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A PERCEPÇÃO EM BERGSON
COMO TRANSUBSTANCIAÇÃO
ENTRE MATÉRIA E ESPÍRITO
Pedro Bonfim Leal
Doutorando – PUC-Rio

Nossa percepção distinta é de fato comparável


a um circuito fechado, em que a imagem-percepção,
dirigida sobre o espírito, e a imagem-lembrança,
lançada no espaço,correriam uma atrás da outra.

(BERGSON, 1999, pág. 113)

Matéria e Memória é um livro que, como o próprio subtítulo explicita,


busca determinar “a relação do corpo com o espírito”. É importante reforçar no
termo “relação” uma curiosa correspondência desta proposta com o pensamento
moderno, especialmente Descartes. Basta nos lembrarmos de que, apesar de haver
afirmado e descrito duas ordens de realidades no espírito e na matéria, Descartes
jamais resolveu satisfatoriamente o problema da ligação destes termos.
Esta mesma questão apareceu constantemente no pensamento contem-
porâneo como um dos principais argumentos para criticar o passo moderno de
bipartição da realidade. É assim que, não sem estranhamento, vemos uma obra
do final do século XIX pretender operar esta relação. Já no prefácio de Matéria e
Memória, Bergson afirma a estrutura “nitidamente dualista” (BERGSON, 1999,
pág. 1) da obra. Portanto, apesar de ser profundamente contemporâneo em vários
sentidos, o filósofo se insere numa problemática tipicamente moderna.
Mas, se por um lado a realidade da matéria e do espírito são afirmadas e
reforçadas, por outro, há um esforço em mostrar que, ao contrário do que defendeu
a tradição moderna, não o são à maneira de duas substâncias incomunicáveis. No
entanto, para chegar a esta formulação, nem matéria, nem corpo, nem consciência
escapam a uma total re-significação. A parte tomada aqui neste trabalho reforça um
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destes pontos: o de que como na percepção concreta – termo do próprio filósofo –


matéria e espírito se tocam. Apesar da solução de Matéria e Memória não se limitar
a esta colocação, ela servirá como parâmetro e passo decisivo para a solução de
Bergson ao problema do dualismo.
Talvez um bom ponto de partida para esta consideração seja descartar, como
o faz repetidas vezes Bergson, a famosa teoria moderna segundo a qual a memória
seria derivada, ou mesmo uma percepção enfraquecida. De acordo com esta
posição, a apreensão perceptiva seria uma espécie de fotografia, um instantâneo,
retirado da realidade. O fato de esta mesma imagem poder ser posteriormente
rememorada indicaria a sua preservação em algum ponto do cérebro ou espírito.
A passagem de percepção à memória, desta maneira, ficaria marcada por um
diferencial quantitativo: a imagem rememorada é uma percepção reduzida a um
menor grau de intensidade e, desta forma, conservada em sua forma original.
Como reação a esta crença, Bergson tenta mostrar a radical diferença, tanto
ontológica, quanto de significação, entre percepção e memória. O paradoxo desta
colocação será a conclusão de que, apesar da diferença total, percepção e memória
atuam conjuntamente. É assim, sobre matéria e memória, e com especial ênfase
neste “e”, que recairá a presente discussão.
O primeiro passo de Bergson na consideração sobre o perceber é,
imediatamente, desvincular do corpo e da mente a criação daquilo que se entendeu
tradicionalmente por representação. Tal como o filósofo defende, a percepção, em
seu sentido mais imediato, não seria algo como uma construção subjetiva – não é
no cérebro ou no espírito, mas na matéria, que ela se origina.
Sem dúvida, nós percebemos imagens e, como os próprios modernos
afirmaram, jamais poderíamos dizer que aquilo que nossa percepção toma do mundo
corresponde ao que este é “em si”. Para Bergson, no entanto, o intervalo entre existir
como matéria e ser percebido não deve ser entendido como deficiência cognitiva.
O sentido da percepção não é oferecer um conhecimento do mundo, mas apresentar
a um ser vivo o ambiente circundante. Desta maneira, o corpo e o sistema nervoso
se limitam a selecionar do exterior uma porção do mundo interessante à sua função
biológica.
Deleuze ressalta um aspecto bastante interessante nesta colocação. Para
Bergson, a matéria é luz, irradia vibrações pelo espaço, independente de ser
percebida ou não. Ser matéria é estar em movimento, vibrar incessantemente. Os
seres vivos seriam capazes de selecionar desta vibração certos aspectos do que é
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apresentado. O papel do cérebro na percepção seria simplesmente manter o corpo


