sem “levantar bandeiras”, eram defendidas pelo GALF como uma forma de lésbicas
se fortalecerem umas às outras. Para os propósitos do presente subcapítulo, o interessante
mesmo é notar como Naná aproveita uma experiência pessoal – o fato de estar em Ariquemes
142
a trabalho – para gerar novas informações para o boletim e suas associadas, analisando-as a
partir mais de sua percepção direta (o que inclui seus preconceitos e concepções sobre
educação e desenvolvimentismo) do que de formulações de outras ativistas. Para usar uma
imagem presente em Haraway (1995), estão visíveis os olhos com que Naná elabora seus
saberes sobre Ariquemes, e é a partir de seu um outro olhar – mesmo que este não sejam
correspondido com a cumplicidade esperada – que ela identifica estas mulheres como sendo,
como ela, diferentes.
A aventura de Naná em Ariquemes, no entanto, dura pouco – e os acontecimentos de
sua vida desenrolam-se aos olhos da leitora de Um Outro Olhar quase como num folhetim.
Em junho/julho de 1988, data que identifica o exemplar de número 4 do boletim, seu anúncio
– que agora a identifica como “médica, 43 anos, solteira”122 – traz novamente um endereço do
Recife. No texto “Uma experiência de vida”, escrito ainda em Ariquemes, ela faz um balanço
público – dentro da intimidade possível propiciada pela circulação destes textos em um grupo
relativamente conhecido – dos acontecimentos mais recentes em sua vida amorosa e explica a
decisão que a levaria de volta à sua terra natal. Naná inicia sua narrativa rememorando uma
conversa com uma amiga, em que contara sobre sua “perspectiva ao lado de uma
companheira”, e comenta como então “não sabia que isto estava muito perto de se tornar
realidade”:
Tudo começou quando, ainda em Recife, recebi uma cartinha lacônica, um bilhete,
um apelo: “Preciso de uma amiga. Escreva-me”. Escrevi. Respondeu-me. E daí a
troca de correspondências, a troca de ideias, de experiências, de apoio mútuo,
palavras amigas, força recíproca, afeto nascendo, amizade crescendo. E a pergunta:
por que não nos conhecemos pessoalmente? E a resposta: sim, por que não? […]
Os encontros se sucederam até que a minha realidade interior não pôde mais ser
segurada e transpareceu no rosto e no olhar. Meus olhos diziam: eu te amo! E a
mensagem foi compreendida (Um Outro Olhar, nº 4, p. 3).
O encontro, entretanto, foi breve. Naná logo precisou comunicar à sua amada que iria
“embora, para muito longe, para o extremo norte”. As duas reencontram-se em Rondônia,
onde passam o natal e o fim de ano juntas, e, quando a moça retorna para sua cidade,
novamente sofrem com a separação – agora, porém, com planos. Há pouco tempo aprovada
em um concurso, a companheira de Naná (cujo nome não é revelado) terminaria um curso que
estava fazendo e abandonaria seu cargo público recém-conquistado, enfrentando assim o que
a médica descreve como uma “‘prova de fogo’. Seria, sim, uma prova de amor muito
122 Com o passar do tempo, os anúncios da seção Troca-Cartas vão se padronizando. Os mais completos
incluem características pessoais (idade, cor, profissão e estado civil), passatempos preferidos e o que a
anunciante procura em suas futuras correspondentes.
143
significativa, deixar um emprego fixo e promissor para vir fazer uma tentativa incerta e
insegura ao meu lado”. Naná prossegue seu balanço, contando como havia chegado em
Ariquemes, as dificuldades de adaptar-se à cidade e sua falta de conforto material, as
amizades criadas, os mais de mil atendimentos médicos realizados no Centro de Saúde local e
a satisfação ao coordená-lo – experiência laboral que lhe renderia novas propostas de
trabalho, “acenos sedutores” para assumir um posto como médica em alguma instituição
federal. “Mas o aceno mais sedutor foi o chamado da terra, o apelo do amor, a saudade que se
fez dobrada”, ela continua, comentando a “reviravolta do destino” que lhe ocorrera “por
determinação das deusas”: sua família lhe avisa que um concurso que ela realizara anos antes
estava chamando os classificados, e seu nome constava na lista dos próximos.
Agora a prova de fogo sou eu quem tenho que dar. […] Vou trocar a medicina por
um trabalho burocrático e, em compensação, vou anular a distância que nos separa.
Espero que ela saiba compreender e valorizar a extensão e a profundidade dessa
minha renúncia. […] Lutar, sim, trabalhar, recomeçar, reconstruir. Mas longe dela,
espero que nunca mais! […] Dando um balanço da minha vida não encontro grandes
realizações, feitos brilhantes, apenas encontros feitos e ações movidas por amor.
Sim, apesar da minha pobreza e mediocridade, reconheço que sempre me esforcei
para que o amor lésbico, em minha vida, fosse realmente maravilhoso (Um Outro
Olhar, nº 4, pp. 4-5)
123 Uma versão reeditada e resumida desta história seria publicada na edição nº 34 da revista acadêmica
Feminist Review (1990), em seu dossiê sobre “lesbianismo internacional”. Em sua colaboração, Naná
Mendonça descreve sua passagem por Ariquemes e o retorno a Pernambuco para estar mais perto da mulher
amada: “troquei meus instrumentos médicos por uma máquina calculadora. Em Rondônia eu era a chefe de
um centro de saúde, aqui sou chefe de um centro de coleta de impostos. É um emprego sem aventuras ou
poesia, mas paga bem”. A passagem permite relativizar, de certa forma, as colocações da própria Naná sobre
assumir-se no emprego, como citado no capítulo anterior: “se eu me assumir em minha situação atual, tenho
quase certeza de que serei desprezada, ridicularizada e sofrerei abuso verbal. Meus superiores falariam de
‘comportamento escandaloso’, ‘não compatível com minhas funções’, e por aí vai” (Mendonça, 2005[1990],
p. 11, tradução minha). A inclusão do texto de Naná no dossiê, constituindo parte de sua seção sobre o Brasil
(composta também por um texto assinado por Marlene Rodrigues) é mais um exemplo da participação das
integrantes do GALF e da Rede em redes internacionais de ativistas e intelectuais lésbicas.
124 Cabe notar que o próprio periódico figura neste conto, na cena em que Nina vai à casa de Ziza pela primeira
vez. A visão do “boletim do grupo” desencadeia a compreensão de que ambas se interessavam por mulheres,
tornando o romance possível.
144
desejava. A protagonista apressa-se para chegar em casa antes da companheira, pois desejava
preparar-lhe o jantar – e encontra a luz do apartamento acesa, o aroma da refeição já
preenchendo o ambiente. Coincidência? As duas trocam presentes: Nina recebe o livro
vermelho que a interessava, com sua “capa majestosa, com as letras douradas, proclamando a
natureza científica de seu conteúdo”, que Ziza havia conseguido comprar após fazer
economias e vender algumas coisas suas. Não foi coincidência, avalia Nina: “quando fazemos
algo por amor, principalmente se há uma certa dose de sacrifício, o amor retornará para nós de
alguma forma. Acho que foi isso que aconteceu” (Um Outro Olhar, nº 7, 1989, p. 9). Além do
sacrifício, o que é valorizado aqui é a reciprocidade. Enquanto a leitora acompanha as
personagens adiando o contato com o jantar já pronto e, em vez disso, dirigindo-se ao quarto e
apagando a luz, as letras contidas na página ajudam a construir um ideal de relação entre
mulheres.
É interessante notar, então, como esta história, embora fictícia, articula questões
também presentes nas reflexões de Naná sobre sua própria vida. Heilborn (2004) comenta
como a afetividade é valorizada no interior de parcerias homocorporais femininas, para usar
sua expressão; aspecto também comentado por Meinerz (2011). Muniz (1992, p. 146), em sua
dissertação sobre a indizibilidade das relações entre mulheres, comenta como os discursos
acerca da homossexualidade feminina – incluindo aqueles formulados por suas interlocutoras
– frequentemente coloca o amor entre mulheres como “excessivo, mais do que profundo,
transbordante, irresistível e delirante […] como uma espécie de paixão que não reconhece
limites”. Esquivando-se da associação entre afetividade e feminilidade, e da “aura romântica”
que o “universo feminino empresta” ao amor (p. 147), esta autora comenta como o excesso
pode agir como forma de tornar inteligível um tipo de ligação – afetiva, sexual – de outra
forma tido como inviável, por desviar-se das gramáticas sexuais e afetivas da
heterossexualidade. A intensidade do sentimento legitima-o, torna-o real, maior do que a
paixão, em contextos em que este desejo, combatido e negado pelas pressões e violências da
heteronormatividade, pode parecer estar aquém ou além de configurar-se enquanto amor –
“um tipo de amor que captura, convence, vicia e do qual não se pode fugir mas, ao contrário,
deve-se assumi-lo contra tudo e contra todos” (p. 160). É a chave do amor que explica as
decisões tomadas por Naná: nas frases que encerram seu balanço pessoal, as “ações movidas
por amor” estão acima das “grandes realizações e feitos brilhantes”.
