Antiseri
HISTÓRIA DA
FILOSOFIA
Patrística e
Escolástica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reale, Giovanni
História da filosofia : patrística e escolástica, v. 2 / Giovanni Reale, Dario Antiseri;
[tradução Ivo Storniolo]. — São Paulo : Paulus, 2003.
1. Filosofia - História I. Antiseri, Dario. II. Título. III. Título: Patrística e Escolástica.
02-178 CDD-109
Título original
Storia delia filosofia - Volume II: Patrística e Scolastica. © Editrice LA SCUOLA,
Brescia, Itália, 1997
Tradução Ivo Storniolo
Revisão Zolferino Tonon
Impressão e acabamento PAULUS
2 a edição, 2005
© PAULUS - 2003 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax
(11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066 www.paulus.com.br*editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2042-7 ISBN 88-350-9218-3 (ed. original)
p fôse Kitac ão
* ** ★★★
Segunda parte
Quarta parte
GÊNESE Quinta parte
DA ESCOLÁSTICA A ESCOLÁSTICA NOS
SÉCULOS DÉCIMO
PRIMEIRO E DÉCIMO
Capítulo sétimo A filosofia na Idade
Média: a “Escolástica”, as “Escolas”, as
SEGUNDO
“Universidades” _______________ 119
I. Desenvolvimentos do pensamento Capítulo nono
medieval 119 Anselmo de Aosta _____________ 147
1. O quadro cronológico, 119. 1. A vida e as obras de Anselmo, 148; 2. Cen-
tralidade do problema de Deus em Ansel
X *Z 7k\c!í
ice qefaI
IV. A filosofia hebraica _________ 200 M APA C ONCEITUAI . - O conhecimento humano das leis,
1. Influxos hebraicos sobre o Ocidente: Avi- 230.
cebron, 200; 2. Moisés Maimônides, 200. V. O “filosofar na fé” em Tomás— 231
V. Alberto Magno ______________ 202 1. A fé, guia da razão, 231.
1. O programa de pesquisa de Alberto Magno, T EXTOS - Tomás: 1. Sobre a “cientificidade” da
202; 2. A distinção entre filosofia e teologia, doutrina sagrada, 233; 2. Ente e essência, 235; 3. A
203; 3. Filósofos gregos e teólogos cristãos, 204. natureza da alma, 241; 4. As cinco vias para
demonstrar a existência de Deus, 245; 5. Lei eterna,
T EXTOS- Avicena: 1. A teoria dos intelectos, 205;
lei natural, lei humana e lei divina, 248.
Alberto Magno: 2. A natureza do bem, 206.
T EXTOS -
Duns Escoto: 1. A univocidade do ente, 288; Capítulo décimo oitavo Últimas figuras
2. O princípio de individuação, 290 e fim do pensamento medieval _ 321 I.
O problema do “primado” político
321
I. Egídio Romano e João de Paris: tem primado
a Igreja ou o Império?, 321; 2. O Defensor pacis
de Marsílio de Pádua, 322.
Sétima parte
II. Dois reformadores pré-luteranos:
A ESCOLÁSTICA NO João Wyclif e João Huss 324
1. João Wyclif, 324; 2. João Huss, 325.
SÉCULO DÉCIMO
III. Mestre Eckhart e a mística
QUARTO especulativa alemã _ 326
1. As razões da mística especulativa, 326;
2. Mestre Eckhart: o homem e o mundo são
Capítulo décimo sétimo Guilherme de nada sem Deus, 327; 3. O retorno do homem a
Ockham, os Ockhamistas e a crise da Deus, 328; 4. Oposições suscitadas por Eckhart
Escolástica 295 I. Guilherme de e seus discípulos, 328.
T EXTOS - Mestre Eckhart: 1. Ver Deus nas criaturas e
Ockham 295 as criaturas em Deus é fonte de verdadeira consolação,
1. A situação histórico-social do séc. XIV, 296;
330.
2. Guilherme de Ockham: a figura e as obras, Bibliografia do segundo volume, 333.
298; 3. Independência da fé em relação à razão,
299; 4. O empirismo e o primado do indivíduo,
299; 5. Conhecimento intuitivo e conhecimento
abstrato, 300; 6. O
ZJnclice de nomes*
A N SELM O DE L AON , 162 A RC ES ILAU DE 272, 273-276, 277 B ALTHA SAR , 136
A RIS TÓ TELES , 8, 11, 12, 14, 19, 21, 62, 92, 97, B ASÍ LIO DE C ESA RÉIA , 56, 57 Beato C A RP ÓC RATES , 36
112, 120, 129, Angélic o, 244 Beatus de Carta A Diogneto, 39, 41-42,49-50
130,131,141,162,166,168, Lié ba na, 9 B ECKET , T., 183 B EDA , O Cassiodoro M.A., 122, 134 Celino de
V EN ERÁ VEL , 122, 134 B F . RENGÁ RIO DE Nese, 126 Chenu M.-D., 233 Cícero,
B ERNA RDO DE C HARTRES , 166, 177, 178, 179, DE A S SOS , 76 Clemente IV, pa pa, 274
* Neste índic e:
-repor tam-se em versal -versa lete os nomes dos filós ofo s e dos home ns de cultura liga dos ao desenvolvi -
mento do pe nsamento oc idental, para os qua is indicam -se em negrito as páginas em que o autor é tratado
de acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-repor tam-se em itá lico os nome s dos críticos;
-repor tam-se em redondo todos os nomes nã o perte nce ntes a os agrupamentos anteriores.
ÓnJi ice de nomes
G HERA RDO DE C REM ONA , 192 G I LBERTO D AMA SC ENO , 26, 62, 68, 120, 235, 245
P ORRETANO , 177, 178 G ONSA LVO J OÃO DE J AN DUN , 322 J OÃO DE P A RIS , 321-
H I SPANO , 277 G OTES CALCO , 135 322 I OÁO DE S A LI SBU RY , 146, 166, 178,
G REGÓ RIO M A GNO , PAPA , 120, 208 182,183
Gregório VII, papa, 128, 296 João Evangelista, 1, 5, 19, 27, 30,
Gregório IX, papa, 19 7 Gregório 32, 102, 103,327 J OÃO I BN D AHU T , 200
J OÃO XXII, 297, 298, 324, 328
V X, papa, 212, 276 G REGÓ RIO
N A ZIAN ZENO , 56, 57, 66 G REGÓ RIO DE Joaquim De Fiore, 128 J U STINIANO ,
N I SSA , 56 G ROUS SET , R., 24 G UA LTIER DE IMPERADOR, 44, 121 J U STINO M ÁRTI R ,
Dàmaso, papa, 74 D ANTE A LI GHI ERI ,321,
B RU G ES , 254 G UI LH ERME II, o R UI VO , REI 39-40, 47-48, 49, 76
322 Demétrio (bispo), 44 D E R EGINA J.,
DA I NG LATERRA , 148 G UI LH ERME DE Justo de Gand, 286
271 D ES CARTES R., 90, 147, 151 D E L A
M A RE G., 271 122 D UNS
D ONATO , H F . LI O , A U XERRE , 198 G UI LH ERME DE C HAM P EAUX ,
J., 119,120,147,151,
E S COTO 162,166, 168, 171, 172, 173, 180
190,192,193,277 -2 87,288 292, G UI LHERM E DE C ONCH ES , 177, 179, 180
301,303,324 G UI LHERM E DE M O ERBECK E , 326
G UNDIS SALVI D., 192, 200
K
KantI., 147, 151 Kilwardby R.,
<£
271, 297, 322 K UHN T., 310
Ecberto, 134
E G ÍDIO DE L A SS INES , 270
E GÍDIO R O MANO , 269,271, 321 -322 ■H
Elias, 277
E P ICU RO , 24
Hayim, 4 H ELOÍ SA , 162, 165 H EN RIQU E I,
o L EÃ O , REI DA I NG LATERRA , 148 L
E P ÍFAN ES , 36
E SCO TO E RIÚG ENA J., 61, 66, 117, 118, H EN RIQUE VI DF . S U F . VIA , 128 H EN RIQU E
119, 122, 135-138, 143144, 148, 166, DF , G AN D , 271 H EN RIQU E S USO , 328 L A CTÂN CIO , L Ú CIO F I RM IANO , 71, 73
168, 190 E STÊVÃO DE P ROVIN S , 198 H ERÁ CLIDES P ÔN TI CO , 76 H ERÁCLI TO , 48 Landolfo de A quino, 211 L EI BNI Z
E USÉBIO D E C ESA RÉIA , 55 H ESÍ ODO , 76 H I LÁ RIO DF . P OI TI ERS , 73 G. W., 147, 151 Leão XIII, papa,
Holder A133 261 Leônidas, pa i de Orígenes,
H UGO D E S ÃO V Í TO R , 137,177,180, 181, 44 Lippi F., 167
184-185, 235, 254 Huss J., 305, 325 Lucas Eva nge lis ta, 5, 8, 15
Ludovic o o Bávaro, impera dor,
297, 299
L UTF . RO M., 304
M ARCIÀO DH S INOPE , gnóstico 179 Pinturicchio, Bernardino de Símaco, Quinto Auré lio Mêmio,
Marcos Eva ngelis ta, 5, 19, 20 Betto dito o, 94 P I RRO D F . E LIDA , 72 130
M ARSÍ LIOD E P ÁDUA , 321,322-323,324 P I TÁGO RAS , 40, 72, 185 P LA TÃO , 8, 11, S IMÃ O DF A U THI E , 198
M ÁXIMO O C ON FESSOR , 25, 26, 6162, 12, 14, 17, 18, 21, 33,39,40,50, 62, S IN ÉS IO DE C I RFNF , 56
66-68, 119, 136 M A TEUS D F , 72, 73,89, 91, 95, 102, 106, 107, S ÓC RA TES , 21, 24, 48,
A CQUA SPA RTA , 269, 271 Mateus 110, 111,112,114,115,120,130, 249
135,177,179,180,184,185, 231,232,
Eva ngelis ta, 5, 7, 15, 20 Melitã o
249,257, 279, 326 P I . O TINO ,
G., 256 M INÚ CIO F ÉLI X , 71, 72, 76-77
11,12,21,35,45, 81, 84, 88,89,91, 92,
Moeller C., 24 Mônica, 81, 82
95, 96, 112 Pohlenz M., 15, 84 T
P OLI CARPO D E E SMI RNA , 29 P ORFÍ RIO DE
T I RO , 81, 84, 89, 129, 130, 162, 175 -
39, 40-41 T AULER J.,
T ACIAN O , O A S SÍ RIO ,
176, 278, 289 P RI SCIANO D E L ÍDIA , 122 328
P ROCLO , 327
Tempier E., 269,270,271,297, 322
Pseudo -Dionís io Areopa gita, 26, Teodora, 211
A) 59-60, 65-66, 135, 136, 137, 143, Teodorico, impera dor, 129, 131
212, 264, 327 P TO LOM EU , C LÁUDIO , 178 T EODO RI CO D F . C HA RTRES , 177, 179,
P TOLOM EU F ILAD ELFO , 6
N ÉDÉLEC H., 271 N EM ÉSI O DE E M ESA , 56 180
T EO DO RICO DE F RIBU RG O , 276 T EÓF ILO DE
N ES TÓ RIO DE A N TI OQUIA , 30 N ICO LAU DE
A N TI OQUIA , 39, 41, 58 T ERTU LIANO Q.
A U TRECOU RT , 305 N I COLAU DE O RESM E ,
S ÉTIMO F LO RENTF ., 71, 72-73, 77-79
305, 307, 310 N OVA CIANO , 71, 73
T OMÁ S DE A QUINO , 62, 119, 120,
137, 147, 151, 166,
167, 170, 171, 188, 190, 192,
193, 198, 201, 203, 204, 211 -
232,233-25 2,259,261, 269,
271, 277, 286, 301, 303, 322,
O
Q 326, 328 Tomás de Módena,
202
Q UAS TEN , 43
119, 120,
O CKHAM , G UI LH ERME DF ., Q UI RINO , 48
171,294,295,296,298 -3 06, 307,
308,309,312-320, 321, 324, 326, 327,
329 O RÍG EN ES , O C RISTÃO , 43,44-46,52-
54
R
V
Raffaello Sanzio, 120
Reginaldo de Piper no, V A LE N TI M , 36 Valério (bis po), 82
P 212 Rena n E., 269 S., 182, 216 Vítor IV,
V A N N I R OV I G H I
2
Sala dino, sultã o, 200 S ÊN ECA , Z ENÀO DE C Í CIO , 12
monoteísmo, 11
conceitualismo, 169
criacionismo, 12
navalha de Ockham, 302
nominalismo, 169
fé e razão, 88
El
haecceitas, 284 teologia apofática, 59
transcendentais, 219
m
iluminação, 91 intelecto
“possível” e intelecto universais, 154
“agente”, 196 univocidade, 281
PATRÍSTICA E
ESCOLÁSTICA
A REVOLUÇÃO
ESPIRITUAL DA
MENSAGEM BÍBLICA
jA BíbliCK,
sua. mensagem e suas influências sobre
o pensamen+o ocidenfal
• Com o nome de Bíblia (do grego biblía = "livros") indicam-se 73 livros con-
siderados inspirados, distintos em Antigo Testamento (46 livros) e Novo Testamen-
to (27 livros).
O Antigo Testamento divide-se por sua vez em livros his- ,
tóricos, livros didáticos e livros proféticos. Os primeiros cinco ^u.e |3 livros
históricos (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deute- ' ronômio) são os
livros da Lei ou Pentateuco.
O Novo Testamento é composto pelos quatro Evangelhos, pelas Cartas de
Paulo, pelas Cartas dos Apóstolos e pelo Apocalipse.
"Testamento" traduz o termo grego diathéke e indica o pacto ou aliança que
Deus ofereceu a Israel.
• A mensagem bíblica, mesmo que não tenha sido inspirada pela razão e sim
pela fé, teve tal impacto histórico e incidiu de modo tão profundo na concepção do
mundo e da natureza do homem, que deve ser considerada
também do ponto de vista filosófico. A importância
Neste sentido, ela trouxe algumas contribuições revolu- histórico-cultural
cionárias para a história do pensamento. da Bíblia
-> § 6
nas o Evangelho de Mateus, ao que parece, foi tando-se de manhã, construiu um altar ao pé
redigido primeiro em aramaico e depois da montanha e doze esteias para as doze tribos
traduzido em grego). de Israel. Depois enviou alguns jovens dos
Duas traduções basilares tiveram grande filhos de Israel, e ofereceram os seus
importância histórica. Uma, em língua grega, holocaustos e imolaram a Javé novilhos como
de todo o Antigo Testamento: a chamada sacrifícios de comunhão. Moisés tomou a
tradução dos “Setenta”, iniciada em Alexandria metade do sangue e colocou-a em bacias, e
sob o reinado de Ptolomeu Fi- ladelfo (285-246 espargiu a outra metade do sangue sobre o
a.C.), que ficou como ponto de referência na altar. Tomou o livro da aliança e o leu para o
área da cultura grega para os próprios hebreus povo; e eles disseram: „Tudo o que Javé falou,
helenizados, e para os gregos (muitas nós o faremos e obedeceremos.‟ Moisés tomou
referências dos próprios Evangelhos baseiam-se do sangue e o aspergiu sobre o povo, e disse:
nela). „Este é o sangue da aliança que Javé fez convosco,
A partir do século II d.C. a Bíblia foi por meio de todas estas cláusulas‟ ”.
traduzida também para o latim. Entretanto, a E no profeta Jeremias (31,31ss), eis a
tradução feita por são Jerônimo entre 390 e 406 promessa de uma “nova aliança” (aquela que
foi a que se impôs de modo estável, a ponto de seria inaugurada por Cristo): “Eis que dias
ser oficialmente adotada pela Igreja, sendo virão — oráculo de Javé — em que selarei com a
conhecida com o nome de Vulgata, por ser casa de Israel (e a casa de Judá) uma aliança
considerada a tradução latina por excelência. nova. Não como a aliança que selei com seus
pais, no dia em que os tomei pela mão para
fazê-los sair da terra do Egito — minha aliança
que eles mesmos romperam, embora eu fosse o seu
Senhor, oráculo de Javé! Porque esta é a aliança
que selarei com a casa de Israel depois desses
4 O conceito de Testamento" dias, oráculo de Javé. Eu porei minha lei no seu
seio e a escreverei em seu coração. Então eu
Como vimos, as duas partes da Bíblia são serei seu Deus e eles serão meu povo. Eles não
chamadas de Antigo e Novo Testamento. O que terão mais de instruir seu próximo ou seu
significa “Testamento”? Esse termo traduz o irmão, dizendo: „Conhecei a Javé!‟ Porque
grego diathéke, indicando o “pacto” ou “aliança” todos me conhecerão, dos menores aos maiores
que Deus ofereceu a Israel. Nesse pacto (a — oráculo de Javé —, porque vou perdoar sua
oferta do pacto e aquilo que ele comporta), a culpa e não me lembrarei mais de seu pecado”.
iniciativa é unilateral, ou seja, inteiramente E o autor da Carta aos Hebreus (9,1122)
dependente de Deus, que o ofereceu. E Deus o assim explica o sentido do novo “testamento” e
ofereceu por mera benevolência, vale dizer, da nova “aliança” que é sancionada
como dom gratuito. precisamente com a vinda de Cristo: “Cristo,
Eis alguns textos particularmente sig- porém, veio como sumo sacerdote dos bens
nificativos nesse sentido. Em Gênesis 9,9ss após vindouros. Ele atravessou uma tenda maior e
o dilúvio, Deus diz a Noé e seus filhos: “Eis que mais perfeita, que não é obra de mãos
estabeleço minha aliança convosco e com os humanas, isto é, que não pertence a esta
vossos descendentes depois de vós e com todos criação. Ele entrou uma vez por todas no Santuário,
os seres animados que estão convosco. (...) não com o sangue de bodes e novilhos, mas com
Estabeleço a minha aliança convosco: tudo o que o próprio sangue, obtendo uma redenção eterna. De
existe não será mais destruído pelas águas do fato, se o sangue de bodes e de novilhos, e se a
dilúvio; não haverá mais dilúvio para devastar cinza da novilha, espalhada sobre os seres
a terra”. Em Êxodo 24,3-8, podemos ler a ritualmente impuros, os santifica purificando
passagem mais significativa relativa ao os seus corpos, quanto mais o sangue de Cristo
“antigo” testamento, ou seja, a aliança sinaítica que, por um espírito eterno, se ofereceu a si
entre Deus e Israel, que devia durar até Cristo: mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de
“Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as purificar a nossa consciência das obras mortas
palavras de Javé e todas as leis, e todo o povo para que prestemos um culto ao Deus vivo. Eis
respondeu a uma só voz: „Nós observaremos por que ele é media-
todas as palavras ditas por Javé‟. Moisés
escreveu todas as palavras de Javé; e, levan
Cãpítulo primeiro - /\ 3íblia, sua mensagem e su as influências. ..
#1 ^aXLT'.U-
dor de uma nova „aliança‟. A sua morte aconteceu
para o resgate das transgressões cometidas no regime
811 ■—i í: da primeira aliança; e, por isso, aqueles que são
■ 1 1 [Í;- chamados recebem a herança eterna que foi prometida.
Com efeito, onde existe testamento, é necessário que
se constate a morte do testa- dor. O testamento, de
fato, só tem valor no caso de morte. Nada vale
enquanto o testador estiver vivo. Ora, nem mesmo
a primeira aliança foi inaugurada sem efusão
de sangue. De fato, depois que Moisés pro-
clamou a todo o povo cada mandamento da
Lei, ele tomou o sangue de novilhos e de
bodes, juntamente com a água, a lã escarlate e
o hissopo, e aspergiu o próprio livro e todo o
povo, anunciando: „Este é o sangue da aliança
que Deus vos ordenou‟. Em seguida ele
aspergiu com o sangue a tenda e todos os
utensílios do culto. Segundo a Lei, quase todas
as coisas se purificam com sangue; e sem
efusão de sangue não há remissão”.
E, no Evangelho de Mateus (26,2728),
estas palavras são postas na boca do próprio
Cristo: “Depois, tomou um cálice
produzido
e nt re o s sc cs. \ e VI, com
IoíLi p r o h d h i h d a d e e m
Rdveud, i Líl ui (Vi eii d,
r >i hl i oh ' ( \i N dc i om i l ).
Primeira parte - A rev olução espiritual da mensagem bíblica
Depois da difusão da mensagem bíblica, na história. Por essa razão, o horizonte bíblico
portanto, serão possíveis só estas posições: permanece um horizonte estruturalmente
a) filosofar na fé, ou seja, crendo; intransponível, no sentido que esclarecemos,
b) filosofar procurando distinguir os âm- isto é, no sentido de um horizonte para além do
bitos da “razão” e da “fé”, embora crendo; qual já não podemos nos colocar, tanto quem
c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou crê como quem não crê.
seja, não crendo. Com essas premissas, tratemos de exa-
Não será mais possível filosofar fora da minar as principais idéias bíblicas que apre-
fé, no sentido de filosofar como se a mensagem sentam relevância filosófica e colocá-las em
bíblica nunca tivesse feito seu ingresso confronto prospectivo e estrutural com a visão
anterior dos gregos.
1 Passagem
do poli+eísmo grego ao
monoteísmo cris+ão ■ Monoteísmo. A doutrina da unici-
dade de Deus é especificamente
judai- co-cristã, enquanto todo o
A filosofia grega chegara a conceber a mundo helênico é condicionado pelo
poli- teísmo. No âmbito do
unidade do divino como unidade de uma esfera
pensamento grego, todavia, Platão,
que admitia essencialmente em seu próprio Aristóteles, e sobretudo Plotino,
âmbito uma pluralidade de entidades, forças e haviam antecipado alguns aspectos
manifestações em diferentes graus e níveis com orientação monoteista.
hierárquicos. Portanto, não chegara a conceber Platão, com efeito, no Timeu fala da
a unicidade de Deus e, conseqüentemente, nunca unicidade do divino Demiurgo orde-
havia sentido como um dilema a questão de se nador do cosmo e, nas doutrinas não
Deus era uno ou múltiplo. Desse modo, escritas, põe o Uno no vértice do
mundo supra-sensível (mesmo
permaneceu sempre aquém de uma concepção
admitindo uma série de divindades
monoteísta. Somente com a difusão da criadas pelo Demiurgo).
mensagem bíblica no Ocidente é que se impôs a Aristóteles, embora admitindo uma
concepção do Deus uno e único. E a dificuldade multiplicidade de inteligências moto-
do homem em chegar a essa concepção demons- ras divinas, colocava um primeiro
tra-se pelo próprio mandamento divino “não Motor imóvel único, que pensa a si
terás outro Deus além de mim” (o que significa mesmo.
que o monoteísmo não é, em absoluto, uma Plotino faz toda a realidade derivar do
absoluto e transcendente princípio
concepção espontânea), e pelas contínuas
do Uno.
recaídas na idolatria (o que implica sempre uma Em todo caso, o Ocidente ganhou o
concepção politeísta) por parte do próprio povo conceito de monoteísmo apenas da
hebreu, através do qual foi transmitida essa mensagem bíblica.
mensagem. E, com essa concepção do Deus
único, infinito em potência, radicalmente
diverso de todo o resto, nasce uma nova e
radical concepção da transcendência,
derrubando qualquer possibilidade de
considerar qualquer outra coisa como “divino”
no sentido forte do termo. Os maiores
pensadores da Grécia, Platão e Aristóteles,
haviam considerado como “divinos” (ou até
mesmo como deuses) os astros, e Platão chegara
a chamar o cosmo de “Deus visível” e os astros
de “deuses criados”; em As Leis, inclusive, ele
deu a partida para a religião chamada “astral”,
precisamente com base em tais pressupostos. A
Bíblia corta pela base toda forma de poli-
teísmo e idolatria, mas também qualquer
compromisso desse tipo. No Deuteronômio,
podemos ler: “E quando ergueres os olhos para
o céu e vires o sol, a lua, as estrelas,
isto é, todo o exército do céu, não te deixes como e por que os múltiplos derivam do Uno e
arrastar, não te prostres diante deles e não lhes prestes o finito deriva do infinito. A própria conotação
culto ”. A unicidade do Deus bíblico comporta que Deus dá de si mesmo a Moisés, “Eu sou
transcendência absoluta, que coloca Deus como Aquele-que-é”, será interpretada, em certo
totalmente outro em relação a todas as coisas, sentido, como a chave para se entender
de um modo inteiramente impensável no ontologicamente a doutrina da criação: Deus é
contexto dos filósofos gregos. o Ser por sua própria essência e a criação é uma
participação no ser, ou seja, Deus é o ser e as
coisas criadas não são ser, mas têm o ser (que
receberam por participação).
como o homem. E, por maiores que possam ter conhecimento. A Bíblia, porém, atribui à
sido os reconhecimentos da dignidade e da vontade o instrumento da assimilação: as-
grandeza do homem pelos gregos, eles se semelhar-se a Deus e santificar-se significa fazer
inscrevem sempre em um horizonte cosmo- a vontade de Deus, ou seja, querer o querer de
cêntrico global. Na visão helênica, o homem Deus. E é exatamente essa capacidade de fazer
não é a realidade mais elevada do cosmo, como livremente a vontade de Deus que põe o homem
revela este exemplar texto aristotélico: “Há acima de todas as
muitas outras coisas que, por natureza, são coisas.
mais divinas (= perfeitas) do que o homem,
como, para ficar apenas nas mais visíveis, os
astros de que se compõe o universo”.
Na Bíblia, ao contrário, mais do que como 4 O respeito
um momento do cosmo, ou seja, como uma pelos mandamentos divinos: a
coisa entre as coisas do cosmo, o homem é visto
como criatura privilegiada de Deus, feita “à virtude e o pecaclo
imagem” do próprio Deus e, portanto, dono e
senhor de todas as outras coisas criadas por ele.
Os gregos entenderam a lei moral como
No Gênesis está escrito: “Deus disse: „Façamos o
lei da physis, a lei da própria natureza: uma lei
homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e
que se impõe a Deus e ao homem ao mesmo
que ele domine sobre os peixes do mar, as aves
tempo, visto que não foi feita por Deus e que a
do céu, os animais domésticos, todas as feras e
ela o próprio Deus está vinculado. O conceito
todos os répteis que rastejam sobre a terra”. E
de um Deus que dá a lei moral (um Deus
ainda: “Então Javé Deus modelou o homem
“nomóteta”) é estranho a todos os filósofos
com a argila do solo, insuflou em suas narinas
gregos.
um hálito de vida e o homem se tornou um ser
O Deus bíblico, ao contrário, dá a lei ao
vivente”. E o Salmo 8 diz ainda, de modo
homem como “mandamento”. Primeiro, ele a
paradigmático:
dá diretamente a Adão e Eva: “E Javé Deus deu
“Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, ao homem este mandamento: „Podes comer de
a lua e as estrelas que fixaste, o que é um todas as árvores do jardim. Mas da árvore do
mortal, para dele conhecimento do bem e do mal não comerás,
[te lembrares, e porque no dia em que dela comeres terás de
um filho de Adão, que venhas morrer‟ ”. Posteriormente, como já dissemos,
[visitá-lo? Deus “escreve” diretamente os mandamentos.
