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ane BOLETIM DO MUSEU NACIONAL NOVA SERIE RIO DE JANEIRO, RI — BRASIL ANTROPOLOGIA No 27 Maio de 1978 © OFICIO DE ETNOLOGO, OU COMO TER ANTHROPOLOGICAL BLUES Roberto Da Matta © Oficio de Etnélogo, ou Como Ter Anthropological Blues (*) This glory. the sweetest, the tru- est, or rather the only true glory, awaits you, encompasses you already; «a> ‘you will know all its brilliance on that day of triumph and joy on which, BPR returning to your country, welcomed nik amid our delight, you will arrive in our walls, loaded with the most B precious spoils, and bearers of happy tidings of our brothers scattered in the uttermost confines of the Universe. Degérando (**) (*) Trabalho apresentado no Departamento de Antropologia, Universidade de Brasilia, no simpésio sobre trabalho de campo em Etnologia, em novembro de 1973. Quero expressar meus agradecimentos 90 Chefe do Departamento de Cigncias Sociais, Prof. Roberto Cardoso de Oli- velra, ¢ a0 Coordenador do Curso’ de Mestrado em Antropologia Social, Dr. Kenneth Taylor, pelo convite. Sugestdes ¢, sobretudo, © encorajamento de proffesores e alunos da Universidade de Brasilia foram muito dtels ao me decidir publicar este trabalho. Quero tam- bém agradecer a Gilberto Velho ¢ Lulz de Castro Faria pelos comen- térios que fizeram a este artigo. JosephMarle Degérando, The Observation Savage Peoples (1400), traduzido do frances por F. C. T, Moore, Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1969. Durante. anos a Antropologia Social esteve preocupada em estabelecer com preciso: cada vez maior suas rotinas de pesquisa ‘ou, como é também chamado o exercicio do oficio na sua pratica fais imediata, do trabalho de campo. Nos cursos de Antropologia os, professores mencionavam sempre a necessidade absoluta da coleta de um bom material, isto é, dados etnograficos que permitis- sem um didlogo mais intenso e mais proficuo com as teorias conhecidas, pois dai, certamente, nasceriam novas teorias — se- gundo a velha e, porque nao dizer, batida dialética do Prof. Robert Merton. Desse esforco nasceram alguns livros — na América e fora dela — ensinando a realizar melhor tais rotinas. Os dois mais famosos so © notério Notes and Queries in Anthopology. pto- duzido pelos ingieses'e, diga-se de passagem, britenicamente produzido com zelo missiondrio, colonial ¢ vitoriano, ¢ 0 nao menos famoso Guia de Investigacéo de Dados Culturais, livro inspirado pelo Human Relations Area Files, sob a égide dos estudos te «termine! descobrindo um sistema de parentesco do tipo Crow- Omaha, etc...>. Na realidade, livros que ensinam a fazer pesquisa ‘sho velhos na nossa disciplina e, pode-se mesmo dizer — sem medo de incorrer no exagero —, que eles nasceram com a sua fundacéo, j& que foi Henry Morgan, ele proprio, o primeiro a descobrir a lutiidade de tais rotinas, quando preparou uma série de question’- ios de campo que foram enviados eos distantes missionérios € agentes diplomaticos norte-americanos para escrever 0 seu super classico Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Fa- mily (1871) 4 Tal tradico ¢ obviamente necessaria endo € meu propésito aqui tentar denegri-la. Nao sou D. Quixote e reconheco muito bem os frutos que dela nasceram ¢ poderéo ainda nasces. E mesmo se estivésse contra ela, o maximo que 0 bom senso me 1 Publicado em 1970, Anthropological Publications: Oosterhout N. B. ifolanda. Veja-ce, em relagto 20 que foi mencionado, acima, a5 piss. viii e ix do Preficio eo Apéndice & Parte INI, pp: SIS © ss. ny permitiria acrescenter & que esses rotinas so como um mal neces- ‘sario. Desejo, porém, neste trabalho, trazer a luz todo um , desde que se esté cons- ciente — e nao é preciso ser filésofo para tanto — que a ‘An- tropologia Social € uma disciplina da comutagao ¢ da mediacfo. E com isso quero simplesmente dizer que talvez mais do que qualquer outra matéria -devotada ao estudo do Homem, a Antro- pologia € aquela onde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois universos (ou sub-universos) de significagao ¢ tal ponte ou mediagéo € realizada com um minimo de aparato insti- tucional ou de instrumentos de mediagdo. Vale dizer, de modo artesanal e paciente, dependendo essencialmente de humores, tem- peramentos, fobias e todos os outros ingredientes das pessoas € do contato humano. Se € possivel e permitido uma interpretacéo, néo hé divida de que todo 0 aneditario referente as pesquisas de campo € uum modo muito pouco imaginative de depositar num lado obscuro do oficio os seus pontos talvez mais importantes e mais signifi- cativos. B uma maneira ¢, quem sabe?, um modo muito envergo- nhado de néo assumir o lado humano ¢ fenomenolégico da dis- ciplina, com um temor infantil de revelar o quanto vai de subje- tivo nas pesquisas de campo, temor esse que ¢ tanto maior quanto mais voltado esti 