Discutindo a construção de narrativas em e a partir de entrevistas, Irene Gialdino
(2016, p. 17, tradução minha) comenta como a narração é uma “atividade social e um meio
fundamental de dar sentido e forma à experiência”. Ao narrar, os sujeitos têm a “oportunidade
145
Figura 13: Página de "Coincidência?", conto de Naná Mendonça (Um Outro Olhar, n. 7, 1989)
146
isso, tendo sua homossexualidade descoberta e exposta. Uma saída para isso seria evitar a
autossegregação, de maneira a conhecer outras lésbicas (e assim conhecer melhor a si
mesma), abandonar concepções preconceituosas sobre a lesbianidade e sobre relacionamentos
sexuais e afetivos e, assim, poder estabelecer relações em outros marcos – idealmente,
mantendo contato e proximidade com estas redes de amizade e militância. A trajetória e as
preocupações de Nani Tobi, expressas em sua participação do boletim, refletem alguns destes
valores preconizados pelo grupo.
Como já indicado na breve apresentação das três mulheres cujas produções são pontos
de partida para as discussões desta seção, a primeira aparição de Nani Tobi em Um Outro
Olhar acontece na edição de número 3, de fevereiro/março de 1988 125. Na seção “Troca-
Cartas”, ela se descreve como “mulata”, de 22 anos, auxiliar administrativa, cujos
passatempos preferidos – parte da redação “padrão” dos anúncios veiculados pelo boletim 126 e
presente na maioria destes, com exceções como os de Naná Mendonça – são tocar violão,
acampar e dançar. A redação do anúncio indica uma boa dose de reflexão sobre como seria a
companheira ideal para Nani – até, talvez, algumas decepções prévias: ela diz que “quer se
corresponder para transa com mulheres de 20/25 anos que já saibam exatamente o que querem
da vida e saibam viver e amar, dentro dessa escolha com toda a plenitude”. Sem querer
analisar excessivamente um anúncio tão curto, chamam a atenção tanto o eufemismo de
“dentro dessa escolha” (amar outras mulheres?) quanto o “já”, que parece pedir também um
certo grau de reflexão e assertividade da própria futura correspondente. Uma versão posterior
dessa mensagem, que aparece pela primeira vez na edição 6 do boletim e segue presente por
mais duas edições, coloca menor ênfase nessa possível parceira, abrindo espaço para que Nani
indicasse melhor o que ela mesma poderia lhe oferecer: “quer se corresponder para transar
ideias e tudo mais que a consequência criar com mulheres de 20 a 30 anos que saibam
exatamente o que querem da vida precisando apenas [de] uma pessoa sempre pronta a
acompanhar e lutar junto por essas conquistas”. Entre uma e outra versão do anúncio, que
documentam também uma guinada profissional (passando a atuar como auxiliar no
processamento de dados), ela publica um texto no boletim e participa de uma entrevista. Em
ambos os textos, ela aborda sua trajetória – trazendo suas experiências sexuais e afetivas, sua
125 O mesmo anúncio aparece no Um Outro Olhar nº 5, de agosto-outubro de 1988.
126 Este formato já estava presente no boletim ChanaComChana, também editado pelo GALF. A seção Troca-
Cartas passa a receber este nome a partir da edição nº 7 deste boletim, datada de abril de 1985.
149
sexualidade mesmo, sua negritude. Nesses textos, ela tanto demarca suas diferenças quanto
postula a uma igualdade humana que a alçaria a uma posição a partir da qual reivindicar
direitos. Mais do que isso, ao narrar essas histórias e dar-lhes sentido, demonstra como saber
exatamente o que se quer e também saber viver e amar em sua plenitude não são algo dado –
são construções feitas a partir de experiências e “tomadas de consciência”.
A Edição 6 de Um Outro Olhar, do início de 1989, trouxe dois textos na seção
“Vivências”. Um deles é o de Naná Mendonça, comentado no subcapítulo anterior. O segundo
traz a assinatura de Nani Tobi, e nele ela expõe como foi o processo de reconhecer desejos por
outras mulheres: “há 5 anos, assumi uma opção sexual, independente de ser a melhor ou não”.
No momento da escrita e publicação do texto, ela dizia enxergar seu caminho “claro” em
relação a isso. “Mas”, ela continua, “este não foi o quadro que pintou quando me descobria”:
Era um quadro de angústia, medo e repulsa. Não podia crer nos fatos que meu
próprio desejo natural criava.
Tentava viver rodeada de homens na esperança de que pudesse me apaixonar por
algum. […]
Quando estava junto das mulheres, a situação mudava de forma espantosa. Ligava-
me a elas com uma intensidade muito maior, e era isso que, a priori, me levava à
angústia. Como podia sentir tanta atração por algo tão desconhecido (até então
nunca tinha visto ou ouvido falar deste tipo de relacionamento) e que não se
enquadrava, em hipótese alguma, no molde “papai-mamãe” que havia em minha
cabeça?
Tremenda angústia. Acabava mascarando esse desejo, por alguém tão semelhante a
mim, em uma total “assexualidade”. Era melhor confundir do que assumir qualquer
postura que pudesse resultar em arrependimento posterior. […]
Progressivamente, fui mostrando que minha escolha não significaria que tudo seria
o caos, a falta de consciência das regras do bom convívio social. Seria um ser
humano comum, com todos os deveres inerentes a uma cidadã e reivindicando sua
parcela de privilégios, aliás, direitos mais do que merecidos. […]
De qualquer maneira, se teria que ser atirada “à fogueira”, então que fosse por algo
que realmente protagonizei: a minha liberdade, a perda do medo de amar (Um
Outro Olhar, nº 6, 1989, p. 11, grifos meus).
A narrativa de Nani neste texto traz uma sequência de experiências também comum a
outras escritas de tom semelhante ao longo do boletim. Como ela, outras mulheres contaram,
através de cartas e na seção “Vivências” – e aqui evoco novamente Meccia (2016), que
ressalta que a narração é construída por quem narra levando em conta quem (se presume que)
ouve o que está sendo relatado –, seus próprios processos de descoberta da
homossexualidade, frequentemente atravessados por sentimentos de incompreensão (então
explicados por ser algo desconhecido, fora do esperado ou comum) e negação, expressa por
ela (e outras) através tanto de tentativas de apaixonar-se por homens quanto de um esforço em
“mascarar” o desejo como algo mais aceitável – confusão, assexualidade. Esse desejo – como
aponta Muniz (1992), percebido como irrefreável e inescapável –, por fim, passa a ser
150
concebido como natural, o que abre possibilidades para que Nani passe a reivindicar-se (antes
disso, a mesmo compreender-se) não como ameaça ao “convívio social”, e sim como um “ser
humano comum”, merecedora de direitos, liberdade e amor. Simões e Facchini (2009)
comentam como a própria categoria de “orientação sexual”, embora indique uma concepção
um tanto essencialista de sexualidade e desejo, também foi e tem sido estratégica para o
movimento LGBT brasileiro, como parte da construção da legitimidade de suas pautas. Se
para o movimento esta estratégia é especialmente importante na relação com o Estado e a
reivindicação de direitos sociais, na narrativa de Nani esta concepção do desejo homoerótico
como natural – portanto, para além da intenção ou do controle do sujeito – habilita-a a
reconstituir sua imagem de si mesma, construindo-se como capaz de mostrar para si e para os
outros que a homossexualidade não geraria o caos.
Faço aqui uma breve digressão da história de Nani. Dada a orientação política de Um
Outro Olhar de buscar promover representações mais “positivas” da homossexualidade
feminina, é compreensível que momentos de confusão e angústia como os relatados por Nani
apareçam, nos textos publicados no periódico, em geral como parte do passado das mulheres
que os escrevem. No capítulo anterior, mencionei uma compilação de depoimentos organizada
por Maria Luiza, que ressaltava como as cartas enviadas para o GALF – em sua maioria,
desabafos e pedidos de ajuda – eram recheadas de histórias tristes, envolvendo desde a
negação da própria homossexualidade até casos de violência, demissão, perda de amigos,
famílias forçando ao rompimento com a companheira e até mesmo intenções de suicídio. Não
é minha intenção analisá-los novamente aqui: ressalto apenas que depois de treze
depoimentos expondo as agruras resumidas acima, a coletânea de missivas encerra com dois
relatos mais alvissareiros. A penúltima carta selecionada leva o título “Finalmente…”: Sônia,
de Salvador, conta que sua família “convive bem com minha homossexualidade”. Ao contar
para sua mãe, ela disse preocupar-se apenas com sua felicidade: “a minha maior surpresa foi
que ela reagiu como se já convivesse com o homossexualismo há muito tempo. Meus irmãos
me deram e dão muito apoio”. Sônia conta que sofreu alguns preconceitos na vizinhança,
“não por eu dar bandeira, pois sempre fui discreta porém assumida, não estava nem aí,
primeiro porque a quem eu devia satisfação eu já havia dado, que era minha mãe, o resto
vinha depois”, e que compreendia mesmo a perda de algumas amizades, pois “ninguém tinha
a obrigação de trabalhar na sua cabeça, apesar de não considerarem que tudo continuava no
lugar, que eu continuava gente”. A última recebe o título “Final feliz”: Telma, 24 anos, conta
que encontrou “a porta da liberdade começando a se romper” aos 18 anos, quando entrou na
faculdade, onde conheceu Bell, uma mulher de 25 anos “dona de um sorriso contagiante e
151
lindo e de quebra um olhar sereno de um azul cor de mar”, por quem logo se aproximou,
enchendo-a de bilhetes, flores e presentinhos: “ela pouco havia namorado e de repente pintava
uma mulher por quem ela estava se apaixonando, entrou em crise, mas depois de um ano, um
mês e um dia precisamente, roeu a corda”. Depois de um ano de relacionamento, compraram
um apartamento e foram viver juntas. Segundo a carta, a família de Telma sabe e, se discorda,
nada comenta; a família de Bell – que não tinha pais, morava com uma irmã casada – fazia
muitas piadinhas sobre a relação de ambas. Bell rompeu com a família depois de “uma série
de pequenos inconvenientes” por “não suportar mais as incoerências” e a “vontade gritante
que eles tinham de nos separar”. Vida conjunta, carta conjunta: embora a narrativa toda seja
escrita sob o ponto de vista de Telma, a assinatura é de ambas: “em 12/04/87, fizemos 6 anos
que estamos juntas, muito bem casadas e nos amando muito”.