E o fizeste pouco menos do que um A virtude (o bem moral supremo) torna-
[deus, se obediência aos mandamentos de Deus,
coincidindo com a “santidade”, virtude que, na
coroando-o de glória e beleza.
visão “naturalista” dos gregos, ficava em
Para que domine as obras
segundo plano. O pecado (o mal moral su-
[de tuas mãos,
premo), ao contrário, torna-se desobediência a
sob seus pés tudo colocaste: ovelhas e bois,
Deus, dirigindo-se portanto contra Deus, à
todos eles, e as feras do campo também;
medida que vai contra os seus mandamentos.
as aves do céu e os peixes do oceano que
percorrem as sendas dos mares”. Diz o Salmo 119:
“Indica-me, Javé, o caminho dos teus
E, sendo feito à imagem e semelhança de [estatutos,
Deus, o homem deve se esforçar por todos os eu quero guardá-lo como recompensa.
modos para “assemelhar-se a ele”. O Levítico já Faze-me entender e guardar tua lei, para
afirmava: “Não deveis vos contaminar. Porque observá-la de todo o coração. Guia-me no
o vosso Deus sou eu, Javé, que vos fez sair da caminho dos teus
terra do Egito para ser o vosso Deus: vós, pois, [mandamentos,
sereis santos como eu sou santo”. Os gregos já pois nele está meu prazer”.
falavam de “assimilação a Deus”, mas E no Salmo 51 podemos ler:
acreditavam poder alcançá-la com o intelecto, “Pequei contra ti, contra ti somente, pratiquei
com o o que é mau aos teus olhos”.
Primeira pãrte - , A rev olução espiri+ual da mensagem bí blica
O “Cristo Pantocrator” (aqui reproduzido do mosaico normando da ábside da C,atedra l de Montreal), representando bem a
centralidade do mistério da redenção dentro da história da salvação.
Capítulo primeiro - A Bí blia, su a mensagem e su as influências. ..
tese de Pohlenz. O certo é que a Providência dos levantar para dá-los a ti.‟ Digo-vos, mesmo que
gregos nunca diz respeito ao homem individual, e não se levante para dá-los por ser amigo,
a Providência estóica chega até a coincidir com levantar-se-á ao menos por causa da sua
o Destino, nada mais sendo do que o aspecto insistência e lhe dará tudo aquilo de que
racional da Necessidade com que o logos produz precisa. Também eu vos digo: pedi e vos será
e governa todas as coisas. Já a Providência dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto. Pois
bíblica não apenas é própria de um Deus que é todo o que pede, recebe; o que busca, acha; e ao que
pessoal em alto grau, mas também, além de se bate, se abrirá ”.
dirigir para o criado em geral, dirige-se ainda e Mas esse sentido de confiança total na
particularmente para os homens individuais, espe- Providência divina também está presente no
cialmente para os mais humildes e necessitados Antigo Testamento, na mesma dimensão e com
e para os próprios pecadores (basta recordar as o mesmo alcance, como se pode depreender,
parábolas do “filho pródigo” e da “ovelha por exemplo, do belíssimo Salmo 91:
perdida”). Eis uma das passagens mais famosas
Tu, que dizes “Javé é o meu abrigo” e
e significativas a esse respeito, registrada no
fazes do Altíssimo o teu refúgio.
Evangelho de Mateus: “Por isso vos digo: não
A desgraça jamais te atingirá e praga
vos preocupeis com a vossa vida, quanto ao que
nenhuma chegará à tua tenda: pois em
haveis de comer, nem com o vosso corpo,
teu favor ele ordenou aos seus
quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida
[anjos
mais do que o alimento e o corpo mais do que a
que te guardem em teus caminhos todos.
roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem
Eles te levarão em suas mãos, para que
colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto,
teus pés não tropecem numa
vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não vaieis
[pedra;
vós mais do que elas? Quem dentre vós, com as
poderás caminhar sobre o leão
suas preocupações, pode prolongar, por pouco
[e a víbora,
que seja, a duração da sua vida? E com a roupa,
pisarás o leãozinho e o dragão.
por que andais preocupados? Aprendei dos
Porque a mim se apegou, eu o livrarei, eu
lírios do campo, como crescem, e não trabalham
o protegerei, pois conhece o meu
e nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que
[nome.
nem Salomão, em todo o seu esplendor, se
Ele me invocará e eu responderei:
vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim
a erva do campo, que existe hoje e amanhã será “Na angústia estarei com ele, eu o livrarei
lançada ao forno, não fará ele muito mais por e o glorificarei; vou saciá-lo com longos
vós, homens fracos na fé? Por isso, não andeis dias e lhe mostrarei a minha salvação”.
preocupados, dizendo: „Que iremos comer?‟ Ou: Essa é uma mensagem de segurança total,
„Que iremos beber?‟ Ou: „Que iremos vestir?‟ De que estava destinada a subverter as frágeis
fato, são os gentios que estão à procura de tudo seguranças humanas que os sistemas da época
isso: o vosso Pai celeste sabe que tendes helenística haviam construído, pois nenhuma
necessidade de todas estas coisas. Buscai, em segurança pode ser absoluta se não tiver uma
primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, vinculaçáo precisa com um Absoluto. E,
e todas estas coisas vos serão acrescentadas. precisamente, o homem sente necessidade
Não vos preocupeis, portanto, com o dia de
desse tipo de segurança total.
amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará
consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal”.
E com a mesma eficácia escreve Lucas em
seu Evangelho: “Quem dentre vós, se tiver um
amigo e for procurá-lo no meio da noite,
dizendo: „Meu amigo, empresta- me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e nada tenho para lhe oferecer.‟ E ele responder
de dentro: „Não me importunes; a porta já está 6 desobediência a Deus
fechada e meus filhos e eu estamos na cama; resgatada
não posso me
pela paixão de (Sristo
Este é o célebre arco do “Bom Pastor” no Mausoléu de Galla Placídia em Ravena (séc. V): o “Bom Pastor" exprime de
modo emblemático a nova imagem de Deus, própria do cristianismo.
Capítulo primeiro - y\ Bíblia, sua mensag&m e suas influências...
sabeis que todos os que fomos batizados em é uma rebelião contra Deus, a nova mensagem
Cristo Jesus, é na sua morte que fomos revela que nenhuma força da natureza ou do
batizados? Pois pelo batismo nós fomos se- intelecto humano podia resgatar o homem.
pultados com ele na morte para que, como Cristo Para tanto, eram necessárias a obra do próprio
foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Deus feito homem e a participação do homem
Pai, assim também nós vivamos vida nova. na paixão de Cristo em uma dimensão que
Porque se nos tornamos uma coisa só com ele permanecera quase inteiramente desconhecida
por morte semelhante à sua, assim seremos para os gregos: a dimensão da “fé”.
igualmente semelhantes na sua ressurreição,
sabendo que nosso velho homem foi crucificado
com ele para que fosse destruído este corpo de
pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado.
Com efeito, quem morreu ficou livre do pecado. 7 O valor da fé.
Mas, se morremos com Cristo, temos fé que tam- e a participação no Divino
bém viveremos com ele, sabendo que Cristo,
uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não
morre, a morte não tem mais domínio sobre ele. A filosofia grega subestimara a fé ou
Porque, morrendo, ele morreu para o pecado crença (pístis) do ponto de vista cognosciti- vo,
uma vez por todas; vivendo, ele vive para Deus. pois dizia respeito às coisas sensíveis,
Assim também vós considerai-vos mortos para o mutáveis, sendo portanto uma forma de opi-
pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus. nião (dóxa). Em verdade, Platão a valorizou
Portanto, que o pecado não impere mais em como componente do mito, mas, em seu
vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas pai- conjunto, o ideal da filosofia grega era a
xões; nem entregueis vossos membros, como epistéme, o conhecimento. E, como vimos, todos os
armas de injustiça, ao pecado; pelo contrário, pensadores gregos viam no conhecimento a
oferecei-vos a Deus como vivos provindos dos virtude por excelência do homem e a realização
mortos e oferecei vossos membros como armas da essência do próprio homem. Pois a nova
de justiça a serviço de Deus. E o pecado não vos mensagem exige do homem precisamente uma
dominará, porque não estais debaixo da Lei, mas superação dessa dimensão, invertendo os
sob a graça”. termos do problema e pondo a fé acima da ciência.
A encarnação de Cristo, sua paixão ex- Isso não significa que a fé não tem um
piadora do antigo pecado, que fez seu ingresso valor cognoscitivo próprio: entretanto, trata-se
no mundo com Adão, e sua ressurreição de um valor cognoscitivo de natureza
resumem o sentido da mensagem cristã — e inteiramente diferente, em comparação com o
essa mensagem subverte inteiramente os conhecimento da razão e do intelecto; de todo
quadros do pensamento grego. Os filósofos modo, trata-se de um valor cognoscitivo que só
gregos haviam falado de uma culpa original, se impõe a quem possui aquela fé. Como tal,
extraindo o conceito dos mistérios órficos. E, de ela constitui verdadeira “provocação” em
certa forma, haviam vinculado a essa culpa o relação ao intelecto e à razão.
mal que o homem sofre em si. Mas, em primeiro Adiante, falaremos sobre as conseqüên-
lugar, ficaram muito longe da explicação da cias dessa provocação. Antes, é necessário
natureza dessa culpa (basta ler, por exemplo, o captar o seu sentido geral. E é ainda Paulo
mito platônico do Fedro). Em segundo lugar, quem o revela do modo mais sugestivo, em sua
estavam convencidos de que: primeira carta aos Coríntios: “A linguagem da
a) “naturalmente”, o ciclo dos nasci- cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas
mentos (a metempsicose) teria cancelado a para aqueles que se salvam, para nós, é poder
culpa nos homens comuns; de Deus. Pois está escrito: „Destruirei a
b) os filósofos podiam libertar-se das sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência
conseqüências daquela culpa em virtude do dos inteligentes‟. Onde está o sábio? Onde está
conhecimento e, portanto, pela força humana, ou o homem culto? Onde está o argumentador
seja, de modo autônomo. deste século? Deus não tornou louca a
Todavia, além de mostrar a realidade bem sabedoria deste século? Com efeito, visto que o
mais inquietante da culpa original, que mundo por meio da sabedoria não reconheceu
a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus
pe
Primeira pãrte ' j\ rev olução espiri+ual da mensagem bí blica
la loucura da pregação salvar aqueles que ninguém o conhece senão o Espírito de Deus.
crêem. Os judeus pedem sinais e os gregos Quanto a nós, não recebemos o espírito do
andam em busca da sabedoria; nós, porém, mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de
anunciamos Cristo crucificado, que, para os que conheçamos os dons da graça de Deus.
judeus, é escândalo, para os gentios é loucura, Desses dons não falamos segundo a linguagem
mas, para aqueles que são chamados, tanto ensinada pela sabedoria humana, mas segundo
judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e aquela que o Espírito ensina, exprimindo
sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de realidades espirituais em termos espirituais. O
Deus é mais sábio do que os homens e o que é homem psíquico não aceita o que vem do
fraqueza de Deus é mais forte do que os Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode
homens. Vede, pois, quem sois, irmãos, vós compreender, pois isso deve ser julgado
que recebestes o chamado de Deus; não há espiritualmente. O homem espiritual, ao
entre vós muitos sábios segundo a carne, nem contrário, julga a respeito de tudo e por
muitos poderosos, nem muitos de família ninguém é julgado. Pois „quem conheceu o
prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, pensamento do Senhor para poder instruí-lo?‟
Deus o escolheu para confundir o que é forte, e Nós, porém, temos
o que no mundo é vil e desprezado, o que não o pensamento de Cristo ”.
é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a Essa mensagem subversiva de todos os
fim de que nenhuma criatura se possa esquemas tradicionais dá origem inclusive a
vangloriar diante de Deus. Ora, é por ele que uma nova antropologia (de resto, já am-
vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para plamente antecipada no Antigo Testamento): o
nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, homem não é mais simplesmente “corpo” e
santificação e redenção, a fim de que, como diz “alma” (entendendo-se por “alma” razão e
a Escritura, „aquele que se gloria, se glorie no intelecto), isto é, em duas dimensões, mas sim
Senhor‟. Eu mesmo, quando fui ter con- vosco, em três dimensões: “corpo”, “alma” e
irmãos, não me apresentei com o prestígio da “espírito”, onde o “espírito” é exatamente essa
palavra ou da sabedoria para vos anunciar o participação no divino através da fé, a abertura
mistério de Deus. Pois não quis saber outra do homem para a Palavra divina e para a
coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Sabedoria divina, que o preenche com nova
Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de força e, em certo sentido, lhe dá nova estatura
fraqueza, receio e tremor; minha palavra e onto- lógica.
minha pregação nada tinham da persuasiva A nova dimensão da fé, portanto, é a
linguagem da sabedoria, mas eram uma dimensão do Espírito em sentido bíblico. Os
demonstração do Espírito e o poder divino, a gregos haviam conhecido a dimensão do nous,
fim de que a vossa fé não se baseie sobre a mas não a do pneuma, que passaria a ser a
sabedoria dos homens, mas sobre o poder de dimensão dos cristãos.
Deus. No entanto, é realmente de sabedoria
que falamos entre os perfeitos, sabedoria que
não é deste mundo nem dos príncipes deste
mundo, votados à destruição. Ensinamos a
sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que
Deus, antes dos séculos, de antemão destinou 8 C> "eros" 0t A ego /
para a nossa glória. Nenhum dos príncipes o amor ("agápe.") cristão e a
deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem
graça.
conhecido, não teriam crucificado o Senhor da
glória. Mas, como está escrito, „o que os olhos
não viram, os ouvidos não ouviram e Em um de seus cumes mais significati-
o coração do homem não percebeu, isso Deus vos, o pensamento grego criou, sobretudo com
preparou para aqueles que o amam‟. A nós, Platão, a admirável teoria do eros, da qual já
porém, Deus o revelou pelo Espírito. Pois o falamos amplamente. Mas o eros não é Deus,
Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as porque é desejo de perfeição, tensão mediadora
profundidades de Deus. Quem, pois, dentre os que torna possível a elevação do sensível ao
homens conhece o que é do homem, senão o supra-sensível, força que tende a conquistar a
espírito do homem que nele está? Da mesma dimensão do divino. O eros grego é falta-e-
forma, o que está em Deus, posse em uma conexão estrutural entendida em
sentido dinâmico e, por isso, é força de
conquista e ascensão, que se acende sobretudo
à luz da beleza.
Capitulo ptiflíBÍTO - :A Bíblia, sua mensagem e suas influências...
sas, mas sequer de si mesmo, como diz Cristo: para a “ressurreição dos mortos”. Essa é uma
“Sem mim, nada podeis fazer”. Em uma das marcas da nova fé. E a ressurreição implica
esplêndida passagem da segunda Epístola aos o retorno também do corpo à vida.
Coríntios, Paulo sela essa reviravolta no Precisamente isso constituía um gravís-
pensamento antigo. Depois de ter suplicado a simo obstáculo para os filósofos gregos: era um
Deus três vezes, para que dele afastasse uma absurdo que devesse renascer aquele corpo que
grave aflição que o atribulava, teve a seguinte era visto por eles como “obstáculo” e como
resposta: “Basta-te a minha graça, pois é na fonte de toda negatividade e de mal.
fraqueza que a força manifesta o seu poder”. A reação de alguns estóicos e epicu- ristas
Por isso, Paulo conclui: “Por conseguinte, com ao discurso pronunciado por Paulo no
todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas Areópago, em Atenas, é muito eloqüente. Eles
fraquezas, para que pouse sobre mim a força de ouviram Paulo enquanto ele falava de Deus.
Cristo”. Mas, quando falou em “ressurreição dos
mortos”, não lhe permitiram que continuasse a
falar. Está registrado nos Atos dos Apóstolos:
“Ao ouvirem falar de ressurreição dos mortos,
10 A ressurreição dos mortos uns zombavam, outros diziam: „Ouvir-te-emos
a respeito disto outra vez.‟ Foi assim que Paulo
se retirou do meio deles”.
E Plotino, na renovada perspectiva da
O conceito de “alma” é uma criação grega,
metafísica platônica, escrevia, em aberta
cuja evolução nós seguimos a partir de Sócrates,
polêmica com essa crença dos cristãos: “O que
que fez dela a essência do homem, a Platão, que
existe de alma no corpo nada mais é que alma
fundamenta a sua imortalidade com provas
adormecida. E o verdadeiro despertar consite
racionais, e a Plotino, que dela faz uma das três
na ressurreição — a verdadeira ressurreição, que é
hipóstases. Certamente, a psyché é uma das
do corpo, não com
figuras teoréti- cas que melhor marcam o
o corpo. Pois ressurgir com um corpo eqüivale a
quadro do pensamento grego e o seu idealismo
cair de um sono em outro, a passar, por assim
metafísico. Recorde-se que os próprios estóicos,
dizer, de um leito a outro. Mas o verdadeiro
embora fazendo aberta profissão de materialis-
levantar-se tem algo de definitivo, não de um
mo, admitiam uma sobrevivência da alma
só corpo, mas de todos os corpos, que são
(ainda que até o fim da posterior conflagração
radicalmente contrários à alma;
cósmica). Em suma, desde Sócrates, os gregos
conseqüentemente levam a contrariedade até a
passaram a ver na alma a verdadeira essência
raiz do ser. Dá-nos prova disso, senão o seu
do homem, não sabendo pensar o homem senão
devir, pelo menos o seu transcorrer e o seu
em termos de corpo e alma
extermínio, que certamente não pertencem ao
— e toda a tradição platônico-pitagórica e o
âmbito do ser”.
próprio Aristóteles (e, portanto, a maior parte
Por seu turno, muitos pensadores cristãos,
da filosofia grega) consideraram a alma imortal
ao contrário, não consideraram a doutrina do
por natureza.
Fédon e dos platônicos como negação de sua fé,
A mensagem cristã propôs o problema do
procurando até acolhê-la como clarificadora. O
homem em termos completamente diferentes. Nos
tema da mediação entre a temática da alma e a
textos sagrados, o termo “alma” não aparece
temática da ressurreição dos mortos, com a
nas acepções gregas. O cristianismo não nega
inserção da nova temática do Espírito,
que, com a morte do homem, sobreviva algo
constituirá um dos temas mais debatidos pela
dele; pelo contrário, fala expressamente dos
reflexão filosófica dos cristãos, com diferentes
mortos como sendo recebidos no “seio de
resultados, como veremos.
Abraão”. Entretanto, o cristianismo não aponta
de modo absoluto para a imortalidade da alma,
mas sim
Primeira parte - rev olução espiritual da mensagem bí blica
• Todos estes ganhos de ordem moral e filosófica foram propostos não à luz
de um aprofundamento racional e lógico — como objetos de ciência —, mas por via
de fé, também nisso subvertendo o modo comum de pensar dos gregos, que
consideravam a fé uma forma deteriorada de conhecimento — A fé cristã
próprio da sensação — e a ciência como saber supremo. O anún-
como fermento cio do Evangelho torna-se, assim, fermento de civilização ca- de
civilização paz de ultrapassar o horizonte clássico, sem enfraquecer a con-
* 7-2 tribuição para o desenvolvimento da humanidade.
Este ícone reproduz bela imagem difundida com diversas variantes no ambiente greco -bizantino. Representa de modo
emblemático a frase evangélica:
"Eu sou a videira e vós os ramos".
Na representação do livro de Cristo e dos outros livros na mão dos Apóstolos, está simbolizada a fonte da Verdade e sua
expansão.
Primeira pãtte - ; A rev olução espiritu al da mensagem bí blica
parecer, essa não foi a tese dos primeiros Mas, depois da mensagem cristã, até a
cristãos, que, depois do brusco impacto inicial, medida grega do homem deve ser reavaliada.
trabalharam duramente para construir uma Como diz R. Grousset, “o coração humano é
síntese, como veremos. mais profundo do que a sabedoria antiga”.
Um erro de fundo dos gregos, para usar Com efeito, o homem, que os gregos tanto
as palavras de C. Moeller, está no fato de que exaltaram, é para o cristão algo muito maior do
“procuraram no homem aquilo que só podiam que pensavam os gregos, mas numa dimensão
encontrar em Deus. Foi grande o seu erro, mas diversa e por razões diversas: se Deus
trata-se do erro das almas nobres”. considerou que devia confiar aos homens a
Outro erro de fundo foi o de ter negado difusão de sua própria mensagem e se, até
com armas dialéticas aquelas realidades que mesmo, chegou a fazer-se-homem para salvar o
não se enquadravam em seus quadros homem, então a “medida grega” do homem,
perfeitos, como o mal, a dor e a morte (o mesmo tendo sido tão elevada, torna-se insu-
pecado é um erro de cálculo, dizia Sócrates; até ficiente e deve ser repensada a fundo. E, na
o cadáver vive, dizia Parmênides; a morte não é grandiosa tentativa de construir essa nova
nada, dizia Epicuro; até na tortura do ferro “medida” do homem, nasceria o humanismo
incandescente o sábio é feliz, dizia toda a cristão.
filosofia helenística).
A PATRÍSTICA NA
ÁREA CULTURAL DE
LÍNGUA GREGA
Máximo o Confessor
Capítulo segundo
Capítulo quarto
— I. Problemas emergentes ~
do impacto com a Kíblia
• Sobre a base desses grandes problemas era claro o esforço de definir a iden-
tidade do cristão, o que ocorreu em três momentos:
1) o dos Padres Apostólicos do séc. I (discípulos diretos dos
apóstolos), que tiveram de modo prevalente interesses morais Os Padres
e ascéticos); Apostólicos,
2) o dos Padres Apologistas do séc. II, que tentaram uma os
a
Apologistas,
Pat lca
defesa do cristianismo, recorrendo também a argumentos filo- ^
sóficos (de resto, o próprio Prólogo do evangelho de João abria 5
ser excluídos do cânon, já se haviam tornado rente do Deus de amor do segundo. Para
familiares e caros para muitos. O cânon do muitos, uma grave dificuldade era represen-
Novo Testamento acabou sendo fixado em 367, tada sobretudo pela linguagem antropomór-
mediante uma carta de Atanásio. Mas, mesmo fica veterotestamentária. Tudo isso gerou
depois de fixado o cânon, continuou a grandes debates, favorecendo particularmente
produção de textos sacros. Os escritos a grande difusão da interpretação alegórica do
excluídos do cânon ou produzidos depois de Antigo Testamento (difundida por Fílon de
sua determinação denominam-se apócrifos do Alexandria, de que falaremos adiante) e a
Novo Testamento (por analogia com os apócrifos distinção de vários níveis de compreensão do texto
do Antigo Testamento, ou seja, os escritos que não bíblico, que abririam amplos espaços para a
se encontram no cânon do Antigo Testamento). reflexão teológica, moral e filosófica.
2 questão
da conciliabilidade do
y\ntigo
e do A) ovo "Testamento
4 mdt
Os grandes problemas )t>lé
teol ógicos
• Deus, conforme o relato bíblico, tem outras atividades (por exemplo, rege o
mundo, julga, dispensa as graças) e, como no caso da Palavra, também estas são
hipostatizadas e tomam o nome de Potências: teremos assim a _,
Potência real, a benfeitora etc. Toda essa formação de hipóstases Potências
tem a função de não pôr Deus em contato direto com o mundo ^§2
material, considerado mau.
Em algumas passagens, fala dele até como dimensão, de tal natureza que chega a trans-
causa instrumental e eficiente. Em outras formar radicalmente o significado, o valor e o
passagens, porém, fala dele como Arcanjo, alcance das outras duas. Segundo essa nova
Mediador entre criador e criaturas (à medida concepção, na qual o componente bíblico torna-
que não é incriado, como Deus, mas também se predominante, o homem é constituído por:
não é criado, como as criaturas do mundo), 1) corpo;
Arauto da paz de Deus e Conservador da paz 2) alma-intelecto;
de Deus no mundo. 3) Espírito proveniente de Deus.
Além disso, o que é muito importante, o Segundo a nova perspectiva, o intelecto
Logos de Fílon expressa as valências fun- humano é corruptível, no sentido de que é
damentais da “Sabedoria bíblica” e da “Palavra intelecto “terreno”, a menos que Deus inspire
de Deus” bíblica, que é a Palavra criadora e nele “uma força de verdadeira vida”, que é o
produtora. Por fim, o Logos também expressa o Espírito divino (pneuma).
significado ético de “Palavra com que Deus Está claro que, considerada em si mesma,
guia ao bem”, o significado de “Palavra que a alma humana (ou seja, o intelecto humano)
salva”. Em todos esses significados, o Logos seria algo muito pobre se Deus nela não
indica uma realidade incor- pórea, ou seja, soprasse o seu Espírito (pneuma). Para Fílon, o
metassensível e transcendente. Mas, como o momento que realiza o vínculo do homem ao
mundo sensível é construído segundo o modelo divino não é mais a alma, como para os gregos,
inteligível, ou seja, segundo o Logos — e mais: nem sequer a sua parte mais elevada, o
pelo instrumento do Logos —, existe também intelecto, mas sim o Espírito, que deriva
um aspecto ima- nente do Logos, que é ação do diretamente de Deus. Conseqüentemente, o
Logos incor- póreo sobre o mundo corpóreo. homem tem uma vida que se desenvolve em
Nesse sentido imanente, o Logos é o vínculo que três dimensões:
mantém o mundo unido, o princípio que o 1) segundo a dimensão física puramente
conserva e a norma que o governa. animal (corpo);
Como Deus não é finito, inumeráveis são 2) segundo a dimensão racional (alma-
as manifestações de sua atividade, que Fílon intelecto);
chama de “Poderes”. No entanto, ele só 3) segundo a dimensão superior, divina e
menciona um número limitado desses poderes transcendente do Espírito.
e, normalmente, só chama em causa os dois Em si mesma mortal, a alma-intelecto
principais (e a eles subordina todos os torna-se imortal à medida que Deus lhe dá o
restantes): o Poder criador, com o qual o Criador seu Espírito, ela se vincula ao Espírito e vive
produz o universo, e o Poder régio, com o qual o segundo o Espírito. E caem assim os
Criador governa aquilo que criou. sustentáculos sobre os quais Platão procurara
A relação entre o Logos e os dois Poderes alicerçar a imortalidade da alma. A alma não é
supremos (e, portanto, entre o Logos e todos os imortal em si mesma, mas pode- se tornar
outros poderes, que, como dissemos, se imortal à medida que sabe viver segundo o
subordinam aos dois principais) é Espírito.
expressamente tematizada por Fílon. Em alguns
textos, ele considera o Logos como fonte dos
outros poderes; em outros, porém, ele atribui
ao Logos a função de reunir os outros poderes. i
i]
4 A nova ética
mente por seu caráter de “migrante”. Com nós mesmos, compreendendo que tudo o que
ousada transposição alegórica, a migração de temos não é nosso e dedicando-o a quem no-lo
Abraão torna-se o símbolo da viagem de toda deu. E é nesse preciso momento que Deus se dá
alma para a salvação e as várias terras que o a nós. Eis um texto significativo: “Para a
patriarca atravessou na sua vida (Egito, criatura, o momento justo para encontrar o seu
Caldéia...), tornando-se igualmente etapas que Criador ocorre quando ela reconheceu a sua própria
a alma deve alcançar na sua purificação nulidade”. E eis outro texto, que resume o
segundo uma perspectiva moral (do vício à itinerário: “A glória de uma alma
virtude), intelectual (da fé no cosmo à fé em extraordinariamente grande é ultrapassar o
Deus) e psicológico-pedagógica (da infância à criado, superar os seus limites e vincular-se
maturidade). somente ao incriado, segundo os preceitos
Por esse caminho, Fílon antecipa aquele sagrados, nos quais é prescrito „apegar-se a ele‟
“itinerário para Deus” que, posteriormente, em (Dt 30,20). Por isso, àqueles que se apegam a
alguns Padres, especialmente de Agostinho em ele e o servem sem interrupção, em troca, ele se
diante, se tornará canônico. Do conhecimento dá a si mesmo em herança”.
do cosmo, transcendendo o próprio cosmo, A vida feliz consiste precisamente nessa
devemos passar a nós mesmos e ao transcendência do humano na dimensão do
conhecimento de nós mesmos; mas divino, “vivendo inteiramente para Deus ao
o dado essencial consiste exatamente no invés de viver para si mesmo”.
momento em que também transcendemos a
III. y\ nose
helenísticos e também orientais, e contra a qual revelando ademais nossa verdadeira identi-
os Padres vivamente polemizaram. dade, que consiste na pertença ao bem origi-
nário: se o homem sofre o mal, isso significa
que ele pertence ao bem. Portanto, o homem
2 Os novos documentos provém de outro mundo e a ele deve retornar.
gnósticos descobertos Este mundo é o nosso “exílio” e o outro mundo
é a nossa “pátria”. Um dos mais significativos
Até há pouco tempo, os estudiosos la- documentos gnósticos afirma: “Quem conheceu
mentavam a grande penúria de documentos o mundo, encontrou um cadáver. E o mundo
conservados sobre a gnose e o fato de que não é digno de quem encontrou um cadáver”.
precisavam se basear predominantemente nos O gnóstico deve tomar consciência de si e,
testemunhos dos seus adversários para conhecendo-se a si mesmo através de si
reconstruir a gnose cristã. mesmo, poderá então retornar à pátria
Todavia, em 1945, em Nag Hammadi (no originária. Papel essencial nesse “retorno” é
Alto Egito), foram casualmente descobertos em desempenhado pelo Salvador (Cristo), que é
um cântaro enterrado nada menos que um dos “éons” divinos.
cinqüenta e três escritos, quase todos gnósticos, c) Os gnósticos dividem os homens em
em língua copta, dos quais pelo menos três categorias:
quarenta e três eram inteiramente novos. 1) pneumáticos;
Entretanto, só foram publicados entre 1972 e 2) psíquicos-,
1977, devido a uma série de contrariedades de 3) hílicos.
diversos tipos e à proibição de livre acesso feita Nos primeiros, predomina o Espírito
pelo Museu Copta do Egito, que se reservou a (pneuma); nos segundos, a alma (psyché); nos
posse dos textos. Somente em 1977 foi ultimada terceiros, a matéria (hyle). Os últimos são
uma tradução inglesa completa dos destinados à morte, os primeiros à salvação e
documentos. os segundos têm a possibilidade de salvação,
Muitos desses textos tornaram-se recen- caso sigam as indicações dos primeiros, isto é,
temente disponíveis em outras línguas, na co- os eleitos, que possuem a “gnose”.
letânea Os apócrifos do Novo Testamento.
