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Psicologia-USP, S, Paulo 1(2):141-154, 1990 A PERSONALIDADE NARCISISTA SEGUNDO A ESCOLA DE FRANKFURT E A IDEOLOGIA DA RACIONALIDADE TECNOLOGICA José Leon Crochik* CROCHIK, J. L. A personalidade narcisista segundo a Escola de Frankfurt e a ideologia da racionali- dade tecnolégica. Psicologia-USP, Sao Paulo, 1(2):141-154, 1990. RESUMO: Discute a relagdo entre a ideologia da racionalidade teenol6gica ¢ a personalidade narcisista, com base nas reflexes de alguns filosifos da Escola de Frankfurt. Localiza esta relagéo historicamente de forma a explicitar algumas das transformages de certas instituigdes sociais que mediatizam a relaggo entre 0 individuo e a cultura. Investiga a possivel influéncia dessas transformag6es sobre a constituigao da personalidade. DESCRITORES: Narcisismo. Tragos de personalidade. Disturbios mentais. Autoritarismo. Arelagao entre personalidade e ideologia vem sendo estudada desde o inicio do século, por diversos pensadores que tinham como meta apreender 0 que contribui para a manutencdo de uma sociedade considerada injusta para, assim, poder pensar nas condigdes de sua transcendéncia. Desta forma, a esfera psiquica na sua dupla dimensdo irracional-racional, passou a ser enfatizada dentro de um referencial materialista-histérico, no qual antes se dava primazia as relagoes sociais de produgdo em sua contradigao com o desenvolvimento das forgas produtivas. O fracasso da revolugio socialista mundial, na década de 10, levou, segundo Jacoby (1977) ¢ Rouanet (1989), a se repensar 0 marxismo ortodoxo que percebia nos movimentos estruturais da sociedade, a base de sua virtual modificaggo. Como poderia se explicar, por exemplo, com aquela teoria, que apesar do enfraquecimento da burguesia na primeira Guerra Mundial ¢ o es- tado de miserabilidade do proletariado, este altimo nZo tomasse o poder? A explicacdo deveria ser buscada na configuragao da personalidade. Ou seja, haveria uma espécie de resisténcia psi- quica as alteracdes sociais que implicassem na emancipagao do individuo ¢ da cultura de seu estado de minoridade. O psicanalista Wilhelm Reich, segundo diversos autores (Jacoby, 1977; Marcuse, 1981; ¢ Rouanet, 1989) foi um dos pensadores pioneiros a analisar a relacao entre configuracdo psfquica ¢ estrutura social, Julgava Reich que a repressdo sexual caracteristica de nossa sociedade e exer- cida, entre outras instdncias sociais, pela familia, seria a responsdvel pela aceitagdo e submissdo as ideologias autoritérias e contrérias a felicidade do individuo, Assim, a ascengéo do nazismo na Alemanha, na década de 30, fora possivel devido a figura da autoridade repressora representada pelo pai, na qual a figura de um ditador poderia se basear. A forga da autoridade do Estado, reproduzida pela figura do pai impelia a submissao, "raison d'Etar". J4 Adorno e Horkheimer (1978), a0 contrario de Reich, expGem que a ascengao do nazismo ¢, portanto, a aceitacdo e submissao da personalidade A ideologia autoritdria, se devia ao enfra- quecimento da familia dado no periodo da Repiblica de Weimar. Com 0 declinio da figura do pai, enquanto figura de autoridade, a formagao do Ego € do Superego do individuo foi prejudicada, facilitando surgimento de um lider que possibilitasse mais a imitag4o (mimésis), do que a iden- * Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. 141 Crochil, .L. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 tificagdo. O avango social teria levado a uma regressdo dos ideais do Iluminismo de individuo e cultura, A autonomia do individuo possibilitada pelo conflito com o poder, perdeu-se na aceita- do cega deste. E a idéia de uma cultura humana, calcada na universalidade e solidariedade entre 0s homens guiados pela razdo € substitufda por uma idéia de cultura natural, calcada na irracio- nalidade da raca ¢ baseada na forga. Assim, a esfera psiquica passa a espelhar a sua anulacdo frente a irracionalidade das forgas. objetivas. Exige-se ndo somente a concordancia com a ordem social, mas a anulagéo de todo e qualquer espago psiquico dado a contestacdo. A vigilancia ndo deve mais se dirigir ao exercicio do poder social, mas aos desejos individuais que ndo se coadunam aquele. Na década de 40, ao final da 2? Guerra Mundial, havia