Acredito que encerrar uma compilação pesada como esta com dois relatos “bem-
sucedidos” no que diz respeito à revelação da homossexualidade diga algo sobre as intenções
das ativistas do GALF/Rede ao produzir o boletim. As treze primeiras cartas, em suas diversas
tonalidades da tristeza ao desamparo, expõem as dificuldades vividas por algumas lésbicas e
que poderiam ser também as de outras, conclamando à identificação; as duas últimas, por sua
vez, dão um alento e indicam que cenários menos prejudiciais eram possíveis – como, por
exemplo, através do apoio familiar, no caso de Sônia, ou mesmo através do rompimento com
a família no caso de esta manter-se intolerante e intrometida, como no caso de Bell. Note-se
que Bell aparece como alguém que inicialmente “entrou em crise” com a ideia de apaixonar-
se por Telma, mas, posteriormente, assumiu um relacionamento e um lar com ela. It gets
better, como posteriormente diria o slogan de uma campanha estadunidense para jovens
LGBTs. Por isso mesmo, narrativas como a de Nani Tobi na seção Vivências de Um Outro
Olhar são tão importantes: ao trazer uma certa linearidade, passando da descoberta à negação,
à elaboração do desejo (muitas vezes através de uma paixão vivenciada com uma mulher) e
por fim à defesa deste, histórias deste tipo constroem junto às leitoras a ideia de que viver a
homossexualidade é possível e vale a pena, mesmo que o risco de viver a liberdade seja a
ameaça de ser “mandada para a fogueira”.
De maneira geral, os textos de caráter mais “pessoal”, de elaboração narrativa de
experiências, têm seu centro na discussão da sexualidade, de experiências de preconceito e de
uma construção de si enquanto mulher que ama outras mulheres. Salvo algumas informações
biográficas consideradas necessárias como parte da apresentação da narradora e/ou para situar
os contextos em que as experiências relatadas tiveram lugar, a intersecção da sexualidade com
outros marcadores sociais da diferença é raramente explicitada – com exceção das
152
implicações das hierarquias de gênero. Como já discutido a partir de Lessa (2007) acerca da
orientação teórico-política do GALF e da Rede, expressa em suas publicações, a aproximação
com ideias oriundas de diversas vertentes do feminismo faz com que as opressões vividas
pelas mulheres no interior do patriarcado tenham também uma certa centralidade nas
reflexões das ativistas que conduziam a publicação dos periódicos, bem como as expressas
pelas associadas e colaboradoras em seu conteúdo. Discussões sobre classe são virtualmente
ausentes do material analisado, e desigualdades ligadas a questões raciais aparecem
geralmente ou como analogia (equiparando a discriminação sofrida por homossexuais ao
racismo127), na evocação de alianças entre grupos minoritários (numa concepção de minorias
que inclui mulheres, negros, indígenas, homossexuais, deficientes) ou através da ideia de
“tripla discriminação” sofrida por mulheres lésbicas negras. Mais mencionada do que
efetivamente discutida, esta imagem remete mais a uma noção de “adição” de marcadores
sociais do que a uma constituição mútua entre gênero (e sexualidade), raça e classe, como
preconiza a noção de interseccionalidade como sustentada, por exemplo, por Kimberlé
Crenshaw (1991), Avtar Brah (2006), Anne McClintock (2010) e Mara Viveros Vigoya
(2010). Sem explicitar cor, a construção do lesbianismo enquanto política e da própria
lesbianidade enquanto identidade – de maneira semelhante ao feminismo que informa a
ambas as construções – é hegemônica e implicitamente branca em seus discursos. No boletim,
tal impressão é reforçada pelo fato de que boa parte do referencial teórico utilizado para a
construção de seus textos provinha da interação com lésbicas feministas (em sua maioria,
brancas) da Europa e dos Estados Unidos, constituindo identidades lésbicas que remontam a
imaginários europeus, como por exemplo na figura das amazonas ou a discussão acerca da
existência de um período matriarcal naquele continente, que teria sido suplantado pela
127 O uso analógico mais explícito aparece na edição nº 17 (1992), com a inclusão de uma passagem de um
texto de Sueli Carneiro sobre a dificuldade das mulheres negras de atuarem tanto no movimento feminista,
enquanto negras, quanto no movimento negro, enquanto mulheres. Ao reproduzir a mensagem, onde se lê
“mulher negra”, a palavra “lésbica” é adicionada em seguida entre parênteses, e “movimento negro” é
acompanhado de “movimento homossexual”, igualmente entre parênteses. Outro exemplo aparece no
número 16 (1992), após a reprodução de uma matéria da Folha de São Paulo sobre um psicólogo, Ageu
Lisboa, que se propunha a “curar o vício gay”. Em seguida à notícia presente na seção “Deu no Jornal”,
consta uma cópia da carta enviada por Miriam Martinho à edição do veículo, em que ela rejeita a
possibilidade de que a publicação de tal conteúdo se desse com a intenção de “respeitar a pluralidade de
ideias da sociedade brasileira”, em especial no “artigos que promovam a discriminação a qualquer grupo
social. Nunca observamos, por exemplo, a publicação de artigos racistas, na Folha, sob pretexto de fornecer
ao leitor um painel das opiniões circulantes no país. Se o houve, por certo, veio acompanhada da
imprescindível análise crítica que demonstra ser o racismo o fruto de mentes totalitárias e anacrônicas” (Um
Outro Olhar, n. 16, 1992, p. 16). Se, por um lado, cabe discussão acerca do que a ativista consideraria ser um
“artigo racista” e, a partir daí, a percepção de que tais conteúdos estariam ausentes no jornal paulista, por
outro, o recurso à analogia indica uma concepção de que o racismo já se configuraria como um tipo de
preconceito mais reconhecido como tal e que, portanto, poderia ser utilizado para demonstrar como outras
formas de discriminação seriam igualmente condenáveis.
153
emergência do patriarcado. A esse respeito, vale mencionar que Audre Lorde (1984) e Gloria
Anzaldúa (2000) discutem as barreiras colocadas por ativistas brancas à participação de
mulheres negras, indígenas e mestiças nos movimentos feministas e lésbicos; Almeida e
Heilborn (2008), Medeiros (2006), Santos (2006) e Silva (2015) discutem essa questão em
contextos brasileiros.
O único momento em que questões raciais foram tomadas como centro de alguma
produção textual ao longo das 21 edições de Um Outro Olhar publicadas ao longo dos sete
anos de sua existência teve como base uma entrevista com Sueli Aparecida Horácio (cuja
única participação no boletim, fora anúncios pessoais, se deu neste espaço) e Nani Tobi,
apresentadas e identificadas como negra e mulata, respectivamente. A partir de perguntas
formuladas por Marinês, a entrevista é organizada por Naná, que também escreve um
comentário final após as contribuições das duas entrevistadas, e sai na sexta edição do
periódico. O recurso à realização de entrevistas – em geral envolvendo várias pessoas, e não
raro conduzidas como uma conversa em que as perguntas eram quase tão longas quanto as
respostas – como forma de estimular o debate sobre temas específicos que atravessavam as
experiências de mulheres lésbicas já era uma prática do GALF desde a primeira edição do
ChanaComChana128. Dada a centralidade conferida aos “depoimentos”, como Miriam
Martinho me comentou em entrevista129 e é possível verificar ao longo das edições do
periódico, esta forma de construção coletiva de textos aparece então como mais uma forma de
provocar a narração e interpretação de eventos ocorridos na vida das próprias entrevistadas,
como uma forma de facilitar e fazer falar a partir da experiência. Se opto por não conferir
maior atenção à estrutura dialógica desse tipo de texto e também por abordar mais
detidamente as respostas de Nani do que as de Sueli, é porque a intenção aqui segue sendo a
de analisar as elaborações narrativas feitas pela primeira sobre sua própria trajetória.