Entretanto, serão necessários muitos anos d) Este mundo, que é mal, não foi feito
ainda para que as necessárias e prévias por Deus, mas sim por um demiurgo mau.
investigações analíticas e particulares possam Alguns acreditam que a essência do Gnosti- cismo
permitir conclusões sintéticas e gerais. se expressa perfeitamente nas seguintes
palavras de Plotino: os gnósticos “sustentam
que o demiurgo deste mundo é mau e que o
3 CDs traços essenciais cosmo é mau”. Explica-se, assim, o fato de que
da doutrina da gnose o Deus do Antigo Testamento, criador deste
mundo, fosse identificado com esse “demiurgo
a) O objeto específico do “conhecimento” mau”, e que se contrapunha ao Deus benigno
gnóstico é Deus e as coisas últimas relativas à do Evangelho, que, ao contrário, enviou o
salvação do homem. Um texto básico explica, de Cristo salvador. Cristo é uma entidade divina,
modo resumido, que a gnose diz respeito aos que veio à terra revestida de um corpo apenas
seguintes pontos: aparente. A interpretação alegórica dos textos
1) quem éramos e o que nos tornamos; sacros permitia aos gnósticos dobrá-los às suas
2) onde estávamos e onde fomos lan- exigências.
çados;
e) O sistema gnóstico complica-se par-
3) aonde desejamos ir e de onde fomos
ticularmente quando tenta explicar a derivação
resgatados;
de toda a realidade inteligível da unidade
4) o que é o nascimento e o que é o
primordial por meio de uma série de “éons”
renascimento.
(entidades eternas), que emanam em duplas
b) Na experiência do gnóstico, a tristeza e a (segundo alguns, Cristo seria o último éon),
angústia emergem como dados fundamentais, porque bem como a própria derivação do homem. A
revelam um impacto com o negativo e a propósito disso, o pensamento gnóstico revela-
conseqüente tomada de consciência de uma se ainda mais complicado pela presença de
cisão radical entre o bem e o mal, narrativas mitológicas e fantásticas de vários
gêneros e diversas gêneses.
Segunda parte - A PaMs+i ca na área cul+ural de língua grega
f) A doutrina gnóstica se apresenta como lêmicas demonstram a forte influência que esse
doutrina secreta, revelada por Cristo a poucos movimento deve ter exercido na antiguidade
discípulos, dirigindo-se especialmente às sobre os espíritos. Com efeito, naquela época
camadas cultas e refinadas e, portanto, tem que via um mundo espiritual perecer e outro
caráter aristocrático, em antítese com o surgir — e que exatamente por isso foi uma
autêntico espírito evangélico. Os Evangelhos época dominada pela angústia —, os gnósticos
gnósticos apresentam-se precisamente como os davam (talvez mais do que outros movimentos
documentos dessa “revelação secreta”. filosóficos) um sentido a essa angústia e,
Entre os defensores das doutrinas gnós- portanto, estavam em sintonia com certo modo
ticas, destacamos: Carpócrates e seu filho Epí- de sentir próprio daqueles tempos.
fanes, Basílides e seu filho Isidoro e, sobretudo, Um dos documentos descobertos em Nag
Valentim, que teve muitos seguidores. Hammadi afirma: “A ignorância do Pai havia
causado angústia e terror. A angústia se fizera
densa como a névoa, de modo que ninguém
4 A “QV\ose." pudesse ver...”. E, como sabemos de outra
como expressão da angústia de fonte, a própria materialidade e a corporeidade
constituíam para eles experiências de “terror,
uma época dor e falta de saída”. Mas, por mais que
pudesse responder a instâncias precisas
Os Padres encontraram (e com justa ra-
daquela época, a mensagem gnóstica revelou-se
zão) nas doutrinas gnósticas um viveiro de
frágil e sem futuro.
doutrinas heréticas. Mas suas insistentes po
, 37
Cãpítulo segundo - Pfoblemas filosóficos essenciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
7. Como o nascimento de alguns seres pos irrigados: com efeito, se o fluxo excessivo
depende da dissolução de outros, assim também, transborda, o terreno ficará lodoso e barrento, em
por sua vez, a dissolução de alguns depende do vez de fértil. Para que eu seja fecundo, é preciso
nascimento de outros. Neste sentido é verdadeiro o que o fluxo esteja em minha medida e não
dito: "Nada morre daguilo que nasce, mas, desmedido.
dividindo-se uma coisa em outra, dão lugar a uma 33. Por isso eu pergunto: "O que me darás",
única forma".3 tu que me fizeste dons infinitos, no limite do que
Fílon, fís alegorias das Leis, I, em Todos pode receber uma natureza mortal? Aquilo que, por
os tratados do Comentário alegórico da outro lado, desejo ainda aprender e adquirir é isto:
Bíblia. quem poderá ser o digno herdeiro de teus
benefícios?
34. Ou então "arrisco a morrer sem filhos"
(Gn 1 5,2), tendo recebido um bem caduco, efêmero,
de breve duração, eu que peço ter o contrário, isto é,
um bem duradouro, que permaneça no tempo,
A nulidcide do homem incontestável, imortal, que possa espalhar suas
sementes, estender suas raízes, que tenho solidez e
que possa levantar seu tronco direto para o céu?
Fl nulidade do homem, proclamada aqui por
35. G certamente necessário que a virtude do
Fílon, está longe de ser uma humilhação da
homem caminhe sobre a terra, mas também que
pessoa humana ou um perder-se em Deus. Se
chegue até o céu, a fim de que lá, nutrida pela
dermos atenção à psicologia dos personagens,
incorruptibilidade, possa permanecer incólume para
notaremos que a personalidade de Rbraão de
sempre.
modo nenhum está "perdida", mas muito mais
3ó. Sei bem que tu, que conduzes ao ser as
viva e determinada. Fílon, portanto, une
coisas que não existem e geras todas os realidades,
estreitamente o reconhecimento dos próprios
não amas uma alma estéril e infe- cunda, uma vez
limites com a consciência da dignidade humana,
que concedeste à estirpe dos videntes a graça
pois o homem é exatamente parente e íntimo de
extraordinária de jamais serem estéreis e sem
Deus.
descendentes. Pois bem, também eu, que faço parte
dessa estirpe, desejo, com todo direito, ter um
herdeiro. C, a partir do momento que vejo que essa
30. C meu estado de ânimo que Moisés, o
estirpe não se extingue, penso que seria tanto mais
perserutador, inscreveu sobre o meu memorial. Ge,
indigno permitir que meu desejo de beleza acabe em
com efeito, diz: “Aproximando-se, Abraão disse:
nada.
'Agora cheguei a falar com meu Senhor, eu que sou
37. Portanto, suplico e imploro que, assim
terra e pó" (Gn 18,23.27), uma vez que o momento
como as sementes e as brasas jazem sob a cinza,
exato para a criatura encontrar seu Criador chega
também a chama salvífica do virtude possa acender-
quando ela reconheceu sua própria nulidade.
se e resplandecer e, transmitindo-se como chama de
31. As palavras "O que me darás?" não
uma geração para outro, dure o quanto o mundo
exprimem a pergunta de quem se encontra no
durar.
dúvida, e sim de quem está grato por causa da
38. Aos ascetas concedeste o ardente desejo
grandeza e da plenitude dos bens de que goza. "O
de semear e gerar filhos da alma, e, quando os
que me darás?" significa: o que mais poderia ainda
obtiveram, gritaram de alegria e disseram: "Gis as
esperar em acréscimo? Ó tu, que gostas de dar,
crianças; através delas Deus mostrou a compaixão
tuas graças são abundantes, sem confins, e não
para com seu servo" (Gn 33,5). A inocência é sua
têm limite nem termo e, como fontes, derramam
oma e nutriz; suas almas são puras, suaves e
águas mais abundantes do que as que delas são
nobres; estão preparadas para receber as marcas
alcançadas.
sublimes e divinas da virtude.
32. € bom, porém, olhar não só para o fluxo
sempre transbordante de seus benefícios, mas Fílon,
também para nós que somos como cam O herdeiro das coisas divinas, em Todos
os tratados do Comentário alegórico do
Bíblia.
3
€urípides, fr. 839 Nciuck.
(Sapí+ulo terceiro
a expressar uma verdade parcial. Mas, à medida que corruptível, e é justamente por isso que é Deus,
se contradizem nos pontos fundamentais, ao passo que tudo o que vem depois dele é
mostram que não estão de posse de uma ciência gerado e corruptível. Eis por que as almas
infalível e de um conhecimento irrefutável. morrem e são punidas; se não fossem
Tudo aquilo que ensinaram com veracidade pertence a corruptíveis, não pecariam”. Nem se pode
nós, cristãos. Com efeito, depois de Deus nós pensar que haja tipos diferentes de realidade
adoramos e amamos o Logos nascido de Deus, incorruptíveis, porque não se entenderia como
eterno e inefável, porque ele se fez homem por poderiam ser diferentes. E isso que Platão e
nós, para curar-nos dos nossos males, tomando- Pitágoras não entenderam. Justino escreve:
os sobre si. Os escritores puderam ver a verdade de “Platão e Pitágoras não me interessam, nem
modo obscuro, graças à semente do Logos que neles foi quem simplesmente defende doutrinas desse
depositada. Mas uma coisa é possuir uma tipo. A verdade é esta: podes aprendê- la do
semente e uma semelhança proporcional às que se segue. A alma é vida ou tem vida. Se é
próprias faculdades e outra é o próprio Logos, vida, fará viver alguma outra coisa, ao invés de
cuja participação e imitação deriva da graça que si mesma [...]. Ninguém nega que a alma vive.
dele provém”. Se portanto vive, vive sem ser ela própria a
vida, mas participando da vida. Ora, o que
WSM ;A d ou +ri n a d o L-ocfos participa de algo é diverso daquilo de que
participa. A alma participa da vida porque
Entre suas doutrinas particulares, des- Deus quer que tenha a vida”. O homem não é
taca-se a doutrina sobre as relações entre o eterno, e o corpo não está unido perenemente à
Logos-Filho e Deus-Pai, interpretada através de alma; e quando esta harmonia se rompe, a alma
uma inteligente utilização do conceito estóico abandona o corpo e o homem já não existe.
de “Logos proferido”, que Fílon já havia “Assim a alma cessará de existir, o espírito de
utilizado, e de outros conceitos destinados a ter vida separa- se dela: a alma já não existe e
grande eco posteriormente: “Como princípio, retorna ao lugar de onde veio”. Desse modo
antes de todas as criaturas, Deus gerou de si Justino abre espaço à doutrina da ressurreição.
mesmo certa potência racional (loghiké), que o
Espírito Santo chama ora „Glória do Senhor‟,
E £1 A co nde naç ão de
ora „Sabedoria‟, ora „Anjo‟, „Deus‟, „Senhor‟ e
à morte
Logos (= Verbo, Palavra) (...) e porta todos os
nomes, porque cumpre a vontade do Pai e O testemunho dos mártires convertera
nasceu da vontade do Pai. E, assim, vemos que Justino.
algumas coisas acontecem entre nós: proferindo Ele, por seu turno, também deu teste-
uma palavra (= logos, verbum), nós geramos uma
munho profundo de Cristo, cuja fé havia abra-
palavra (logos), mas, no entanto, não ocorre uma
çado. Com efeito, morreu decapitado em 165,
divisão e uma diminuição do logos (= palavra,
condenado pelo prefeito de Roma por sua
pensamento) que está dentro de nós. E assim
profissão de fé no cristianismo. um
vemos também que, de um fogo, acende-se
outro fogo sem que o fogo que acende seja
diminuído: este permanece igual e o novo fogo
que se acendeu subsiste sem diminuir aquele
do qual se acendeu”.
3 ~Cac\ano
E* J d o u+W n a d a alm a
não é fruto de considerações e elucubrações de tudo como cidadãos e tudo suportam como
pessoas curiosas; nem se fazem promotores, forasteiros. Toda terra estrangeira é sua pátria
como alguns, de uma teoria humana qualquer. e toda pátria é para eles terra estrangeira. (...)
(...) Habitam em sua própria pátria, mas como Habitam na terra, mas são cidadãos do céu”.
estrangeiros; participam de [3]
2 A figura e os fundamentos do
pensamento de Orígenes
que queiras escondê-los; aprendes a geometria dos viço e se destrói. A concupiscência, com eFeito,
egípcios, a astronomia dos babilônios, tomas dos torna-se tudo e se transforma em tudo e tudo quer
trácios os sábios encantamentos, muitos coisas te embelezar para esconder o homem.
ensinaram também os assírios, para as leis verazes e Mas o homem, com o qual coabita o Logos,
a crença em relação a Deus foste ajudado pelos não altero seu aspecto, não se transforma, tem o
próprios hebreus. Forma do Logos, é semelhante a Deus, é belo, não
Clemente de Alexandria, O se enFeita. C a beleza verdadeira e, com eFeito, é
Protréptico. Deus; tal homem se torna Deus, porque Deus o quer.
De Fato, Heráclito disse bem: "Os homens são
deuses, os deuses homens, uma vez que a razão é a
mesma". O mistério é claro: Deus está no homem e o
homem se torno Deus, e o mediador realiza a
vontade do pai. Mediador é o Logos, que é comum a
fl beleza espiritual
ambos: Filho de Deus, salvador dos homens, de
Deus servo, de nós pedagogo.
Uma vez que a carne é serva, conForme Paulo
Uma vido conforme o Logos propicio o atesta, quem de Fato irá1 querer enFeitar esta criada,
capacidade de viver segundo a justa medida e, à guisa de olcoviteiro? Que a carne seja Forma de
assim, alcançar a verdadeira beleza espiritual. servo é atestado pelo Apóstolo quando Fala do
Senhor. "Aniquilou a si mesmo, tomando a natureza
de escravo", chamando escravo o homem de carne
antes que o Senhor se tornasse escravo e se
encarnasse.
A maior de todas as ciências, ao que parece, é O próprio Deus, porém, sofrendo na carne,
conhecer a si mesmo; quem, com eFeito, conhece o libertou a carne da corrupção e, depois de tê-la
si mesmo, conhecerá Deus e, conhecendo Deus, se aFastado da escravidão portadora de morte e
tornará semelhante o ele, não levando ouro nem amarga, a revestiu de imortalidade, dando-lhe este
manto FilosóFico, mas operando o bem e tendo santo ornamento de eternidade: a imortalidade.
necessidade de pouquíssimas coisas. Cxiste ainda outro beleza dos homens, a
Apenas Deus não tem necessidade de noda e caridade. "A caridade — diz o Apóstolo — é
goza sumamente vendo-nos puros na ordem do magnânima, é benigna, não é invejosa, não se
pensamento e na do corpo, revestidos de uma estola vangloria, não se incho". C vangloria o ornamento
cândida, o temperança. que tem a aparência do supérfluo e do não
Tríplice é o atividade do alma. A de entender— necessário. Por isso acrescenta: "não se comporta
que se chama racional — é o homem interior, e guia indecorosamente". Indecorosa é uma Figuro
este homem visível; o homem interior, ao contrário, é estranha e não segundo a natureza. A alusão é
guiado por outro, ou seja, Deus. A alma irascível, estranha, como claramente explica o Apóstolo,
sendo algo de Ferino, está próximo da mania. dizendo: "não procura aquilo que não é seu". A
Multiforme é a apetitiva que é o terceira, mais variada verdade, com eFeito, chama natural aquilo que lhe é
que o deus marinho Proteu; toma Formas diversas e próprio; a ambição, ao contrário, procura o que é de
estimula os adultérios, o volúpia e a molície. outrem, permanecendo Fora de Deus, do Logos e
Tornou-se primeiro um leão barbudo (ainda há da caridade.
o enFeite); os pêlos do queixo mostram que é Que o próprio Senhor Fosse feio de aspecto o
um homem; depois um dragão, um leopardo, atesta o Cspírito pela boca de Isaías: "Nós o vimos,
um grande não tem aparência nem beleza, mas um aspecto
porco; desprezível, rejeitado diante dos homens". Todavia,
o amor pelo ornamento escorregou no quem é melhor que o Senhor? Não a beleza
intemperonça. O homem não aparece mais enganadora da carne, mas a verdadeiro beleza da
semelhante a uma Forte Fera, mas tornou-se alma e da corpo ele fez ver, mostrando a
água mole benevolência da alma e a imortalidade da carne.
e árvore altíssima. Clemente de Alexandria, O Protréptico.
Desencadeiam-se as paixões, se desenfreiam os
prazeres, murcha a beleza e quando sopram contra
ela as paixões eróticas do devassidão cai por terra
ainda mais depressa que a pétala, e antes mesmo do
outono perde o
'Mediador de relações ilícitos.
Segunda patte - y\ Patrística na área cultural de língua grega
capacidade da mente humana, mesmo que seja a do (Provérbios 8,30ss), motivo pelo qual também
mais pura e a mais límpida. entendemos que Deus sempre se alegra. Ora, nesta
Todavia, não parece Fora de lugar se, para sabedoria, que sempre estava com o Pai, estava
tornar mais evidente o conceito, nos servirmos de sempre contida, preordenada sob a forma de idéias,
outra comparação. Por vezes nossos olhos não a criação, de modo que não houve momento em que
podem olhar a natureza da luz, ou seja, a substância a idéia daquilo que teria sido criado não estivesse na
do sol; mas observando seu esplendor e os raios que sabedoria.
se difundem nas janelas ou em pequenos ambientes Parece-me que talvez desse modo nós, nos
aptos a receber a luz, daqui podemos argüir quão limites da nossa pequenez, possamos pensar Deus
grande é o princípio e a fonte da luz material. de modo ortodoxo, pois não dizemos que os
Analogamente, as obras da providência e a maestria criaturas são não-geradas e coeternas com Deus, e
que se revela em nosso universo são, por assim por outro lado nem que Deus, antes nada tendo feito
dizer, os raios de Deus em comparação com sua na- de bom, tenha começado o operar depois de uma
tureza e sua substância. Portanto, uma vez que com mudança, a partir do momento que é verdadeiro o
suas forças nossa mente não pode conceber Deus que foi escrito: "Tudo fizeste na sabedoria" (Salmo
como ele é, pelo beieza de suas obras e pela 103,24). € se tudo foi feito na sabedoria, pois a
magnificência de suas criaturas ela o reconhece sabedoria sempre existiu, pré-constituídos sob a
como pai do universo. forma de idéias sempre existiam na sabedoria os se-
Por isso não devemos crer que Deus seja res que sucessivamente teriam sido criados também
corpo ou seja encerrado em um corpo, e sim que ele segundo a substância. Penso que pensando
é natureza intelectual simples, à qual absolutamente justamente nisso Salomão diz no Eclesiastes: "O que
nada se pode acrescentar, para que não se pense foi feito? O mesmo que será feito; o que foi criado? O
que ele tenha em si algo de mais ou de menos: ele é, mesmo que será criado. Não há nado de novo sob o
em sentido absoluto, mônada e, por assim dizer, sol. 6 se alguém disser: 'Gis, isto é novo', isso já
ênada:' inteligência e fonte da qual derivam toda existiu nos séculos que existiram antes de nós"
inteligência e toda substância intelectual. (Gclesiastes l,9ss). Portanto, se tudo isso que existe
Orígenes, Os princípios,
livro I, 1,5-6. sob o sol existiu já nos séculos que se passaram
antes de nós, pois não há nada de novo sob o sol,
3. O mundo das Idéias platônicas sem dúvida sempre existiram todas as coisas, os
incluído e transfigurado na gêneros e as espécies, e poderíamos dizer também
Sabedoria de Deus aquilo que é numericamente uno.
Orígenes, Os princípios,
A este ponto, porém, a inteligência humana se livro I, 4,4-5.
entrega, forçada a se perguntar como é possível
explicar que, a partir do momento que Deus sempre
existiu, também as criaturas sempre existiram; e que
existiram, por assim dizer, sem ter tido início, as
criaturas que sem dúvida devemos crer que foram
criadas e feitas por Deus. Visto que, aqui entram em
contraste entre si as idéias dos homens, enquanto de
ambas as partes se opõem e contrastam conceitos 7 fl apocatástase
validíssimos que procuram atrair a si aquele que os
considera, eis o que, segundo a limitadíssima
capacidade da nossa inteligência, nos vem à mente, Na passagem seguinte, Orígenes ilustra sua
e que pode ser declarado sem nenhum perigo para célebre teoria da apocatástase, segundo a qual
a fé. Deus sempre foi Pai, e sempre teve o Filho todas as coisas no Fim do mundo serão
unigênito, que, conforme tudo o que expusemos recapituladas na unidade originária de Deus, que
acima, é chamado também de sabedoria: esta é a será tudo em todos.
sabedoria com a qual Deus sempre se alegrava
tendo criado o mun
O fim do mundo é prova de que todas as
coisas chegaram à plena realização. €ste fato nos
lembra que se alguém é tomado pelo desejo de ler e
conhecer argumentos tão árduos e difíceis deverá
ter inteligência cultivada e completa. Com efeito, se
ele nõo tiver tido certa experiência de questões de
'Ou seja, realidade absolutamente unitária e simples que não tal gênero, estes argumentos lhe parecerão inúteis e
admite em si nenhuma forma de multiplicidade. supérfluos [...].
ScgUndci parte - jA Patrística na área cultural de língua grega
O fim do mundo ocorrerá quando cada um for Devemos crer que toda esta nossa substancio
submetido às penas conforme os próprios pecados corpóreo será tirada de tal condição quando cada
(Mateus 24,36); e somente Deus conhece o tempo coisa for reintegrada para ser uma só coisa (João
em que coda um receberá aquilo que merece. 17,21), e Deus será tudo em todos (1 Coríntios 1
Consideremos todavia que a bondade de Deus por 5,28). Isso, porém, não acontecerá em um momento,
obra de Cristo conduzirá todas as criaturas para um mas lenta e gradualmente, através de séculos
fim único, depois de ter vencido e submetido infinitos, pois a correção e o purificação sucederão
também os adversários. Com efeito, assim diz a pouco a pouco e singularmente, e enquanto alguns
Cscritura: “Disse o Senhor oo meu senhor: Senta-te à com ritmo mais veloz se apressarão em primeiro
minha direita até que eu ponha teus inimigos como lugar para a meta e outros os seguirão de perto,
esca- belo de teus pés" (Salmo 109,1). Se não pare- outros, ao contrário, permanecerão muito atrás. C
ce claro aquilo que a palavra do profeta quer dizer, assim, mediante inumeráveis ordens constituídas
aprendamos mais abertamente de Paulo, que diz: "€ por aqueles que progridem e, de inimigos que eram,
preciso que Cristo reine até que tenha posto todos os se reconciliam com Deus, chega-se ao último
seus inimigos sob seus pés" (i Coríntios 1 5,25). € se inimigo, a morte, para que também este seja
nem estas palavras tão evidentes do apóstolo nos destruído e não haja mais inimigo (1 Coríntios 1
esclarecem suficientemente o que significa pôr os 5,26).
inimigos sob os pés, ouve como ele continua: “Com Quando todos os almas racionais forem
efeito, é preciso que tudo lhe seja submetido" (1 reconduzidas a esta condição, então também a
Coríntios 15,27). Mas o que é a submissão pelo qual natureza deste nosso corpo será levado à glória de
tudo deve estar submetido a Cristo? Creio que seja corpo espiritual. Com efeito, como vemos que das
aquelo pela qual também nós desejamos estar naturezas racionais as que mereceram a bem-
submetidos a ele, pelo qual se lhe submetem os aventurança não são de natureza diferente em
apóstolos e todos os santos que o seguiram: com relação às que viveram na indignidade do pecado,
efeito, submissão pelo qual estamos submetidos a mas são as mesmas, que antes pecaram e depois,
Cristo significa salvação que Cristo dá a seus convertidas e reconciliadas com Deus, foram
submetidos, conforme tudo o que dizia também Davi: novamente chamadas à bem- aventurança: da
“Não estará minha alma submetida o Deus? Com mesma forma, tombém sobre a natureza do corpo
efeito, dele vem minha salvação" (Salmo 61,1). não devemos crer que um corpo é este de que
Observando tal fim, em que todos os inimigos agora usamos na ignomínia, na corruptibilidade e na
serão submetidos a Cristo e também será destruído fraqueza, e outro será aquele do qual faremos uso
o último inimigo, a morte, e Cristo, a quem tudo foi na incorruptibilidade, no poder e na glória; mas será
submetido, entregará o reino a Deus pai (1 Coríntios sempre este mesmo corpo que, deixando estas im-
1 5,24ss), disso conhecemos o início das coisos. perfeições de agora, será transformado na glória e
Com efeito, o fim é sempre semelhante ao início: e se tornará corpo espiritual, de modo que tendo sido
como um só é o fim de tudo, assim devemos vaso para uso vulgar, uma vez purificado se tornará
entender um só início de tudo, e como um só é o fim vaso de luxo (Romanos 9,21), receptáculo de bem-
de múltiplas coisas, assim, de um só início derivaram aventurança. € devemos crer que nesta condição
coisos muito variadas e diferentes, que de novo, pela permanecerá sempre e imutavelmente por vontade
bondade de Deus, a submissão de Cristo e a do Criador, segundo a fé de Paulo que diz: “Temos
unidade do Cspírito Santo são reconduzidas a um só uma habitação não feita por mão de homens, eterna
fim, que é semelhante ao início [...]. nos céus" (2Coríntios 5,1).
Orígenes, Os princípios,
livro III, 6.