“conectado” com o que se passa ao seu redor.
Apesar de aparentemente simples, esta posição possui grandes conseqüências
filosóficas. Ela implica, por exemplo, que, ao contrário do que tradicionalmente
defendido, a representação não é uma construção mental e que – é importante
ressaltar – a percepção não está dentro do sujeito, mas nas próprias coisas.
Não há aqui o menor ressentimento pela matéria ser inacessível tal qual é
“em si” mesma. Entendida a partir de uma base biológica, a percepção se desloca
da teoria do conhecimento para o seu sentido vital. Perceber se torna assim tocar
a matéria com os sentidos, possuir com ela um contato genuíno.
Bergson formula a teoria da percepção no primeiro capítulo de Matéria e
Memória, e poderíamos supor que com esta colocação teríamos a por acabada. No
entanto, vemos a seguir esta surpreendente colocação:
A percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto
presente; ela é inteiramente impregnada de imagens-lembrança que a completam,
interpretando-a. A imagem-lembrança, por sua vez, participa da “lembrança pura”,
que ela começa a materializar, e da percepção, onde ela tende a se encarnar; visto
deste ponto de vista, definiríamos uma percepção nascente.
Para Bergson, a origem dos equívocos das análises modernas sobre a
percepção se originaria justamente aqui. Intelectualismo e empirismo jamais
poderiam dar conta da percepção e sua relação com a memória por conceberem
conjuntamente aquilo que, ontologicamente se encontra separado, mas, na prática,
se entrelaça. Ambos partiram do dado puro da representação como unidade
simples, e tomaram como tarefa tentar determinar sua origem no sujeito ou no
próprio mundo.
E, no entanto, como apresentamos acima, a imagem do presente que aparece
à consciência é, desde o seu mais ínfimo instante, um produto misto. Aquilo que
dá sentido à percepção da matéria é o corpo vivo e este, por sua vez, carrega
consigo a capacidade de trazer ao presente a porção conservada de seu passado, tal
como nestas palavras de Bergson: “o papel de nossa consciência na percepção, se
limitará a religar pelo fio contínuo da memória, uma série de visões instantâneas,
que fariam parte mais das coisas do que de nós”1. Com este princípio em mente,
podemos entender a enigmática afirmação de Bergson de que os problemas da
percepção devem ser entendidos antes em termos de tempo, ao invés de espaço.
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Num primeiro momento, devemos dizer que, não fosse a intervenção ativa
da memória, quaisquer momentos da percepção poderiam ser ligados entre si.
A percepção seria uma descontínua justaposição de experiências sem qualquer
conexão. Nem mesmo uma frase faria sentido, uma vez que, para a sua apreensão
total, precisamos ter ao final da sentença a lembrança de seu início. De acordo
com Bergson, a matéria oferece ao corpo apenas instantaneidades, ligados entre si
por uma consciência que dura.
Há ainda outro sentido, ainda mais radical, sobre como a memória intervém
na percepção. Em certo momento do segundo capítulo de Matéria e Memória,
Bergson evoca os experimentos de dois psicólogos, Goldscheider e Müller,
sobre o processo de leitura. Contra a tese comumente aceita da leitura como um
escaneamento pontual do texto, letra por letra, os autores defendem haver neste
processo um trabalho ativo da memória.
Todos certamente já tiveram a experiência de ler um texto e, numa releitura,
se dar conta do equívoco em relação a algumas palavras, a ponto de muitas vezes
certas frases mudarem inteiramente de sentido. Freqüentemente nos referimos a
esta lacuna como desleixo ou desatenção de nossa parte – avançamos tão rápido
pelo texto que “passamos por cima” desta ou daquela palavra. No entanto, de
acordo com a tese psicológica, aceita e alargada por Bergson, tal engano faz parte
justamente do processo contrário, o da atenção. Afirma o filósofo, “a leitura corrente
é um verdadeiro trabalho de adivinhação, nosso espírito, colhendo aqui e ali alguns
traços característicos e cobrindo todo o intervalo com imagens-lembrança que,
projetadas sobre o papel, se substituem aos caracteres realmente impressos...”
(BERGSON, 1999, pág. 113).
Bergson toma este experimento como paradigma do processo geral da
percepção. Isto quer dizer que há naquilo que o autor entende como percepção
concreta um trabalho cooperativo, de apreensão da matéria pela percepção,
complementado instantaneamente pela memória. O ambiente forneceria
uma espécie de esquema, esboço complementado por imagens-lembrança. O
entrelaçamento entre matéria e memória seria tal que muitas vezes não se pode
discernir ou separar percepção de lembrança: toda imagem-percepção capaz
de interpretar nossa percepção atual ali penetra tão bem, que não podemos
mais discernir isto que é percepção, daquilo que é lembrança2.