Se no texto em “Vivências” Nani Tobi discute a construção de sua sexualidade
colocando o foco principalmente em seus próprios sentimentos e desejos, na entrevista
“Mulheres negras, lésbicas e lindas” a elaboração de sua negritude aparece como algo
128 O primeiro e único número do ChanaComChana enquanto jornal traz em sua capa uma entrevista com
Angela RoRo. Todas as edições do boletim Chana trouxeram entrevistas temáticas, anunciadas na capa do
periódico. As entrevistadas falaram sobre mulheres e futebol (o que ocasionou a formação de contatos,
mobilizadas a partir da própria publicação, entre mulheres interessadas em formar times e jogar bola); sobre
lesbianidade na Alemanha Oriental; maternidade lésbica; relação das lésbicas com suas famílias; lésbicas e
trabalho; sexualidade lésbica; e sobre as experiências de assumir a homossexualidade. Além destas, o grupo
também realizou entrevistas com a coordenadora da Associação de Donas-de-Casa, com candidatas a
deputada no estado de São Paulo, e com uma integrante do coletivo Sexualidade e Saúde. Para realizar este
levantamento temático, consultei todas as edições do periódico, que por esta razão estão referenciadas ao
final deste trabalho.
129 Por Skype, em 02/07/2016.
154
motivado por relações, por seu contato com o “mundo fora de casa”. A necessidade de
autoconhecimento é pessoal, política e artisticamente motivada, levando à criação de novas
narrativas de si cuja reescrita passa pelo próprio nome – uma vez que o de registro constituía
“uma tremenda negação judaico-cristã de [sua] realidade negra”:
[…] comecei a fazer teatro amador, no curso superior e a batalhar pela divulgação da
poesia marginal que fazia. Percebi que só encarnaria um personagem com
competência, só conseguiria falar de uma realidade diversa da minha, se conhecesse
bem minha situação enquanto mulher, negra e lésbica. Dessa tomada de consciência
surgiu o nome Nani Tobi, que é a negação das discriminações que sofria e a vontade
de poder, um dia, estufar o peito cheia de orgulho por ser tudo que sou (Um Outro
Olhar, n. 6, 1989, p. 5).
A pergunta, cujas respostas são endereçadas por Sueli e Nani a Naná, havia sido
“como você sente sua realidade enquanto negra, ou mulata, e lésbica?”. Sueli organiza sua
resposta a partir de experiências de racismo e conta que sente que ocorre um estranhamento
em relação ao fato de sua companheira ser branca e que o preconceito, “embora encoberto” e
eventualmente vindo de pessoas que dizem não ser racistas, é perceptível. Nani, por sua vez,
elabora uma resposta mais longa, em que articula diferentes dimensões de sua identidade,
como no trecho acima. Ela explica que decidiu dizer-se “mulata”, que “não passa de uma
nuance da cor negra”, por “ainda não saber como definir-se” após rejeitar a palavra que, em
seu registro de nascimento, define sua cor – “um nome que, para mim, só serve para
determinar cor de papel de embrulho: parda”. Com ascendência indígena por parte de pai e
africana por parte da mãe, diz que, com sua pele “desbotada”, não é considerada branca e que
é, “como toda a raça brasileira, vira-lata”. Colo aqui um trecho mais longo, em que ela reflete
acerca de concepções de outras pessoas acerca da homossexualidade e da negritude e de seu
próprio esforço em combater visões estereotipadas:
quem passou por minha vida sofreu grandes modificações. Consegue, agora, olhar
para uma mulher negra sem vê-la como objeto sexual. Consegue pensar em uma
lésbica sem imaginar a “fancha que fecha”. […] Luto, junto às pessoas que conheço
e que vou conhecendo, para mostrar que sou um ser humano como outro qualquer,
com todos os sentimentos inerentes a qualquer um. Nesta luta pelo reconhecimento,
infelizmente, fui atingida pelo fenômeno do embranquecimento, embora
involuntariamente. As pessoas acham que, por eu ter um diploma, sou diferente dos
outros negros. […] Agora […], minha luta é outra. É a de mostrar que continuo
sendo negra, só que reivindicando meus direitos como um ser humano (Um Outro
Olhar, n.. 6, p. 6).
Figura 14: Página da entrevista de Nani Tobi e Sueli Aparecida Horácio (Um Outro Olhar, n. 6, 1989)
156
humana, o que a habilita a reivindicar seus direitos – e o próprio fato de ter que afirmar sua
humanidade aponta para o quanto a intersecção desses marcadores a colocavam em uma
posição de desumanização, a ponto de levá-la a precisar reafirmar que tinha “sentimentos
inerentes a qualquer um”. A menção ao “fenômeno do embranquecimento” faz notar como a
raça é percebida e construída também a partir da classe, em articulação com o gênero – que,
na realidade, todos esses marcadores se constituem simultaneamente (Brah, 2006;
McClintock, 2010; Viveros Vigoya, 2010). Nani alinha-se ao ideário da Rede em que, dentro
das possibilidades de cada uma, é importante combater “visões distorcidas” da
homossexualidade, o que ela diz fazer em suas relações, questionando estereótipos como os
da “fancha que fecha” – ou, dito de outra forma, a associação entre lesbianidade e
apresentação de gênero “masculina” – e da mulher negra hipersexualizada. Almeida (2005) e
Almeida e Heilborn (2008, p. 244) comentam que as “expectativas em torno do desempenho
sexual” apareceram como “elemento marcante das trajetórias como ‘mulher-negra-lésbica’”
das mulheres entrevistadas em sua pesquisa, especialmente quando estas falavam de parcerias
heterocrômicas. A partir de Laura Moutinho, estes autores ressaltam que nestes casos a
“objetificação exótica racial” tem uma “dupla face. Ela pode estar na ‘mulata lésbica’ e,
portanto, constituída nos moldes dos atributos de gênero feminino, comumente associados à
mulher negra, e pode estar na ‘fancha negra’, comumente constituída nos moldes do homem
negro” (Almeida; Heilborn, 2008, p. 244). Cabe notar que, ao colocar seu próprio papel como
desencadeadora desses processos de “grandes modificações” nas concepções sobre negritude
e homossexualidade por parte das “pessoas que passaram em sua vida”, Nani implica que sua
vida foi atravessada pela convivência com sujeitos que, antes, tinham a “fancha que fecha”
como imagem automática das lésbicas e que olhavam para mulheres negras como objetos
sexuais – e a própria ideia de “objeto sexual” joga uma luz sobre a necessidade de Nani de
demarcar-se enquanto humana. Sobre este tópico, a ativista também elabora experiências
passadas através de sua escrita no boletim.
Seguindo a entrevista, Naná questiona sobre a existência do racismo entre lésbicas.
Sueli diz felizmente nunca ter vivenciado algo do tipo, mas que não duvida que aconteça. A
resposta de Nani faz pensar em um argumento de Ann Cvetkovitch (2008) em seu An archive
of feelings, em que a autora sustenta que produções culturais (tais como periódicos impressos,
músicas, filmes, performances e mesmo registros pessoais depositados em arquivos LGBT)
realizadas por gays e lésbicas são o repositório de muitas experiências de dor e violência,
além de documentarem as respostas, criativas e públicas, a elas. Considerando que os sujeitos
são constituídos por suas experiências (Scott, 1998), as páginas do periódico aqui podem ser
157
O relato de Nani parece explicar por que aparecera, no trecho destacado anteriormente,
a rejeição à hipersexualização da mulher negra e o estereótipo da “fancha que fecha”. Embora
não seja possível fazer maiores inferências acerca de sua apresentação de gênero unicamente a
partir do texto, a menção à imagem da “fancha” e a cobrança de que ela, por ser negra,
devesse ser “extremamente ativa” como “a descendente de um reprodutor das senzalas”,
ilustram a transposição da expectativa de hipervirilidade do homem negro para a lésbica negra
não feminina, como no argumento de Almeida e Heilborn citado na página anterior. Cabe
notar, também, a percepção de uma hierarquia de poder, de uma assimetria no interior do par,
a partir da declaração de que a parceira se sentia “toda poderosa” perto de pessoas negras, que
Nani elabora a partir da ideia de “dominação”. Em um trecho anterior da entrevista, ela
também comenta uma visão existente da homossexualidade como um “arremedo da
heterossexualidade” e rejeita sua reprodução “por não me identificar com essa situação de
dominação bem papai-mamãe que me fora apresentada. Jamais reproduziria, de livre e
espontânea vontade, um relacionamento tão falho. Não seria representante de uma instituição
falida” (grifos meus). Novamente, suas reflexões podem ser relacionadas aos argumentos de
Viveros Vigoya (2010) em sua discussão sobre a racialização do sexo e a sexualização da raça
na América Latina. Esta autora destaca as imbricações de regulações raciais e de gênero,
destacando a associação entre negritude e hipersexualização nos imaginários coloniais
158
130 Interessantemente, embora Naná aqui o faça, Nani não explicita a cor da parceira em sua narrativa.
159
relação às de outra cor. O que impede uma branca de aceitar um relacionamento com uma
negra, ou mulata, sem entrar numa de superioridade, de dominação?” (Um Outro Olhar, n. 6,
p. 7). O questionamento é suplementado por uma crítica em relação às mensagens enviadas
para a seção Troca-Cartas, muitas delas contendo “preconceitos”, incluindo o racial, na
definição da correspondente desejada. Esta seção, como comentado no capítulo anterior,
mereceria um estudo à parte, levando-se em conta os marcadores sociais da diferença
passíveis de análise a partir das descrições das mulheres e seus ideais de relacionamento, que
refletem uma tendência à homogamia social em parcerias sexuais e afetivas entre mulheres,
como aponta Heilborn (2004). Além da idade procurada, não raro as anunciantes no boletim
explicitam querer correspondentes (mesmo que “para amizade”) brancas, magras e/ou altas,
de “bom nível cultural”. Um efeito do “chamado à consciência” suscitado pela entrevista de
Sueli e Nani e as posteriores elaborações tecidas por Naná e as outras ativistas que elaboraram
as porcentagens de anúncios “preconceituosos” pode ser verificado duas edições seguintes,
quando uma carta assinada por Monica justifica-se por seus anúncios anteriores “parecerem
tão racistas” (Um Outro Olhar, n.8, 1989, p. 2). A partir do número 9 de Um Outro Olhar, a
seção Troca-Cartas deixa de circular e só retorna nas duas últimas edições do periódico,
dificultando o acompanhamento de outros impactos possíveis destas reflexões sobre o
conteúdo dos anúncios. Ao longo desse período, uma outra influência de Nani Tobi sobre o
boletim se faria notar.