íSapítulo quarto
— e o (Sorvcílio de /sjicéia
0
bIiü e d i t o de Milao ^ ^
e as disputas teológicas
patias pelo platonismo, a ponto de considerar vezes, onde nasceu o símbolo da fé, destina-
Platão em concordância com Moisés. do a ser o “credo” de todos aqueles que se
Ário, que nasceu na Líbia em 256 e reconhecem como cristãos.
morreu em 336, sustenta que o Filho de Deus Eis os pontos centrais do grande sím-
foi criado do não-ser como todo o resto e, bolo de Nicéia: “Cremos em um só Deus
conseqüentemente, desencadeou a grande onipotente (pantokrátor = omnipotens), cria-
discussão trinitária que levaria ao Concilio de dor (poietés = factor) de todas as coisas,
Nicéia. visíveis e invisíveis. E em um só Senhor, Je-
Atanásio (295-373) foi o campeão da sus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado
tese da “consubstancialidade” do Pai e do Fi- (genethéis = natus) do Pai, ou seja, da subs-
lho e, portanto, o grande adversário de Ário tância (ousía = substantia) do Pai, Deus de
e o triunfador do Concilio de Nicéia. Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus
Basílio de Cesaréia, Gregório Nazian- verdadeiro: gerado (ghenetós = genitus) e não
zeno e Gregório de Nissa sobressaem do criado (poiethéis = factus), consubstanciai
ponto de vista cultural e filosófico, e deles (homooúsios = consubstantialis) ao Pai, pelo
falaremos adiante. qual todas as coisas foram criadas (eghéneto
Nemésio de Emesa (sécs. IV-V) foi autor de = facta sunt), as que estão no céu e as que
um tratado Sobre a natureza do homem. estão na terra; por nós e por nossa salvação,
Por fim, recordemos Sinésio de Cirene ele desceu, se encarnou por obra do Espírito
(370413), formado na última escola platônica Santo (...) e ao terceiro dia ressuscitou, subiu
de Alexandria, que se tornou bispo de ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos
Ptolemaida. (...). Creio no Espírito Santo (...)”.
Faltam ainda a aquisição do conceito de
2 CD (Z-oncílio de Aíicéia Pessoa e o aprofundamento das relações
e a fi XQ ÇQ O do “c^edo" entre as três Pessoas (hypostáseis,
personae), que só chegariam posteriormente
O acontecimento principal desse pe- e dos quais falaremos quando tratarmos de
ríodo pode ser considerado o Concilio de santo Agostinho.
Nicéia de 325, ao qual já acenamos várias
O primeiro concilio
ecumênico (Niceia, 325)
cm que se condena o
arianismo: o ícone do
mosteiro grego
Mctamorphosis
representa Ario
submetido pela unidade
da fé do concilio
ecumênico.
Capítulo quarto - Os três luminares da íSapadócia...
Miniatura (tirada da
primeira página do Códice
de Urbitio lat. 62,
conservado na Biblioteca
Vaticana) que representa
o Pseudo-Dionísio
Areopagita, filósofo da
antiguidade tardia, que
teve grande influência
sobre o pensamento
medieval.
nfl^culmfrotoj2aDm
Capítulo quarto - Os wês I uminares da Capadóeia...
te, de modo irracional, para aquilo que está realizou o grande Desígnio do Pai, recapi-
abaixo dele, sobre o qual ele próprio, por tulando tudo aquilo que está no céu e sobre a
ordem divina, teria devido comandar [...], e terra em Si, em que tudo foi criado”.
assim pouco faltou para que de novo mise- A partir da concepção do Confessor,
ravelmente corresse o perigo de afundar no segundo a qual tudo é recapitulado em Cristo,
não-ser, por isso são transformadas as natu- no qual e pelo qual tudo existe, o maior
rezas [...]. E Deus se torna homem a fim de estudioso moderno de Máximo (H. U. von
salvar o homem perdido, tendo unificado em Balthasar) descreveu a existência humana
si as partes dispersas da natureza na sua como ato litúrgico, oferta, adoração transfi-
totalidade e as formas universais dos guradora em um templo, tendo como nave o
particulares, de que devia surgir por natureza cosmo inteiro, ou seja, como “liturgia cós-
a união daquilo que estava dividido [...]. E mica”. [T]®®
assim
V^ecuperação da -filosofia
aris+o+élica
composto dos mesmos elementos do todo e com do uma alma. fl inteligência, com efeito, se é própria
este esplendor do nome quiseram fazer o elogio da de todas estas faculdades, ou mostra que elas são
natureza, esquecendo que desse modo tornavam o todos as almas, ou priva cada uma delas, em igual
homem semelhante às características próprias da medida, das propriedades características da alma".
mosca e do rato, pois também neles existe a misturo C ela me respondeu: “Também tu queres
dos quatro elementos, porque certamente nos seres examinar de modo coerente esta questão já
animais se vê uma parte mais ou menos grande de debatida por muitos outros: trata-se da idéia que é
cada um dos elementos, sem os quais nenhum ser preciso ter destes dois princípios, o concupiscível e
que participa da sensibilidade teria natureza para o irascível, paro ver se fazem parte da essência da
subsistir. Que grandeza tem, portanto, o homem, se alma e se estão nela presentes desde sua formoção
o consideramos figura e semelhança do cosmo? originária ou se, ao contrário, são algo diferente,
Deste céu que circunda, da terra que muda, de inserido em nós posteriormente. Que sua presença
todas as coisas neles compreendidas e que passam se nota na alma é fato igualmente admitido por
com aquilo que as circunda? todos, mas nenhum raciocínio ainda soube dizer
Cm que consiste, conforme a Igreja, a gran- com exatidão o que é preciso pensar sobre eles, de
deza do homem? Não na semelhança com o cosmo, modo a ter uma idéia segura a propósito. Ao contrá-
mas em ser à imagem do Criador de nossa natureza. rio, quose todos [os filósofos] são tomados pela
Gregório de Nisso, O dúvida, por causa de suas opiniões erradas e
homem. diversas. Se a filosofia pogã, que debate este
argumento com seus artifícios, bastasse de fato paro
4. Na definição da alma dar-nos uma demonstração, seria talvez supérfluo
não entra aquilo que é completamente acrescentar à pesquisa um discurso sobre a alma;
estranho a Deus mas, visto que [os filósofos] chegaram a formular
€ eu, remetendo-me em meu pensamento à sobre a alma teorias baseadas sobre as aparências
definição da alma dada por ela [Macrina] em seu e arbitrárias, enquanto nós, que não somos livres
discurso anterior, lhe fiz notar que este não havia para dizer o que queremos, usamos a Cscritura
ilustrado suficientemente as faculdades que se santa como regra e lei de todo doutrina, [segue-se
podem pensar presentes na alma. “Conforme o teu que] nós, forçados a considerar apenas a Cscritura,
discurso, a alma é uma essência inteligente que aceitamos somente aquilo que concorda com suas
transmite ao corpo, seu instrumento, a força vital, de intenções. Deixemos andar, portanto, o carro pla-
modo que possa fazer funcionar as sensações. Mas tônico, o par de potros atrelados, diferentes em seus
nossa alma não se limita a pôr em movimento a impulsos, e o auriga que os guia, todos enigmas de
faculdade cognoscitiva e especulativa do que [Platão] se serve para formular sua doutrina
pensamento produzindo-a em virtude de sua sobre a alma; coloquemos igualmente de lado todas
essência inteligente, ou a governar as faculdades as teses do filósofo seguinte, que, pesquisando
sensoriais para que funcionem conforme sua habilmente os fenômenos e examinando com
natureza: nela se notam também muitos movimentos cuidado o problema que agora nos interessa, nos
ditados pela concupiscência e pela ira. Graças à mostrou que a alma é mortal; deixemos de lodo
presença em nós destas duas funções gerais, temos também os filósofos precedentes e sucessivos,
meio de constatar que sua atividade e seu tenham eles escrito em prosa ou em versos
movimento assumem uma grande variedade de baseados sobre o ritmo e sobre o metro; tomemos,
manifestações. São muitas as ações que se podem ao contrário, como base de nosso raciocínio a
ver guiadas pela faculdade concupiscível; e muitas Cscritura inspirado por Deus, que nos obriga a não
são também as ações produzidas pelo princípio considerar nada de excelso na alma, que não seja
irascível: nenhum desses dois princípios é corpóreo, próprio da natureza’ divina. Aquele que nos disse
e tudo aquilo que é incorpóreo possui uma que a alma se assemelha a Deus nos mostrou tam-
inteligência, fl definição que demos da alma nos bém que aquilo que é estranho a Deus não entra na
mostrou, por outro lado, que ela é um princípio definição da alma: a semelhança não poderia
inteligente. Por conseguinte, de nosso discurso subsistir naquilo que é diferente. Uma vez que estes
nasce um destes dois absurdos: ou a ira e a dois princípios não se vêem na natureza divina, não
concupiscência são em nós outras almas, e em nós é também justo supor que façam parte da essência
se pode notar, em vez de uma só alma, uma da alma.
pluralidade de almas; ou então nem o nosso Gregório de Nisso, R olmo
pensamento deve ser considera e a ressurreição.
65
Capítulo quarto - Os três I uminam s da íSapadócia... — ~
veis; nõo tem necessidade da luz, não sofre nhum evidente por si o que e como seja, chamando
mudança ou corrupção ou divisão ou privação ou distinção a ignorância sobre isso, que separa a
diminuição; não é nenhuma das coisas sensíveis, criatura de Deus. Com efeito, dado que ela distingue
nem as possui. estes entre si naturalmente, e não pode ser recolhida
Pseudo-Dionísio flreopogita, em unidade em uma só essência, porque não pode
Teologia mística. receber um único e idêntico termo, foi deixada não-
expressa. fl segunda divisão, ao contrário, em base
à qual se distingue toda o natureza que recebeu o
ser de Deus na criação, é a que está entre o inteli-
gível e o sensível, fl terceira é aquela segundo a
qual a natureza se distingue em céu e terra, fl
MÁXIMO O CONFESSOR quarta, depois, é aquela segundo a qual a terra se
divide em paraíso e terra habitada, e a quinta é
aquela segundo a qual o homem, que está acima de
todos como um cadinho que contém em si a
totalidade, tornando-se em si mediador entre todos
3 os extremos de toda divisão, com bondade
As cinco introduzido com o nascimento entre os existentes, se
divisões do subdivide em macho e fêmea. Tem claramente a
natureza plena capacidade de unir naturalmente, pois está no
meio de todos os extremos, graças às propriedades
6sto famosíssimo passagem dos flm- relativas a todos os extremos de suas partes, por
bigua (explicações de dificuldades presentes meio das quais, realizando o modo da gênese das
nas obras de Gregório Nazianzeno e Dionísio coisas distintas, de maneira conforme à causa, teria
Flreopogita) exerceu grande influencio sobre revelado por si o grande mistério do escopo divino,
(íscoto Eriúgena (tradutor de obras de Máximo e tendo feito harmoniosamente terminar em Deus o
autor do De divisione naturae). união recíproca dos extremos dos seres,
Rqui se apresentam cinco divisões fun- procedendo dos próximos aos distantes e
damentais: sucessivamente para o alto dos piores aos melhores
1) natureza criada/não-criada: [...]. Todavia, uma vez que o homem, depois que foi
2) mundo inteligível/sensível: criado, não se moveu naturalmente para o Imóvel,
3) céu/terra: como seu Princípio (digo, Deus), mas se dirigiu
4) paroíso/mundo habitado pelo homem: contra a natureza, voluntariamente, de modo
5) homem/mulher. irracional, para aquilo que está abaixo dele, sobre o
O homem, que é imagem de Deus e, qual ele próprio por ordem divina teria devido
como microcosmo, é um onel de conjunção comandar [...], e assim pouco faltou para que de
privilegiado entre os extremos, teria devido novo miseravelmente corresse o perigo de afundar
unificar os diversos opostos, reconduzindo o no não- ser, por ele são transformadas as naturezas,
Todo o Deus. e de modo paradoxal e sobrenatural. Aquilo que por
Uma vez que não realizou essa tarefa, natureza é absolutamente imóvel se move, por assim
Deus empreendeu a obra da salvação e da dizer, permanecendo imóvel, para aquilo que é por
unificação por meio do mistério da Encarnação natureza movido, C Deus se torna homem a fim de
do Verbo. salvar o homem perdido.
Máximo o Confessor,
fímbiguorum iiber.
Os santos que receberam a maior parte dos
mistérios divinos daqueles que foram seguidores e
ministros do Logos, e que portanto obtiveram
imediatamente o conhecimento dos mistérios
transmitido a eles por sucessão dos predecessores,
dizem que o substância de tudo
o que foi feito distingue-se em cinco divisões. Dizem O amor
que a primeira delas é a que distingue a Realidade
não-criada da criada na sua totalidade; esta recebeu
o ser por meio do nascimento. Rfirmam, com efeito, Muito significativa e tocante é o doutrina de
que Deus por bondade produziu a magnífica ordem Máximo sobre o agape, sobre o amor,
do totalidade dos seres, e que não se torna de modo concebido, no Novo Testamento, como amor
ne- -----------------------------------------------------------------
►
67
Cãpítulo CtUãYtO - Os três luminares da Capadócia... ........................... —
-- --------------------------
de Deus e do próximo. Tal temática se centraliza
sobre a natureza de Deus como agape e sobre a fl "liturgia cósmica"
pessoa de Cristo.
Cis uma passagem emblemática tirada do
Livro ascético: ela apresenta Deus como "amor". O ápice da doutrina do Confessor sobre
Cristo como o "próprio verdadeiro amor", o amor divisões e unificações, pelo gual tudo é
por todo homem como "sinal de amor de Deus". "recapitulado" em Cristo, é a concepção da
"liturgia cósmica". R unificação realizada pela
Cncarnação continua na obra transfiguradora
da Igreja.
Fl Igreja está no meio, entre cosmo natural
"Mesmo se [os mondamentos] são muitos, e sobrenatural; assim como a Igreja é um
irmão, todavia eles se recapitulam em um só mundo, também o mundo é uma "igreja
preceito, ou seja: 'flmarás o Senhor teu Deus com cósmica", cuja nave é o cosmo sensível. Neste
todas as tuas forças e com toda o tua mente, e o teu templo o homem, imagem de Deus, celebra a
próximo como a ti mesmo'. C guem luta para adoração, a oferta litúrgica transfiguradora.
observar esse preceito, cumpre junto todos os fípresentamos duas passagens signifi-
mandamentos. Com efeito, aquele que não se cativas, tirados da Mystagogia, que é uma
afastou do poixão por aquilo que é material [...] não interpretação simbólica da liturgia.
pode amar nem Deus nem o próximo com verdade,
porque é impossível ser ao mesmo tempo inclinado
à matéria e amor Deus. C isso é aquilo que diz o
Senhor: 'Ninguém pode servir a dois patrões[...]'.
Com efeito, pelo Fato de que nossa mente está 1. fl Igreja, figura do cosmo
apegada às coisas do mundo, é escravizada por
elas e despreza o mandamento de Deus, transgre- Fl santo Igreja de Deus é a figura e a imagem
dindo-o". do cosmo inteiro, constituído de seres visíveis e
C o irmão disse: "De quois coisas Falas, pai?" invisíveis, porque apresenta em si a mesmo união e
C o ancião respondeu: "De alimentos, rique- distinção. Cmbora ela seja de fato como uma só
zas, propriedades, glória, parentes e daí por diante". casa pela construção, por certa particularidade na
C o irmão perguntou: “Dize-me, pai: Deus por disposição da estrutura admitirá a distinção, sendo
acaso não criou essas coisas e não os deu acaso dividida, com uma porte reservada exclusivamente
para que os homens as usassem? Como então aos sacerdotes e aos ministros, chamada santuário,
ordena não estar apegado a elas?" e outra acessível a todo o povo fiel, chamada nave.
G o ancião respondeu: "C evidente que Deus Por outro lado, é una por essência, não estando
criou estas coisas e as deu para que os homens as dividida de suas partes por sua diferença recíproca,
usassem. C todas as coisas criadas por Deus são mas libertando as próprias partes da diferenço que
boas, porque servindo-nos delas bem tornamo-nos brota de seu nome por sua relação com a unidade, e
agradáveis a Deus; nós, porém, sendo Fracos e mostrando que ambas são reciprocamente a mesma
ligados tanto à matéria como oo modo de pensar, coisa, e manifestando que, por coesão, uma é para a
pusemos as coisas materiais na frente do outro aquilo que cada uma é para si mesma [...]. Do
mandamento do amor, e ficando apegados a elas, mesmo modo, também todo o cosmo dos seres,
combatemos os homens. Devemos, porém, antepor gerado por Deus, está subdividido tanto em um
a todas as coisas visíveis e ao próprio corpo o mundo inteligível, formado por essências inteligíveis
amor por todo homem, gue é sinal do amor por e incorpóreas, quanto neste mundo sensível e cor-
Deus, como o próprio Senhor indica nos póreo, também magnificamente entretecido por
Cvangelhos: 'Quem me ama — diz — observará os muitas formas e naturezas. Trata-se, por assim dizer,
meus mandamentos'. C qual seja o mandamento, de outro Igreja, não feita por mãos de homem,
pela observância do qual nós o amamos, escuta ele revelada sabiamente por esta, feita por mãos de
próprio, que diz: 'Este é o meu mandamento: que homem, e que tem, como sontuário, o cosmo
vos ameis uns aos outros'. Vês que o amor mútuo superior, constituído pelas potências do alto e, como
testemunha o amor por Deus, que é a perfeição de nave, este cá debaixo, reservado aos seres aos
todo mandamento de Deus?" quais toca como sorte a vida sensível.
Máximo o Confessor,
Máximo o Confessor, Mystagogia.
Liber asceticus.
Segunda parte - T-^a+rística na área cultural de língua grega
2. O homem como Igreja mística veis, tiradas pelo espírito de modo puro do
C, vice-versa, o homem é umo Igreja místico: matéria, e por fim, com o altar do mente chama a
com a nave do corpo, ilumina virtuosamente a parte si o silêncio, celebrado nos templos, da grande
ativa da alma com a potência dos mandamentos, voz invisível e incognoscível do Divindade, por
conforme a filosofia ética, enquanto com o santuário meio de outro silêncio, loquaz e de muitos sons
do olmo conduz em Deus, conforme o [...].
contemplação natural, por meio do razão, os Máximo o Confessor,
formos dos coisos sensí Mystagogia.
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Os bustos de João fJiiifiVí-i"}** '
Clímaco, João
Damasceno e
Máximo o
Confessor, em um 7“Y l// r T^-" '
códice conservado
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na Biblioteca * " /■ **/»
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Nacional de Paris.
f -i
A PATRÍSTICA NA
ÁREA CULTURAL DE
LÍNGUA LATINA
Capítulo sexto
“certum est, quia impossibile est” tornaram- ridade teológica antes de Agostinho. Desta-
se muito famosas, e foram condensadas na ca-se nele grande sentido eclesial. Deve-se
célebre fórmula “credo quia absurdum ”, que recordar também Novaciano (em atividade
resume muito bem o espírito de Tertuliano. pela metade do século III), que prosseguiu a
Para chegar a Deus, basta uma alma obra de aprofundamento da linguagem teo-
simples: a cultura filosófica não ajuda, até lógica técnica iniciada por Tertuliano, e tam-
atrapalha. No Testemunho da alma, podemos bém foi grande retor, além de filósofo de
ler: “Mas não me refiro àquela alma que se extração estóica.
formou na escola, que se treinou na biblio- No início do século IV, surgiu a obra
teca, que se empanturrou na Academia e no Contra os pagãos, de Arnóbio, de conteúdo
Pórtico da Grécia e agora dá seus arrotos filosófico, inspirada em grande sentido de
culturais. Para responder, é a ti que chamo, pessimismo acerca da condição do homem,
alma simples, ainda no redil, ainda não ma- que o leva a encontrar em Cristo a única
nipulada e privada de cultura, assim como és salvação possível. Mas o cristianismo de
naqueles que só têm a ti, alma íntegra que Arnóbio é superficial. Ele não mostra ter
vens dos ajuntamentos, das ruas, da fiação. familiaridade com a Escritura e, em parte,
Preciso da tua ignorância, porque ninguém ainda permanece dominado por concepções
confia em quatro noções de cultura”. E, em heréticas e até mesmo pagãs.
Apologético, Tertuliano escreve: “O testi- Lúcio Cecílio Firmiano Lactâncio, aluno
de Arnóbio, inicialmente ensinou retórica em
monium animae naturaliter christianae!”
Cartago e depois em Nicomédia. Depois de
velho (por volta de 317), tornou-se
preceptor de Crispo, filho do imperador
5 «Unfluxos estóicos Constantino. Foi claramente superior ao
na ontologia de Xertuliano mestre, mas não teve idéias filosóficas e teo-
lógicas verdadeiramente originais. Sua obra
mais conhecida são As instituições divinas,
Apesar dessa viva antifilosofia, Tertu-
em sete livros, que é ao mesmo tempo uma
liano, em certa medida, revela-se um estói-
polêmica contra a religião pagã e uma apai-
co em ontologia. Para ele, o ser é “corpo”:
xonada — mas nem sempre perspicaz —
“nihil emm, si non corpus, nihil est incor-
defesa do culto e da doutrina cristã.
porale, nisi quod non est”. Por vezes há,
porém, a suspeita de que Tertuliano não dis-
tinga claramente o corpus da substantia.
Ele deve ter absorvido essas teses so-
bretudo de Sêneca, que ele muito admirava. 7 Xradutores, comentadores e
Deus é corpo, embora sui generis, assim eruditos cristãos do século IV
como a alma também é corpo.
O seu De anima, como construção on-
São escassas as contribuições do Oci-
tológica de fundo, representa a antítese exata dente latino no século IV.
do espiritualismo do Fédon. Calcídio traduziu e comentou o Timeu
A Tertuliano cabe o mérito de ter criado de Platão, em chave interpretativa de caráter
a primeira linguagem da teologia latino- médio-platônico.
cristã e de ter denunciado muitos erros da Ambrósio Teodósio Macróbio escreveu
heresia gnóstica, refutada principalmente no um Comentário ao sonho de Cipião (ou seja,
escrito Adversus Valentinianos. |T] ao livro IV do De re publica, de Cícero), que
será muito lido na Idade Média.
Júlio Fírmico Materno escreveu uma
obra Sobre o erro das religiões profanas,
6 Escritores cristãos do contra o politeísmo pagão.
sécu lo m e dos Caio Mário Vitorino traduziu Plotino e
inícios do IV Porfírio e, tendo-se convertido ao cristia-
nismo, escreveu tratados teológicos.
Hilário de Poitiers ficou famoso por sua
Na África teve muita importância na obra Sobre a Trindade, a qual, porém, não
vida da Igreja são Cipriano, nascido no início tem implicações filosóficas importantes.
do século III e falecido ao redor de 258. Foi
grande pastor e tornou-se a maior auto
Terceira parte - T-^a+rística na área cul+u ral de língua la+ina
construir hoje a obra Sobre os princípios, de Mas o espírito latino se expressou so-
Orígenes). Outras traduções importantes bretudo em Agostinho, com quem a Patrística
foram as da História eclesiástica de Eusébio alcançou os seus mais altos cumes e com
de Cesaréia e de alguns discursos significa- quem encerrou-se definitivamente uma
tivos de Gregório de Nazianzo. época e abriu-se uma nova.
Santo Ambrósio e
outros santos, em um painel
pintado por Ambrósio de
Fossano, dito o Bergognone,
ativo na l.ombardia entre 1481
e 1522 (Certosa de Pavia).
Terceira parte - y\ 1-^atrrstica na área cultural de língua latina
Estos opiniões, mais ou monos, podem ser e provavelmente é por isso que a filosofia foi expulso
considerados semelhantes às nossos, uma vez que por certas legislações como o dos tebanos, dos
reconhecemos e dizemos que Deus é pai de todas espartanos, dos habitantes de Argos.
as coisas, mas não falamos disso o não ser quando Aproximando-se de nossas coisas, mas ao
somos interrogados a propósito. mesmo tempo, como dissemos, ávidos unicamente
Assim expus as opiniões de quase todos de glória e de fátua eloqüência, estes
aqueles filósofos que podem considerar como sua representantes da cultura profana, quando nas
glória mais excelsa ter indicado — embora com santas páginas se defrontaram com algo capaz de
nomes diversos — um só Deus, e poderíamos satisfazer sua curiosidade, o traduziram em
também pensar que hoje os cristãos são justamente elucubrações próprias.
filósofos ou então que, desde aquela época, os Não estavam suficientemente persuadidos de
filósofos foram cristãos. seu caráter divino para serem capazes de abster-se
Minúcio Félix, de qualquer interpolação tortuosa, e não estavam
Octovius. em grau de compreendê-las, escrituras árduas e
nebulosas como são, de modo o permanecer
impenetráveis aos próprios he- breus dos quais
também pareciam ser propriedade reservada. Pois
se a verdade se ostentava com sua luzente
simplicidade, mais a cavilosidode humana negava
seu assentimento e flutuava, acabando por reduzir à
incerteza aquilo que à primeira vista aparecera
TERTULIANO como indubitável.
Haviam encontrado Deus puro e indubitável e
ousaram submetê-lo a discussão, dis- sertando
sobre sua natureza, seus atributos, sua sede.
Assim, alguns o proclamaram incorpóreo;
outros, corpóreo; e eis os platônicos e os estóicos.
2 fl filosofia e o cristianismo Outros disseram que ele constava de átomos, outros
de números: e eis Epicuro e Pitágoras. Outros
estão em contradição disseram que ele era fogo, conforme pareceu a
Heráclito.
Os platônicos o consideraram providência dos
A/o âmbito dos Podres apologistas, coisas; outros, ao contrário, ou seja, os epicuristas, o
Tertuliano é expressão da tendência antifi- designaram inerte e indiferente e, por assim dizer,
losóFica que pretendia rejeitar completamente os ausente de todos as coisas humanas.
doutrinas dos gregos. Fl fé cristã, com efeito, Os estóicos colocaram-no fora do mundo em
torno inútil toda doutrina filosófica apenas ato de fazer mover em círculo, como um oleiro, esto
racional, porque a fé é superior à razão. mole universal do mundo. Os platônicos, oo invés, o
puseram no âmbito do mundo como um timoneiro
presente no nave por ele dirigido.
Igualmente variam as opiniões dos filósofos a
propósito do próprio mundo, se houve ou não um
1. fl antiguidade das Sagradas €scrituras das princípio, se haverá ou não um fim. Não há maior
quais apreenderam os próprios pagãos concordância sobre o natureza da olmo, que alguns
Também aqui me socorre a já consolidada consideram divino e eterna, outros, corruptível. Cada
antiguidade da escritura divina. Sobre a base de tol um a seu gosto transformou ou aumentou as
antiguidade não se poderá contestar ter ela opiniões precedentes.
representado o tesouro com o qual atingiu toda a Nenhuma maravilha, portanto, se nossos
sobedoria posterior. E se eu não sentisse o antigas tradições oficiais foram alteradas pelas
oportunidade de reduzir o peso deste volume, ter- elucubrações dos filósofos. Da estirpe de tais
me-io prolongado muito nesta demonstração sem filósofos pulularam aqueles que deformaram e
limites. falsificaram com suas opiniões nosso pró
Há poeta ou sofista que não se tenha
dessedentado na fonte dos profetas? E de lá que os
filósofos extraíram alimento para a fecundidade de
seu engenho, E o que eles tomaram de nós que os
torna nossos vizinhos,
Terceira parte - ;A Patrística na área cultural de língua lati na
prio acervo documentário para acomodá-lo às cárcere corpóreo, ferida e manchada por costumes
opiniões dos filósofos. De um só caminho fizeram deformantes, esgotada pelas paixões e pelas
numerosas trilhas oblíquas e inexplicáveis. Digo isso libidinagens, liberta de dignidades mentirosos, pois
de passagem para que ninguém invente de bem, apenas tenha um instante de arrependimento,
equiparar-nos aos filósofos justamente por esta logo que tenha um indício de cura de seus
reconhecida e admitida variedade existente em desregromentos, de sua letargia, de suas doenças
nossa confissão e de deduzir da multiplicidade das congênitas, não sabe fazer outra coisa a não ser
opiniões uma carência da verdade. nomear Deus com um único nome, Deus, porque é o
Sem hesitações contrapomos aos adul- verdadeiro nome de Deus. Qual é a exclamação de
teradores de nossa doutrina o argumento preliminar todos? "Deus grande, Deus bom. Seja o que Deus
da prescrição, em nome do qual proclamamos como quer". Mas há mais. A própria alma o reconhece
única regra de verdade aquela que nos foi como juiz. "Deus o sabe, entrego-me a Deus, Deus
transmitida por Cristo mediante seus apóstolos, dos providencie”. Ó testemunho da alma levada instinti-
quais é fácil constatar o quão tardios são estes vamente ao cristianismo! O que mais? Saindo destes
discursos comentadores. incidentes a alma não se dirige ao Capitólio, mas ao
céu. Cia sabe muito bem qual é a moradia do Deus
Tertuliano, vivo: dele, com efeito, tirou sua origem.
fípologético, XLVII. Tertuliano,
fípologético, XVII.
