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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO –

UNIRIO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

ESCOLA DE HISTÓRIA

SEMINÁRIO DE PESQUISA EM ENSINO DA HISTÓRIA

Professor: Marcelo Magalhães

Discente: Heitor Saldanha

Rio de Janeiro / Junho 2017


O ensino de História Antiga na BNCC

A BNCC – Base Nacional Comum Curricular desde sua formação é engendrada de problemas
em relação ao conteúdo apresentado desde suas origens devido a sua falta de popularidade,
mesmo que aberta a consultas públicas e acréscimo de ideias e sugestões. Muito se discute entre
pesquisadores e professores acerca do conteúdo que a Base definiu em suas duas primeiras
versões, tomaremos como referência a segunda versão publicada em maio de 2016, com
enfoque no Ensino Médio e o conteúdo de História proposto pela Base.

O Ensino Médio é definido como “etapa conclusiva da Educação Básica” na Lei 9394/96, ou
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e nesse caso o Ensino de História, em
tal etapa é de extrema importância na formação dos jovens estudantes, pois além de consolidar
o conteúdo lecionado durante todos os anos da formação básica, a História surge com o papel
de a partir da autonomia do próprio estudante na pesquisa, análise e identificação do conteúdo
apreendido para percepção do jovem e seu lugar no mundo, bem como as noções de
pertencimento, continuidades e descontinuidades, memória e esquecimento, vão nortear o
pensamento dos alunos, além de contribuir na formação do cidadão brasileiro.

Cidadania e cidadão são palavras que vêm do latim “civitas”. O termo indica a convivência das
pessoas que participavam das decisões sobre os rumos da sociedade romana, relacionada tanto
no aspecto público como no privado. Tal conceito, extremamente ligado à Antiguidade
Clássica, especificamente na Roma Antiga, que na segunda versão da BNCC é retirado do
conteúdo a ser lecionado, bem como todo o conteúdo de Antiguidade Clássica, e suas
civilizações de fundamental importância para compreensão do indivíduo no mundo ocidental,
e excluindo o pensamento greco-romano na antiguidade da formação, conceitos
importantíssimos como os de democracia e República perdem todo o seu significado político e
cultural, assim, ocorrendo uma falha dantesca na compreensão do indivíduo e sua relação com
a cidade, com como noções de pertencimento do cidadão que está sendo formado em sala de
aula.

Atualmente o Ensino Fundamental, a Antiguidade Clássica é inserida no conteúdo


programático do 6º ano, é trabalhada de maneira interessante, passando pelos processos
civilizatórios de Roma e Grécia da Idade Antiga até o fim da Idade Média, tal como na Ásia,
África e nas Américas, tornando assim mais amplas a possibilidades de compreensão do mundo,
de si e das culturas formadoras do país a partir do desenvolvimento dos processos históricos.
Entretanto na primeira versão este conteúdo foi retirado, gerando uma grande repercussão e
uma reflexão entre os historiadores. Qual a importância dos estudos de Antiguidade Clássica e
Medievo na formação educacional do cidadão brasileiro?

Como seria possível, dentro do ensino da História, excluir o ensino da Antiguidade Clássica do
conteúdo do lecionado? Como não abordar na fase final da Educação Básica os conteúdos
abordados no 6º ano se o Ensino Médio é a consolidação desses ensinamentos? Como
compreender o quadro da história mundial do Século XX sem compreender o reafirmar todo o
processo histórico de formação da Europa sem falar dos quase dez séculos de domínio da Igreja
Católica no Ocidente? Explicar o conceito de expansão marítima, colonização e imperialismo
contemporâneo sem abordar o vasto Império Romano? Tomando muito cuidado com certos
anacronismos, centenas de conceitos, ainda que modificados com o passar do tempo tiveram
suas origens na Europa Antiga, e isso é evidente.