Nani é listada como colaboradora de duas edições do periódico, números 9 e 10
(ambos de 1990), sem que se discrimine qual exatamente foi sua participação para seus
conteúdos, em que não há nenhum texto assinada por ela. A partir do número 11, ela começa a
figurar como digitadora e diagramadora do periódico, atividade que desenvolveu até a edição
de número 18, segundo os expedientes do boletim. As mudanças na apresentação gráfica de
Um Outro Olhar, comentadas brevemente na descrição que fiz do periódico ao longo deste
capítulo e do anterior, portanto, foram implementadas por ela (ainda que possivelmente a
partir de opiniões e comentários das demais ativistas que participavam da sua produção, e de
outras leitoras). Cabe lembrar que o acesso a computadores pessoais (bem como a
desenvoltura com estes, que dirá de programas de edição gráfica131) não era comum no Brasil
da década de 1990. Também vale comentar que Nani apresentava-se como “auxiliar de
131 Em entrevista, Theresa Fernandes e Monica Camargo, editoras da revista Femme, que circulou entre 1993 e
1995, destacaram o alto preço dos computadores e o preço quase proibitivo dos softwares de edição como
dificuldades para a utilização deste tipo de tecnologia. No caso delas, o acesso a estes programas para a
produção da revista foi oportunizado por um amigo ligado ao Grupo Homossexual do Partido dos
Trabalhadores, o jornalista William Aguiar, que não apenas lhes cedeu as licenças dos programas como as
ensinou a utilizá-los.
160
Figura 15: Poemas e desenhos de Nani Tobi (Um Outro Olhar, n. 13, 1991)
162
distinguem-se dos demais por não trazerem a escrita açucarada presente em muitas descrições
da mulher amada presente neste tipo de poema. Finalizo esta seção com um dos dois poemas
desta autora presentes na edição nº 14 do periódico:
GENUG
Estou cansada
de gastar contigo
todo o meu alemão,
os dedos,
as mãos
só
escrevendo.
Crê!
Vendo o tempo
passado em linhas
mal escritas.
Basta!
(Um Outro Olhar, n. 14, 1991, p. 14)
Basta! Basta de Nani Tobi por enquanto. Para seguir falando sobre a relação das
mulheres lésbicas com a poesia, e sobre a escrita de poesias e cartas ser menos rigorosa,
passemos às colaborações de Eliane Di Santi a Um Outro Olhar.
3.3 Eliane Di Santi: toda lésbica que se preze gosta de escrever poesia
133 Talvez porque tais anúncios, em geral, se voltassem mais para a busca de parcerias sexuais e para namoro.
Em uma carta enviada à Rede e publicada na edição 18 do boletim (1992-1993), Eliane conta estar em um
163
carta, ela opina sobre dois tópicos presentes no Um Outro Olhar nº11, já comentados no
capítulo anterior: o ataque misógino de um homem armado a uma escola em Montreal,
Canadá, que resultou em várias mortes, e os recortes de jornal noticiando a agressão de
mulheres em São Paulo pelo “maníaco do estilete”. Naquela edição, a seção “Deu no Jornal”
também havia trazido pequenas notas celebrando a realização de uniões homoafetivas no
continente europeu.
Não estranhei o fato de, na Dinamarca, já terem sido realizados 600 casamentos de
homossexuais. Na Suécia, o casamento é permitido há muito tempo. Inclusive lá,
eles e elas (nós), são muito respeitados. Sei disto porque um padreco metido a
sabido, daqui da minha cidade foi pra lá e ao voltar, disse que ficou estarrecido […]
Veio pra cá falando atrocidades daquela cidade. É um ignorante…
O que me chocou de verdade foi a reportagem sobre violência urbana nas grandes
cidades. E o duro é saber que, nas cidades do interior, está acontecendo o mesmo e
na mesma escala. Aqui há inúmeros casos de estupro, ou de simples tentativa de,
assassinatos de mulheres, por parte do marido, e, o mais grave, até por parte de
parentes do marido (Um Outro Olhar, n. 12, 1990, p. 11).
Eliane opina sobre as notícias compartilhadas pela Rede a partir de suas relações mais
próximas, relacionando seu contexto local a acontecimentos de outras cidades e mesmo
países. Ela explicita sua percepção de que as mulheres estão expostas, no interior, às mesmas
violências que ocorrem nos grandes centros. Declarações “ignorantes” do “padreco” de
Laranjal são tomadas pelo avesso, como evidência de que a Suécia, onde ele estivera, é muito
mais “respeitosa” com os homossexuais. Há uma equivalência entre “elas” (as homossexuais
suecas) e “nós” (as lésbicas – todas? As brasileiras?), evidenciando o que Miguel Vale de
Almeida (2010) diz ao sustentar que a identidade homossexual é construída de maneira
transnacional, a partir de intercâmbios e influências entre grupos ativistas, criando conjunto
de experiências tidas como comuns e mesmo a noção de uma história compartilhada. Em
outro movimento que, com o avançar da etnografia com estes documentos, eu reconheceria
como outro traço característico das correspondências de Eliane, ao final ela muda de tom,
passando para um mais positivo e alegre, com a explícita valorização de seu orgulho:
Bem, chega de conversa fiada e de tanta filosofia, pois, apesar de tudo, o mundo é
maravilhoso e estamos vivas e somos lésbicas. Falando francamente, me orgulho
mesmo de ser lésbica!
E por falar em coisas belas… Que poesia incrível fez a Míriam, não é?
Aí vai uma para vocês também, e em sua homenagem, Míriam:
"Quero ser
sua respiração
para percorrer
seus seios
e desembocar
em seu dom
de ser
MULHER!
Conhecendo um pouco de sua história [de Rosely], percebi que, agora sim, estou no
caminho certo, que, agora sim, orgulho-me de ser lésbica, embora seja difícil dizer
isto para todas as pessoas, indistintamente, sem sentir receio da reação, como ela
fazia.
[…] às vezes, sinto medo de serem a angústia e as depressões as causas do
desânimo, da falta de coragem, da escassez de afeto, entre nós mesmas, que levam a
um grande número de lésbicas e homossexuais ao suicídio. Tenho medo de morrer
assim (Um Outro Olhar, n. 13, 1991, p. 3).
uso desse espaço – e também o tipo de vínculo que ela sentia estar criando nessa rede.
Novamente, após ter passado por temas pesados e mesmo profundos, revelando partes
doloridas de si, a carta dá uma guinada para um tom mais positivo e encerra com uma poesia:
Encontrei, na Rede, um lugar, um veículo para expandir minhas ideias, meus pontos
de vista e também conhecer outras opiniões, outras pessoas interessantes. Quero
dizer, é que me parecem antigas amigas. Encontrei em vocês um carinho muito
grande e digo, de coração, que contribuirei com o que for necessário para ver esta
Rede segura e legal.
Então vou terminando esta carta com uma de minhas poesias. Acho que toda lésbica
que se preza gosta de escrever poesias, não é?
Poesia
Simplesinha, mas na simplicidade das coisas é que está a verdadeira razão da vida,
não é?
Feliz Natal e um 91 repleto de realizações, felicidades, saúde e trabalho!
Mantenho o final da carta na íntegra pois lê-la assim, com os votos de fim de ano (vale
anotar: enquanto escrevo esta passagem da dissertação, essas festividades se aproximam) e
diante da reflexão dela de que sentia ter ali “antigas amigas”, me fez repensar com um pouco
mais de cuidado a assinatura de Eliane aí. Em minhas primeiras leituras, sem um
acompanhamento mais cuidadoso, eu havia ficado com a impressão de que ela inicialmente
assinava apenas seu prenome nas primeiras cartas, e posteriormente passou a incluir também
seu sobrenome. Essa impressão não chega a ser de todo falsa, mas, prestando mais atenção,
reparei em como as poesias (com exceção desta acima) em geral eram acompanhadas pelo
nome completo, diferentemente das primeiras publicações na seção de cartas. De início, e a
partir de uma busca por uma certa linearidade temporal, imaginava que (como ocorrera com
outras colaboradoras de Um Outro Olhar) isso se devesse a algum receio inicial de se expor,
aos poucos abandonado por se sentir crescentemente mais protegida no interior dessa “Rede
166
Figura 16: Seção "Poesias" (Um Outro Olhar, n. 17, 1992) com o poema "Juntas", de Eliane Di Santi
167
segura e legal”. Diante da afetividade expressa nesta carta, contudo, penso que talvez assinar
apenas Eliane seja mais uma indicação de intimidade – quem assina o nome completo ao
escrever uma mensagem de fim de ano para uma “antiga amiga”?