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BERGSON, 1999, p. 67
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Estas colocações sobre o caráter colaborador da memória na percepção


não muda somente nossa compreensão desta última, como transforma também
radicalmente o sentido de tempo. Como sabemos, sua clássica representação é o
de uma linha reta, cujo ponto, sempre movente, designa o momento presente. O
entendimento da memória como percepção enfraquecida cabe perfeitamente nesta
concepção. O passado se representa como um presente que não é mais, de modo
que a relação entre os dois na consciência se dá como passagem linear e gradativa,
de um momento mais forte à sua conservação enfraquecida.
No entanto, o presente assim entendido é apenas um fragmento oco,
sem conteúdo, senão o momentaneamente apresentado. O passado se apresenta
simplesmente como algo acontecido em algum lugar “atrás” de onde nos
encontramos, perdido.
O modo de existência da memória bergsoniana, no entanto, desafia esta
compreensão, assim como determina um modo novo de permanência, totalmente
estranho à metafísica tradicional. Ao invés de uma mera seqüência do “é” ao “não é
mais”, ela considera a memória em termos de coexistência. Ou seja, nossa vida passada
não se arrasta atrás de nós, mas a possuímos, em sua totalidade, a cada instante.
O tempo enquanto duração se distingue completamente daquele ponto
abstrato há pouco citado. Bergson entende o presente como uma espécie de fenda,
cujo acúmulo da vida passada determina continuamente nossa compreensão do
presente. É importante que se insista neste ponto: a memória para Bergson é a
conservação e acumulação do passado no presente. Portanto, na medida em que se
conserva, o passado não se arquiva na forma de uma coleção de objetos esparsos,
mas se mantém em incessante conexão com nossa vivência atual.

Arrastamos atrás de nós, sem disso nos apercebermos, a totalidade de nosso


passado; mas nossa memória só derrama no presente duas ou três lembran-
ças que completarão por algum aspecto a situação atual. (BERGSON, 1979,
pág. 195).

A representação linear e tradicional do tempo já não cabe aqui. Um


tempo que passa em linha reta, da percepção forte à fraca, só pode entender a
memória como ocasional intervenção no presente, tal como aquelas imagens que
nos remetem a algum momento passado. O esforço de Bergson neste ponto é,
contra as mais claras e sugestivas evidências da própria experiência cotidiana,
desvencilhar memória de imagem.
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A filosofia e a psicologia cognitiva do início do século XX, refletindo o