2. fl alma não se dirige ao Capitólio
mas a Deus, 3. Não há semelhança entre o filósofo grego e o
e é levada instintivamente ao cristianismo cristão
Aquele que adoramos é o Deus uno e único Alguém objetará que também entre os nossos
que tirou do nada, para decoro de sua infinita há aqueles que faltam para com as instruções da
majestade, toda esta mole imensa do mundo, com o disciplina. Mas lembrai-vos de que estes deixam
simples comando de sua palavra, com a simples imediatamente de ser considerados cristãos entre
explosão de seu gesto inteligente, com o simples nós. Vossos filósofos, ao invés, tendo na consciência
desdobramento de sua potência, esta mole imensa aquela carga de erros, permanecem no número e no
com todo o equipamento de seus elementos, de decoro da sabedoria.
seus organismos corpóreos, de seu exército No conjunto, que semelhança se pode captar
espiritual. Não sem razão os gregos aplicaram o entre o filósofo e o cristão, entre o discípulo da
qualificativo específico: o cosmo. Cie é invisível, Grécia e o candidato ao céu, entre o traficante da
embora possamos divisá-lo e percebê-lo. Cie está fama terrena e aquele que faz questão de vida, entre
além de toda a nossa compreensão, embora a sen- o vendedor de palavras 0 o realizador de obras,
sibilidade humana esteja em grau de percebê- lo e entre quem constrói sobre a rocha e quem destrói,
calculá-lo. Por isso é verdadeiro, embora sendo tão entre quem altera e quem tutela a verdade, entre o
grande. O que se pode ver, tocar, avaliar, é inferior ladrão e o guardião da verdade?
ao olho humano que o percebe, às mãos que o Tertuliano,
contaminam apalpando-o, aos sentidos mediante os fípologético, XLVII.
quais o encontramos. O infinito só é conhecido de si
mesmo. Deus é suscetível de compreensão apenas 4. fl sabedoria é estultice
pela sua superioridade a todo compreensão. A Cstas são as doutrinas dos homens e dos
extraordinária grandeza o torno ao mesmo tempo co- demônios, nascidas do espírito da sabedoria terrena
nhecido e desconhecido para os humanos. Aqui para aqueles ouvidos que têm o prurido de ouvi-las.
repousa toda a soma de culpabilidade daqueles que Mos o Senhor chamou de "estultice" tal sabedoria, e
não o querem reconhecer: a impossibilidade de escolheu aquilo que é estulto poro o 1mundo a fim de
ignorá-lo. confundir também a própria filosofia. Pois a filosofia
Quereis que dele demos as provas mediante
suas obras tão numerosas e tão grandiosos, que nos é a ma-
contêm, que nos sustentam, que nos alegram, que
nos aterrorizam? Quereis que dele tragamos o
testemunho do fundo da própria alma? Cis o voz
desta alma. Premida no
soas da Trindade e sua unidade, torna-se ele os objetivos específicos a que visa sejam di-
próprio pessoa. E Agostinho encontra no ferentes dos de Descartes.
homem toda uma série de tríades, que refle- Mais globalmente, Agostinho interpreta
tem de vários modos a Trindade, tendo no o processo cognoscitivo do seguinte modo:
vértice a tríade ser, conhecer e amar, que a) Como Plotino já havia ensinado, a
espelha as três pessoas da Trindade e sua sensação não é uma alteração sofrida pela
estrutura uno-trina. alma. Os objetos sensoriais agem sobre os
Assim, Deus se espelha na alma. E sentidos. Essa alteração do corpo não escapa
“alma” e “Deus” são os pilares da “filosofia à alma, que, conseqüentemente, “age”,
cristã” agostiniana. Não é indagando o mundo, extraindo, não do exterior, mas do interior de
mas escavando a alma que se encontra Deus. si mesma, a representação do objeto que é a
sensação. Assim, na sensação o corpo é
passivo, ao passo que a alma é ativa.
b) Mas a sensação é apenas o primeiro
degrau do conhecimento. Com efeito, a alma
3 A verdade e a iluminação mostra sua espontaneidade e sua autonomia
em relação às coisas corpóreas à medida que
as “julga” com a razão — e as julga com base
Nessa polaridade alma-Deus, o ponto em critérios que contêm um “algo mais” em
central é o conceito de “verdade”, ao qual relação aos objetos corpó- reos. Estes, com
Agostinho agregou uma série de outros con- efeito, são mutáveis e imperfeitos, ao passo
ceitos fundamentais. Uma passagem contida que os critérios segundo os quais a alma
em A verdadeira religião, que se tornou muito julga são imutáveis e perfeitos. E isso se
célebre, ilustra perfeitamente essa função do mostra de modo mais evidente quando
conceito de verdade: “Não busques fora de ti julgamos os objetos sensíveis em função de
(...); entra em ti mesmo. A verdade está no conceitos matemáticos ou geométricos, ou
homem interior. E, se descobrires que a tua mesmo estéticos, ou quando julgamos as
natureza é mutável, transcende-te a ti ações em função de parâmetros éticos. Os
mesmo. Lembra-te, porém, que, trans- conceitos matemáti- co-geométricos que
cendendo a ti mesmo, estás transcendendo a aplicamos aos objetos são necessários,
alma que raciocina, de modo que o termo da imutáveis e eternos, ao passo que os objetos
transcendência deve ser o princípio onde se são contingentes, mutáveis e corruptíveis. O
acende o próprio lume da razão. E, efeti- mesmo vale para os conceitos de unidade e
vamente, onde chega todo bom raciocinador proporção, que aplicamos aos objetos quando
senão à verdade? A verdade não é algo que os avaliamos esteticamente.
se constrói à medida que o raciocínio avança; c) Surge, então, o problema: de onde a
ao contrário, ela é aquilo a que tendem os que alma deriva esses critérios de conhecimento
raciocinam. Vês aqui uma harmonia que não com que julga as coisas e que são superiores
tem similares, e tu próprio conforme a ela. às coisas? Será que ela mesma os produz?
Reconhece que não és aquilo que a verdade é; Certamente não, porque, mesmo sendo
a verdade não busca a si própria, mas és tu superior aos objetos físicos, ela própria é
que a alcanças, procurando- a, não de lugar mutável, ao passo que tais critérios são
em lugar, mas com o afeto da mente, para imutáveis e necessários. Por isso, é
que o homem interior se encontre com aquilo necessário concluir que, acima de nossa
que nele habita com desejo não ínfimo e mente, existe um critério ou uma Lei que se
carnal, mas com sumo e espiritual desejo”. chama Verdade, e que, portanto, existe uma
Mas vejamos melhor como o homem natureza imutável, superior à alma humana.
chega à verdade. O intelecto humano, portanto, encontra
A argumentação mais conhecida é a a verdade como “objeto” superior a ele, com
seguinte. A dúvida cética derruba a si mesma, ela julga, mas por ela é julgado. A verdade é a
pois, no momento em que pretende negar a medida de todas as coisas e o próprio
verdade, a reafirma: si fallor, sum; se duvido, intelecto é “medido” em relação a ela.
precisamente por poder duvidar, existo e
estou certo de pensar. Com essa ar-
gumentação, Agostinho sem dúvida antecipou
o cartesiano cogito, ergo sum, embora
Capitulo SeXtO - Santo ^Agostinho e o apogeu da Patrística
presente no espírito ao Princípio de toda ver- alma uma luz que não se dissipa no lugar,
dade, que é precisamente Deus. onde ressoa uma voz que o tempo não rouba,
Mas também há em Agostinho outros onde exala um perfume que o vento não
tipos de provas, que vale a pena referir. dispersa, onde provo um sabor que a vora-
Em primeiro lugar, recordemos a prova, cidade não reduz, onde me aperta um am-
já bem conhecida dos gregos, que, partindo plexo que a saciedade jamais dissolve. E isso
das características de perfeição do mundo, que eu amo quando amo meu Deus”.
remonta ao seu artífice. Ser, Verdade, Bem (e Amor) são os
Uma segunda prova é a conhecida com o atributos essenciais de Deus para Agostinho.
nome de “consensus gentium”, também já Sobre o segundo e o terceiro já falamos.
presente nos pensadores da antiguidade Sobre o primeiro Agostinho se exprime com
pagã: “toda a espécie humana confessa que clareza, unindo a ontologia grega com a
Deus é criador do mundo”. revelação bíblica. Os gregos tinham dito que
Uma terceira prova é extraída dos di- Deus é o ser supremo (a substância primei-
versos graus do bem, a partir dos quais se ra), na Bíblia Deus diz de si mesmo: “Eu sou
remonta ao primeiro e supremo Bem, que é aquele que é”. Justamente enquanto ser
Deus.
Agostinho não demonstra Deus como,
por exemplo, o demonstra Aristóteles, ou
seja, com intenções puramente intelectuais e
a fim de explicar o cosmo, mas sim para
“fruir a Deus” (frui Deo), e portanto para
amá-lo, para preencher o vazio do seu es-
pírito, para pôr fim ã inquietude do seu co-
ração, para ser feliz. Contrariamente ao que
pensava Plotino, só há verdadeira felicidade
na outra vida, não sendo possível nesta.
Todavia, mesmo nesta terra podemos ter uma
pálida imagem daquela felicidade. Com efeito,
é muito significativo que, nas Confissões,
Agostinho recorra até mesmo ao vocabulário
das Enéadas para descrever o momento de
êxtase que alcançou em Ostia, juntamente
com a mãe, ao contemplar Deus. Também
significativos são o esvaziamento metafísico
de toda dimensão física e o despojamento de
toda alteridade, feitos de modo plotiniano,
embora com um pathos espiritual mais
ardente e carregado de novos significados,
que encontramos, por exemplo, nesta
passagem das Confissões sobre a fruição de
Deus, um dos mais belos escritos de
Agostinho: “Mas o que amo, amando-te? Não
uma beleza corpó- rea, não um encanto
transitório, não um fulgor como o da luz, que
agrada a estes olhos, não doces melodias de
cantos de todo tipo, não o suave perfume de
flores, de ungüentos e de aromas, não o maná
e o mel, não membros desfrutando no ample-
xo carnal. Não são essas coisas que amo,
amando meu Deus. E, no entanto, por assim
dizer, amo uma luz, uma voz, um perfume, um
alimento e um amplexo quando amo o meu
Deus: luz, voz, perfume, alimento e amplexo
do homem interior que está em mim, onde Santo Agostinho cm meditação c oraçao, em umà
resplandece em minha pintura de Sandro Bollieelli (1445- / S101,
conservada na Igreja de Todos os Santos em
1'loreuca.
Capítulo sexto - .Santo yAgos+inko e o apogeu da l-^a+rís+ica
supremo, Deus, criando as coisas, participa portanto, em sentido absoluto, é tanto o Pai,
com eles o ser, mas não o Ser sumo como ele como o Filho e como o Espírito Santo: eles
é, e sim um ser com diferentes graus em são inseparáveis no Ser e operam insepara-
escala hierárquica. velmente.
Apesar de todas estas precisações, per- Portanto, não havendo diferença on-
manece claro para Agostinho que é impos- tológica e hierárquica nem diferença de fun-
sível para o homem uma definição da natureza ções, a igualdade absoluta das três Pessoas
de Deus e que, em certo sentido, Deus scitur implica que a Trindade seja “o único verda-
melius nesciendo, pois é mais fácil saber deiro Deus”.
aquilo que ele não é do que aquilo que ele é: b) Agostinho realiza a distinção entre as
“Quando se trata de Deus, o pensamento é Pessoas com base no conceito de relação.
mais verdadeiro do que a palavra, e a Isto significa que, para Agostinho, cada uma
realidade de Deus mais verdadeira do que o das três Pessoas é distinta das outras, mas
pensamento”. não ontologicamente diversa. O Pai tem o
Os próprios atributos mencionados (e Filho mas não é o Filho, e o Filho tem o Pai,
todos os outros atributos positivos que se mas não é o Pai; e o mesmo se diga do Espí-
possam citar de Deus) não devem ser en- rito Santo.
tendidos como propriedade de um sujeito, Tais atributos, portanto, não pertencem
mas como coincidentes com a própria à dimensão do ser e da substância, e sim,
essência dele. Melhor ainda é afirmar atri- justamente, da relação. Mas nem por isso se
butos positivos de Deus, negando o negativo reduzem ao nível de meros acidentes. Os
da finitude categorial que os acompanha. acidentes são atributos mutáveis, enquanto o
Deus é todo o positivo que se encontra na tipo de relação que distingue as três Pessoas
criação, sem os limites que nela existem, da Trindade não é mutável e se coloca na
resumido no atributo da imutabilidade e dimensão da eternidade.
expresso na fórmula com que ele se indicou a c) Um terceiro ponto fundamental da
si mesmo: “Em sou aquele que é”. g-gffrm doutrina trinitária agostiniana consiste nas
analogias triádicas que ele descobre no cria-
do, as quais, de simples vestígios da Trinda-
de nas coisas e no homem exterior, tornam-
se, na alma humana, verdadeira imagem da
própria Trindade, como já vimos.
5 ATri ndade Entre as muitas analogias, recordemos
duas. .
Todas as coisas criadas apresentam
Todavia, este Deus, que é “Aquele que
unidade, forma e ordem, tanto as coisas
é”, para Agostinho é essencialmente
corpóreas como as almas incorpóreas. Ora,
Trindade. A esse tema ele dedica um de seus
assim como das obras remontamos ao Cria-
livros mais profundos, que, sob vários as-
dor, que é Deus uno e trino, podemos con-
pectos, se impôs como sua obra-prima dou-
siderar essas três características como
trinária.
vestígios de si deixados pela Trindade em
Devemos salientar três núcleos parti-
sua obra.
cularmente importantes dessa obra.
Analogamente, em um nível mais alto, a
a) O conceito básico sobre o qual ele
mente humana é imagem da Trindade, porque
alicerça sua interpretação é a identidade
também é una-e-trina, no sentido que é
substancial das três Pessoas.
mente e, como tal, conhece-se a si mesma e
Os gregos, precisa Agostinho, para ex-
ama-se a si mesma. Portanto, a “mente”, o
primir conceitualmente a Trindade falaram de
seu “conhecimento” e o “amor” são três
“uma essência, e três substâncias”; os latinos,
coisas e ao mesmo tempo não são mais que
porém, falam de “uma essência ou substância,
uma, e, quando são perfeitas, coincidem.
e três Pessoas”, porque, para os latinos,
Na investigação das analogias trini-
essência e substância são considerados
tárias do espírito humano está uma das
sinônimos. Todavia, mesmo com essa
maiores novidades de Agostinho em relação a
diferença terminológica, uns e outros pre-
esse tema.
tenderam dizer a mesma coisa. Isto implica
Conhecimento do homem e conheci-
que Pai, Filho e Espírito Santo tenham jus-
mento de Deus Uno-Trino iluminam-se
tamente uma substancial igualdade e não
sejam hierarquicamente distinguíveis. Deus,
Terceira parte - ;A Patrística na área cultural de língua latina
Uma antiga lenda narra que Agostinho, enquanto passeava na praia, pensando no complexo mistério da Trindade
(sobre a qual estava preparando seu tratado), encontrou um menino que, tendo cavado um buraco na areia, com
uma colher queria aí colocar toda a água do mar. Quando Agostinho disse que era impossível pôr num buraco com
uma colher toda a água do mar, o menino, sob cujas aparências havia um anjo, respondeu: “Seria mais fácil para
mim derramar com esta colher toda a água do mar neste buraco, do que para ti resolver e inserir em um livro o
mistério da Trindade". Pinturiccbio (1454-1513) representou tal lenda neste belo quadro que se encontra em
Perúgia, na Galeria Nacional da IJmbria. Lembramos que esta lenda é particularmente significativa, porque o livro
de Agostinho sobre a Trindade está entre os mais notáveis escritos do Ocidente sobre o tema.
Capitulo SeXtO - San+o /Vgosfmko e o apogeu da Pa+Ws+ica
os múltiplos derivaram do Uno (ou de algu- O homem sabe “gerar” (os filhos) e
mas realidades originárias)? Por que e como, sabe “produzir” (os artefacta), mas não sabe
do Ser que não pode não ser, nasceu também “criar”, porque é um ser finito. Deus “gera”
o devir, que implica a passagem de ser a não de sua própria substância o Filho, que, como
ser e vice-versa? tal, é idêntico ao Pai, ao passo que “cria” o
Ao tentar resolver esses problemas, ne- cosmo do nada.
nhum dos antigos filósofos chegou ao con- Portanto, há diferença enorme entre
ceito de criação, que, como sabemos, é de “criação” e “geração”, porque, diferentemente
origem bíblica. Os Platônicos foram os fi- da primeira, esta última pressupõe o vir (a
lósofos que chegaram às posições menos ser) por outorga de ser por parte do criador
distantes do criacionismo. Entretanto, mesmo para “aquilo que absolutamente não existia”.
assim, ainda permaneceu significativa a E tal ação é “dom divino” gratuito, devido à
distância entre suas posições e o criacionismo livre vontade e à bondade de Deus, além de
bíblico. No Timeu, Platão havia introduzido a sua infinita potência.
figura do demiurgo. Entretanto, embora sendo Ao criar o mundo do nada, Deus criou,
racional, livre e motivada pela causa do bem, juntamente com o mundo, o próprio tempo.
a atividade do demiurgo é gravemente Com efeito, o tempo está estruturalmente
limitada, tanto acima como abaixo dele. Acima ligado ao movimento; mas não há movimento
do demiurgo está o mundo das Idéias, que o antes do mundo, só com o mundo.
transcende e no qual ele se inspira como em
Esta tese já fora (quase literalmente)
um modelo; abaixo, ao contrário, está a chora
antecipada por Platão no Timeu, mas em
ou matéria informe, também eterna como as
Agostinho ela simplesmente é melhor fun-
Idéias e como o próprio demiurgo. A obra do
damentada e melhor explicada. Assim, “antes
demiurgo, portanto, é obra de fabricação e
do mundo” não havia um “antes temporal”,
não de criação, porque pressupõe como
porque não havia tempo: o que havia (aliás,
preexistente e independente aquilo de que se
seria necessário dizer “há”) era o eterno, que
vale para construir o mundo. Plotino, no
é como que um infinito presente atemporal
entanto, deduziu as Idéias e a própria matéria
do Uno, muito engenhosamente, do modo (sem transcorrência nem distinção de “antes”
como vimos. Todavia, seu impulso o levou e “depois”). Mas da questão do tempo
aos limites de um verdadeiro acosmismo e, falaremos adiante.
oportunamente reformadas, suas categorias
poderiam servir para interpretar a dialética
trinitária, mas não para interpretar a criação
do mundo.
A solução criacionista, que, para Agos- 7 A t loulrii\ii das CJdéias e
tinho, é ao mesmo tempo verdade de fé e de
das razões seminais
razão, revela-se de uma clareza exemplar. A
criação das coisas se dá do nada (ex nihilo),
ou seja, não da substância de Deus nem de
algo que preexistia (a fórmula que posterior- As Idéias têm um papel essencial na
mente se tornaria canônica seria ex nihilo sui criação. Mas, de paradigmas absolutos fora e
et subiecti). Com efeito, explica Agostinho, acima da mente do demiurgo, como eram em
uma realidade pode derivar de outra de três Platão, elas se transformam, como já
modos: dissemos, em “pensamentos de Deus” ou
a) por geração, caso em que deriva da também como “Verbo de Deus”.
própria substância do gerador como o filho Agostinho declara a teoria das Idéias
deriva do pai, constituindo algo de idêntico ao como um pilar absolutamente fundamental e
gerador; irrenunciável, porque está intrinsecamen- te
b) por fabricação, caso em que a coisa vinculada à doutrina da criação.
que é fabricada deriva de algo preexistente Deus, com efeito, criou o mundo con-
fora do fabricante (de uma matéria), como forme a razão e, portanto, criou cada coisa
ocorre com todas as coisas que o homem conforme um modelo que ele próprio pro-
produz; duziu como seu pensamento, e as Idéias são
c) por criação a partir do nada absoluto, justamente estes pensamentos-modelo de
ou seja, não da própria substância nem de Deus, e como tais são a verdadeira realidade,
uma substância externa. ou seja, eternas e imutáveis, e por participa-
ção delas existem todas as coisas.
Terceira parte - y\ Patrística na área cultu ral de língua latina
Mas Agostinho utiliza, para explicar a dades de sua concretização, infundindo nela,
criação, além da teoria das Idéias, também a precisamente, as razões seminais de cada
teoria das “razões seminais”, criada pelos coisa. A evolução do mundo ao longo do
Estóicos e posteriormente retomada e tempo outra coisa não é do que a concre-
reelaborada em bases metafísicas por Plotino. tização e a realização de tais “razões semi-
A criação do mundo ocorre de modo nais” e, portanto, um prolongamento da ação
simultâneo. Mas Deus não cria a totalidade criadora de Deus.
das coisas possíveis como já concretizadas: O homem foi criado como “animal
ele insere no criado as “sementes” ou racional” e encontra-se no vértice do mundo
“germes” de todas as coisas possíveis, as sensível. Como já vimos, a sua alma é
quais, posteriormente, ao longo do tempo, imagem de Deus-Trindade. A alma é imortal.
desenvolvem-se pouco a pouco, de vários As provas da imortalidade são em parte
modos e com o concurso de várias cir- extraídas de Platão, mas em parte são
cunstâncias. aprofundamentos agostinianos, como, por
Em suma: juntamente com a matéria, exemplo, a prova que se baseia na
Deus criou virtualmente todas as possibili
Cdpítulo SeXtO - Santo ^Agostmho e o apogeu da l -^afnstica
na ótica do universo visto em seu conjunto, tamente com Agostinho que a vontade se
desaparece. De fato, os graus inferiores do impôs à reflexão filosófica, subvertendo a
ser e as coisas finitas, mesmo as mais ínfi- antropologia dos gregos e superando defi-
mas, revelam-se momentos articulados de nitivamente o antigo intelectualismo moral,
um grande conjunto harmônico. Quando, por seus pressupostos e seus corolários. A ator-
exemplo, julgamos que a existência de certos mentada vida interior de santo Agostinho e
animais nocivos seja um “mal”, na realidade sua formação espiritual, realizada inteira-
nós estamos medindo com o metro da nossa mente na cultura latina, que dava à voluntas
utilidade e da nossa vantagem contingente e, um relevo desconhecido para os gregos,
portanto, numa ótica errada. Medida com o permitiram-lhe entender a mensagem bíblica
metro do todo, cada coisa, mesmo aquela precisamente em sentido “voluntarista”, fora
aparentemente mais insignificante, tem seu dos esquemas intelectualistas do mundo
sentido e sua razão de ser e, portanto, grego.
constitui algo positivo. De resto, Agostinho foi o primeiro es-
b) Já o mal moral é o pecado. E o pe- critor a nos apresentar os conflitos da von-
cado depende da má vontade. E a má vontade tade em termos precisos, como já destaca-
depende de quê? A resposta de Agostinho é mos: “Era eu que queria e eu que não queria:
bastante engenhosa. A má vontade não tem era exatamente eu que nem queria plena-
uma “causa eficiente”, mas, muito mais, uma mente, nem rejeitava plenamente. Por isso,
“causa deficiente”. Por sua natureza, a lutava comigo mesmo e dilacerava-me a mim
vontade deveria tender ao Bem supremo. mesmo”.
Mas, como existem muitos bens criados e A liberdade é própria da vontade e não
finitos, a vontade pode tender a eles e, da razão, no sentido em que a entendiam os
subvertendo a ordem hierárquica, pode gregos. E assim se resolve o antigo paradoxo
preferir a criatura a Deus, preferindo os bens socrático de que é impossível conhecer o
inferiores aos bens superiores. Sendo assim, bem e fazer o mal. A razão pode conhecer o
o mal deriva do fato de que não há um único bem e a vontade pode rejeitá-lo, porque,
Bem, mas muitos bens, consistindo, embora pertencendo ao espírito humano, a
precisamente, em uma escolha incorreta vontade é uma faculdade diferente da razão,
entre esses bens. O mal moral, portanto, é tendo uma autonomia própria em relação à
uma aversio a Deo e uma conversio ad razão, embora seja a ela ligada. A razão
creaturam, é a escolha de um ser inferior ao conhece e a vontade escolhe, podendo
invés do ser supremo. O fato de ter recebido escolher até o irracional, ou seja, aquilo que
de Deus uma vontade livre é um grande bem. não está em conformidade com a reta razão.
O mal é o mau uso desse grande bem, que se E desse modo se explica a possibilidade da
dá do modo que vimos. Por isso, Agostinho aversio a Deo e da conversio ad creaturam.
pode dizer: “O bem que está em mim é obra O pecado original foi um pecado de
tua, é teu dom; o mal em mim é meu pecado”. soberba, sendo o primeiro desvio da vontade.
c) O mal físico, como as doenças, os O arbítrio da vontade é verdadeiramente
sofrimentos, os tormentos do espírito e a livre, em sentido pleno, quando não faz o mal.
morte, tem significado bem preciso para Esta é, precisamente, a sua condição natural:
quem filosofa na fé: é a conseqüência do assim ele foi dado ao homem originalmente.
pecado original, ou seja, é uma conseqüência Mas, depois do pecado original, a verdade se
do mal moral. Na história da salvação, porém, corrompeu e se enfraqueceu, tornando-se
também ele tem um significado positivo. necessitada da graça divina.
Conseqüentemente, o homem não pode
ser “autárquico” em sua vida moral: ele
necessita de tal ajuda divina. Portanto,
quando o homem procura viver retamente
valendo-se unicamente de suas próprias
forças, sem ajuda da graça divina libertadora,
10 A vcmtade, então ele é vencido pelo pecado; liberta-se
a liberdade,, a graça do mal com o poder de crer na graça que o
salva, e com a livre escolha dessa graça.
Já acenamos ao papel que a “vontade”
desempenha em Agostinho. Aliás, há tempo
os estudiosos destacaram que foi exa
Capitulo SextO - Santo jAgostinko e. o apogeu da Pa+HS+ica
essenciais, que marcam seu decurso: o peca- Agostinho apresenta também um critério
do original com suas conseqüências, a espera para o amor, com a distinção entre o uti e o
da vinda do Salvador e a encarnação e paixão frui. Os bens finitos devem ser usados como
do Filho de Deus, com a constituição de sua meios e não ser transformados em objeto de
Igreja. fruição e deleite, como se fossem fins.