“Simplesinha”, a poesia – tão simples que seu nome é meramente Poesia – seria
posteriormente reelaborada e publicada, com diferente métrica e algumas alterações em sua
escrita, na edição 17 do boletim (agora, com o título “Juntas”). Do poema, emergem
novamente concepções sobre o amor entre duas mulheres – a presença da parceira
desencadeia sentimentos, impede a sensatez, motiva a escrita (que seria impossível sem ela); é
unidas que elas lutam e em união devem permanecer – um amor maior do que a paixão,
desconhecendo limites, como coloca Muniz (1992), exige no mínimo a vida inteira. Confesso
que, de início, tive algumas dificuldades para trabalhar com as poesias de meu campo. Como
comentei no primeiro capítulo desta dissertação, o fato de ser eu mesma lésbica me traz
alguma intimidade prévia com algumas dinâmicas do campo, e o gosto de muitas lésbicas por
poemas dulcíssimos evocando concepções de amor romântico134 nunca foram exatamente do
meu agrado; fora isso, meu gosto de classe (Bourdieu, 1983), enquanto leitora oriunda da
classe média universitária e com uma forte inclinação pelas letras, em geral me leva a preferir
poemas cuja elaboração prioriza uma certa inventividade e minúcia no uso da linguagem e/ou
a exploração de diferentes ritmos e musicalidades na métrica. Longe de querer tecer aqui
alguma discussão propriamente estética ou formal sobre poesia, menciono meus gostos
pessoais em relação a poesias e meu distanciamento prévio em relação a eventos como
“saraus” e, de maneira geral, outras iniciativas poéticas promovidas pelo movimento lésbico
para mencionar como minha relação com os poemas do campo foi se modificando ao longo
do próprio campo – de forma que, com o tempo, passei a apreciá-los e lê-los com maior
ternura, curiosidade e alguns questionamentos. A presença das poesias no conteúdo de uma
publicação lésbica no Brasil pode ser localizada já nas cartas publicadas na segunda edição do
ChanaComChana, em que Neide pede “algo mais amigável, por exemplo, uma seção de
poesias, uma troca de correspondências, alguma coisa que possa movimentar as pessoas”135.
Em entrevistas, duas de minhas interlocutoras – Zora Yonara e Neusa Pereira – leram poemas
seus para mim; Rita Colaço (que chegou a publicar um poema erótico em Um Outro Olhar)
presenteou-me com dois livros seus de poesias; para ser totalmente honesta – e porque,
diferente de Margareth Mead e Ruth Benedict136, não preciso ocultar que escrevo coisas outras
134 Para uma discussão sociológica do conceito de amor romântico e suas implicações de exclusividade afetiva,
total entrega e mesmo codependência entre parceiros, ver Giddens (1993).
135 ChanaComChana, n. 2, 1983, p. 12.
136 As duas antropólogas, que mantiveram um curto (e secreto) relacionamento que se transformou em uma
168
além de antropologia –, também ensaio alguns versos, vez em quando. Nas edições de Um
Outro Olhar, me parece mais comum encontrar mulheres que escreveram poesias e não
ensaios/artigos do que o contrário – ou seja, houve quem só escrevesse nessa seção. O que
aproximaria “toda lésbica que se preza” – o que, pelo visto, me inclui – à poesia? Seria de fato
a poesia uma escrita simples?
Em Age, Race, Class, and Sex, Audre Lorde traz apontamentos que ajudam a pensar
estas questões:
cultura e também o homem branco, que escrever não é para mulheres como nós?” (2000, p.
230). O ato de escrever aparece então como “um ato de criar alma, é alquimia. É a busca de
um eu” (p. 232), ato de confronto e resistência, de contestação a discursos preconceituosos e
discriminatórios feitos por outrem a respeito de si, e, por isso mesmo, uma forma de
conhecer-se a si mesma e cultivar uma relação consigo:
poema “simples” – não apenas para sua concepção e escrita, mas também ao se levar em
conta a leitura e consulta de diferentes livros e outros materiais que são referenciados neste
tipo de texto. Longe de colocar um demérito à poesia enquanto escrita “menos rigorosa”
(como seria, também, a das cartas), vejo esta menor rigidez justamente como algo que
facilitou a participação de um número maior de mulheres nas páginas de Um Outro Olhar.
Longe dos “ultrajes da censura”, como disse Anzaldúa, as associadas da Rede encontraram
nestas páginas a possibilidade de expressar-se sobre o não dito, criando na escrita
compensações para o que a vida real não lhes dava: a possibilidade de expressar seus amores
e sua afetividade por outras mulheres, publicamente e ainda assim em segurança.
Mais do que a acessibilidade da produção poética, o tom amigável e cúmplice da
hipérbole de Eliane (“toda lésbica que se preze gosta de escrever poesia”) indica a valorização
da poesia em si – não só pela via do consumo, mas incluindo sua escrita. Praticamente todas
as edições de Um Outro Olhar trouxeram poesias, ausentes apenas na segunda edição (a mais
enxuta em toda a coleção, que conta apenas com um ensaio, um relato de encontro, e as
seções “Troca-Cartas” e “Materiais Recebidos”). No ChanaComChana, todas as edições a
partir da segunda (a mesma em que fora publicada a carta citada páginas atrás, fazendo um
pedido por um material mais descontraído e pessoal) contam com esse tipo de conteúdo,
presente, também, na revista Femme e no jornal Visibilidade, para citar alguns dos poucos
títulos de periódicos lésbicos a que tive acesso ao longo do trabalho de campo. Não deixa de
ser notável o fato de que o ícone histórico mais antigo (e provavelmente mais venerado) da
lesbianidade seja, também, uma poeta: Safo, criadora e professora de uma escola para
mulheres na ilha grega de Lesbos e cujas poesias ficaram célebres tanto por sua beleza e
criatividade na métrica quanto pelo fato de seu conteúdo amoroso voltar-se para outras
mulheres139. Se, por um lado, o teor homoerótico de seus versos lhe rendeu detratores à época,
que a acusavam de ser feia e masculinizada 140, e levou à posterior destruição de sua obra, da
qual hoje restam apenas fragmentos, a preservação destes (ainda que poucos e incompletos) e
dos registros de sua história (ainda que dela haja diferentes versões, em especial em relação à
sua morte) e de seus amores por outras mulheres fazem dela uma presença praticamente certa
em materiais produzidos por e para lésbicas 141. Apenas em Um Outro Olhar, Safo aparece ao
139 Almeida e Heilborn (2008) discutem brevemente a constituição de Safo como “mito fundador” da identidade
lésbica.
140 Cf. Costa (2011).
141 Para citar um material de meu campo, a primeira edição do boletim Ponto G, do Grupo Lésbico da Bahia,
que me foi remetido por Zora Yonara, traz um pequeno texto sobre ela e uma foto de uma estátua sua - “a
única estátua de Sapho que se tem conhecimento no mundo fica em Ilhéus/BA” (Ponto G, n. 1, 1998, p. 2).
Jane Pantel disse-me em entrevista que após começar a comparecer às reuniões deste grupo, passou a
pesquisar compulsivamente sobre lesbianidade nas bibliotecas públicas de Salvador. Quando perguntei a ela
172
menos duas vezes: a seção de poesias da última edição do periódico traz unicamente
fragmentos do que restou de sua obra, e no texto Apanhado sucinto sobre o lesbianismo no
Brasil e no mundo, publicado na edição de número 3 do boletim, Marinês inicia seu
levantamento sobre relacionamentos entre mulheres trazendo aquele que foi, “talvez, sua
primeira e significativa aparição histórica”. Citando como fontes os livros Amor entre
mulheres, de Charlotte Wolf, e O lesbianismo no Brasil, de Luiz Mott, Marinês resume:
foi na ilha grega de Lesbos (hoje conhecida como Mitilene) que viveu a poetisa
Safo. Sua obra, nove livros de poemas, infelizmente, foi queimada em Roma pelo
papa Gregório VII, talvez na tentativa de “esconder” certas preferências sexuais que,
certamente, existiam então. Hoje restam-nos fragmentos da poesia de Safo, os quais
falam do amor entre mulheres. Os historiadores dizem que as lésbicas que
conviveram com ela, provavelmente, pertenciam à classe aristocrática e, quem sabe,
eram também poetas como Safo (Um Outro Olhar, n. 3, 1988, p. 9).
