Você está na página 1de 5

No início dos anos de 1960, começaram a surgir os grandes problemas urbanos

no Brasil, desencadeados, em especial, por um elevado nível de migração de


pessoas do meio rural para o urbano. Esse deslocamento gerou um substancial
aumento populacional nas cida des, sem que o perímetro urbano tivesse estrutura
e condições de abrigar tamanha quantidade de novos habitantes. Nesse contexto,
era notória a necessidade de uma imediata ação estatal em prol da devida e
qualificada reestruturação das cidades, buscando o m ínimo de planejamento como
forma de atenuar o caos urbano.(1)

Em 1963, o Encontro Nacional de Arquitetos, que contou com a participação ou


representação de profissionais de outras categorias, lançou um tema, até então,
inédito nos debates acerca das Reform as de Base: a Reforma Urbana (2). Naquele
mesmo ano, o governo João Goulart promoveu o Seminário Nacional de Habitação
e Reforma Urbana, ocasião que foram criados o Serviço Federal de Habitação e
Urbanismo (SERFHAU), o Banco Nacional de Habitação (BNH), e a instituição do
Sistema Financeiro da Habitação (SFH)(3).

Já em 1964, com a instauração do regime militar, o BNH passou a ser


utilizado como uma resposta do governo à forte crise de moradia que acometia o
País, sendo um instrumento essencial para a implan tação de políticas e ações de
desenvolvimento urbano. Entre 1964 e 1985, o BNH e o SFH construíram mais de
quatro milhões de residências e estabeleceram os principais sistemas de
saneamento do País:

O Sistema Brasileiro de Habitação (SFH) se estrutura com vultosos recursos


gerados pela criação, em 1967, do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS), alimentado pela poupança compulsória de todos os assalariados
brasileiros, que veio se somar aos recursos da poupança voluntária, que formou
o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). […] o Sistema
Financeiro da Habitação financiou a construção de 4,3 milhões de unidades
novas, das quais 2,4 com recursos do FGTS, para o setor popular, e 1,9 milhões
com recursos do SBPE, para o mercado de habitação p ara a classe média […].
Além disto, foi notável o papel no SFH no saneamento, com destaque para o
Plano Nacional de Saneamento (Planasa), que foi decisivo na extraordinária
expansão das redes de água e esgoto que ocorreu nas principais cidades
brasileiras. (4)

Esta política habitacional ativou a economia do País, por meio da geração de


empregos e do fortalecimento do setor da construção civil, transformando -se em
um dos elementos centrais da estratégia do governo militar. Entretanto, a
produção de conjuntos habitacionais populares submetia seus moradores ao
sacrifício de viverem “fora da cidade”, com acesso restrito aos serviços públicos
mais simples, em detrimento ao adequado desenvolvimento urbano.

Somada à política de promoção de moradias, a contar de 196 4, a ação do Estado


em nível de planejamento econômico e regional passa a ser concentrada, o que
culminou com a criação de diversos órgãos vinculados ao Executivo:

De modo mais ou menos semelhante ao que ocorreu durante o “Estado Novo”, o


avanço da centralização se passava a partir da alegada “necessidade” do
governo de coordenar as suas políticas econômicas e a ação estatal em geral,
recorrendo com frequência à montagem de “superórgãos” do aparelho estatal
incumbidos de integrar órgãos e políticas menores. É sob essa perspectiva que
deve ser interpretada a criação do Ministério do Planejamento e Coordenação
Econômica, logo no início do primeiro ano de governo militar. (5)

A criação desses órgãos, contudo, não garantiu a correta prestação de seus


respectivos serviços. Em que pese o envolvimento direto e indireto de uma série
de setores e do prestígio obtido pelo planejamento urbano, ironicamente, esse
período foi marcado, principalmente, pela sua ineficácia:

[…] a aplicação destes planos a uma parte das cidad es ignorou as condições de
assentamento e as necessidades de grande maioria da população urbana,
relegada à ocupação ilegal e clandestina das encostas e baixadas das periferias
ou, em menor escala, aos cortiços em áreas centrais abandonadas. (6)

O objetivo das intervenções estatais era criar uma política capaz de mudar o
padrão de produção das cidades, sendo em 1964 que o mercado de promoção
imobiliária se consolidou em fase de uma explosão de imóveis oriundos
daqueles programas governamentais. (7)

Contudo, o financiamento imobiliário não resultou da democratização do acesso


à terra, por meio da instituição da função social da propriedade. Se, de um lado
da cidade, as castas mais ricas bancavam o boom imobiliário – caracterizado pela
verticalização das metrópoles –, do outro, uma parcela da população era
amontoada em conjuntos habitacionais populares, erguidos em áreas sem prévia
regularização do solo, comprometendo, desde logo, a subsistência de seus
moradores.
Favela Buraco do Peru – Belo Horizonte – 1965
A estratégia de fazer uma reforma urbana paradoxal – com apartamentos para a
classe média e casebres para as classes hipossuficientes – deu certo enquanto o
modelo econômico se manteve em alta, porém, fez um grande número de pessoas
sem acesso a direitos sociais e civis básicos, como legislação trabalhista,
previdência social, moradia e saneamento:

Nessas décadas, conhecidas como “décadas perdidas”, a concentração da


pobreza é urbana. Pela primeira vez em sua história, o Brasil tem multidões,
que assumem números inéditos, concentradas em vastas regiões – morros,
alagados, várzeas ou mesmo planícies – marcadas pela pobreza homogênea
[…]. As décadas perdidas não são as únicas a registrarem as origens do que
podemos chamar de tragédia urbana brasileira – enchentes, desmoronamento,
poluição dos recursos hídricos, poluição do ar, impermeabilização da
superfície do solo, desmatamento, congestionamento habitacional, reincidência
de epidemias, violência etc. O crescimento urbano sempre se deu com
exclusão social, desde a emergência do trabalhador livre na sociedade
brasileira, que é quando às cidades tendem a ganhar nova dimensão e tem
início o problema da habitação. (8)

Em meio ao caos e, apesar da repressão, os movimentos sociais jamais


deixaram de se organizar, ainda que timidamente:

De fato, apesar da repressão aos movimentos populares nos anos de chumbo


da Ditadura, os movimentos de moradores de loteamentos irregulares e o
Movimento de Defesa dos Favelados (este em caráter nacional) já atuavam
desde meados da década de 1970. Nessa época, em que o Brasil viveu um
processo de expansão das periferias acompanhado por sérios problemas
urbanos, apareceu uma infinidade de movimentos espontâneos que, com o
apoio da Igreja Católica, de profissionais e entidades compromet idas ou de
outros movimentos populares, se articularam no bairro, na favela e em
determinadas regiões das cidades e lutaram por melhores condições de vida.
(9)

Em nível nacional, a organização se aprofunda na crítica à política habitacional


oficial do governo federal, até então embasada pela exclusão das famílias mais
pobres e pela dificuldade de acesso aos serviços e recursos públicos. A partir dos
anos 1980, a crise do modelo econômico instaurado no regime militar gerou
recessão, inflação, desemprego e su cessiva queda dos níveis salariais. A franca
decadência repercutiu no SFH, reduzindo sua capacidade de investimento, fato
que gerou uma grande mobilização popular:

Vivia-se o clima da luta pelas eleições diretas para Presidente e pela


Constituinte, com gra nde mobilização popular, e a oposição BNH se inseria no
combate à ditadura. Neste contexto, organizou -se, por um lado, o movimento
de moradia e dos sem terra (urbano), que reunia os que não conseguiam ter
acesso a um financiamento da casa própria e, por ou tro, o Movimento Nacional
dos Mutuários que agregava mutuários de baixa renda e classe média,
incapacitados de pagar a prestação da sonhada casa própria. Ambos criticavam
o caráter financeiro do SFH e pediam mudanças. […] Uma redução drástica do
valor das prestações, adotado pelo regime para fazer frente às críticas, gerou
um enorme rombo no Sistema Financeiro, com graves consequências futuras,
sem amainar o tom das críticas. (10)