Agostinho insiste muito, ao final da E, assim, a virtude do homem, que os
Cidade de Deus, na ressurreição. A carne filósofos gregos haviam determinado em
ressuscitará integrada e em certo sentido função do conhecimento, é recalibrada por
transfigurada, mas continuará carne. Agostinho em função do amor. A virtus é a
A história se concluirá com o Dia do ordo amoris, ou seja, o amar a si mesmo, os
Senhor, que será como que o oitavo dia con- outros e as coisas segundo a dignidade
sagrado com a ressurreição de Cristo e no ontológica própria de cada um desses seres,
qual se realizará, em sentido global, o re- no sentido que já vimos.
pouso eterno. BBIISIsl O próprio conhecimento da Verdade e
da Luz que ilumina a mente é expresso por
Agostinho em termos de amor: “Quem co-
nhece a Verdade conhece tal Luz, e quem
12 jA essência do komem é o conhece essa Luz conhece a eternidade. O
amor é aquilo que conhece”.
amor De resto, o filosofar nessa fé segundo a
qual a criação e a redenção nasceram de um
De Sócrates em diante, os filósofos ato amoroso de doação, devia levar necessa-
gregos sempre disseram que o homem bom é riamente a essa reinterpretação do homem,
aquele que sabe e conhece, e que o bem e a de sua história como indivíduo e de sua his-
virtude são ciência. Já Agostinho diz, ao tória como cidadão, na perspectiva do amor.
contrário, que o homem bom é aquele que Essa frase lapidar resume a mensagem
ama: aquele que ama aquilo que deve amar. agostiniana, à guisa de sinal emblemático:
Quando o amor do homem volta-se para pondus meum, amor meus (“o meu peso está
Deus (amando os homens e as coisas em no meu amor”). A consistência do homem é
função de Deus), é cbaritas; quando, porém, dada pelo peso do seu amor, assim como
volta-se para si mesmo, para o mundo e para pelo seu amor determina-se o seu destino
as coisas do mundo, é cupiditas. Amar a si terreno e ultraterreno. Nessa perspectiva,
mesmo e aos homens não segundo o juízo pode-se compreender muito bem a exortação
dos homens, mas segundo o juízo de Deus, conclusiva de Agostinho: ama, et fac quod vis
significa amar do modo justo. (“ame, e faça o que quiser”).
Capítulo sexto - Santo y\gos+inko eo c\poge.\A da Patrís+ica
AGOSTINHO
A CENTRALIDADE DA TRINDADE DIVINA
Mundo Homem
todas as coisas têm unidade, ordem e o homem é pessoa, isto é, in-
forma estas características são vestígios divíduo irrepetível é imagem
que a Trindade deixou nas coisas graças a das três Pessoas da Trindade
estas podemos remontar do mundo a Deus, e, com efeito, é, conhece e ama
a partir dos graus de perfeição que tem em si uma faculdade da
existem no mundo vontade que é diferente da fa-
culdade da razão a vontade
livre é a que escolhe o bem
superior em vez do inferior,
isto é, vive para Deus o
conjunto dos homens que
vivem para Deus forma a Ci-
dade celeste, o conjunto dos
TRINDADE maus forma a Cidade terrena o
mal não tem estatuto on-
- implica a identidade
tológico, mas nasce da con-
substancial das três
fusão de um bem inferior com
Pessoas - a
um bem superior o homem
diferença é apenas
encontra sobretudo em si
relacionai (o Pai
mesmo a prova da existência
tem o filho, mas não de Deus que se manifesta como
é o filho; o Filho verdade
tem o Pai, mas não
é o Pai etc.)
A Trindade é:
A
SER
AMOR enquanto
enquanto v Sumo amor, Deus
Sumo beneficia
ser, Deus VERDADE
cria enquanto
Suma
verdade,
Deus
Criação ilumina
o mundo é criado segundo a Amor no
razão, isto é, segundo as homem, assim como na
Idéias- paradigma que estão na Iluminação a alma tem Trindade, o amor é
mente de Deus critérios de conhecimento essencial. A virtude,
é ex nihilo sui et subiecti, isto é, imutáveis e necessários que lhe com efeito, reduz-se à
Deus não age sobre uma vêm de Deus a mente de Deus ordo amoris: amar a si
substância preexistente (sua ou tem em si os modelos imutáveis mesmos, os outros e as
externa a si), mas cria do nada e eternos (= Idéias) de todas as coisas conforme sua
Deus não cria a totalidade das coisas Deus, no momento da dignidade ontológica o
coisas como já atuadas, mas criação, participa às coisas a amor perfeito é o
insere no criado as razões se- doador, que tem em
capacidade de manifestar-se
minais das coisas, que pouco a Cristo (o Deus feito
pela verdade, e às mentes a
pouco se desenvolvem homem) o vértice su-
capacidade de colhê-las
premo
102
____ Terceira parte - A Patrística na área cultu ral de língua latir
2. O cristão deve aderir [...]"; e não diz: "Pois não conheceram Deus",
àquilo que Cristo se tornou por nós, mas: "Pois, tendo conhecido a Deus, não o glo-
para poder alcançar aquilo que ele rificaram, nem lhe deram graças como Deus, mas se
sempre é dispersaram em seus raciocínios, e seu coração
insipiente se obscureceu".
Por isso, irmãos, gostaria d® fazer entrar esto De que modo se obscureceu?
verdade em vossos corações: se quiserdes viver de Cie o diz claramente logo depois: “Procla-
modo piedoso e cristão, aderi a Cristo conforme mando-se sábios, se tornaram estultos".
aquilo que ele se tornou por nós, para que Viram onde deveriam ir, mas, ingratos para
pudéssemos alcançá-lo conforme aquilo que é. C ele com aquele que lhes dera aquilo que tinham visto,
veio a nós conforme aquilo que sempre era, para quiseram atribuir a si mesmos aquilo que viram, e,
tornar-se por nós aquilo que não era: uma vez que se tornando-se soberbos, perderam aquilo que viam, e
tornou isso por nós, para oferecer o meio sobre o daí se voltaram para os ídolos, para os simulacros e
qual os enfermos fossem transportados, os cultos dos demônios, até adorar a criatura e
atravessassem o mar do mundo e chegassem à desprezar o Criador.
pátria, onde não haverá mais necessidade de uma Todavia, fizeram estas coisas quando já
nave, porque não haverá mais um mar a atravessar. estavam corrompidos; e chegaram a corromper- se
Portanto, é melhor não ver com a inteligência porque se ensoberbeceram; e justamente por
aquilo que ele é, e todavia não separar-se da cruz de ensoberbecer-se se afirmaram sábios.
Cristo, do que vê-lo com a inteligência, e desprezar o Portanto, aqueles dos quais o Apóstolo disse
cruz de Cristo. que eram "aqueles que conheceram Deus", viram
C algo oinda melhor e bom em sumo grau, se aquilo que diz João, ou seja, que todas as coisas
possível, que se veja onde se deve ir e nos foram feitas por meio do Verbo de Deus. Com efeito,
mantenhamos ligados àquele que leva, para alcançar nos livros dos filósofos encontram-se ditas estas
o termo. coisas, e também que Deus tem um filho unigênito,
Isto puderam fazer as grandes mentes dos por meio do qual todas as coisas existem.
montes, aqueles que chamamos justamente de Cies puderam ver aquilo que existe, mas viram
montanhas, que a luz da justiça ilumina em sumo isso de longe, e não quiseram manter firme a
grau. Puderam fazer isso, e viram aquilo que é. humildade de Cristo, ou seja, aquela nave sobre a
Com efeito, João, vendo-o, dizia: No princípio qual teriam podido alcançar com segurança aquilo
era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o que puderam ver de longe.
Verbo era Deus. Cies viram isso e, para alcançar C a cruz de Cristo foi por eles desprezada.
aquilo que viam de longe, não se afastaram da cruz Tu deves atravessar o mar e desprezas a
de Cristo, e não desprezaram a humildade de Cristo. cruz!
Todavia, também os pequenos, que não estão Ó sabedoria cheia de soberbo!
em grau de compreender isso, mas não se afastaram Caçoas de Cristo crucificado; mas é justa-
da cruz, da paixão e da ressurreição de Cristo, sobre mente ele que viste de longe: No princípio era o
a mesma nave são conduzidos àquilo que não vêem, Verbo, e o Verbo estava junto de Deus.
ou sejo, na mesmo nave sobre o qual realizam a Mas por que foi crucificado?
travessia também aqueles que vêem. Porque para ti era necessário o lenho da sua
humildade.
3. fl soberba dos filósofos e a Com efeito, tu estavas inchado de soberba, e
humildade do lenho da cruz foras lançado para longe daquela pátria; pelas ondas
Na verdade, existiram filósofos deste mundo deste mundo o caminho fora interrompido; e não
que procuraram o Criador por meio do criatura, uma existe um meio com o qual podes realizar a travessia
vez que o Criador pode ser encontrado mediante a para chegar à pátria, se não te deixares levar pelo
criatura, conforme o Apóstolo afirma de modo claro: lenho da cruz.
"Com efeito, as perfei- ções invisíveis de Deus Ingrato que és, caçoas daquele que veio a ti,
podem ser compreendidas pela inteligência, a partir justamente para fazer-te retornar a ele!
da criação do mundo, por meio das coisas que por Cie mesmo se tornou caminho, um caminho
ele foram feitas, assim como a sua potência eterna e através do mar: por isso ele caminhou sobre o mor,
a sua divindade, de modo que não são escusá- veis". para mostror-te que existe um caminho pelo mor.
C continua: "Pois, tendo conhecido a Deus Tu, porém, que não podes caminhar sobre o
mar como ele o fez, deixa-te levar por esta nave,
deixa-te levar pelo lenho da cruz: crê no crucificado,
e poderás chegar.
Terceira parte - y\ Patrística na área cultural de língua latina
Por ti ele se fez crucificar, ou seja, para autoridade da própria verdade já conhecida e
ensinar-te a humildade, e porque, se tivesse vindo evidente. Porém, uma vez que descemos nas
como Deus, não teria vindo para todos aqueles que coisas temporais e por causa delas somos des-
não estavam em grau de ver Deus. viados das coisas eternas, primeiro vem, não por
Com efeito, não é segundo aquilo pelo qual natureza e excelência, mas na ordem do tempo,
ele é Deus, que ele veio ou partiu, porque Deus certo remédio temporal, que chama à salvação não
está presente em tudo e não se acha contido em aqueles que sabem, mas aqueles que crêem.
nenhum lugar. Rgostinho, fí verdadeira religião, 24,
Todavia, de que modo veio? 45.
Veio na veste de homem.
Rgostinho, Rmor absoluto e
“Terceira navegação", sob a
direção de G. Reale.
inefável e singular, do quol derivo todo medido, todo Cu, porém, chamo de hyle certa matéria
formo e todo ordem. completamente informe e sem qualidades, da qual se
Onde estas três coisos são grandes, os bens formam estas qualidades que percebemos.
sõo grandes; onde sõo pequenos, os bens sõo C é por isso que em grego hyle significa lenho,
pequenos; onde de foto nõo existem, não existe porque para aqueles que trabalham ela se apresenta
nenhum bem. não tanto como capaz de elo própria fazer algo, mas
C além disso, onde estas três coisas são como aquilo com que se pode fazer alguma coisa.
grandes, os naturezas são grandes; onde são Portanto, não se deve chamar de mal esto
pequenas, os naturezas são pequenos; onde de fato matéria que não se pode perceber mediante alguma
não existem, não existe nenhuma natureza. formo, mas que dificilmente se pode pensar com todo
tipo de privação de formo.
4. O mal como corrupção da medida, da forma e Com efeito, elo tem capacidade de receber
da ordem formas: de fato, se não pudesse receber o forma
imposta pelo artífice, não poderia absolutamente se
Por isso, quando se pergunta de onde deriva o
chamar de matéria.
mal, primeiro se deve procurar o que é o mal.
Por outro lado, se a forma é determinado bem,
O mal nõo é mais que corrupção ou da medida,
pelo qual oqueles que prevalecem pela forma sõo
ou do forma, ou da ordem natural.
ditos de forma adequado, e pelo beleza são
Por isso se diz natureza má aquela que é
chamados belos, está fora de dúvida de que também
corrompida: com efeito, uma natureza incorrupta é
boa sob todo aspecto. o capacidade de receber formo é igualmente um
Todovia, também o mesma natureza corrupta, bem.
enquanto natureza, é boa; enquanto é corrupta, ao Assim, por exemplo, o partir do momento que
contrário, é má. [...] o sabedoria é um bem, ninguém duvida de que o
capacidade de receber sabedoria seja um bem.
C, umo vez que todo bem existe por obra de
5. Não existe uma natureza má enquanto tal Deus, ninguém deve duvidor de que também esta
Nenhuma natureza, portanto, enquanto é
matéria, se é algo, não pode existira não ser por
natureza, é má; mas para cada natureza não existe
Deus.
mol o não ser o de ser diminuído no bem.
Todavia, se, com a diminuição, o bem se
perdesse até anulor-se, não permaneceria, desse 7. Deus é o ser verdadeiro e imutável do qual
modo, nenhumo natureza; não apenas não apenas o nada é contrário
permaneceria aquele tipo de natureza que os De modo esplêndido e divino nosso Deus
Maniqueus supõem, em que se encontram tontos disse a seu servo: "Cu sou oquele que sou; e aos
bens que demonstram sua cegueira verdadeiramente filhos de Israel dirás; 'flquele que z mandou-me a
extraordinário, mas nem mesmo qualquer tipo de vós".
natureza que alguém pudesse imaginar. Com efeito. Deus existe verdadeiramente,
porque é imutável. De foto, toda mutação faz não
6. Também a matéria é um bem e também ela existir aquilo que existia. Por isso é verdadeiramente
deriva de Deus ser aquele que é imutável.
fls outras coisas que por ele foram feitas,
Não se deve dizer que a matéria que os
receberam o ser dele conforme sua medida.
antigos chamaram hyle seja um mal.
Por isso, a ele que existe em sumo grau nado
Não falo daquela que Mani, com tola vaidade,
pode ser contrário o não ser aquilo que não existe.
chama hyle, formadora dos corpos, não sobendo o
que diz, motivo pelo qual com razão se lhe objeta
introduzir outro Deus, pelo fato de que ninguém pode 8. Deus como Medida suprema e Sumo Bem
formar os corpos a não ser Deus. Não se deve dizer que Deus tem certa medido,
Com efeito, os corpos não são criodos, se com de modo que não se creio que dele se diga gue tem
eles não subsistem medida, formo e ordem, que são um fim.
bens, e que não podem existir a nõo ser por obra de Nem, todovia, é sem medida oquele por obro
Deus, que, creio, os próprios Maniqueus odmitem. do qual foi conferida uma medida para todas as
coisas.
Terceira parte - y-\ Patrística na área cultural de língua latina
Nem, por outro lodo, é oportuno dizer que Deus ou é menos ordenada do que deveria ser, ou não
é medido, como se ele tivesse recebido de olguém é ordenada do modo como deveria ser.
umo medido. Concluindo, onde existe certa medida, certa
Todavia, se dizemos que Deus é a Medida forma e certa ordem, existe também certo bem e
suprema, talvez dizemos algo, se, porém, com aquilo certa natureza. Ao contrário, onde não existe
que chamamos Medida suprema, nós entendemos o nenhuma medida, nenhuma forma e nenhuma
Sem supremo. ordem, não existe nenhum bem e nenhuma
Com efeito, toda medida, enquanto medida, é natureza.
Rgostinho, Natureza do Bem.
um bem.
Por isso todas as coisas que foram medidas,
que têm justa e conveniente medida não podem ser
denominadas sem valor; mesmo que, em outro
significado, entendamos “medida" no sentido de “fim",
para dizer que não existe medida onde não existe um
fim.
6 fls "Idéias" como
Por vezes dizemos isso como elogio, como pensamentos de Deus
quando se diz: ”E o seu reino não terá fim". Neste
caso se poderia também dizer que não terá medida,
desde que se entenda medida no sentido de fim. Com Sobre a teoria das Idéias, umo das maiores
efeito, aquele que reina sem alguma medida, de conquistas do pensamento platônico, Rgostinho
algum modo não reina. expressou claramente sua posição em uma
Quaestio específica.
9. Medida, forma e ordem são sempre boas e Rs Idéias não são, para ele, seres sub-
podem ser consideradas mós apenas sistentes em si e por si, como umo esfera de
relativamente, ou seja, caso se manifestem realidades que subsistem por si.
inferiores ao que deveriam ser Rs Idéias são as formas paradigmáticos, os
modelos das coisos, os rozães ou estruturas
Portanto, dizemos que a medida é má, a forma
estáveis e imutáveis, segundo as quais são feitas
é má, a ordem é má enquanto são inferiores ao que
todas as coisas.
deveriam ser, ou quando não se adaptam às coisas
6 de tal formo Importante o conceito de
às quais devem estar adaptadas.
"Idéia", diz Rgostinho, que todos aqueles que
Tais coisas são, portanto, chamadas de más,
fizeram filosofia de algum modo o tiveram, mesmo
enquanto são estranhas e incongruentes, como se
que não o tenham expresso de modo preciso. Não
disséssemos que alguém não se comportou de modo
é com efeito possível ser filósofo sem este
bom, enquanto agiu de modo inferior de como deveria
conceito.
ter agido, ou enquanto agiu como em tal circunstância
Pois bem, para Rgostinho as Idéias são a
não deveria ter agido, ou fez mais do que deveria, ou
verdadeiro realidade, como queria Platão, mas não
de modo não conveniente. De modo que o que é
subsistentes em si e por si, e sim subsistentes
reprovado, ou seja, o ato feito de modo mau, com
como pensamentos eternos de Deus. Rs Idéias
justa razão não é reprovado por outro motivo a não
estão no mente de Deus, e portanto o Hiperurônio
ser pelo motivo que nele não foi mantida a medida.
platônico é o mente de Deus.
Do mesmo modo, dizemos que uma forma é
Nessa direção o Patrística grega já se
má ou por comparação com uma mais agraciada e
movera de modo cloro, mos também o pen-
mais belo, enquanto esta é uma forma inferior e a
samento greco-pogão, tanto os Platônicos dos
outra é superior, não por grandeza, mas por
primeiros dois séculos da era cristã como Plotino,
elegância; ou então porque ela não convém à coisa à
que pusera justamente no Nous, ou seja, no
qual foi aplicada, de modo que se manifesta estranha
èspírito ou Inteligência, o mundo das Idéias na suo
e inconveniente, como se um homem caminhasse nu
globalidade. Mas para os pensadores cristãos o
em público; coisa que não é de estranhar, caso
ponto de portida fora indubitavelmente Fílon de
aconteça no banho.
Rlexondrio, escritor judeu (que viveu na primeira
Do mesma forma, também a ordem denomina-
metade do séc. I d.C.), que foi o primeiro a
se mó, quando o própria ordem apareça como inferior
apresentar os Idéias platônicas como contidas no
à devido: por isso, neste caso não é a ordem que é
Logos divino, e produzidas por Deus. Todavia,
má, e sim a desordem, enquanto
uma vez que a passagem em que Fílon exprime
este seu pensamento é de importância his-
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►
, 111
Cãpítulo SeXtO - Santo ^AgostinKo e o apogeu da Patrística --------------------------
fl criação do tempo e
1. O que fazia Deus antes de criar o céu e
sua natureza a terra?
l\lão estariam talvez cheios de sua velhice os
fí teorio do tempo de fígostinho tornou- se que nos perguntam: "O que fazio Deus antes de
famosa. Com efeito, ela tem uma espessura teórica fazer o céu e a terra? Se, com efeito, continuam,
verdadeiramente notável e possui tríplice matriz. estava ocioso sem operar, por que também depois
De um lado, inspira-se no Timeu de Platão, não permaneceu sempre no estado primitivo,
ao menos em um ponto, fílém disso, tem um sempre abstendo-se de operar? Se de foto se
precedente conspícuo, em outro ponto, em desenvolveu em Deus um impulso e uma vontade
fírístóteles. Por fim, ligo-se ã problemático do tempo nova de estabelecer uma criaçõo que antes jamais
tratada por Plotino. estabelecera, serio ainda uma eternidade verdadeiro
Platão, no Timeu, dissera que a verdadeira oquelo em que nasce uma vontade antes
dimensão ontológica do mundo inteligível é o da inexistente? fl vontade de Deus não é uma criatura,
eternidade,- o tempo, portanto, é apenas a e sim anterior a todo criatura, porque nada serio
dimensão do cosmo e do ser físico. O tempo foi criado sem o vontade pré- existente de um criador.
criado pelo Demiurgo junto com o mundo 0, Portanto, o vontade de Deus é umo só coisa com a
portanto, antes da criação do mundo não existia sua substância. € se no substância de Deus surgiu
tempo. algo que ontes não existia, tal substância é chamada
fírístóteles, na Física, definira o tempo como erroneamente de eterno. Por outro lodo, se ero
"número do movimento conforme o antes e o vontode eterna de Deus que existisse a criatura,
depois": mos o numeração do antes e do depois como nõo serio eterna também o criatura?"
supõe o alma como condição in ------------ Os que assim falam nõo te compreendem
oindo, ó sabedoria de Deus, luz das mentes.
, 113
Capitulo SCXtO - Santo ;Ac)ostinko e o apogeu da Pa+Ws+ica ---
Não compreendem ainda como nasce aquilo que os séculos? Como teria existido um tempo não
nasce de ti e em ti. Quereriam conhecer o eterno, iniciado por ti? E como teria transcorrido, caso jamais
mas sua mente vago ainda de modo vão no fluxo do tivesse existido? Tu, portanto, és o iniciador de todo
passado e do futuro. tempo, e se houve um tempo antes que criasses o
Quem a deterá e a fixará, a fim de que, estável céu e a terra, não se pode dizer que te obstinhas de
por breve tempo, colha por breve tempo o esplendor operar. Também aquele tempo era obro tua, e não
da eternidade sempre estável, confronte-a com o puderam transcorrer tempos antes que tivesses
tempo jamais estável, e veja como não se pode criado um tempo. Portanto, se antes do céu e da
instituir um confronto, assim como a duração do terra não existia tempo, por que perguntar o que
tempo dura pela passagem de muitos movimentos, fazias então? Não existia um então onde não existia
que não podem desenvolver-se simultaneamente, um tempo.
enquanto no eternidade nada passa, mas é tudo
presente, de modo diferente do tempo, jamais todo 4. O hoje da Divindade é a eternidade
presente; como o passado seja sempre impulsionado
Mas não é no tempo que precedes os tempos.
pelo futuro, e o futuro siga sempre o passado, e pas-
De outro modo não os terias a todos precedido. E tu
sado e futuro nasçam e fluam sempre daquele que é
precedes todos os tempos passados pelo vértice de
o eterno presente? Quem deterá o mente do homem,
tua eternidade sempre presente, superas todos os
a fim de que se estabeleça e veja como o eternidade
futuros, porque ora são futuros, e depois chegados
estável, não futura nem presente, determine futuro e
serão passados. Tu, ao contrário, és sempre o
presente? Seria minha mão capaz de tanto ou a mão
mesmo, e teus anos jamais terminarão. Teus anos
da minha boca produziria com polavros um efeito tão
não vão nem vêm, a fim de que todos possam vir.
grande?
Teus anos estão todos ao mesmo tempo, porque são
estáveis; não se vão, eliminados pelos que vêm,
2. Deus antes de fazer o céu e a terra não porque não passam.
fazia nada Estes, ao invés, os nossos, existirão todos
Eis como respondo o quem pergunta: "O que quando todos não existirem mais.
fazia Deus antes de fazer o céu e a terra? 1'. Não Teus anos são apenas um dia, e teu dia não é
respondo como aquele fulano que, dizem, respondeu todo dia, mas hoje, porque o teu hoje não precede ao
eludindo com umo piada a insídia da pergunta: amanhã, como não sucedeu ao ontem. Teu hoje é a
"Preparava a geena para quem pers- cruta os eternidade. Por isso geras- te coeterno contigo
mistérios profundos". Uma coisa é entender, outro aquele do qual disseste: "Hoje te gerei". Tu criaste
caçoar. Eu não responderei assim. Prefiro responder: todos os tempos, e antes de todos os tempos tu
"Não sei o que não sei", em vez de ridicularizar quem existes, e sem nenhum tempo não havia tempo.
fez uma pergunta profunda, e elogiar quem deu uma
resposta falsa. Digo, ao contrário, que tu. Deus 5. O conceito de tempo
nosso, és o criador de toda coisa criada; e se com o
Não existiu, portanto, um tempo, durante o
nome de céu e terra se entende toda coisa criada,
qual terias feito nada, pois o próprio tempo foi feito
ousadamente digo: "Deus, ontes de fazer o céu e a por ti, e não há um tempo eterno contigo, pois és
terra, não fazia nada". Com efeito, se fazia algo, o
estável, enquanto um tempo que fosse estável não
que fazia, a não ser uma criatura? Oh, se eu sou-
seria tempo. O que é o tempo? Quem saberia
besse o quanto desejo com minha vantagem de explicá-lo de modo claro e breve? Quem saberia dele
saber, do mesmo modo como sei que não existia
formar mesmo que apenas o conceito no mente,
nenhuma criatura antes da primeira criatura!
para depois expressá-
lo em palavras? E ainda, qual palovra mais familiar
3. Não há tempo sem criação e conhecida do tempo ocorre em nossas conversas?
Se algum espírito leviano, vagueando entre as Quando somos nós que falamos, é certo que
imagens do passado, se admira de que tu, Deus que entendemos, e entendemos também quando dele
tudo podes e tudo crias e tudo monténs, autor do céu ouvimos outros falarem. O que é, portanto, o tempo?
e da terra, tenhas te abstido de tanto operar, antes de Se ninguém me interroga, eu sei; se quisesse
tal criação, por inumeráveis séculos, se levante e ob- explicá-lo a quem me interroga, não sei. Isto porém
serve que sua admiração é infundada. Como posso dizer com confiança de saber: sem nada que
poderiam passar inumeráveis séculos, se tu não os passe, não existiria um tempo passado; sem nada
tivesses criado, autor e iniciador de todos que
Terceira parte - y\. Patrística na área cultural de língua latina
venha, não existiria um tempo futuro; sem nado que o pensamento para medir a voz, como se ressoasse
exista, não existiria um tempo presente. Dois, a fim de que possamos referir algo sobre intervalos
portanto, desses tempos, o possado e o futuro, como de silêncio em termos de extensão temporal?
existem, dado que o primeiro não existe mais e o Também sem empregar a voz e os lábios
segundo ainda não existe? £ quanto ao presente, se percorremos com o pensamento poemas e versos e
fosse sempre presente, sem traduzir-se em passado, discursos, referimos todas as dimensões de seu
não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto, se o desenvolvimento e as proporções entre os vários
presente, para ser tempo, deve traduzir-se em espaços de tempo, exatamente como se os
possado, como podemos dizer também dele que recitássemos falando. Quem, desejando emitir um
existe, se a razão pela qual existe é que não existirá? som mais extenso, primeiro determinou sua extensão
Portanto, não podemos falar com verdade da com o pensamento, certamente reproduziu em
existência do tempo, a não ser enquanto tende a não silêncio esse espaço de tempo e, confiondo-o à me-
existir. mória, começa a emitir o som, que se produz até que
seja levado ao termo preestobelecido: ou melhor,
6. Os três tempos: produziu-se e se produzirá, pois a parte já realizada
o presente do passado, o evidentemente se produziu, a que permanece se
presente do presente e o produzirá, flssim se realiza. R tensão presente faz
presente do futuro passar o futuro para o passado, o passado cresce
com a diminuição do futuro, até que com a
Um foto agora está claro: nem o futuro nem o consumação do futuro tudo será apenas passado.
passado existem. £ inexato dizer que os tempos são Mas como diminuiria e se consumaria o
três: passado, presente e futuro. Talvez fosse exato futuro, que ainda não existe, e como cresceria o
dizer que os tempos são três: presente do passado, passado, que não existe mais, senão pela existência
presente do presente, presente do futuro. Cstas três no espírito, autor desta operação, dos três momentos
espécies de tempos existem de algum modo no alma da espera, da atenção e da memória? Dessa forma,
e não vejo em outro lugar: o presente do passado é o o objeto da espera feito objeto da atenção passa à
memória; o presente do presente, a visão; o presente memória. Quem nega que o futuro não existe ainda?
do futuro, a espera. Permitam-me estas expressões e Todavia, existe já no espírito a espera do futuro. £
então vejo e admito três tempos, e três tempos quem nega que o passado não existe mais? Todavia,
existem. Diga-se ainda que os tempos são três: existe ainda no espírito a memória do passado. 6
passodo, presente e futuro, conforme o expressão quem nego que o tempo presente carece de
abusiva que entrou em uso; digo-se também o extensão, sendo um ponto que passa? Todavia,
seguinte: vede, não reparo, não contradigo nem perdura o atenção, diante da qual corre para seu
zombo de ninguém, contanto que se compreenda desaparecimento aquilo que aí aparece. O Futuro
aquilo que se diz: que o futuro agora não existe, nem inexistente, portanto, não é longo, mas um longo
o possado. Raramente nós nos exprimimos com futuro é a espera longa de um futuro; da mesma
exatidão; no mais dos vezes nos exprimimos forma, não é longo o passodo, inexistente, mas um
inexatamente, mas é possível reconhecer o que longo passado é a memória longo de um passodo.
queremos dizer. Agostinho, Confissões.