preocupag4o nos Estados Unidos com a predisposi¢4o dos americanos em aceitar uma ideologia anti-democrdtica, e mais especifi- camente, a ideologia fascista. Adorno et alli (1965) realizaram um estudo sobre a personalidade autoritéria (1), que estaria predisposta a aceitacdo ¢ reprodugdo daquela ideologia. A hipstese do trabalho dos autores, era a de que a personalidade é a mediadora entre a estrutura social € a ideologia, de forma que a personalidade autorit4ria se relacionaria com 0 idedrio polftico-eco- nOmico conservador ¢ a personalidade ndo autoritéria com 0 idedrio politico definido como li- beral. Os autores conclufram que além da relagéo esperada, havia também pessoas com persona- lidade nao autoritdria que endossavam os ideais conservadores €, com menor freqiéncia, pessoas com personalidade autoritéria que defendiam alguns dos ideais liberais. Marcuse (1981), na década de 50, explicita de forma mais enfética, que a mediagio entre 0 individuo ¢ a totalidade, dada antes pela famflia, enfraqueceu, fazendo com que o individuo seja socializado diretamente pelo todo. No periodo do capitalismo concorrencial, o Ego elaborava 0s desejos do id ¢ os submetia a apreciagao do superego ¢ a realidade externa; a sublimagao tinha importante papel na constituicgdo do individuo e da cultura. No capitalismo dos monopélios, em contraste, 0 controle d4-se diretamente sobre a consciéncia, através da liberagao dos instintos, ou seja, a repressdo se da pela liberdade instintiva, naquilo que Marcuse denominou "dessublima- do repressiva". Com esta modificacdo, Eros, 0 construtor da cultura transforma-se em sexuali- dade submetida aos valores do mercado. Se 0 individuo auténomo tinha dificil existéncia no ca- pitalismo liberal, agora, a questao da autonomia nao é mais colocada, ¢ a Industria Cultural € os especialistas dao os modelos a serem imitados. Se, antes, no pensamento de Adorno, sublinhamos a aniquilacdo do individuo na ascengio do nazismo, com o estudo sobre a personalidade autoritéria e a andlise de Marcuse, deparamo-nos com a relagio entre o fascismo ¢ 0 capitalismo, ou melhor, entre 0 fascismo € 0 avango cego das forgas produtivas, que mantém as relagdes sociais de producdo. A submissao ao aparato tecno- logico nao € independente da submissao aos lideres fascistas; ambos impelem ao fim da subjetivi- dade, pois tal subjetividade reage aos ditames culturais. Mas, mais do que isso, segundo Adorno (1967), o individuo € determinado pela totalidade ¢ ¢ sua antitese; a diferenca entre individuo e sociedade, na origem, é social. No entanto, uma sociedade que regride a barbérie anula esta di- ferenciagao. Adorno (1967, 1968) d4 indicios sobre a passagem da estrutura autoritéria da persona- lidade para a narcisista, como forma de ajustamento social requerido. A personalidade autoritéria traz consigo a submissdo cega a autoridade ¢ uma violéncia, também cega, contra aqueles que de alguma forma neguem aquela. J4 a personalidade narcisista, com um ego enfraquecido, se guia por est{mulos externos, quase sem ter consciéncia da distingao entre mundo interno e mundo externo. A personalidade narcisista tem parentesco com a personalidade autoritéria: ambas evitam contactos com outros egos, ¢, desta forma, contacto consigo mesmas. No caso extremo da perso- (1) Ousodo termo ~ personatidade autoritéria nao € pienamente adequado ao estudo desses autores. Embora ele se aplique ao tftulo do livro, no qual relatam ¢ interpretam o seu trabalho, refere-se especificamente a um tipo de score alto nas escalas de antisemitismo, etnocentrismo e, principalmente, fascismo que desenvoiveram. Os au- tores encontraram outros tipos de personalidade de esoore allo naquelas escalas que, juntos, formariam uma Sindrome. Da mesma forma, autores descrevem tipos de personalidade 1d0s por escores baixos, alguns dos quais com uma estruturagdo semelhante aos sujeitos de escore alto. Utilizaremos neste trabalho, 6 temo {pergonalidade auloritriay para expressar os tipos de escore allo. otermo* personalidad ndo autor cexpressar os tipos de escore 142 Crochil, J. L. Psicologia-USP, S. Paulo 1(2):141-154, 1990 nalidade autoritéria, denominado "manipulador" , ¢ no narcisismo, hd o isolamento de afetos que, se conscientizados, trariam ansiedades reprimidas a