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A PERCEPÇÃO EM BERGSON
COMO TRANSUBSTANCIAÇÃO
ENTRE MATÉRIA E ESPÍRITO
Pedro Bonfim Leal
Doutorando – PUC-Rio
Num primeiro momento, devemos dizer que, não fosse a intervenção ativa
da memória, quaisquer momentos da percepção poderiam ser ligados entre si.
A percepção seria uma descontínua justaposição de experiências sem qualquer
conexão. Nem mesmo uma frase faria sentido, uma vez que, para a sua apreensão
total, precisamos ter ao final da sentença a lembrança de seu início. De acordo
com Bergson, a matéria oferece ao corpo apenas instantaneidades, ligados entre si
por uma consciência que dura.
Há ainda outro sentido, ainda mais radical, sobre como a memória intervém
na percepção. Em certo momento do segundo capítulo de Matéria e Memória,
Bergson evoca os experimentos de dois psicólogos, Goldscheider e Müller,
sobre o processo de leitura. Contra a tese comumente aceita da leitura como um
escaneamento pontual do texto, letra por letra, os autores defendem haver neste
processo um trabalho ativo da memória.
Todos certamente já tiveram a experiência de ler um texto e, numa releitura,
se dar conta do equívoco em relação a algumas palavras, a ponto de muitas vezes
certas frases mudarem inteiramente de sentido. Freqüentemente nos referimos a
esta lacuna como desleixo ou desatenção de nossa parte – avançamos tão rápido
pelo texto que “passamos por cima” desta ou daquela palavra. No entanto, de
acordo com a tese psicológica, aceita e alargada por Bergson, tal engano faz parte
justamente do processo contrário, o da atenção. Afirma o filósofo, “a leitura corrente
é um verdadeiro trabalho de adivinhação, nosso espírito, colhendo aqui e ali alguns
traços característicos e cobrindo todo o intervalo com imagens-lembrança que,
projetadas sobre o papel, se substituem aos caracteres realmente impressos...”
(BERGSON, 1999, pág. 113).
Bergson toma este experimento como paradigma do processo geral da
percepção. Isto quer dizer que há naquilo que o autor entende como percepção
concreta um trabalho cooperativo, de apreensão da matéria pela percepção,
complementado instantaneamente pela memória. O ambiente forneceria
uma espécie de esquema, esboço complementado por imagens-lembrança. O
entrelaçamento entre matéria e memória seria tal que muitas vezes não se pode
discernir ou separar percepção de lembrança: toda imagem-percepção capaz
de interpretar nossa percepção atual ali penetra tão bem, que não podemos
mais discernir isto que é percepção, daquilo que é lembrança2.
2
BERGSON, 1999, p. 67
182 Analógos X
Nosso passado seria, portanto, aquilo que reveste a matéria de uma inteli-
gibilidade, interferindo na maneira como agimos e compreendemos um texto,
uma fala, ou mesmo um idioma. É esta espontaneidade que faz com que, por
exemplo, um bloco sonoro, tal o que sai das cordas vocais se torne compreensível.
Em primeiro lugar, todos podem entender uma fala pois, somada à vibração
sonora, a memória do idioma se encontra no ouvinte. Mas não apenas o português
se torna compreensível, como também o próprio conteúdo da fala. Aqueles que
nunca estudaram filosofia, por exemplo, certamente encontrarão dificuldades em
acompanhar uma primeira leitura de Bergson, ao passo que outro familiarizado
encontrará mais facilidade, ou outros mesmo relacionarão o tema da percepção
concreta com certo conceito de Sartre ou Deleuze.
O fato de a memória representar a totalidade de nossas vivências leva
Bergson a entender nela a própria realidade espiritual. “Com a memória, estamos
indubitavelmente no domínio do espírito”. O passado pessoal, uma vez construído,
não pode ser destruído. Ele se conserva inteiramente em si, inabalável. Justamente
aí se encontra a autonomia da memória/espírito em relação ao presente.
A consciência aparece, então, como elo, ao mesmo tempo de ligação e
sustentação das duas realidades. Sob o fio direcional da atenção, a consciência opera um
duplo e simultâneo trabalho: um em relação à matéria percebida, outro na atualização
do passado. Vimos por um lado que, para Bergson, espírito e memória são tratados
como quase sinônimos. Perceber algo significa torná-lo lembrança, conservá-lo como
uma porção de nosso passado. Ao se tornar percepção a uma consciência, a porção
percebida da matéria se torna memória, ou, o que significa o mesmo, se espiritualiza.
Perceber, visto deste viés, é assimilar a matéria à própria substância espiritual.
O outro ponto desta operação, já anunciado acima, é o que seleciona
certo momento do passado e o transforma em imagem. É curioso notar aqui
como o próprio Bergson utiliza neste processo o termo oposto: ao se atualizar, a
lembrança se ajusta à imagem atual, a ponto de com ela ser confundida, ou seja,
a lembrança se materializa. Parece haver na memória, portanto, um processo
inverso ao da matéria.
Matéria e espírito apresentam um lado comum, porque certos movimentos
superficiais da matéria vêm exprimir-se em nosso espírito, superficialmente, em
forma de sensações; por outro lado, para agir sobre o corpo, o espírito deve
descer gradativamente na direção da matéria e espacializar-se. (BERGSON,
1999, pág. 112)
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Referências