“Vários equívocos existiam por não se (querer) perceber a


atualidade e a pertinência dos estudos da Antiguidade a partir do
diálogo entre os antigos e os modernos. Esses equívocos ainda
existem, e podem ser percebidos pela simples observação da
classificação das áreas de conhecimento da CAPES: “História
Antiga e Medieval”. Ora, uma “História Antiga e Medieval” é
uma exclusividade nacional, e deriva da crença de que o mundo
começou com Cabral, uma falácia ainda atuante, que foi revelada
com clareza nos embates sobre a primeira versão da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC-História), “base” limitada e
limitante, preconceituosa e plena de falhas conceituais.”
(BELTRÃO, 2016)

É mais do que necessário reforçar e ampliar o ensino da história nas Américas e na África, visto
que possuem influência direta na formação do país, em cultura, política e ideologias que durante
muito tempo foram ofuscadas em detrimento de uma história eurocêntica. Contudo, excluir o
conteúdo de História Antiga e Medieval do currículo básico do Ensino Médio, é tão excludente
quanto a história eurocêntica escrita e lecionada até os dias de hoje. É o que podemos ver com
o trecho da carta de um grupo de pesquisadores enviada à ANPUH - Associação Nacional de
Pesquisadores de História do Brasil:

“Realçar as presenças indígenas e africanas, mesmo que se


evoque a lei 10.693, não pode ser base para minimizar outras
manifestações identitárias, inclusive mestiças, em suas dimensões
sociais, culturais, políticas, econômicas, religiosas e familiares, e
tampouco as matrizes europeias da formação histórica plural do
Brasil.” (Disponível em: http://site.anpuh.org/index.php/bncc-
historia/item/3365-carta-de-pesquisadores-sobre-a-bncc-
enviada-a-anpuh-brasil)

Estudar a Antiguidade Clássica e a Idade Média, é de fundamental importância para a formação


intelectual, cultural e científica dos jovens em nossa sociedade contemporânea. Pois só a partir
de determinados conceitos e processos históricos, podemos compreender a nós mesmos
enquanto indivíduos, tal como o processo de formação do Brasil, além do fato de apresentar
uma visão geral sobre a história geral e a passagem do ser humano na Terra, bem como o
desenvolvimento tecnológico e científico, e formar cidadãos conscientes de suas origens e sua
vida presente, para assim, ser um cidadão melhor e bem formado. A abordagem de temas mais
aprofundados como a valorização da História da África e da população indígena como forma
de fuga da temática eurocentrista fazendo com o que e deixa a Europa, como um dos berços da
civilização ocidental, com uma importância menor no ensino. Tal supervalorização traria
grandes prejuízos ao ensino pois, não forneceria aos alunos uma base sólida de conhecimento
geral da história, limitando o conhecimento somente ao Brasil. É mais do que necessário
reforçar e ampliar o ensino da história nas Américas e na África, visto que possuem influência
direta na formação do país, em cultura, política e ideologias que durante muito tempo foram
ofuscadas em detrimento de uma história eurocêntica. Contudo, excluir o conteúdo de História
Antiga e Medieval do currículo básico do Ensino Médio, é tão excludente quanto a história
eurocêntica escrita e lecionada até os dias de hoje.

Para compreender melhor é necessário entender como o Currículo está dividido e apresentado.
Sua divisão se em quatro grandes áreas de conhecimento: Ciências Humanas, Ciências da
Natureza, Linguagem e Comunicações, e Matemática e suas Tecnologias, dentro das áreas as
disciplinas, a partir destas grandes áreas de conhecimento a Base busca dialogar tornando-a
mais interdisciplinar possível, contudo enfrenta problemas em sua composição por Áreas
gerais, por exemplo, o ensino de História separado do conteúdo de Linguagens, situação que
dificulta o aprendizado nos moldes que se idealizam.

A partir das áreas do conhecimento, o currículo é dividido em Unidades Temáticas que irão
trabalhar o conteúdo através de objetos de conhecimento, e habilidades definidas por um código
alfanumérico, que define as habilidades necessárias e que serão apreendidas no período letivo
por exemplo: (EF06HI01) EF indica a etapa: Ensino Fundamental, 06 a faixa etária a partir da
série, nesse caso, sexto ano; HI: indica o campo de experiências História e 01 indica a posição
da habilidade na numeração sequencial do campo de experiência para cada grupo/faixa etária.

