Você está na página 1de 10
Len de absice Para dizer a verdade, o que intriga é que ha- ja tantos grandes poemas entre as letras gregas € provencais ¢ tfo poucos, entre as modernas. Recentemente, o livro de Caetano Letra sé, or- ganizado pelo Eucenaa Ferraz, reunindo gran- de parte das letras de Caetano ~ dispostas nas paginas néo como num songbook, acompanha- das de partituras, mas como num livro de poe- mas— me fez pensar melhor sobre essa questo. Percebe-se, ao folhear esse livro, que se esté diante de um grande livro de poemas. Ora, Caetano é um, entre milhares de compositores ¢ letristas brasileiros. Quase nenhuma das le- tras desses letristas se sustenta em livro. Pois bem, a situagao de Caetano equivale a dos poe tas gregos que nds conhecemos. Para o punhs~ do de poemas de Safo que nos chegaram, den- tre os quais duas ou trés obras-primas, quantos milhares de cangSes medjocres nao tiveram que ser escritas e perdidas, na Grécia Antiga? Lirecentemente um autor tentar provar a te- se de que as letras de miisica ndo chegam a ser poema tos se sustenta, Apresento-os a seguir, acompa- nhados das objecbes que thes faco. . Penso que nenhum dos seus argumen- 1 a) O poema tem uma estrutura auténoma, enquanto b) aletra éancilar da partitura. Odjegoes: a) Dizer que 0 poema tem uma estrutura au- tonoma € dizer que o poema deve “se segurar” sozinho na pagina; ora, hd poemas que nio se seguram e nada impede que haja letras que se segurem, E 0 caso da lirica grega, j menciona- da, Isto deve ser resolvido caso a caso. b) Por outro lado, dizer que a letra é ancilar da partitura é dizer que ela depende da partitu- ra; que ela nao se segura sem a partitura: mas isso nao é um argumento para provar que a le- tra de miisica ndo se segura sozinha na pagina; isso € quod erat demonstrandum: € uma repe- tigdo da tese mesma que se quer provar. 2. a) O poema tem um ritmo verbal, enquanto b) aletra tem seu ritmo verbal neutralizado pela melodia, Odjecoes: a) Tudo 0 que é dito, tudo 0 que pode ser di- to tem um ritmo verbal. A questo é saber se es- se ritmo verbal cumpre a sua fungio ou nao, b) A letra tem seu ritmo verbal neutralizado pela melodia quando ela é cantada; nao quan- do se encontra escrita na pagina. Também aqui, tudo tem que ser resolvido caso a caso. 3. a) O poema tem uma recepsio'n0 nivel su- perior, enquanto ) uma letra tem recepydo nivelada ao gosto popular. Objegoes: Isso significa 0 qué? a) Que o poema nao pode ser popular? Entio Efalso. b) Que a letra no pode ser sofisticada? Tam- bém 6 falso. 4 a) O poema tem uma temitica universal, en- quanto b) a letra tem tematica restrita ao consumo Objecdes: a) Muitos poemas tém uma temética abso- lutamente particular, idiossincratica. O poeta pode falar sobre a lata de sardinha que se en contra no seu refrigerador ¢ fazer um grande poema. b) Inversamente, muitas letras falam sobre amor, juventude, velhice, morte etc., que so te- mas universais. 5 a) O poema tem uma linguagem conotativa € opaca, enquanto b) a letra tem linguagem familiar e transpa. rente, Objecdes: a) E desde quando nao ha conotatividade nas letras? E desde quando opacidade é quali- dade estética? Um poema pode ser bom e opa- co, bom e transparente, ruim e opaco, ruim transparente. O mesmo vate para wma letra. b) Devemos reconhecer que o bom letrista, normalmente, leva em conta 0 fato de que a sua letra seré ouvida, nao lida. Ele lida com isso: 0 que nao impede que ele faga uma (grande) letra opaca, £ o caso de muitas letras de Bob Dylan, por exemplo. a) O poema tem alto grau de complexidade: b) a letra tem alto grau de simplicidade. Objecées: Essas palavras estdo sendo usadas de modo excessivamente vago, O que é um poema ou uma letra “simples”? CULTURA BRASILELEA (OHTEMPORANEA a) O “Poema do beco’, de Bandeira, ¢ com- plexo ou simples? b) “Construca0”, de Chico Buarque, & com- plexo ou simples? 7. a) © poema esta fora das contingéncias do mercado, enquanto b) a letra estd condicionada as contingéncias do mercado. Objegoe a) O dinheiro no é a tinica expressao de va- Jor,a tinica moeda pela qual se pode trocar um bem simbdlico. Ha poetas que fazem poemas para atender a demandas — a metcados - ja existentes, em troca da moeda do prestigio. b) E uma contingéncia, nao uma necessida- de, que a letra seja contingente a0 mercado. De todo modo, a arte no tem compromissos éti cos. © que interessa é 0 resultado. Mas 0 erro mais grave, nessa questdo, é nao falar de letra versus poesia mas de letristas ver- sug poetas, como li outro autor fazer, numa en trevista: “Poesia é poesia, e letra é letra [| poe- taé poeta, letrista é letrista”, Nao hé argumentagao aqui. Tautologias na- da dizem, © proprio autor dessa frase tem a pretensio de ser tanto jornalista quanto poeta, Ora, poesia é poesia, e artigo de jornal é artigo de jornal, € poeta é poeta, e jornalista € jorna- lista. Sera preciso dizer m: Tudo somado,a verdade é que pouquissimas letras contemporaneas chegam a ser bons poe mas: 0 que nao chega a ser problema para elas, uma vez que nao aspiram a tal, O pior é que Let & aGsin pouquissimas letras chegam a ser boas letras; e pouquissimos letristas chegam a ser bons le- tristas. Mas é também verdade que ainda me- nos poemas chegam a ser bons. A verdadeira arte aspira ao nec plus ultra. O mediocre Ihe & tao intoleravel quanto o ruim. Hordcio é quem melhor o diz: Mediocribus esse poetis non homi- nes, non di, non concessere columnae (“Que se~ jam mediocres os poetas, nem os homens, nem os deuses, nem as colunas concedem”). Hoje em dia, quem nao é poeta acha facil fazer poe: sia, O verdadeiro poeta € aquele que sabe que fazer poesia € extremamente dificil. ANTONIO CreERO € poets, fil6sofo eletrista. Autor dos livros O mundo desde o fim (ensuis, Ed. Francisco Alves, 1996), Finaldades sem fim (ensaios, £4. Companhia das Leteas, 2005), Guardar (poemas, Ed. Record, 1997) € A cidade 05 livros (poemas, Ed. Record, 2000), além de diversas letras de rmsica para cangées de, entre outtos, Marina Lima, ‘Adriana Caleanhotto,Jo¥0 Boso ¢ Lulu Santos.

Você também pode gostar