tona. Nos dois casos, 0 Ego quase néo media mais os conflitos entre o id ¢ superego ¢ entre o id € 0 mundo externo, pois com 0 enfraquecimento da familia, 0 individuo passa a ser socializado diretamente, como acentuado por Marcuse, o que impede a diferenciagao. Com esta ndo diferenciagao, Lasch (1983) aponta para a perda da nogio do tempo e, com isso, a impossibilidade de pensar em uma outra ordem social que contemple a liberdade e a justiga. Seo narcisismo € a personalidade adequada a sociedade atual ¢ se, como apontam Marcuse (1982) ¢ Habermas (1983) a ideologia da racionalidade tecnolégica € propria desta sociedade, entdo, como se dé a relacdo entre ambas? O objetivo deste artigo € dar alguns elementos para refletir sobre esta relagdo. Cumpre-nos, num primeiro momento, delimitar os termos "personalidade" e "ideolo- gia" , mesmo que de forma suméria. O termo personalidade é entendido, neste artigo, como uma série de caracteristicas individuais que s4éo produtos de um conjunto de forgas psiquicas que atuam, ora conjuntamente, ora antagonicamente no individuo e nas suas relagdes com 0 meio. Estas caracteristicas significam uma solugéo de compromisso entre os objetivos para os quais tendem aquelas forcas ¢ as possibilidades de suas realizagdes. O enquadre desta conceituacao é freudiana, de forma que as concepgdes de desenvolvimentos psicossexuais e das pulsdes e suas representantes estdo nele presentes. O termo idcologia € definido, neste trabalho, como um conjunto de valores, idéias, ideais cuja fungio principal é a de obscurecer, ou melhor, encobrir as contradig6es existentes entre as Telagdes de producao ¢ as forcas produtivas ¢ as existentes nas proprias relagées de producao. Obviamente, estes dois tipos de contradigdes ndo s4o independentes. Originada nas condig6es concretas da vida social, a ideologia nao € mero reflexo da aparéncia destas condig6es, mas criagdo ilus6ria sobre elas (Chaui, 1981). Neste sentido, a ideologia guarda uma relativa autonomia dos processos de producao, mantendo com estes uma relagao dialética, ao negarem-se e afirmarem-se simultaneamente, ou seja, ela ndo é somente reprodutiva, produz também: é justificativa da apa- réncia. Se, o enquadre dado ao termo personalidade ¢ freudiano, o do termo ideologia ¢ marxiano, € cabe-nos explicitar que o enquadre deste artigo é 0 da teoria critica, Neste sentido, 0 conceito de ideologia adotado sofre modificagbes na hist6ria, tanto 0 conceit, quanto 0 seu objeto. Ador- no e Horkheimer (1978) confrontam a ideologia liberal com a atual, mostrando que a primeira tinha elementos criticos, devido a sua relativa autonomia frente a realidade material, enquanto que a atual, além de sua dependéncia total do status-quo, nao traz elementos racionais. Esta transformacdo ocorre devido ao "deslocamento geolégico como denomina Adorno, da infra- estrutura para a superestrutura social. Assim, a base do conceito pode ser situada no pensamento de Marx, mas 0 seu sentido € modificado, segundo as alteragOes da propria realidade, onde Ador- no e Horkheimer apontam para a perda de seu sentido critico. Na perspectiva da Teoria Critica, a hist6ria do individuo e a hist6ria da cultura estao inter- ligados entre si e com as relagdes de producdo, 0 que significa dizer que as alteragGes sociais que implicam em um controle maior da natureza, implicam, também, alteragdes na personalidade. A seguir discutiremos 0 trabalho de Adorno et alii (1965) sobre a "personalidade auto- ritéria" , para depois refletirmos sobre a relagdo entre a personalidade narcisista e a sua relagéo com a ideologia da racionalidade tecnolégica. 1. A personalidade Autoritéria Como dito antes, Adorno et alii (1965) realizaram um estudo sobre qual era a predis- posicdo dos americanos em accitar uma idcologia anti-democrética e, mais especificamente, a ideologia fascista. Levantaram a tese de que a personalidade seria a mediadora entre a estrutura social ¢ a idcologia. A estrutura social foi entendida dentro das relagoes entre capital ¢ trabalho €a personalidade como um conjunto de forgas psiq’ que levam a caracteristicas de pensar ¢ agir mais ou menos duradouras; j4 a ideologia foi definida como um conjunto de idéias, pensa- mentos, opinides. 143

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