0 etnélogo para ma idealizacéo do rigor nas disciplinas sociais, Numa palavra, € um modo de néo assumir 0 oficio de etnélogo integralmente, é o medo de sentir 0 que a Dra. 3 Jean Carter Lave denominou, com rara felicidade, nums carta do campo, 08 anthropological blues. nL Por anthropological blues se quer cobrir e descobrir, de um modo mais sistematico, os aspectos interpretativos do oficio de etndloge. Trata-se de incorporar no campo mesmo das rotinas oticiais, j& legitimadas como parte do treinamento do antropélogo, aqueles aspectos extraordinérios .ow carismiticos, sempre prontos a emergir em todo o rélacionamento humano. De fato, 's6 se tem Antropologia Sccial quando se tem de algum modo o exético, € 0 exético depende invariavelmente da distancia social, e a dis- ‘tancia social tem come componente a marginalidade (relativa ou absoluta), e 2 marginalidade se alimenta de um sentimento de segregacio e.a segregacdo implica em estar s6 © tudo desembo- ca — para comutar repidamente essa longa cadela — na limina- ridade e no estranhamento, De tal modo que vestir 4 capa de etnélogo € aprender a realizar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes férmulas: (a) transformar 0 exotica no familiar e/ ou (b) transformar o familiar em exdticos, E, em ambos os casos, € necessario a presenga dos dois termos (que representam dois universos de significagéo) ¢, mais basicamente, uma vivéncia dos dois dominios por um mesmo sujeito disposto a situé-los e apa- nha-los. Numa certa perspectiva, essas duas tronsformaces pa- recem seguir de perto os momentos criticos da histéria da propria disciplin. Assim € que a primeira transformacao — do exético em familiar — corresponde ao movimento original da Antropolo- gia quando os etnélogos conjugaram 0 seu esforco na busca de- liberada dos enigmas socials situados em universos de significagao sabidamente incompreendidos pelos meios sociais do seu tempo. E foi assim que se reduziu e transformou — para citar apenas um caso clissico — o ula ring dos melanésios num sistema com- preensivel de trocas, alimentadas por praticas rituais, politicas, juridicas. econémicas e religiosas, descoberta que veio. entre ou- tras, permitir 2 ctiagéo, por Marcel Mauss, da nocéo basilar de foto socal total, desenvolvida logo apés as pesquisas do B, Ma- inowski ®, 2 Permitome lembrar ao leitor que Malinowski publicou o seu Argonauts ‘Of the Western Pacific em 1922 ¢ que a primeira edigio francesa do Essai sur te Don & de 1525 A segunda transformacao parece corresponder ao momento preserite, quando a disciplina se volta para a nossa prépria so- ciedade, num movimento semelhante a um auto-exorcismo, pois ja nao se trata mais de depositar no selvagem africano ou melanési- co o mundo de préticas primitivas que se deseja objetificar e in- ventariar, mas de descobri-las em nds, nas nossas instituigées, na nossa pratica politica e religiosa. O problema ¢, entio, o de tirar a cepa de membro de uma classe e de um grupo social especifico para poder — como etndlogo — estranhar alguma regra social familiar e assim descobrir (ou recolocar, como fazem as criangas quando perguntam os «porqués>) o exético no que esté petril do dentro de nés pela reificagéo e pelos mecanismos de legiti- magio®, Essas duas transformagdes, fundamentais do oficio de etnélo- go parecem guardar entre si uma estreita relagio de homologia. Como o desenrolar de uma sonata, onde um tema é apresentado claramente no seu inicio, desenvolvido rebuscadamente no seu cur 80 ¢, finalmente, retomado no seu epilogo. No caso das transforme- s6es antropolégicas, os movimentos sempre conduzem a um en- contro, Deste modo, a primeira transformacio leva ao encontro daquilo que a cultura do pesquisador reveste inicialmente no en- velope do bizarro, de tal maneira que a viagem do etnélogo € como a viagem do heréi cléssico, partida em trés momentos distintos e interdependentes: a saida de sua sociedade, o encontro com 0 outro nos confins do seu mundo social e, finalmente, 0 retorno triunfal (como coloca Degérando) ao seu préprio grupo com os seus troféus, De fato, 0 etnologo ¢, na maioria dos casos, 0 alti- mo agente da sociedade colonial j& que apés a rapina dos bens, da forga de trabalho e da terra, segue 0 pesquisador para com- pletar © inventirio canibalistico: ele, portanto, busca as regras, os valores, as idéias — numa palavra, os imponderdveis da vida social que foi colonizada. Na segunda transformagio, a viagem é camo a do xam&: um movimento dristico onde, paradoxalmente, no se sai do lugar, E, de fato, as viagens xamanisticas sio viegens verticais (para dentro ou para cima) muito mais do que horizontais, como acon- 2 -Bstou usando as nogdes de reificagdo ¢ de legitimacso gomo Berger ¢ Luckman, no seu A Construsdo Social da Realidade (Pelrépolis: Vozes, 1973).

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