Você está na página 1de 4
1932 A TACA DE CRISTAL OU A IMPRESSAO DEVE SER INVISIVEL Beatrice Warde ANTES DA vinapa do sécto, os profissionats muitas vezes debateram as virtudes do es- Hilo pessoal versus a netitralidade, o que fot tam tdptco subjacente de uma conferéncta proferida por Beatrice Warde (1900-1969) na Associagao dos Designers Tipogrdficos de Londres (postertormente publicada como ensaio). Warde, que usava o pseud6ni- mo Paul Beaujon, foi uma respeitada historiadora da tipologia e critica da indtistria de aries grificas. Em 1927, por conta des artigos de Beaujon no Fleuron, tornou-se edi- tora do Monotype Recorder, publicado na Inglaterra pela Lanstone Monotype Com~ pany. “A taca de cristal” é 0 mais conhecido ensatio de Warde (e 0 mats reimpresso) sobre a clareza da tipologia e do design. Net introdugdo de seu livro A taca de cristal, uma coleténea de artigos, ela afirma gue o ensaio contém ideias que precisam ser ‘ditas novamente em outros termos para mutitas pessoas que, por causa da natureza de seu trabalho, tem de lidar com a aplicacdo de palavras impressas no papel =e que, or uma razao ou outra, correm a risco de ficar hipnotizades pela complexidade das tecnicas desse trabalho, assim como os passaros supostamente ficam hipnotizados pelo olbar da serpente”.— SH Imagine que voc? tem diante de si uma jarra de vinho. Pama essa demonstraclo imaginaria, voc pode escolher a safra de sua preferéncia, desde que seja de um ver- melho suave € profundo. Diante de vocé encontram-se duas tagas. Uma é de ouro macico, trabathado com extrema delicadeza. A outra € de cristal, um vidro absofuta- mente claro, fino € transparente como uma bolha, Sirva-se ¢ beba; dependendo da laga que vocé escolher, saberei se vocé € ou ndo um conhecedaor de vinho. Pois se, Por uM motivo ou outro, o vinho nao The diz nada, vocé desejara bebé-lo em um te- cipiente que pode ter custado milhares de libras: mas, se voce faz parte daquela ti ‘bo em extineao, os amantes das safras de vinho de excelente qualidade, escolherd a taga de cristal, porque tudo nela foi calculado para rerelar, e nao para esconder, aquela coisa bela que ela esti destinada a conter. Acompanhe-me nesta metifora prolixa ¢ aromética e voc® descobyirs que quase todas as virtudes da taca de vinho perfeita tem paralelo na tipografia, A haste longa e fina evita que o bojo da taga fique marcado pelos dedos. Por qué? Porque nenhuma mancha pode se interpor entre seus olhos ¢ a ima faiscante do Kquido. As margens das paginas dos livros nao se destinam, igualmente, a evitar a necessidade de manusear a mancha da pagina? Além disso, 0 vidro € incolor ou, no maximo, apenas fevemente colorido no bojo, porque o conhecedor julga o vinho, em parte. Por sua cor ¢ fica impaciente com qualquer coisa que a altere. Milhares de maneitis- mos na tipografia s4o tao descarados ¢ arbitririos como servir vinho do Porto em co- pos de vidro vermelho ou verde! Quando a base de uma taga parece pequena de- amais para ser segura, ndo importa 0 cuidado com que ela foi trabalhada, a pessoa fica nervosa, com medo de que ela vire. Existem maneiras de compor as linhas de ti- pos que podem funcionar bastante bem e que, no entanto, mantém 0 leitor incons- Gientemente preocupado, com medo das linhas “dobradas”, de ler trés palavras como se fossem uma. ¢ assim por diante. DE GRISTAL OU A IMPRESSAO DEVE SER INVISIVEL 9 Ora, © primeiro homem que escolheu 6 vidro em vez de argila ou metal para sir de recipiente ao vinho foi um “modernista”, no sentido em que passarei a em- esse termo. Isto €, a primeira pergunta que ele fez a respeito desse