O recurso ao passado, à primeira aparição histórica, serve também para colocar uma
certa permanência no tempo das práticas e afetos homoeróticos entre mulheres, “que,
certamente, existiam” em outras épocas142. Dado que a lírica era uma das matérias ensinadas
por Safo, é de fato de se esperar que suas alunas também fizessem poesias – mesmo que sem
o reconhecimento concedido à sua mestra, que recebeu de Platão o epíteto de Décima Musa e
consta no panteão dos nove maiores poetas líricos do helenismo. Sem querer adentrar tal
conjetura, destaco aqui apenas a importância conferida à poeta de Lesbos pelas ativistas que
usam o gentílico da ilha onde ela viveu como denominação para a identidade sexual e política
sob a qual organizam e dão sentido às suas experiências – ainda que este nome tenha sido
inicialmente cunhado não pelos movimentos de lésbicas do século XX e sim por discursos
médico-legais de séculos anteriores (Oliveira, C. F., 2015). Diante disso tudo, meu argumento
de que o ativismo do Grupo Ação Lésbica-Feminista (e posteriormente da Rede de
Informação Lésbica Um Outro Olhar) surge e se desenvolve enredado em escritas parece até
um pouco tímido: lesbianidade e poética parecem estar de alguma maneira atreladas desde a
concepção da noção de homossexualidade feminina…
Sem querer endossar a afirmação peremptória de que toda lésbica gosta de (e faz)
poesia, contudo, me parece interessante pensar o quanto este tipo de produção é valorizado
em iniciativas culturais voltadas para mulheres que se relacionam sexual e afetivamente com
mulheres. Embora não tenha tomado como objeto de análise para esta pesquisa todas as
sobre o que ela pesquisava então, “Safo” foi o primeiro tópico mencionado.
142 O recurso ao passado (não raro em tons essencialistas) como forma de legitimação da homossexualidade
aparece também em outras publicações LGBT, inclusive na que analiso em um trabalho anterior (Maia,
2011).
173
entrevistas que realizei com ativistas lésbicas ao longo de meu trabalho de campo, cabe notar
que a realização de saraus e a organização de coletâneas de poesias (fora menções à própria
escrita poética por parte destas mulheres que me narraram suas vidas em nossas interlocuções)
foram frequentemente citadas como atividades realizadas pelos grupos que elas coordenam ou
coordenavam. A esse respeito, trago uma passagem etnográfica do trabalho de Nathanael
Araújo (2016) em seu estudo sobre editoras brasileiras voltadas para o público LGBT. Araújo
descreve uma cena que marca o ocaso da Brejeira Malagueta, que surgiu em 2008
reivindicando o título de “a primeira Editora lésbica na América Latina” (Araújo, 2016, p.
87): o Sarau das Brejeiras, último evento público realizado antes do encerramento da empresa
devido à sua insustentabilidade financeira143. Destaco uma passagem do começo do sarau, em
que a poeta Neusa Doretto apresentou dois de seus textos. O autor descreve a reação das
presentes a Frivolidades, um poema “de putaria”:
Diante do poema lido, as presentes na plateia expressam seus próprios desejos umas
para as outras – seja compartilhando algo com uma amiga, direcionando um chamado para a
autora do texto ou, quem sabe, de maneira indistinta para potenciais solteiras dispersas pelo
público do sarau. Acima de tudo, o Sarau é um espaço em que é possível falar sobre este
desejo – e o poema surge como um acionador ou catalisador dessa fala, que logo toma a
forma espirituosa de gritos espalhados pelo ambiente. Em sua observação cuidadosa, Araújo
também repara em duas mulheres, ambas próximas da casa dos 50 anos, que se envolvem
“num abraço que fez seus rostos se aproximarem, demonstrando intimidade, confiança e
conforto em compartilhar gestos afetivos com os demais presentes” (Araújo, 2016, p. 93). É
possível que este clima intimista tenha estimulado outras mulheres a criarem a coragem de
pegar o microfone. O autor conta, por exemplo, que Késia começou sua apresentação tão
143 Segundo as editoras Hanna Korich e Laura Bacellar, uma das dificuldades em empreender comercialmente –
ou simplesmente manter financeiramente sustentável uma iniciativa do tipo – para lésbicas é o fato de que
estas não compram os produtos a elas destinados (Araújo, 2016). Bacellar, em entrevista realizada comigo
em 12/06/2016, reiterou esta opinião. As revistas Femme e Um Outro Olhar deixaram de ser produzidas por
motivos semelhantes, como me contaram, respectivamente, Monica Camargo e Theresa Fernandes
(entrevista, 27/08/2016) e Miriam Martinho (entrevista, 02/07/2016). O esforço de produzi-las, com
orçamentos curtos e equipes reduzidas (fora a necessidade de buscar conteúdo, elaborado de maneira
voluntária, e fomentar sua produção), parecia grande demais frente ao retorno recebido – não apenas
financeiro, mas também de engajamento e, por que não, mesmo afetivo em relação às publicações.
174
tímida que quase não foi possível compreender seu nome, emitido por uma voz “abafada, para
dentro”; contudo, vencida a barreira inicial e com o encorajamento das organizadoras, acabou
lendo quatro de seus poemas – dos quais o último se encerra com a necessidade de “amar sem
culpa”. Imagino que a veiculação de poemas no boletim Um Outro Olhar (como em outras
publicações lésbicas) tivessem efeito semelhante em algumas de suas leitoras, encorajando-as
à escrita.
A carência de representações – em especial, das menos catastróficas – de relações
entre mulheres na literatura, em especial na de ficção, é mencionada no Um Outro Olhar n. 1
(1987) por uma leitora que lamenta os finais trágicos das obras de Cassandra Rios, autora
ainda assim conhecida como a “Papisa da Homossexualidade” e estimada por muitas lésbicas.
Como já comentado no primeiro capítulo desta dissertação, Nadia Nogueira (2005) conta que
suas interlocutoras, mulheres que vivenciaram relacionamentos com outras mulheres nas
décadas de 1950 e 1960 – justamente quando Rios simultaneamente via sua carreira como
escritora sercatapultada como best-seller e começava a ser censurada pela ditadura – tinham
na escritora paulista uma “heroína”. Ainda que sua literatura não trouxesse as perspectivas
mais esperançosas para casais entre mulheres, Cassandra Rios foi por muito tempo a única
escritora conhecida no Brasil a pelo menos retratá-los144; segundo a narrativa de editoras
envolvidas na busca por constituir um nicho de mercado para este público, o primeiro livro
lésbico assinado por uma autora brasileira a trazer um final feliz chegaria só em 1998, com a
publicação de Julieta e Julieta, de Fátima Mesquita, pela Edições GLS (Araújo, 2016). Antes
disso, as associadas ao GALF e à Rede já poderiam escrutinar as seções de “Materiais
recebidos” em Um Outro Olhar à cata de algum romance interessante para assim tentar
encontrar, por exemplo, Viva Sapata, tradução de Rubyfruit Jungle, de Rita Mae Brown, A
Cor Púrpura, de Alice Walker (ambas citadas no boletim) ou então Carol, romance publicado
por Patricia Highsmith sob pseudônimo nos anos 1950, que leva a fama de primeiro pulp
lésbico com final feliz. A própria criação desta biblioteca, acessível por xerox através da
associação ao grupo, já demonstra uma reação à dificuldade de localizar produções culturais
retratando amores entre mulheres (fossem alegres ou tristes seus finais). Publicar poesias no
periódico – em especial as de cunho amoroso e/ou erótico –, então, é tanto uma forma de dar
vazão à oferta quanto de atender uma demanda por materiais que refletissem o que as
organizadoras do boletim entendiam como o “jeito muito especial que as lésbicas têm de se
olhar, numa mistura de cumplicidade e desejo, onde os papéis de sujeito e objeto são
perfeitamente intercambiáveis” (Um Outro Olhar, n. 1, 1982, p. 3).
144 Sobre a homossexualidade feminina na obra de Cassandra Rios, cf. Holanda et. al (2015) e Piovezan (2005).
175
OUTRA MULHER
Eliane poderia ter construído este texto sob a forma de ensaio ou mesmo como um
depoimento para a seção “Vivências”, mas é na forma supostamente “menos rigorosa” do
poema que ela encontra maneiras de compartilhar suas experiências e organizar os sentidos
atribuídos a elas. Leem-se aí o medo devido ao preconceito, as “humilhações e guetos”, o
amor por outra mulher como “verdadeiro sentimento” que na prática configuraria “um outro
tipo de vida qualquer”, mas que, diante das pressões para “reprimir os desejos”, acaba
exigindo que se lute uma verdadeira “batalha” ao longo da vida. Num outro tom, estes tópicos
estiveram todos presentes em uma carta dela, publicada alguns anos antes no boletim, onde
ela comentava a reprodução da matéria do ChanaComChana que narrava a invasão do Ferro’s
Bar em 1983, dizendo que esta fora justamente
a época em que eu me mudei pra Sampa, a fim de estudar, trabalhar, esquecer uma
176
Sempre que a Rede decidia publicar alguma homenagem póstuma a Rosely Roth, na
edição seguinte uma carta de Eliane novamente celebraria a sua curta, porém ousada,
existência. Como já mencionado, a moradora de Laranjal Paulista teve muitas
correspondências publicadas no periódico e, em todas elas, ela faria comentários à edição
anterior, por vezes bastante extensos: há cartas suas que chegam a ocupar três páginas inteiras.