Nesse contexto, a luta iniciada no início dos anos de 1960 foi retomada e
afirmada a partir de 1980, com o surgimento do Movimento Nacional pela
Reforma Urbana. Os fundamentos do MNRF estavam definidos na sua própria
denominação, e o objetivo era discutir, articular e elaborar uma proposta global
sobre a questão urbana no país com vistas à nova constituição.

Por Renata Piroli Mascarello

Universidade de Caxias do Sul – Mestranda e Graduada em Direito – Bolsista


CAPES

Quer complementar ou criticar este texto? Envie seu artigo para o Arquipélago.

Retirado do artigo “A atuação dos movimentos sociais na recente luta pela


reforma urbana no Brasil” publicado no livro “Direito e Marxismo: economia
globalizada, mobilização popular e políticas sociais”

(1) GRAZI A, Gr az i a de. Estatuto da Ci dade : uma l onga hi stór i a com vi tór i as e derr otas. I n: OSÓRI O, L.
M . (Or g. ). Estatuto da Ci dad e e r efor ma ur bana: novas p er specti vas par a as ci dades br asi l eir as. Por to
Al egr e: S. A. Fabr i s, 2002. p. 19.
(2) BRASI L. M i ni sté ri o das Ci dades; M ARI CATO, Er mí ni a. Pol í ti ca naci onal de desenvol vi mento
ur bano. Br así l i a: M i ni stéri o das Ci dades, 2004. p. 11. (Cader nos M Ci dades; 1).
(3) M OREI RA, M ari ana. A hi stór i a do Estatuto da Ci dade. I n: DALLA RI , Adi l son Abr eu ; FERRA Z,
Sér gi o. Esta tuto da ci dade: comentár i os à Lei Feder al 10. 257/ 2001. 2. ed. São Paul o: SBDP, 2006. p.
28.
(4) BONDU KI , Nabi l . Polí ti ca habi taci onal e i ncl usão soci al no Br asi l : r evi são hi stór ica e novas
per specti vas no gover n o Lul a. Revi sta El etr ôni ca de Ar qui tetur a. M e str ado em Ar qui tetur a e
Ur bani smo da Uni ver si dade São Judas Tade u, São Paul o . n. 1, p. 73, 2008. Di sponí vel em:
<http:/ / www. usjt. br / ar q. ur b/numer o_01. html >. Acesso em: 28 abr . 2013.
(5) COSTA, W ande r l ey M essias da. O Estado e as pol í ti cas ter ri tor i ai s no Br asi l . 10. ed. São Paul o:
Context o, 2001. p. 62.
(6) BRASI L. M i ni stéri o das Ci dades; M ARI CATO, Er mí ni a. Pol í ti ca naci onal de desenvol vi mento
ur bano. Br así l i a: M i ni stéri o das Ci dades, 2004. p. 9. (Ca der nos M Ci dades ; 1).
(7) M ARI CATO, Er mí ni a. Br asi l , ci dades: al ter nati vas par a a cr i se ur bana. Petr ópol i s: Voz es, 2001. p.
20-21.
(8) I bi dem, p. 20 -22.
(9) RODRI GUES, Evani z a; BARBOSA, Bene di to Ro ber to. M ovi mentos popul ar es e o Estatuto da
Ci dade. Di sponí vel em: < http:/ / www. consel hos. mg. gov. br / upl oads/ 24/ 02. pdf >. Acesso em: 3 abr .
2013.
(10) BONDU KI , op. ci t., p. 75. Di sponí vel em: < http:/ / www. usjt. br / ar q. ur b/ numer o_01. html > Acesso em:
28 abr . 2013.

Você também pode gostar