Na segunda versão o conteúdo aparece de maneira discreta abordando apenas a História da


Grécia, de maneira bem tímida. Objetivos de aprendizagem na segunda versão são:

(EF06HI01) Conhecer a história da Grécia antiga, com ênfase no processo de surgimento da


polis e da Filosofia.

(EF06HI02) Reconhecer os conceitos de democracia e cidadania construídos na Grécia clássica


e, em particular, em Atenas.

(EF06HI03) Identificar a importância da mitologia grega e de suas representações nas artes e


na literatura, até os dias de hoje.

(EF06HI04) Conhecer o papel do Teatro (Tragédia) na Grécia enquanto forma de apropriação


do espaço público.

(EF06HI05) Valorizar as contribuições do pensamento grego para a Matemática e para o


conhecimento da natureza.

As falhas no ensino da Antiguidade Clássica na primeira versão retirados, na segunda apenas


se aborda o caso de Grécia, esquecendo de outras civilizações importantíssimas como os
Romanos, grande parte do desenvolvimento e da transição da Antiguidade para o Medievo se
dá a partir do processo de expansão, declínio e queda do Império Romano. Sem falar que em
todo o Mar Mediterrâneo desde os tempos mais remotos existem trocas comerciais, culturais e
religiosas.

Como transitar da Antiguidade para o Período Medieval a partir de apenas uma civilização?
Como se propõe “reconhecer os conceitos de democracia e cidadania” sem abordar o conceito
de res publica? É possível estudar as peças de Teatro a partir apenas da experiência grega?

Certamente não. Seria como falar do processo de colonização do Brasil, separado do contexto
do comércio transatlântico. E se havia tanta troca de informações no Oceano Atlântico, imagine
no Mar Mediterrâneo que é bem menor...Com isso, a segunda versão da BNCC não plenifica o
estudo da História Antiga Clássica e limita o conhecimento sobre os antigos.
Na terceira versão o conteúdo aparece de maneira mais ampla e com maior abrangência de
região e conteúdo:

“No 6º ano, contempla-se uma reflexão sobre a História e suas


formas de registro. São recuperados aspectos da aprendizagem
do Ensino Fundamental – Anos Iniciais e discutidos
procedimentos próprios da História, o registro das primeiras
sociedades e a construção da Antiguidade Clássica, com a
necessária contraposição com outras sociedades e concepções de
mundo. No mesmo ano, avança-se ao período medieval na Europa
e às formas de organização social e cultural em partes da África.”
(BRASIL, BNCC, 2017,p.368)

Vejamos as principais modificações nas habilidades e competências indicadas na terceira


versão em relação ao conteúdo de Antiguidade Clássica:

(EF06HI06) Discutir o conceito de Antiguidade Clássica, seu alcance e limite na tradição


ocidental, assim como os impactos sobre outras sociedades e culturas. Lógicas de organização
política . As noções de cidadania e política na Grécia e em Roma; Domínios e expansão das
culturas grega e romana; Significados do conceito de “império” e as lógicas de conquista,
conflito e negociação dessa forma de organização política As diferentes formas de organização
política na África: reinos, impérios, cidades-estados e sociedades linhageiras ou aldeias.

(EF06HI07) Explicar a formação da Grécia Antiga, com ênfase na formação da pólis e nas
transformações políticas, sociais e culturais.

(EF06HI08) Caracterizar o processo de formação da Roma Antiga e suas configurações sociais


e políticas nos períodos monárquico e republicano.

(EF06HI09) Associar o conceito de cidadania a dinâmicas de inclusão e exclusão na Grécia e


Roma antigas.