Cabe mais mencionar esta característica de suas mensagens do que propriamente analisá-las,
uma vez que isso demandaria também discutir o conteúdo dos artigos, poesias e recortes de
jornal a que ela fazia referência. Numa passada de olhos, pode-se constatar que suas cartas
não apenas respondem mas de certa forma resumem alguns tópicos presentes no periódico.
Eliane mencionou, como já vimos, os casamentos de homossexuais na Dinamarca e a
violência contra a mulher, e também: socialização de gênero na educação de crianças, antigas
sociedades matriarcais na Europa, cristianismo e perseguição às mulheres, sexualidade lésbica
e possibilidade de contaminação pelo vírus da AIDS, a possibilidade da “cura do ‘vício gay’”
como proposta por um psicólogo à época, eugenia, negativa de pensão a companheiros de
mesmo sexo, retirada da homossexualidade do Código Internacional de Doenças (CID),
diversos efeitos do patriarcado, apagamento de mulheres na história, constituição de redes
entre lésbicas e sua importância, efeitos da solidão e do isolamento entre mulheres que se
relacionam com mulheres, dificuldade de estabelecer novas amizades com outras mulheres
lésbicas, os filmes Instinto Selvagem e Thelma e Louise, visibilidade e orgulho, a nomeação
de uma mulher lésbica para um alto cargo no governo estadunidense, o recrudescimento do
conservadorismo contra a homossexualidade (expresso na emergência de grupos neonazistas e
de organizações religiosas com discurso homofóbico), diferenças entre gays e lésbicas. Isso
177
Figura 18: Em carta (Um Outro Olhar, n. 15, 1991), Eliane Di Santi comenta a edição anterior do boletim
178
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Junho-Julho de 2016. Em mais uma leitura dos boletins Um Outro Olhar, reparo na
persistência do anúncio pessoal de Naná Mendonça, que por dois anos divulgou na seção
“Troca-Cartas” sua disponibilidade para corresponder-se com lésbicas que precisassem do
“apoio moral e do afeto de uma amiga”. Afetada por essa mensagem, escolho a edição em que
a diagramação da seção tornava o pequeno texto mais legível, fotografo e compartilho em
meus perfis em sites de redes sociais, imbuída tanto da vontade de falar sobre meu trabalho
quanto pela suposição de que amigas minhas poderiam se sentir também tocadas pela
generosidade da médica pernambucana em sua oferta de amizade. Dias depois, entrevisto
Miriam Martinho e considero meu trabalho de campo como finalmente concluído (na
realidade, realizaria ainda mais uma entrevista). Celebrando este acontecimento, vou para o
aniversário de um amigo; lá, uma amiga em comum vem alegremente comentar meu post com
a mensagem de Naná. Pelo visto, passados trinta anos da circulação destes materiais, eles
seguem capazes de despertar o interesse nas lésbicas que os leem – ao menos em certos
círculos nos quais me movimento, próximos tanto de discursos acadêmicos quanto de diversas
vertentes da militância pelos direitos das mulheres e pessoas LGBT. Explico para minha
amiga que eu então via os anúncios para correspondência como um interesse à parte, mas que
meu interesse era o panorama maior – a constituição da imprensa lésbica como um grande
campo, em que eu analisaria a articulação de diversos grupos ativistas brasileiros (bem como
as trajetórias das mulheres que, dentro destes, escreveram e publicaram periódicos impressos).
Ela parece um pouco surpresa: “achei que era sobre isso, que você estudasse as cartas”, e uma
pulga se instala atrás de minha orelha. E se meu trabalho fosse, na realidade, sobre isso?
Através de um diferente suporte (o online, não mais o papel) e do compartilhamento de uma
informação a que até então poucas de minhas conhecidas haviam tido acesso, o anúncio de
Naná e sua valorização da amizade geravam efeitos na minha própria rede de amizades – e,
em contrapartida, as reações de minhas amigas me levavam a dirigir um outro olhar para os
documentos do meu campo.
***
compreender a sua própria sexualidade. Diante do mencionado acima, a própria escrita pode
ser vista como um exercício de compreensão de si – ou, como colocaria Foucault (1992), a
elaboração de certos registros de escrita é inseparável da constituição do sujeito que escreve.
Ao ofertar tais escritos para a leitura de outras mulheres com questionamentos, incômodos e
aspirações ligadas à atração sexual e afetiva por mulheres, o periódico também
disponibilizava para suas leitoras as tais “imagens positivas” da lesbianidade, cuja ausência na
“sociedade” é lamentada em tantas páginas suas; ao fazê-lo, tais textos ajudavam a inserir no
campo de possibilidades das associadas do GALF e da Rede – mulheres que muitas vezes
lutavam contra sentimentos de culpa por seus próprios desejos, que acreditavam que seria
necessário reprimi-los e/ou que experimentar uma relação com outra mulher seria algo da
ordem do irrealizável – projetos ligados ao amor e à construção de relacionamentos de caráter
sexual e afetivo com outras mulheres. Sendo assim, ao agir também como um lugar de
encontro – não apenas para a troca de ideias e informações, como mencionado acima, mas
também onde era possível conhecer pessoas novas para amizade, namoro ou sexo –, as
páginas do periódico fomentavam o estabelecimento de redes de relações entre suas
associadas. Idealmente, além de tais afetos, tais vínculos deveriam mobilizar também outros
conteúdos (Mitchell, 1969), como a construção de apoios entre mulheres lésbicas, o diálogo e
a conscientização política (concebida a partir de valores feministas) e a cooperação entre
mulheres. As redes de correspondências iniciadas a partir da seção de anúncios pessoais me
parecem, então, vasos comunicantes (Godói, 2010) através dos quais se manifesta a
porosidade das portas dos armários, mesmo daqueles que parecem mais herméticos. Se, por
um lado, a percebida necessidade de enrustir-se fazia com que tais mulheres se sentissem
solitárias e isoladas, a repressão, por outro lado, ao levar tantas à busca por “discrição” e,
assim, tornar virtualmente impossível conhecer outras lésbicas em situações do cotidiano,
também fazia com que fosse mais eficiente procurar estabelecer tais contatos em espaços em
que fosse igualmente provável e seguro encontrá-las – no caso desta análise, nas páginas dos
boletins Um Outro Olhar. Desta forma, argumento que o armário não apenas impõe restrições
à vivência da homossexualidade: ele também produz relações.
Como apontado ao longo da análise, os materiais que compuseram as bases para esta
pesquisa ensejariam ainda outros estudos: seria possível, por exemplo, deter-se mais
minuciosamente nas seções de “Materiais Recebidos” e “Em Movimento” de Um Outro
Olhar para averiguar relações de proximidade (ou aparente ausência de contato) do grupo que
o produzia com outros coletivos de ativistas, sejam lésbicas, feministas ou homossexuais de
ambos os sexos; os anúncios pessoais no “Troca-Cartas” poderiam servir de fonte para um
184
levantamento parcial acerca de quem eram as mulheres que compunham a Rede, identificando
os dados que informavam sobre sua cor, idade, profissão, cidade de moradia e mesmo alguns
de seus interesses. Além disso, a combinação entre estes marcadores e os das correspondentes
idealizadas poderia render interessantes discussões sobre a tendência à homogamia social de
mulheres que se relacionam com mulheres, como apontada por Heilborn (2004); a construção
da lesbianidade enquanto categoria identitária, bem como as concepções de gênero e
sexualidade (em suas intersecções com raça e classe) que emergem destas páginas – temas
que apenas tangenciei, se tanto, referindo à leitura delas feita por Lessa (2007), quando
cabível – certamente mereceriam um esforço analítico mais aprofundado, que infelizmente
não coube na escrita desta dissertação.
Ao deter minha análise sobre os documentos oriundos do campo – especificamente, as
21 edições do boletim Um Outro Olhar –, tive a oportunidade de discutir mais
cuidadosamente os afetos investidos pelas cerca de cem associadas ao GALF e à Rede na
construção destes materiais e, mais do que isso, em sua própria participação nas redes que sua
circulação fomentava. Outros títulos localizados, contudo, ainda carecem não apenas deste
tipo de investigação, mas mesmo de descrição em suas características mais básicas – formato,
número de páginas, tempo de circulação, tiragem – para que seja possível compreender
melhor o que chamo aqui de “imprensa lésbica brasileira”. Fora isso, se pude conferir algum
protagonismo aos objetos e sua agência na criação de redes, por outro lado isso acabou
deixando um tanto opaca a trajetória das mulheres inseridas neste campo – se não tanto a
partir do que é possível conhecer estudando os textos publicados no boletim investigado,
digo-o ao menos em relação às ricas histórias de vida e de militância que tão generosamente
me foram confiadas por diferentes ativistas que, em algum momento de sua militância,
envolveram-se com a produção de materiais periódicos para lésbicas ao longo das últimas
décadas no Brasil. Não ousaria reproduzir novamente aqui a já tão repetida frase de Tânia
Navarro-Swain: neste contexto, ela minimizaria o tanto de registros documentais que já
existem acerca da atuação destas mulheres – embora seja necessário ainda compilá-los de
maneira mais sistemática. Portanto, ao evocá-la sem contudo reiterá-la, afirmo apenas que
estas são histórias que ainda sinto vontade de contar – e que, assim espero, constituirão uma
substantiva parte de meus próximos esforços de pesquisa.
185
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ChanaComChana nº 2, Março/1983
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