Como há, portonto, dois conhecimentos dos ele é Deus, do qual estaremos repletos quando Deus
moles, um pelo quol eles nõo fogem do poder do for tudo em todos.
mente, o outro porque tocom o experiência dos Nossas próprios boos obras, quando se
sentidos (umo coiso é conhecer todos os vícios reconhecem como suos ao invés de como nossas,
mediante aquilo que o sabedoria ensino, outra é são-nos atribuídas como mérito pora alcançar este
conhecê-los por meio de uma vida corrupta, sábado; se, ao contrário, as tivermos atribuído a nós,
estultamente), também há dois modos de esquecer serão como obras servis, enquanto do sábado se diz:
os males: quem os conheceu graças às informações "Não fareis nenhuma obra servil". Por isso também
do sua doutrino, es- quec6-ss deles de modo diverso por meio do profeta Czequiel se diz; "Dei a eles
de quem deles fez experiência e os sofreu; poro um é também os meus sábados como sinal entre mim e
como se transcurasse seu estudo, para o outro é eles para que soubessem que sou eu, o Senhor, que
como se fosse subtraído de seu tormento. Cste se- os santifico". Cntão conheceremos isso perfeita-
gundo tipo de esquecimento é oquele pelo qual os mente, quando estivermos perfeitamente livres e
santos esquecerão seus moles passados; serão virmos perfeitamente que ele é Deus.
todos dele subtraídos, de modo a ser cancelados
completamente de sua experiência. Ro invés, no 4. As seis eras da história do homem
plano do capacidade de seu conhecimento, que neles Csta celebração do sábado aparecerá de
será gronde, não apenas não ignorarão seu passado, modo mais evidente se se calcularem, como se
como tombém o eterno infelicidade dos danados. Por fossem dias, também os eras, conforme aqueles
outro lodo, se eles nõo souberem que foram infelizes, períodos que a Cscritura parece nos apresentar, pois
como poderão exclamar, com o Salmo: "Contarei ele será o sétimo dia. R primeira era, como se fosse
sem fim as graças do Senhor1'? C não haverá o primeiro dia, vai de Rdão até o dilúvio, o segunda
seguramente nesta Cidade um canto mois doce do até flbrõo, iguol à primeira não como duração mos
que este pora glorificar a graço de Cristo, em cujo como número de gerações; parece-nos, de fato, que
sangue fomos libertos. Cum- prir-se-ão então os foram dez. R partir daqui, como precisa o evangelista
palavras: "Parai e sabei que eu sou Deus". Mateus, seguem-se três eras até a vindo de Cristo,
coda uma das quais compreende quatorze gerações:
3. No "sétimo dia" veremos a Deus, uma vai de Rbrõo o Davi, outra vai até o exílio na
que será tudo em todos Babilônio, o terceira até a encarnação de Cristo. No
Cste será de fato o sábado supremo, que nõo total são cinco eras. R sexta ainda está em curso e
conhecerá fim, e que o Senhor recomendou às não deve ser medido em termos de gerações, pois
origens do criado, dizendo.- "Cntõo Deus no sétimo está escrito: "Não cabe a vós conhecer os tempos e
dio levou o termo o trabalho feito e descansou no os momentos que o Pai reservou à sua escolha".
sétimo dio de todo o seu trabalho. Deus abençoou o
sétimo dia e o consogrou, porque nele tinha 5. O "oitavo dia" da vida eterna
descansado de todo trabalho que ele, criando, tinha Depois desta era Deus repousará como no
realizado". Justamente nós próprios seremos o sétimo dia, fazendo nele repousor aquele mesmo
sétimo dio quondo estivermos repletos e sétimo dia que seremos nós. Serio demasiado longo
reconstituídos pelo suo bênção e pelo suo neste ponto examinar atentamente cado uma dessas
consagração. Rí estaremos livres para ver que ele é eras; todavia, esta sétima será o nosso sábodo, cujo
Deus, enquanto quisemos ser Deus para nós fim nõo será
mesmos quando caímos longe dele, dando ouvidos o declínio, e sim o dia do Senhor, como que um
às polavras do sedutor: "Tornar-vos-eis como Deus"; oitavo dia do vida eterna, o qual foi consagrado no
assim nos afastamos do verdadeiro Deus, por ressurreição de Cristo, prefigurondo o repouso
intervenção do guol ter-nos-íamos tornado como ele eterno do espírito e do corpo. Rí repousaremos e
por meio de umo participação, em vez de por uma veremos, veremos e amaremos, amaremos e
deserção. Sem ele não fizemos mais que incorrer em louvaremos. Isso será no fim, e não haverá fim! Que
sua cólera. Reconstituídos por ele, ao invés, e outra coisa é nosso fim, senão chegar ao reino que
tornodos perfeitos por umo groça maior, estaremos não tem fim?
livres paro a vida eterna, vendo que Rgostinho, R Cidade de Deus.
GÊNESE DA
ESCOLÁSTICA
■ Primeiras teorizações das relações entre fé e
razão na Idade Média
Escoto Eriúgena
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
O surgimento da Escolástica
e seus desenvolvimentos de Boécio a Escoto Eriúgena
129
{Sapí+ulo sétimo
Z I. Desenvolvimentos z
do pensamento medieval
quanto João Damasceno abre a perspectiva Alem da significativa figura “de pas-
da cultura medieval deslocando o centro do sagem” de Boécio, nesta primeira fase so-
interesse filosófico de Platão para bressai principalmente Escoto Eriúgena.
Aristóteles, como pouco a pouco se fará b) A segunda fase se estende do séc. X
também no Ocidente, conforme veremos. (ou do fim do IX) até o séc. XI, e caracteriza-
De forma que podemos resumir o que se pelas reformas monásticas, pela renovação
precisamos, dizendo que o pensamento pro- política da Igreja, que se manifesta por meio
tocristão da Patrística representa o aspecto das complexas lutas pelas investiduras, e
cristão do pensamento antigo tardio, enquan- pelas grandes cruzadas.
to a Escolástica, na sua gênese e nos seus Entre as figuras de relevo dessa fase
desenvolvimentos, representa toda a era me- devemos indicar Anselmo de Aosta,
dieval. Abelardo, e ainda as significativas Escolas de
Deste período foi proposta uma signi- Chartres e de São Vítor.
ficativa articulação em quatro fases, que é c) A terceira fase marca a era de ouro
particularmente esclarecedora e fecunda, da Escolástica no decorrer do século XIII.
sobretudo do ponto de vista didático. Florescem as Universidades e torna-se
a) A primeira fase se estende por qua- marcante a grande figura de santo Tomás,
tro séculos e vai do fim do séc. V até o fim do além das muito conspícuas figuras de são
séc. IX, ou seja, do surgimento e do desen- Boaventura e de Duns Escoto.
volvimento dos reinos romano-barbáricos até d) A quarta fase da Idade Média coin-
a restauração e a consolidação do Sagrado cide com o séc. XIV e se caracteriza pela
Império Romano por obra dos Carolín- gios. crise da Igreja e do Império e, portanto, pela
Esta é a fase mais problemática da Idade conclusão do mundo espiritual que caracteri-
Média, na qual se encontra o assim chamado zou esta era.
“obscurantismo” medieval, mas com a clara A figura saliente é a de Ockham, com
presença de momentos em que se verifica um o qual se abre o divórcio entre razão e fé.
renascimento cultural, que retoma e Exatamente pela clareza didática desta
desenvolve aspectos do pensamento antigo divisão nós a seguiremos também na dis-
tardio. tribuição do material.
12 345 6 7
l-aixa inferior do afresco “/\ disputa sobre o sacramento", pintado por Raffaello cm I.SOV na
Sala da Assinatura, no Vaticano.
Aí estão representados os protagonistas do debate filosófico e teológico sobre a T.ucaristia, que
terá sua definição apenas no séc. XVI com os decretos do C.oncilio de Trento.
No afresco podemos reconhecer: I. são C,regório, 2. são Jerónimo. santo Ambrósio.
4. santo Agostinho, 5. santo Tomás, 6. são Boaventura, 7. D ante Aligbieri.
Capitulo sétimo - y\ filosofia na JJdade A^édia
n. ^ (z^scolas monacais,
episcopais e palatirvas
• Entre essas escolas assumiu grande importância, a partir do fim do séc. VIII, a
Escola palatina desejada por Carlos Magno, com a intenção de fazer surgir na terra dos
Francos uma nova Atenas.
Instituída e dirigida por Alcuíno de York, esta escola teve no início caráter erudito e
eclético; somente a partir da segun- A £SC0/a pa/aí/na da geração assumiu conotações
originais e criativas. Organi- § 2 zou a instrução em três níveis:
1) a instrução elementar;
2) o estudo das sete artes liberais do trívio (gramática, retórica e dialética) e do
quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música);
3) o estudo aprofundado da Sagrada Escritura.
2 é^fei+os explosivos
da Universidade Brasão da Universidade de Bolonha.
O Estúdio de Bolonha nasceu no séc. XI corno livre e
espontânea associação de estudantes e mestres que
Dois são os efeitos mais relevantes de- fundaram uma escola especializada na exegese do
vidos à instituição e à consolidação da uni- direito romano.
versidade.
a) O primeiro constitui-se pelo surgi-
mento de um sodalício de mestres, sacerdotes Ao lado dos poderes tradicionais, como
e leigos, ao qual a Igreja confiava a tarefa de o sacerdotium e o regnum, acrescentava-se
ensinar a doutrina revelada. Trata-se de
um terceiro poder, o studium ou a classe dos
fenômeno de grande alcance histórico,
intelectuais, cuja ação exerceu peso
porque até então a doutrina oficial da Igreja
relevante sobre a vida social da época.
era (e sempre tinha sido) confiada á hie-
b) O segundo efeito ou dado caracte-
rarquia eclesiástica.
rístico foi a abertura da universidade pari
Capitulo sétimo - filosofia na Cidade A^dia
I. A obra e o pervsamervto de
5everÍKvo Soecio
das adidos ao palácio real). Atacado e acu- a tradução e o comentário de todas as obras
sado pelo referendarius Cipriano, expoente de Platão, para depois mostrar a concordân-
do partido filogótico, foi preso e julgado sem cia substancial entre os dois filósofos.
ao menos ser ouvido. Foi justiçado no inverno Devido também à morte prematura,
de 524 no Ager Calventianus, ao norte de Boécio não conseguiu levar a termo o seu
Pavia. As principais acusações foram a de ter vasto e ambicioso projeto. De todo modo,
impedido o trabalho dos delatores em relação escreveu um comentário ao Isagoge de Por-
ao Senado e de ter tramado a restauração da fírio, tomando por base a tradução de Mário
autoridade do Imperador em prejuízo de Vitorino. Entretanto, insatisfeito com tal
Teodorico. tradução, realizou pessoalmente outra, mais
Os estudiosos definiram Boécio como “o correta e literal, desenvolvendo então um
último dos romanos e o primeiro dos comentário muito mais vasto. Traduziu e co-
escolásticos” e, portanto, como um dos fun- mentou as Categorias, de Aristóteles. Apron-
dadores da Idade Média. Na realidade, a ele tou a versão do De interpretatione, também
remontam as linhas essenciais que a cultura de Aristóteles, escrevendo dois comentários
da Idade Média seguirá. sobre essa obra: um, elementar, em dois li-
Em uma carta a Símaco, Boécio ex- vros, e outro, mais articulado e vasto, em
pressa a intenção de levar em conta todas as seis livros. Comentou os Tópicos, de Cícero.
ciências que conduzem à filosofia: aritmética, Ainda do Organon de Aristóteles, traduziu os
música, geometria e astronomia. E a Analíticos primeiros e segundos, os Elencos
consideração dessas ciências deveria estar sofísticos e os Tópicos.
em função da filosofia. Com tal propósito, Foi através desses textos que a Idade
Boécio projetou a tradução para o latim, com Média conheceu Aristóteles até o século XII.
comentários, de todas as obras de lógica,
moral e física de Aristóteles, bem como
2 Boécio e a lógica
3 O consolatione
philosophiae:
Deus é a própria felicidade
do-te entre dificuldades de todo tipo, perdes tudo aquilo que se move, de alguma forma
a tua serenidade. Gostarias de transcorrer a derivam as suas causas, a sua ordem, as
vida entre prazeres? Mas quem não sentiria suas formas distintivas da imutabilidade da
desprezo e repugnância por alguém que se mente divina”. E a realização efetiva dos
faz escravo de uma coisa tão vil e frágil acontecimentos no tempo e no espaço é
como o corpo?”. Portanto, não é nessas aquilo “que foi chamado destino pelos
coisas terrenas que se deve buscar a antigos”. A providência, portanto, é “a própria
felicidade. Por outro lado, é impossível negar razão divina, que repousa estavelmente no
que existe a bem-aventurança, pois os bens supremo ser, senhor de todas as coisas, que
imperfeitos só o são à medida que participam a todas governa; já o destino é a disposição
do perfeito. Diz então a Filosofia: “Assim, é inerente às coisas mutáveis, pela qual a pro-
preciso reconhecer que Deus é a própria vidência mantém cada coisa estreitamente
felicidade (...), tanto a felicidade como Deus ligada à sua ordem”.
são o sumo bem”. E Boécio responde: E a Filosofia prossegue: os homens,
“Nenhuma conclusão (...) poderia ser mais porém, são incapazes de se dar conta de tal
verdadeira do que essa em substância, mais ordem, de modo que “tudo parece confuso e
sólida na estrutura lógica, mais digna diante subvertido”, quando, na realidade, “todas as
de Deus”. JT] coisas estão ordenadamente dispostas
segundo uma norma a elas apropriada, que as
orienta para o bem. Com efeito, não há nada
que seja feito visando ao mal, nem mesmo
4 O problema do mal por parte dos próprios maus; na realidade,
estes (...) procuram o bem, mas dele são
e a questão da liberdade
desviados por um despercebido erro de
avaliação”. Ademais, admitindo-se que al-
Estamos diante de teses de natureza guém esteja em condições de distinguir os
neoplatônica, que Boécio explicita ainda bons dos maus, “será que poderá olhar tam-
melhor no fim do terceiro livro, quando afir- bém dentro da alma, para ver como é feita a
ma que o Uno, o Bem e Deus são a mesma sua constituição íntima (...)?”
coisa. Ora, se as coisas são assim, se é a pro-
Entretanto, se “o mundo é governado vidência que governa o mundo, como é que
por Deus”, uma questão emerge como esse fato se concilia com a liberdade do
ineludível: como então existe o mal e por que homem?
os maus permanecem impunes? Esse é o Pois bem, a resposta que encontramos
problema que Boécio enfrenta no quarto livro. no quinto livro do De consolatione para tal
A Filosofia observa que todos os que se interrogação é que o conhecimento divino é
afastam da honestidade são pessoas con- conhecimento simultâneo de todos os
denadas, embrutecidas, infelizes. acontecimentos, tanto dos passados como
Este, portanto, é o resultado para quem dos futuros. Assim, “se tu quisesses avaliar
abandona a honestidade: deixa de ser homem exatamente a pré-visão com que ele reco-
e se transforma em animal. Será que a nhece todas as coisas, deverias justamente
felicidade está nisso? Ora, apesar disso, considerar que não se trata de presciência de
Boécio se surpreende com o fato de que “as coisas projetadas no futuro, mas de co-
coisas andem ao contrário: os bons sofrem as nhecimento de um presente que nunca passa.
penas devidas ao delito, ao passo que os Daí não chamar-se previdência, mas pro-
maus se apropriam da recompensa que cabe vidência (...). Por que, então, pretendes que
à virtude”. se tornem necessárias as coisas que são in-
Qual é, portanto, “a razão de tão injusta vestidas pelo lume divino quando nem mes-
confusão de valores”? A Filosofia, no mo os homens tornam necessárias as coisas
entanto, lembra a Boécio que ele não deve se que vêem? Será que, na realidade, o teu olhar
surpreender com tais coisas, desde que acrescenta alguma necessidade às coisas que
compreenda os princípios que regulam a vês como presentes?”. Em suma: em Deus,
atividade daquelas coisas que, aparentemen- estão presentes os acontecimentos futuros e
te, acontecem por acaso. E esse princípio é a estão presentes no modo como acontecem,
providência: “A origem de todo o criado, toda razão pela qual aqueles que dependem do
evolução das naturezas mutáveis e de livre-arbítrio estão presentes em sua contin-
gência.
Cãpítulo OÍtãVO - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos
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Miniatura que representa Boécio na prisão.
Quarta parte - Gênese- da Éscolástica
xar a vida pública, fundando o mosteiro de Etymologiae, na qual resume o saber do seu
Vivarium, no qual reuniu vasta biblioteca e tempo, seguindo o fio da origem das palavras
escreveu suas obras: De anima e Institutio- (suas hipóteses são freqüentemente ar-
nes, a História dos Godos, as epístolas bitrárias, mas são ocasião para divagar nos
Variae. Seu mosteiro foi um dos primeiros mais diversos campos e nos oferecem pre-
exemplos de centro de espiritualidade e de ciosas informações sobre a cultura depois da
cultura onde devia refugiar-se o estudo do queda do Império).
passado com a aproximação dos tempos Outra obra enciclopédica foi escrita
obscuros dos “séculos de ferro”. Cassiodoro mais tarde pelo “venerável” Beda (673-735)
confirma o plano dos estudos liberais que com o monumental De rerum natura, ao lado
devem ser seguidos pelos clérigos, compre- de escritos gramaticais e retóricos; ele é
endendo, conforme o esquema traçado em mestre de Ecberto, primeiro bispo de York e
torno de 430 por Marciano Capella no De por sua vez mestre de Alcuíno. Com estas
nuptiis Mercurii et Philologiae, as artes do figuras a longínqua Britânia participa da
trivium (gramática, dialética, retórica) e do conservação do patrimônio de cultura amea-
quadrivium (aritmética, geometria, astrono- çado pelos Bárbaros.
mia, música). Mas a figura mais significativa no res-
Isidoro nasce no mesmo ano da morte surgimento e na difusão da cultura nesta fase
de Cassiodoro (570), em outro reino roma- da história da Idade Média é a de Alcuíno de
no-barbárico, o visigótico da Espanha. Além York (730-804), como fundador da Escola
de escritos teológicos e de uma História dos palatina desejada por Carlos Magno (781), da
Godos e dos Vândalos, dedicou-se a uma qual já explicamos acima as características
vasta enciclopédia em vinte livros, intitulada de grande importância.
CAffilOBO « . M N A T o h
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Frontispício da edição
do De divisione naturae,
a obra maior de Escoto (i v a \ i t
Eriúgena, publicada em ;>iSi.i
Oxford em 1681. Í \ Ml
'■ I ' ' '
siástica e a Teologia mística), que tanta di- Depois da morte de Carlos, o Calvo,
fusão tiveram na Idade Média, bem como os ocorrida em 877, não se tem mais notícias de
Ambigua, de Máximo, o Confessor (explicação Escoto Eriúgena, que, ao que parece, morreu
de passagens difíceis das obras de Gregório alguns anos depois na França.
Nazianzeno e do Pseudo-Dionísio Areopagita)
e o De opificio hominis (a criação do homem),
de Gregório de Nissa.
Mas, além de tradutor, ele também foi . 2 é-scoto éiriúg&na
,
termina com a via negativa. A primeira con- de todos os predicados, limitados e finitos,
siste em atribuir-lhe as perfeições simples que estamos inclinados a atribuir a Deus. Só
das criaturas (via positiva), ao passo que a impropriamente se pode chamar de criatura
segunda consiste em negá-las (via negativa). sua primeira manifestação, porque se
Tais negações não devem ser entendi- identifica com o Logos ou Filho de Deus, não
das em sentido de privação, mas sim de produzido no espaço e no tempo, mas, se-
transcendência. Por esse motivo, a teologia gundo o prólogo do Evangelho de são João,
negativa denomina-se também teologia su- coeterno ao Pai e coessencial a ele: Deus não
per-afirmativa. Para além de todo conceito ou seria Deus se não fosse desde a eternidade o
conhecimento humano, Deus é supra-ser, gerador do próprio Logos ou sabedoria.
supra-substância, supra-bondade, supra- b) Natureza que é criada e cria. E o
vida e supra-espírito. Logos ou sabedoria de Deus, no qual estão
Embora a inspiração seja neoplatônica, a contidas as causas primordiais ou arquétipos
substância do pensamento de Escoto Eriú- de todas as coisas. Trata-se de idéias,
gena é cristã, porque ele não é monista: a modelos, espécies e formas que expressam o
unidade do todo em sentido panteísta lhe é pensamento e a vontade de Deus, chamados
estranha, como a emanação. Com efeito, entre também de “predestinações” ou “vontades
o Pseudo-Dionísio e o Neoplatonismo existe divinas”, por imitação às quais as coisas se
a barreira do Deus criador, pessoal, distinto formarão. Vista sob essa ótica, toda a criação
das criaturas. é eterna: “Tudo aquilo que está nele
Por isso, não há nada de fatal em Escoto permanece sempre e é vida eterna”. As coi-
Eriúgena, já que o retorno do homem a Deus sas, situadas no espaço e no tempo, são infe-
leva a marca de sua liberdade. riores, menos perfeitas e menos verdadeiras
A essa tese fundamental é preciso do que o modelo ou arquétipo, por causa de
acrescentar ainda a tese do processo gradual, sua mutabilidade e caducidade. E óbvio que
segundo a qual o universo está disposto do esses modelos são diversos e múltiplos para
mínimo ao máximo. Trata-se de uma nós, não para Deus, assim como a criação
hierarquia respeitada no céu e na terra, comporta mudanças para nós, não para Deus.
celeste e terrena, sobre a qual é preciso Ademais, tais modelos, ao contrário das
refletir e na qual deve- se inspirar a vida idéias perfeitas e imóveis de Platão, são
individual e social. causas eficientes e não apenas exemplares.
Pois bem, essa síntese, que influiria so- Quem transforma esses exemplares em cau-
bre pensadores como Hugo de São Vítor, sas eficientes é o Espírito Santo, que faz sair
Alberto Magno, são Boaventura e santo To- dos exemplares eternos as coisas e os
más de Aquino, influenciou poderosamente indivíduos, o que, portanto, é a “causa da
Escoto Eriúgena, que a acolheu e repensou divisão, multiplicação e distribuição de todas
em sua obra maior, o De divisione naturae. as causas em efeitos, gerais, especiais e
próprios, segundo a natureza e segundo a
graça”. Não se trata, portanto, de criação,
3 O divisione naturae mas da substância dialética da qual as coisas
são expressão e retorno. Trata-se de uma
substância da qual as coisas são feitas e que
Essa obra de Escoto Eriúgena, em cinco é, ao mesmo tempo, natural e sobrenatural,
livros e em forma de diálogo, pode ser para além de qualquer distinção das duas
resumida em quatro etapas ou divisões: ordens, que, ao contrário, se interpenetram e
a) natureza que não é criada e cria; se fundem.
b) natureza que é criada e cria; c) Natureza que é criada e não cria. E o
c) natureza que é criada e não cria; mundo criado no espaço e no tempo, que, por
d) natureza que não é criada e não cria. seu turno, não produz e não cria outras
coisas. O mundo é o que Deus quis e quer
a) Natureza que não é criada e cria. E que seja, é a sua manifestação ou theopha-
Deus, incriado e criador de todas as coisas. nía. Ele é criado do nada e não é, como que-
Sendo perfeitíssimo, Deus não é cognoscível, riam os “filósofos seculares”, uma matéria
estando acima de todos os atributos (supra- informe e eterna. Se o aspecto sensível e
substância, supra-bondade, supra-potência, múltiplo das coisas é expressão do pecado
supra-vida etc.): trata-se precisamente da original — o que se coaduna com o
via negativa do Pseudo-Dionísio, que supera neoplatonismo —, o significado último do
a teologia afirmativa porque leva à negação mundo é o homem, chamado a reassumi-lo e
reconduzi-lo
Quarta parte - Gênese da Escolástica
a Deus. Nele, oficina do universo, tudo está ra autoridade não se opõe à reta razão, nem
abarcado, é partícipe do mundo sensível e do esta à verdadeira autoridade, porque ambas
mundo inteligível, sendo portanto resumo do derivam de única fonte, isto é, da sabedoria
cosmo. A substância do homem está na alma, divina”.
de que o corpo é instrumento: “O corpo é Estabelecendo estreita correspondência
nosso, mas não é nós”. Com o pecado, o entre o pensamento e a realidade, Escoto
corpo tornou-se corruptível; originalmente Eriúgena contribuiu de modo relevante para a
imortal, voltará a sê-lo com a ressurreição. reavaliação da investigação lógico-filo- sófica
d) Natureza que não é criada e não cria. É em um contexto claramente teológico. Já no
Deus como termo final de tudo. O quarto e o De praedestinatione, escrito para refutar as
quinto livros do De divisione naturae teses de Gotescalco, evidenciava o papel
descrevem a epopéia do retorno. O tempo insubstituível da ratio, já que, à coletânea de
intermediário entre a origem e o retorno é passagens dos Padres da Igreja em uso na
ocupado pelo esforço do homem para re- sua época, ele opôs a necessidade de
conduzir tudo a Deus, na imitação do Filho de recorrer à razão para explicar e esclarecer
Deus, que, encarnando-se, recapitulou em si trechos controversos e teses contrapostas.
o universo e mostrou o caminho do retorno. Escoto Eriúgena superou a concepção
Por isso, a encarnação de Deus é um fato da lógica como simples técnica de linguagem,
capital, ao mesmo tempo natural e sobrena- que remontava às escolas de retórica e de
tural, filosófico e teológico. O retorno se dá direito do Baixo Império, desenvolvendo uma
em fases: a dissolução do corpo nos quatro interpretação realista dos universais em um
elementos; a ressurreição do corpo glorioso; contexto claramente teológico. Com efeito, no
a dissolução do homem corpóreo no espírito e seu De divisione naturae, a dialética é
nos arquétipos primordiais; por fim, a na- entendida como a própria estrutura da
tureza humana e suas causas, que se movem realidade no seu realizar-se: em suas duas
em Deus como o ar na luz. Então, Deus será fases, ascendente e descendente (a divisio,
tudo em cada coisa; aliás, não haverá nada do uno ao múltiplo, e a reductio, do múltiplo
mais além de Deus. Não se trata de dissolução ao uno), constitui o ritmo interno da natureza
da individualidade, mas na sua conservação e da história do mundo. A dialética é antes de
da mais elevada forma: como o ar não perde tudo uma arte divina, fundada na própria obra
sua natureza quando penetrado pela luz, e o do Criador. E é por isso que os homens
ferro não se anula quando se funde ao fogo, descobrem e não criam a dialética, como
da mesma forma toda natureza se assimilará instrumento de compreensão do real e de
em Deus sem perder sua individualidade, elevação a Deus. Desse modo, Escoto Eriú-
ontologicamente transfigurada e não anulada. gena abole toda distinção entre religião e
[T] filosofia: “A verdadeira filosofia outra coisa
não é do que religião e, inversamente, a
verdadeira religião outra coisa não é do que
verdadeira filosofia”. E, nesse contexto re-
ligioso, ele chega a dizer que ninguém pode
:4 ;A razão em função da fé entrar no céu a não ser passando pela filo-
sofia {Nemo intrat in caelum nisi per pbi-
losophiam).
