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8.2 A Imposststtipave DE Nio ComuNIcaR. Ja mencionamos antes (s. 2.23) 0 dilema do esquizofrénico, quando assinalamos que esses pacientes se comportam como se tentassem negar que estZo comunicando e, depois, acham neces- sdrio negar também que a sua negativa seja, em si mesma, uma comunicagio, Mas ¢€ igualmente poss{vel que o paciente pareca querer comunicar sem que aceite, porém, 0 compromisso inerente a toda a comunicacio. Por exemplo, uma jovem esquizofrénica apresentou-se no consultério de um psiquiatra para a sua primeira entrevista e anunciou jovialmente: “A minha mie teve de casar € agora aqui estou”. Foram necessdrias semanas para elucidar os muitos significados que ela condensara naquela frase, signifi- cados que eram, ao mesmo tempo, desclassificados pelo seu for- mato criptico e pela exibicao de aparente bom humor e vivacidade, A abertura dela, como se veria, tinha o propésite de informar o analista de que: (1) ela era o fruto de uma gravides ileg{timas (2) esse fato causara, fosse como fosse, a sua psicose; (3) “teve de casar”, referindo-se % natuteza precipitada do casa- mento de sua mie, tanto podia significar que a mae nio era a culpada, porque @ pressio social a forcara a accitar 0 casa mento, ou que a mie tinha se ressentido da natureza fotcada da situagdo ¢ atribufa a culpa & existéncia dessa filha; (4) “aqui” significava tanto o gabinete do psiquiatra como a exis- téncia da paciente no mundo; e, assim, subentendiase que, por um Jado, a mie acabara fazendo dela uma “‘louca”, enquanto que, por outro lado, ela tinha de ser eternamente grata & sua mie, que pecata e sofrera tanto para péla no mundo. 3.21 . “Esquizofrenés” €, pois, uma linguagem que deixa ao. ouvinte fazer a escolha entre muitos significados possiveis, os quais sio nao s6 diferentes mas podem até ser mutuamente incompativeis, Assim, torna-se possivel negar qualquer ou todos os aspectos de uma mensagem. Se instada a esclarecer 0 que quisera dizer com a sua declaragZo, a paciente acima talvez respon- desse, apenas, num tom displicente: “Oh, nao sei. Devo estar maluca”, Se lhe fosse pedida uma elucidagio de qualquer dos aspectos da frase, ela poderia responder: “Oh, no, nao foi isso © que eu quis dizer, absolutamente...” Mas, apesar de, conden- sada de molde a impedir um reconhecimento imediato, a decla- 67 taco da moa é uma descrigao Iégica e coerente da situagio para- doxal em que ela se encontra ¢ o préprio comentério “devo estar maluca” pode ser inteiramente adequado, tendo em vista a soma de auto-sugesto necessdria para adaptar-se a esse universo para- doxal. Para uma andlise detalhada da negagio de comunicagao em esquizofrenia, remetemos o leitor para Haley (60, pdgs. 89-99), onde é apresentada uma analogia sugestiva com os ‘sub- grupos clinicos da esquizofrenia. 3.22 \ A situagio inversa existe em Through the Looking Glass, onde a comunicacio direta ¢ clara de Alice € corrompida pela “lavagem cerebral” das duas Rainhas, a Vermelha e a-Branca. Alegam elas que Alice esté téntando negar alguma coisa e atri- buem isso ao seu estado mental: f — Tenho a certeza de que no foi essa a minha intengio — ig comegar Alice; mas a Rainha interrompeu-a, impaciente. — Ah, é justamente disso que eu me queizo! Devias ter uma intengéol Para que julgas ta que pode servir yma ctianga sem qualquer intengio? Até uma ancdota deve ter intengio.., ¢ uma crianga é mais importante do que uma anedota, assim espero. Nao podes negar isso, mesmo que o tentasses de mos juntas. * — Eu niio coisas com as minhas mos — objetou Alice, = Ninguém disse que o fizesses — replicon a Rainha Verme. tha. — Eu disse que nid poderias, mesmo que o tentasses,. — Ela estd naquele estado de espfrite — comentou 4 Rainha Branca — em que quer negar qualquer coisa, seja o que for... 36 que nfo sabe o que negarl * — Um tem nto perverse © deveras irritante — comentou a Raiaha Vermelna, E entio forse um siléncio inctmodo por un minuto ou dois, Nao podemos deixar de nos maravilhar com a profundidade da intuigio do autor sobre os efeitos pragmdticos desse géneto de comunicacio ilégica, visto que, apds um pouco mais dessa lavagem cerebral, ele deixou que Alice desmaiasse. 3.23 Contudo, o fendmeno em questo nio est4 limitado aos contos de fadas nem A esquizofrenia. Tem implicagdes muito mais vastas para 2 interagdo humana. E concebivel que a tenta- tiva de nao comunicar exista em qualquer outro contexto em que © compromisso inerente a toda a comunicagio queira ser evitado. Uma situacdo tfpica desse género é 0 encontro de dois estranhos, 68 um dos quais quer meter conversa e 0 outro nio, por exemplo, dois passageiros de aviio sentados um ao lado do outro. 1* Seja A o passageiro que nao quet falar. Hé4 duas coisas que.ele nao pode fazer; fisicamente, nio pode abandonar o campo e também nao pode #Zo comunicar. A pragmética deste contexto comuni- cacional est4, pois, reduzida a muito poucas reagSes possiveis: 3.231 “Rejeigao” de Comunicagio O Passageiro A pode deixar claro ao passageiro B, mais ou menos indelicadamente, que nao est4 interessado em conversa. Como, pelas regras do bom compottamento, isso € censurdvel, exigird coragem e criard um siléncio algo tenso e embaragoso, pelo que a relaco com B nio foi, de fato, evitada, 3,232 Aceitagzo de Comunicagio O passageiro A pode ceder e aceitar a conversa. Com toda a probabilidade, odiar-se-4 e odiaré a outra pessoa pela sua prépria fraqueza, mas isto ndo nos interessa, O que é significa- tivo é que ele se aperceberd depressa da sabedoria da regra do Exército, “No caso de captura, dé apenas o nome, posto e ntiimero de série”, pois o passageiro B pode nfo estar disposto a parar a meio caminho; pode estar decidido a apurar tudo sobre A, incluindo seus pensamentos, sentimentos e convicces, E se A tiver comegado a responder, achar4 cada vez mais diffcil parar, um fato que é muito conhecido dos especialistas em “lavagem cerebral”, 3.233 Desqualificagao da Corunicagio A poder se defender por meio da importante técnica de desqualificag4o, isto é, poderé comunicar de um modo que inva- lida a sua prépria comunicag%o ou a do outro. “As desqualifi- cagdes abrangem uma vasta gama de fendmenos comunicacionais, como as declaracdes contraditérias, as incoeréncias, as mudangas bruscas de assunto, as tangencializagdes, as frases incompletas, as interpretagdes err6neas, o estilo obscuro ou os maneirismos de fala, as interpretagdes literais de metdforas ¢ as interpretagdes (24) Queremos sublinhar, uma vez mais, que para os fins da nossa apdlise comunicacional as motivagGes respectivas dos dois individuos no vém a0 caso. 69

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