(EF06HI10) Conceituar “império” no mundo antigo, com vistas à análise das diferentes formas
de equilíbrio e desequilíbrio entre as partes envolvidas. A passagem do mundo antigo para o
mundo medieval A fragmentação do poder político na Idade Média

(EF06HI11) Identificar e analisar diferentes formas de contato, adaptação ou exclusão entre


populações em diferentes tempos e espaços. O Mediterrâneo como espaço de interação entre as
sociedades da Europa, da África e do Oriente Médio
(EF06HI12) Descrever as dinâmicas de circulação de pessoas, produtos e culturas no
Mediterrâneo e seu significado. Trabalho e formas de organização social e cultural Senhores e
servos no mundo antigo e no medieval Escravidão e trabalho livre em diferentes temporalidades
e espaços (Roma Antiga, Europa medieval e África) Lógicas comerciais na Antiguidade romana
e no mundo medieval

(EF06HI13) Caracterizar e comparar as dinâmicas de abastecimento e as formas de organização


do trabalho e da vida social em diferentes sociedades e períodos, com destaque para as relações
entre senhores e servos.

(EF06HI14) Diferenciar escravidão, servidão e trabalho livre no mundo antigo.

Desta forma podemos comparar e perceber que os assuntos estão sendo tratados de maneira
mais ampla e sendo permitido o diálogo entre as diversas civilizações do Mediterrâneo Antigo.

“Os estudos da pré e proto-histórias, assim como da Antiguidade


e do Medievo, hoje pensam as movimentações populacionais entre
os continentes, a circulação de ideias e objetos pelo Atlântico, pelo
Mediterrâneo, Oceano Índico e até o Mar da China. Portanto, não
perpetuam visões eurocêntricas, mas ao contrário as combatem.
Ao invés de questionar cronologias, o currículo da BNCC cria
visões distorcidas do passado, como se a história anterior às
expansões marítimas modernas em nada tivesse a ver com a
história do Brasil, como se a própria história do Brasil não se
inserisse em uma história global e conectada, como se ideias,
pessoas e objetos não circulassem, ou melhor dizendo, circulassem
apenas em épocas e terrenos claramente circunscritos e
selecionados – Brasil, América e África a partir de 1500 d.C., e
como se questões políticas internacionais (mesmo dessas épocas)
não tivessem intercessões com os debates e movimentos que
ocorrem no país.”

Em análise geral da abordagem da Antiguidade Clássica pela BNCC, há um avanço na tomada


de espaço dentro do conteúdo programado, de modo que, desde a primeira versão, na qual este
tema não era abordado, a História Antiga Clássica ganha mais desenvoltura a cada nova versão,
visto que na segunda versão da BNCC é evidente uma abordagem vazia e simples do que se
conhece de Antiguidade, tendo como foco Grécia e excluído qualquer outra civilização que
tenha contribuído para engendrar a Antiguidade Clássica. Não obstante, a terceira versão da
BNCC tende a corrigir melhor essa falha e ressalta a importância de outras comunidades para
arquitetar a Idade Antiga, haja vista os Romanos, os Fenícios e os Gauleses.

Há também uma reavaliação da perspectiva da construção de cidadania e cultura a partir apenas


da Grécia, abordando, de maneira mais ramificada, as influencias de outras regiões para a
construção de um conceito mais amplo para as ideias advindas deste período. Ademais a terceira
versão da BNCC também resguarda a importância e influência do mediterrâneo para fluxo de
pessoas, informação, cultura e comercio na região, levando a uma rede de confluência de
pensamentos e ideias.
Referências:

BELTRÃO, C.; Entrevista com Claudia Beltrão da Rosa: apontamentos sobre a pesquisa em História
Antiga no Brasil; Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 8, p. 9-17, 2016. ISSN: 2318-9304)

BELTRÃO, Cláudia. Interações religiosas no Mediterrâneo romano:práticas de acclamatio e


de interpretatio. In: CANDIDO, Maria Regina. Memórias do Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro:
NEA/UERJ, 2010.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 de dezembro de 1996.

Cf. FUNARI, Pedro Paulo A. A renovação no ensino de História Antiga. In: KARNAL, Leandro
(Org.). História na Sala de Aula. São Paulo: Contexto, 2003. p.95-108,

http://site.anpuh.org/

http://basenacionalcomum.mec.gov.br/

http://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3124-carta-critica-da-anpuh-rio-a-
composicao-do-componente-curricular-historia-na-bncc

http://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3123-manifesto-do-gtha-sobre-a-bncc

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