objeto es- fico nao foi “Que aparéncia ele deve ter?", mas “O que ele precisa fazer?”, e, des- onto de vista, toda tipografia de qualidade ¢ modernista O vinho é algo tao estranho e poderoso que em determinados fugares ¢ épocas © centro dos rituais religiosos, enquanto em outros € combatide por uma mu- irada empunhando uma machadinha. S6 existe uma coisa no mundo capaz de re alterar a mente humana com a mesma intensidade: a manifestagdo coerente € 6 principal milagre do homem, exclusive dele. Nao existe arbitrariamente, produzir sons evardo um estranho a pensar meu pensamento, Que cu consiga manter uma con- unilateral por meio de marcas pretas no papel com uma pessoa desconhecicla ‘ourro Jado do mundo € pura magia. Convessar, fazer transmissOes radiofOnicas, -ver ¢ imprimir sao, de maneira bastante literal, formas de transferéncia de pen~ 10, € essa capacidade e essa avidez de transferir ¢ receber os contetidos da te € que sho quase as Gnicas responsaveis pela civilizaglo humana. Se voce concorda com isso, ha de concordar com minha ideia principal, isto © 0 que existe de mais importante na impressa0 € o fato de que ela transmite pen- Samentos, ideias ¢ imagens ce uma mente pars outras. Tal declaracdo ¢ 0 que se pode shamar de porta da frente do método tipogrifico. Em seu interior existem centenas ‘de cOmodos, mas, a menos que paramos do principio de que a impressdo destina-se a transmitir ideias especificas e coerentes, € muito ficil nos descobrirmos em uma e282 completamente inadequada Antes de perguntarmos a que conduz essa declaragao, examinemos aquilo a ‘que cla necessariamente nio conduz. Se os livros sao impressos para serem [idos, precisamos diferencar legibilidade do que 0 oftalmologista chamaria de visibilidade. Uma pagina composta em corpo 14, negrito, sem serifa €, de acordo cam os testes de laboratério, mais “visivel” do que uma composta em corpo 11, regular, com seri~ 2. Nesse sentido, um orador piblico torna-se mais “audivel” quando grita. Mas uma boa voz é aquela que é inaudivel como voz. De novo a taga transparente! Nao pre~ iso Ihe dizer que, se vocé comecar a ouvir as inflexdes € os ritmos de uma voz que vem do palanue, acabard dormindo. Quando vocé escuta uma eancao em um idio~ ona que nao entende, na verdade parte de sux mente pega no sono, deixando que suas sensibilidades estéticas bastante independentes se satisfacam, livres do controle sacional. A Arte faz isso. No entanto, esse ndo é © propésito da impressio. Bem em- pregado, o tipo € invisivel como tipo, exatamente da mesma forma que a voz per Seita é © veiculo imperceptivel para a transmissio de palayras ¢ ideias Portanto, embora possamos dizer que a impressio pode ser agradavel por mui tos motivos, ela é importante, antes de mais nada, como recurso para fazer algo. F por isso que no é oportuno chamar qualquer papel impsesso de obra de arte, es- pecialmente de Grande Arte; isso significaria dizer que seu principal objetivo seria existir como expresso da beleza pela beleza e como deleite para os sentidos. Hoje em dia, quase se pode considerar a caligrafia uma Grande Arte, pelo fato de que seu principal propdsito econémico e educacional deixou de existir; contudo, a impres em inglés nao pode ser classificada como arte até que o idioma inglés contempora~ neo deixe de transmitir ideias para as futuras geragdes € até que a prépria impress passe sua praticidade a um sucessor ainda inimaginavel. a ‘TEXTOS CLASSICOS DO DESIGN GRAFTCO © labirinto dos processos tipograficos no tem fim, ¢ a ideia da impressio como veiculo €, a0 menos na cabeca de todos os grandes tpégrafos com quem