cientificismo da época, discutiam esta questão principalmente com base empírica.
A opinião predominante era a de que as lembranças se armazenavam em algum
tecido do cérebro sob a forma de imagem, tal como a percepção original. No
entanto, para Bergson, o corpo apenas funciona como centro gerador de
movimento, de maneira que, nem a percepção do presente, nem a memória, são
por ele armazenados.
Ainda assim, para Bergson, não há lembrança perdida. Todos os
acontecimentos experienciados são invariavelmente conservados pela memória.
Olhar o nosso passado, no entanto, não implica remontar à sucessão dos
acontecimentos, tal como desenrolados em nosso dia a dia. A influência da
memória no presente não é linear, pois nosso passado inteiro se conecta com o
presente de maneira global.
A famosa imagem utilizada por Bergson para ilustrar este ponto é o do cone
invertido, cujo vértice representaria o momento atual, ao passo que o restante
constituiria o passado que, a cada momento, se insinua no presente. O mais
interessante desta imagem é a consideração de Bergson de que, repousando neste
vértice, se encontra, contraída, toda a nossa história, cuja síntese estaria expressa
em nossa personalidade.
Nossa vida psicológica passada inteira condiciona nosso estado presente,
mas sem o determinar de maneira necessária; inteira, ela também se revela
em nossa personalidade, ainda que nenhum dos estados passados se manifeste
explicitamente (BERGSON, 1999, pág. 165).
Para que esta totalidade se insinue a cada momento de nossa existência,
a memória deve também ser “despsicologizada”. Para Bergson, a lembrança,
usualmente entendida na forma de imagens do passado, é apenas o instante
em que escolhemos um ou dois momentos da totalidade de nosso passado e os
atualizamos. No entanto, a persistente intervenção da memória na percepção
concreta ocorre de modo espontâneo, absolutamente fora de uma intervenção
consciente.
É neste sentido que Bergson entende a memória como coexistência virtual,
fora do domínio psicológico, e, no entanto, ligado à nossa atualidade. O filósofo
chega a utilizar o termo de “inconsciência” para designar este domínio, querendo
ressaltar também a radical diferenciação ontológica entre passado e presente,
sendo este último o espaço de atuação da consciência.
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Nosso passado seria, portanto, aquilo que reveste a matéria de uma inteli-
gibilidade, interferindo na maneira como agimos e compreendemos um texto,
uma fala, ou mesmo um idioma. É esta espontaneidade que faz com que, por
exemplo, um bloco sonoro, tal o que sai das cordas vocais se torne compreensível.
Em primeiro lugar, todos podem entender uma fala pois, somada à vibração
sonora, a memória do idioma se encontra no ouvinte. Mas não apenas o português
se torna compreensível, como também o próprio conteúdo da fala. Aqueles que
nunca estudaram filosofia, por exemplo, certamente encontrarão dificuldades em
acompanhar uma primeira leitura de Bergson, ao passo que outro familiarizado
encontrará mais facilidade, ou outros mesmo relacionarão o tema da percepção
concreta com certo conceito de Sartre ou Deleuze.
O fato de a memória representar a totalidade de nossas vivências leva
Bergson a entender nela a própria realidade espiritual. “Com a memória, estamos
indubitavelmente no domínio do espírito”. O passado pessoal, uma vez construído,
não pode ser destruído. Ele se conserva inteiramente em si, inabalável. Justamente
aí se encontra a autonomia da memória/espírito em relação ao presente.
A consciência aparece, então, como elo, ao mesmo tempo de ligação e
sustentação das duas realidades. Sob o fio direcional da atenção, a consciência opera um
duplo e simultâneo trabalho: um em relação à matéria percebida, outro na atualização
do passado. Vimos por um lado que, para Bergson, espírito e memória são tratados
como quase sinônimos. Perceber algo significa torná-lo lembrança, conservá-lo como
uma porção de nosso passado. Ao se tornar percepção a uma consciência, a porção
percebida da matéria se torna memória, ou, o que significa o mesmo, se espiritualiza.
Perceber, visto deste viés, é assimilar a matéria à própria substância espiritual.
O outro ponto desta operação, já anunciado acima, é o que seleciona
certo momento do passado e o transforma em imagem. É curioso notar aqui
como o próprio Bergson utiliza neste processo o termo oposto: ao se atualizar, a
lembrança se ajusta à imagem atual, a ponto de com ela ser confundida, ou seja,
a lembrança se materializa. Parece haver na memória, portanto, um processo
inverso ao da matéria.
Matéria e espírito apresentam um lado comum, porque certos movimentos
superficiais da matéria vêm exprimir-se em nosso espírito, superficialmente, em
forma de sensações; por outro lado, para agir sobre o corpo, o espírito deve
descer gradativamente na direção da matéria e espacializar-se. (BERGSON,
1999, pág. 112)
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Se estendermos o sentido de percepção concreta tal como proposto por


Bergson, veremos na atividade perceptiva algo como uma expansão contínua do
espírito ao plano da atualidade, um arremesso no espaço, ao encontro da vibração
da matéria. Sob o fio da atenção perceptiva, o espírito aí se infiltra, penetra e
assimila para si aquilo que o filósofo, no final de Matéria e Memória, denomina de
alimento para a sua própria história. A percepção concreta, deste modo, é a própria
espiritualização da matéria, materialização do espírito.

Referências

BERGSON, Henri. Matière et mémoire. 6e ed. Paris: Presses Universitaires de


France, 1999.

DELEUZE, Gilles. Le Bergsonisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1966.

WORMS, Frédéric. Introduction à Matière et Mémoire de Bergson. Paris: 1e ed. Presses


Universitaires de France, 1997.

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