tive © privilégio de conversar, 0 fio que pode guiar vocé nesse labirinto. Por nao terem essa humildade intelectual, vi designers ansiosos sair-se terrivelmente mal e cometer mais erros ridiculos em raz do excesso de entusiasmo do que eu jamais imagina- ria existir. E, com esse fio condutor, com essa intencionalidade no fundo da memé tia, € possivel fazer as coisas mais inauditas ¢ constatar que elas defendem voce glo- riosamente. Recorrer aos fundamentos simples € raciocinar com base neles nao sig- nifica perda de tempo. Em meio a agitagao de seus problemas pessoais, creio que vocé nao se importari em gastar meia hora com um conjunto simples ¢ claro de ideias comprometido com prineipios abstratos. Conversava, cesta ver, com um homem que desenhara um tipo para publi dade que certamente voce ja utiizou, Eu disse algo sobre 0 que os artistas pensam a respeito de determinado problema, ¢ ele afirmou com wm gesto gracioso: “Ah, mi- nha senhora, nés, artistas, no pensamos — nbs serfimos!". No mesmo dia reproduzi esse comentario para outro designer conhecido meu, ¢ ele, que tem menos inclina- (Ao poética, murmurou: “Penso que nao estou me sentindo muito bem hojel”. Ele realmente acreditava que tinha razao, era do tipo que pensa, € € por isso que ele nao era um pintor tio bom, mas, em minha opiniao, um tipdgrafo e designer de tipo dez vezes melhor do que 0 homem que instintivamente evitava qualquer coisa to coe rente como a razao. Desconfio sempre da pessoa apaixonada pela tipografia que arranca a pagina impressa de um livro ¢ a pendura na parede como se fosse um quadro, pois acredito que, a fim de satisfazer um prazer sensorial, ela mutila algo infinitamente mais im- portante. Lembro que T. M. Cleland, célebre tipégrafo norte-americano, certa vez me mostrou um layout muito bonito para 0 folheto de um Cadillac que continha ilustra- des coloridas. Como nao dispusesse do texto real para aplicar no desenho das pi- ginas de prova, ele compusera as linhas em latim. O motivo nao foi apenas aquele que vocé esti’ pensando, caso tenha visto a famosa reproducio de Quousque Tan- dem das antigas fundidoras de tipo (ou seja, que o latim tem poucas descendentes, produzindo, portanto, uma linha extraordinariamente nivelada). Nao, ele me disse que inicialmente havia composto o “palavseado” mais insipido que pode encontrar (atrevo-me a dizer que foi extraido de Hansard), s6 que descobriu que a pessoa a quem 0 submeteu comecava a ler e a fazer comentirios sobre 0 texto. Fiz uma obser vacio a respeito da capacidade mental dos membros dos conselhos diretores, mas o Sr. Cleland disse: “Nao, vocé esti enganada; se 0 leitor nao tivesse sido praticamen- te forcado a ler — se nao tivesse visto aquelas palavras subitamente impregnadas de glamour e significado —, 0 layout teria sido um fracasso. Compé-lo em italiano ou | tim nao passa de um jeito facil de dizer: ‘O texto que aparecera nao € este’. Permita-me iniciar minhas conclusdes especificas pela tipografia aplicada a0 livro, porque ela contém todos os fundamentos, ¢ depois tratar de alguns aspectos da publicidade. Atarefa do tipografo de livro é erguer uma janela entre o leitor que esta dentro da sala e a paisagem, que & composta pelas palavras do autor. Ele pode instalar uma janela de vidro colorido de uma beleza estonteante, mas que € um desastre como j nela; ou seja, ele pode utilizar um tipo soberbo © magnifico como o gético, que € algo para ser olhado, no para se olhar através dele. Ou pode trabalhar com aquilo que chamo de tipografia transparente ou invisivel. Tenho um livro em casa do qual

Você também pode gostar