Nenhuma autoridade — diz Escoto
Eriúgena — deve te afastar das coisas que
são ensinadas pela reta razão. “A verdadei
139
Capítulo oitavo - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos ____________________
res bens? feto ainda vigoroso e incólume aquele tem nenhuma experiência disso, e dó medo a quem
preciosíssimo orgulho do gênero humano que é o teve. Acrescenta depois que quanto mais uma
Símaco, teu sogro, e — coisa que resgatarás pessoa é afortunada, mais delicada é sua
voluntariamente com o preço da vida — tal homem, sensibilidade, e que, se tudo não está exatamente a
todo sabedoria e virtude, se lamenta pelas ofensas a seu gosto, não sendo avessa a qualquer
ti dirigidas, sem cuidar-se das que podem atingi-lo. adversidade, abate-se diante da menor delas:
Está viva tua esposa, mulher de índole reservada, de infinitas são as coisas que privam os mais
singular modéstia e honestidade e, para resumir afortunados da felicidade perfeita. Tens idéia de
brevemente todos os dotes dela, semelhante ao pai; quantos se julgariam quase no céu se tivessem
vive, eu te digo, e, chegando a odiar esta vida, anima- como sorte uma parte ainda que mínima daquilo que
se apenas por ti, e se consome em lágrimas e dor resta de tua fortuna? Este mesmo lugar, que chamas
com tua falta (único motivo pelo qual também eu de exílio, é a pátria para aqueles que aí habitam. De
julgaria que perdeste parte de tua felicidade). Que modo que é verdade que a miséria está na opinião
direi depois a respeito de teus filhos já cônsules, de que dela se tem, e que ao contrário feliz é a sorte,
cuja índole, herdada tanto do avô quanto do pai, já seja ela qual for, daquele que a tolera com espírito
aparece um claro ensaio, como é possível em jovens sereno. Quem é tão feliz a ponto de não desejar
daquela idade? Portanto, uma vez que a principal mudar o próprio estado, quando se deixa tomar pela
preocupação dos mortais é a de conservar a vida, impaciência? De quantas amarguras é coberta a
feliz de ti, se conhecesses teus bens, dado que doçura do felicidade humana! Mesmo que ela possa
também agora tens em abundância aquelas coisas parecer agradável a quem dela goza, todavia não se
que ninguém duvida ser mais preciosas na vida. Por lhe pode impedir de ir embora quando quiser, é pois
isso, enxuga as lágrimas; a fortuna ainda não passou evidente o quão miserável é a felicidade derivada
a odiar a todos até o último, nem se desencadeou das coisas mortais, que não dura para sempre nem
sobre ti uma tempestade demasiado veemente, uma mesmo naqueles que não se deixam por elas se-
vez que permanecem firmes âncoras que não duzir, nem satisfaz completamente aqueles que a
permitirão que te falte o conforto do presente e a procuram com afã".
esperança do futuro". "Portanto, por que, ó mortais, procurais fora de
Respondi: "Peço que elas estejam firmes; vós a felicidade que está dentro de vós? O erro e a
enquanto permanecerem, com efeito, seja como ignorância vos confundem. Agora te mostrarei
forem as coisas, eu serei salvo. Mas vês que grande brevemente o fulcro sobre o qual se apóia a mais alta
parte de nossas distinções foi-se embora". Ela disse: felicidade. Existe algo mais precioso para ti do que tu
"Teremos feito certo progresso, caso de modo mesmo? Não, res- ponderás; e, portanto, se fores
nenhum te lamentes de tua sorte. Mas não posso senhor de ti mesmo, possuirás aquilo que jamais
suportar a volúpia com a qual com tanto pranto e desejo- rias perder, nem a fortuna te poderia
ansiedade lamentas que falte alguma coisa à tua arrebatar. E para que reconheças que a felicidade
felicidade. Com efeito, quem possui uma felicidade não pode consistir nestes bens fortuitos, raciocina
tão privada de nuvens que não contraste em algo assim. Se a felicidade é o sumo bem da natureza
com a natureza de seu estado? fl condição dos bens dotada de razão, e se não é sumo aquele bem que
humanos é na verdade coisa gue produz angústia, e de algum modo pode ser tirado, pois lhe é superior
tal que ou não se realiza nunca plenamente ou jamais aquele bem que não pode ser tirado, torna-se claro
dura para sempre. Cste está repleto de riquezas, mas que o instabilidade da fortuna não pode aspirar a
enrubesce por causa de sua obscura ascendência; possuir a felicidade. Além disso, aquele que é
aquele é famoso pelo nobreza das origens, mas se dominado por esta felicidade caduca, ou sabe que
debate em restrições econômicas tais que preferiria ela é mutável ou não sabe. Se não sabe, pode ser
ser desconhecido. Aquele que é abundantemente feliz a sorte de quem vive na cegueira da ignorância?
provido de ambos os bens chora seu celibato; aquele Se sabe, necessariamente teme perder aquilo que
que é afortunado no matrimônio, mas privado de certamente poderá perder; e por isso o contínuo
filhos, acumula riquezas para um herdeiro estranho; temor não lhe permite ser feliz. Ou talvez, se o tiver
aquele, por fim, que se alegra com os filhos derrama perdido, pensa que seja coisa sem importância? Mas
lágrimas amargas pelos erros do filho ou da filha". também então é bastante insignificante aquele bem
"Ninguém, portanto, se encontra facilmente em cuja perda pode ser suportada serenamente. Sei que
sintonia com o própria sorte; em cada um há sempre estás persuadido e firmemente convicto, por
algo que é ignorado por quem não muitíssimas demonstrações, que as mentes dos
homens não
Capítulo oitavo - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos
sõo de modo olgum mortais, e é evidente que a efeito, é ser incluído ao longo do arco de uma vida
felicidade dada pelo acaso termina com a morte do sem termo — coisa que Platão atribui ao mundo —,
corpo. Não hó dúvida, portanto, de que, se esta outra é acolher em si a presença total e simultânea
felicidade pode trazer a bem- aventurança, todo o de uma vido sem fim, o que evidentemente é próprio
gênero humano caio na infelicidade no momento final da mente divina. Nem Deus deve parecer mais antigo
da morte". que as coisas criadas por quantidade de tempo, mas
sim por prerrogativa de suo simples natureza, o movi-
3. fl eternidade de Deus e a mento infinito dos coisos temporais imita justamente
liberdade do homem o estado presencial da imóvel vido divina, e, nõo
podendo reproduzi-lo ou igualá-lo, da imobilidade
"Uma vez que, portanto, como pouco antes
decai para o movimento, da simplicidade do presença
ficou demonstrado, tudo aquilo que se conhece é
se reduz à infinito extensão do futuro e do passado.
conhecido não em virtude da própria natureza, mas
Cmbora nõo estando em grau de possuir
da natureza daqueles que o compreendem, vejamos
contemporaneamente o plenitude total da próprio
agora, conforme nos é permitido, qual é a condição
vida, apesar de tudo isso, pelo próprio foto de que de
da essência divina, de modo o poder também
algum modo jamais cessa de ser, parece querer
reconhecer qual é a sua ciência, C juízo comum de
emular em certa medida aquilo que não pode igualar
todos os seres providos de razão que Deus é eterno.
e exprimir plenamente, estreitando-se àquele tipo de
Consideremos portanto o que seja a eternidade; esta,
presença que é própria deste breve e fugaz
com efeito, nos desvelará ao mesmo tempo a
momento. Uma vez que tal presença traz em si, por
natureza e a ciência divina, fl eternidade, pois, é a
assim dizer, uma imagem daquela impere- cível,
posse simultânea e perfeita da vida sem fim, coisa
fornece uma aparência de existência àqueles seres
que aparecerá mais clara a partir de um confronto
aos quais tocou como sorte; todavia, uma vez que
com as realidades temporais. Tudo aquilo que vive no
não pôde permanecer imóvel, tornou-se senhora de
tempo procede no presente do passado para o futuro,
um infinito itinerário de tempo, prolongando deste
e não há nada, daquilo que é colocado no tempo, que
modo, no devir, a vida que não pôde abraçar em sua
possa abraçar conjuntamente todo o espaço da
plenitude permanecendo imóvel. Portanto, se
própria vida; enquanto não consegue ainda agarrar
quiséssemos dor às coisas seu justo nome, diríamos,
aquilo que acontecerá amanhã, já perdeu aquilo que
seguindo Platão, que Deus é eterno, o mundo, ao in-
foi ontem; e também na vida do hoje viveis apenas no
vés, é perpétuo".
átimo móvel e fugidio. Portanto, tudo aquilo que é
"Uma vez que, portanto, toda faculdade de
condicionado pelo tempo, mesmo que, como afirma
julgamento compreende, segundo a própria natureza,
Aristóteles a propósito do mundo, nõo tenho jamais
as coisas por ela subsumidas, e Deus se encontro
começado a ser e jamais termine, e a duração de sua
sempre em um estado de eterna presença; também
vida coincida com a infinidade do tempo, todovia não
sua ciência, ultrapassando toda mutação temporal,
é ainda tal de modo a poder ser corretamente julgado
permanece no simplicidade da própria presença, e
eterno. Cie, com efeito, nõo compreende em si e nõo
abraçando todos os espaços infinitos do passado e
abraça em sua totalidade simultaneamente o espaço
do futuro os contempla no próprio e simples oto de
de uma vida mesmo que infinita, enquanto não possui
conhecimento, como se acontecessem justamente
ainda as realidades futuras, e não possui mais as já
naquele momento. De formo que, se quise- res julgar
transcorridos. Aquele ser, portanto, que encerra e
bem a previdência, com o qual ele discerne todas as
possui em si simultaneamente a plenitude total de
coisas, afirmarás de modo mais justo que seja nõo
uma vida sem fim, e ao qual nõo falta nada do futuro
pré-ciência, por assim dizer, do futuro, mas ciência
e nada do passado tenha escapado, apenas este
de uma presença que jamais falta; razão pelo qual é
com razão é julgado ser eterno, e é necessário que,
melhor chamado de providência do que previdência,
plenamente senhor de si, esteja sempre presente e
porque, posta bem longe dos seres mais baixos, vê
por assim dizer ao lado de si mesmo, e tenha
dionte de si o universo inteiro como do vértice mais
presente a si o infinito transcorrer do tempo".
excelso dos coisas. Por que pretendes então que se
"Crram portanto aqueles que, tendo co-
tornem necessárias as coisas que sõo investidas pela
nhecimento do opinião de Platão, de que este mundo
luz divina, quando sequer os homens tornam
nõo teve um início de tempo e não terá fim, afirmam
necessárias as que vêem? Talvez teu olhor
por isso que o mundo criado se torna coeterno a seu
acrescenta uma necessidade qualquer às coisas que
Criador. Uma coiso, com
vês presentes a ti? De
Quarta parte - Gênese da Ê-scolás+ica
modo nenhum! Todavia, se é lícito um confronto entre tecimentos futuros que provêm da liberdade de
o presente divino e o humano, como vedes algumas decisão; os quais, portanto, quando referidos à
coisas neste vosso presente temporal, da mesma intuição divina, tornom-se necessários para a
forma ele as penetra todas em seu presente eterno, fl condição do conhecimento divino; considerados ao
pré-ciência divina, portanto, não muda a natureza e invés em si mesmos, não perdem a absoluta
as propriedades das coisas, e as vê presentes diante liberdade da própria natureza. Acontecerão portanto
de si do modo como acontecerão um dia no tempo. £ sem nenhuma dúvida todas os coisas que Deus
não confunde os juízos feitos sobre as coisas, mas conhece antecipadamente que sucederão, mas
com um só intuito da sua mente conhece até o fundo algumas delas brotam do livre-ar- bítrio, e, embora se
tanto aquilo que acontecerá necessariamente, como realizem, não por isso perdem a própria natureza, em
aquilo que acontecerá não necessariamente, como virtude da qual, antes que se realizassem, teriam
vós, quando vedes contemporaneamente um homem podido também não realizar-se".
que caminha sobre a terra e o sol que surge no céu, "Mas o que importa — me dirós — que não
distinguis uma coisa da outra, mesmo que as vejais sejam necessárias, a partir do momento que, por
juntas, e julgais voluntária a primeira e necessária a causa da condição da ciência divina, disso resultará
segunda. Da mesma forma, portanto, ocorre com o em todo caso uma necessidade equivalente? Isto
intuito divino, discernindo cada coisa não ultrapassa importa, isto é, que dos fatos há pouco citados, o sol
em nada a qualidade das coisas que a ele estão que surge e o homem que caminha (dois eventos
presentes, enquanto em relação à condição do tempo que, enquanto acontecem, não podem não
sejam futuras. Por conseguinte, quando Deus acontecer), um, ainda antes que acontecesse, devia
conhece que sucederá alguma coisa que ele sabe necessariamente existir, o outro não; assim também,
privada da necessidade de existir, esta não é uma aquelas realidades que Deus tem presentes a si sem
opinião, mas um conhecimento fundado sobre a nenhuma dúvida existem, mas delas algumas brotam
verdade. da necessidade natural, outras da vontade daqueles
"€ se a este ponto dissesses que aquilo que que os realizam. Não erradamente, portanto,
Deus vê no futuro não pode não acontecer, e que dizemos que estas coisas, caso as consideremos em
aquilo que não pode não acontecer acontece por sua relação ao conhecimento divino, são
necessidade, e me pusesses em apuro sobre este necessárias, mas, se as considerarmos em si
tema da necessidade, eu te mostrarei uma realidade mesmas são livres dos vínculos da necessidade,
absolutamente verdadeira, mas tal que dificilmente assim como tudo aquilo que os sentidos percebem é
poderia atingir quem não esteja enfronhado na universal se o referimos à razão, particular se o
contemplação de Deus. £u te responderia que o referimos a si mesmo".
próprio futuro, se o considerarmos em relação ao "Todavia, se está em meu poder — dirós
conhecimento que Deus dele tem, é necessário, mas, — mudar de propósito, tornarei vã a providência,
quando o examinamos em sua própria natureza é quando por acaso mudar minhas intenções, que ela
absolutamente livre e privado de vínculos. Há, com conhece com precedência. Gla responderá que
efeito, duas espécies de necessidade; uma simples, podes mudar o teu propósito, mas não podes te
como, por exemplo, que necessariamente todos os subtrairá pré-ciência divina, pois a presente verdade
homens são mortais, a outra condicional, como da providência vê que podes fazê-lo, e tombém se o
quando se tu sabes que tal pessoa caminha, é fazes, e para qual coisa te diriges, assim como não
necessário que ela caminhe. Aquilo que alguém poderias fugir ao olhar de um olho que te
conhece não pode ser diversamente de como é supervisiona, por mais que com livre vontade tu te
conhecido; esta necessidade condicional, porém, não dirijas às mais variadas ações. Mas então,
traz consigo a necessidade simples. Não dá origem à perguntarás, o ciência divina mudará conforme a
necessidade condicional a natureza própria de uma minha disposição, de modo que, quando eu quiser
coisa, mas a acresce de uma condição; nenhuma isto ou aquilo, também elo parecerá alternar o modo
necessidade obriga com efeito a caminhar aquele de conhecer? De modo nenhum, fl intuição divina
que caminha voluntariamente, por mais necessário corre adiante de todo evento futuro, e o traz e chama
seja que, enquanto caminho, ele caminhe. Do mesmo de novo à presença do próprio conhecimento; e não
modo, portanto, se a providência vê alguma coisa se alterna, como crês, ao prever ora isto ora aquilo,
como presente, é necessário que ela exista, embora mas em um único olhar simples, permanecendo
não tenho nenhuma necessidade de natureza. Pois imóvel, prevê e abraça tuas mudanças. € este poder
bem, Deus vê como junto a si presentes os acon de compreender e de ver todas as coisas. Deus não
o tem do êxito das realidades futuras, mas a partir da
própria
, 1411
Capitulo oitavo - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos ------------------------
simplicidade. Desse modo fica resolvida também a de nosso espírito, que é a divisão em coisas que
questão posta há pouco, isto é, que seria coisa existem e coisas que não existem, foi-me oferecido
indigna dizer que nossas ações futuras sejam causa um termo geral para exprimir umas e outras, a
da ciência divina, fl força da ciência divina, com palavra grega physis, que corresponde à latino
efeito, abraçando todas as coisas com seu noturo. Ou talvez não te pareça que as coisas sejam
conhecimento presencial, fixou para toda coisa o assim?
próprio limite, e nada deve às que acontecerão em DISCÍPULO - Ao contrário, estou de acordo; pois
seguida". também eu, quando começo a raciocinar, vejo que é
"Posto isso, permanece intacta para os exatamente assim.
homens a liberdade de escolha, e não injustamente MCSTRC - Natureza é, portanto, o nome geral de
as leis estabelecem penas e prêmios, pois as todas as coisas que existem e que não existem.
vontades deles são livres de qualquer necessidade; DISCIPULO - Sim; nada, com efeito, pode se
e permanece que Deus tudo conhece apresentar a nosso pensamento a que nõo se possa
antecipadamente, olhando do alto. fl eternidade aplicar tal palavra.
sempre presente de sua visão converge com a MCSTRC - Portanto, uma vez que estamos de
qualidade futura de nossas ações, dispensando acordo sobre este termo geral, gostaria que me
prêmios aos bons, castigos aos maus. Não é vão dissesses como a natureza se divide em diferentes
repor em Deus esperanças e preces, que, quando espécies. Ou, se crês, primeiro experimentarei dividir,
são retas, não podem não ter eficácia. Afastai-vos, e julgarás se a divisão é bem-feita.
portanto, dos vícios, praticai as virtudes, elevai o DISCÍPULO - Começa então; estou impaciente de
espírito a esperanças justas, dirigi ao céu preces ouvir de ti o verdadeiro modo de dividi-la.
humildes. Cabe a vós, caso não queirais fingir não MCSTRC - Parece-me que a natureza se divide,
sabê- por quatro diferenças, em quatro espécies: a primeira
lo, uma grande necessidade de ser retos, pois é aquela que cria e não é criada, a segunda é criada
vossas ações se realizam diante dos olhos de um e cria, a terceira é criada e não cria, a quarta nõo cria
juiz que vê todas as coisas". nem é criada. Cs- tas quatro se opõem duas o duas,
Boécio, Fl consolação do filosofia. pois a terceira se opõe à primeira e a quarta à
segundo; mas a quarta parece impossível porque sua
diferença específica é o fato de não poder ser.
Parece-te justa esta divisão ou não?
DISCÍPULO - Justa; mas eu desejaria que tu a
repetisses para que me ficasse mais clara a oposição
ESCOTO ERIÚGENA das formas que mencionaste.
MCSTRC - Parece-me que devas ver a oposição
entre a primeira e a terceira, pois a primeira cria e
não é criada, e se lhe opõe aquela que é criada e
não cria. fl segunda depois se opõe à quarta, pois a
segunda é criada e cria, enquanto a quarta nem cria
2 fl quadrúplice divisão nem é criada.
da natureza DISCÍPULO - Vejo claramente. Mas me perturba
muito a quarta espécie que acrescentas- te; sobre as
outras, com efeito, não tenho hesitações, pois com a
Fortemente influenciado pelo neoplatonismo primeira entendemos, parece-me, a causa de tudo
cristão do Pseudo-Dionísio fíreopa- gita, €scoto aquilo que existe, e daquilo que não existe; com a
propõe uma subdivisão hierárquica da natureza em segunda, as causas primordiais; com a terceira,
quatro partes: aquilo que se gera e existe no tempo e no espaço.
1) Deus (natureza não crioda que crio); Por isso, parece-me necessário discutir mais parti-
2) Logos (natureza criada que cria); cularmente sobre cada uma delas. [...]
3) mundo (natureza criado que não cria); MCSTRC - Recolhamos então em unidade,
4) Deus como fim último (natureza não criada procedendo analiticamente, as quatro formas
que não cria). anteriormente mencionadas que coincidem entre si. fl
primeira e a quarta são uma só realidade, pois se
aplicam apenas a Deus: Deus é, com efeito, o
princípio de todas as coisas cria
MCSTRC - Tendo freqüentemente pensado e
estudado atentamente, o quanto me permitiam as
forças, à primeira divisão das coisas perceptíveis e
das que superam a capacidade
Quarta parte - C\'èn ese dct (~SÍ ; i
das, 0 é o fim ao qual todas tendem para repousar dade. Vês então que duas das quotro formas acima
nele 0t0rnam0nt0 0 Ímutav0lm0nt0. Di- z0mos, com mencionadas, a primeira e a quarta, se reduz0m ao
efeito, que a causa de toda coisa cria, porqu© dela, Criador, 0 as outras duas, a segunda 0 a terceiro, se
com admirável 0 divina multiplicação, proc0d0 o reduz0m à criatura?
conjunto das coisas qu0 d©la e d©pois d©la foram DISCIPUIO - Vejo, 0 admiro o complexidade das
criadas, 0m gên0ros, ©spécies, números, dif0r0nças, coisas. D0 fato, as duas primeiras formas não se
0 tudo aquilo qu0 s© consid0ra existente em distinguem em Deus, mas em nossa contemplação, 0
naturoza. Mas, uma vez qu© tudo isso qu0 delo não são formas de Deus, mas de nossa razão, pelo
procede voltará à mesma causa, quando chegar QO dupla noção de princípio e de fim; nem se reduzem à
fim, por isso a causa primeira se diz fim de toda unidade em Deus, mas em nosso teoria que,
coisa, e enquanto tal não crio nem é criada. Com efei- enquanto considera o princípio e o fim, crio em si
to, quando tudo tiver voltado o ela, nada procederá mesma duas formas de contemplação e as reúne
mais dela por geração, lugar 0 t0mpo, 0m gêneros e depois em uma, quando extraídos da simplicidade
espécies, pois tudo será quieto, imutável, e divina. Princípio e fim, de fato, não são nomes pró-
indivisivelmente um [...]. Vê, portanto, que a primeiro prios da natureza divina, mas de sua relação com as
e a quarta forma da natureza se reduzem a uma só coisas criadas. Dela com 0feito extraem sua origem,
realidade? e por isso ela se chama princípio, 0 uma vez qu© a
Discípulo - Vejo e entendo. Com efeito, em Deus a ela so dirigem, para nela terminar, elo recebe o nome
primeiro forma não se distingue do quarto: em Deus, de de fim. As outras duas formas, ao invés, digo a
fato, nõo existem duas realidades, mas apenas uma; segunda e a terceira, surgem não só em nosso
todavia, uma vez que de Deus temos uma noção quando o contemplação, mas se encontram na própria
consideramos como princípio, 0 outro quando o conside- natureza das coisos criados, na qual as causas sõo
ramos como fim, em nossa teoria 0los apar0C0m como separadas dos efeitos, e os efeitos se unem às
duas formas, constituídos na simplicidade da natureza causas, umo vez que são uma só coisa em seu
divina pelo duplo olhar de nossa contemplação. gênero, ou seja, no foto de serem criaturas.
MCSTRC - Vês de forma correta. C então? MCSTRC - De quatro, portanto, se tornam
Devemos reduzir a uma só realidade também a duas.
segunda e o terceira forma? Com efeito, creio que DISCÍPULO - Não me oponho.
não te escopo que, assim como a primeira 0 a quarto MCSTRC - O que dirias de unir a criatura ao
se consideram no Criador, do mesma formo a Criador, de modo a não conceber nele senão aquele
segunda e o terceiro se consideram na criatura, fl que única e verdadeiramente é? Com efeito, nada
segunda, de fato, como dissemos, é criada e cria, e que está foro dele dizemos verdadeiramente ser, pois
por ©Ia entendemos as causas primordiais dos coisas tudo aquilo que dele procede não é outra coisa,
criadas; a terceira forma é criada e não cria, 0 50 enquanto existe, senão uma participação daquele
encontra nos efeitos dos causas primordiais, fl que apenas subsiste por si e para si. Negarás,
segunda e a terceira, portanto, estão contidos em um portanto, que
mesmo gênero, o do natureza criada, e nisso são o Criador 0 a criatura sõo um único sor?
uma só realidade: as formas, com efeito, consi- DISCÍPULO - Nõo o negaria facilmente, pois
deradas em seu gênero, são umo única reali parece-me ridículo opor-me a esta reunião.
€scoto Criúgena, De
divisione noturoe.
A ESCOLASTICA NOS
SÉCULOS DÉCIMO
PRIMEIRO E DÉCIMO
SEGUNDO
■ A consolidação das relações entre razão e fé
Anselmo de Aosta
Capítulo nono
Capítulo décimo
T^nselmo de ^osta
Mas como se harmonizam liberdade assim como Deus prevê. Portanto, é neces-
humana e presciência divina, predestinação e sário que algo seja sem necessidade”.
livre-arbítrio, graça e mérito? Como é pos- Aparentemente formal, essa resposta se
sível falar de liberdade e de responsabilidade enriquece com outros elementos quando
humana no contexto de um Deus onipotente, Anselmo explicita que é possível a previsão
onisciente e predestinante? Esses são alguns da necessidade da verificação de um
temas do ensaio De concordia. Anselmo acontecimento futuro livre, porque tal pre-
assim formula a resposta a essas inter- visão divina se dá na eternidade, onde não há
rogações: “Se um acontecimento se cumprirá mutação, ao passo que o acontecimento livre
sem necessidade, Deus, que prevê todo acon- ocorre no tempo. Trata-se de dois planos
tecimento futuro, deve prever também isso. distintos, o da eternidade e o do tempo.
Mas o que Deus prevê será necessariamente
Um ângulo da
catedral de
Canterbury, que
constitui uma díís
maiores expressões
arquitetônicas do
gótico inglês.
Depois de eleito
abade do mosteiro
de Bec na
Norntandia (107,V.
Anselmo foi
nomeado arcebispo
de Canterbury
(109.]).
•sr - w ~ “ -•-
Capítulo nono - Anselmo de Aosta
ANSELMO
DEUS E O HOMEM
DEUS
a liberdade humana
HOMEM coincide com a vontade do
bem
o conhecimento
humano mede-se
pelas coisas, o
divino as mede
argumento. Com efeito, a pintura, ainda antes de ser pensado conforme uma realidade perfeitamente
pintada, encontra-se na própria arte do pintor, e tal verdadeira: não a realidade que seria aquele homem
realidade na arte do artífice não é mais que parte de individual, mas o realidade que é o homem em geral.
sua inteligência, pois, como diz santo Agostinho, Todavia, quando então ouço dizer "Deus" ou "o
"quando um artesão está para construir um armário, ente maior de todos”, não posso tê-lo no pensamento
antes ele o tem na mente; o armário fabricado não é ou no intelecto assim como teria aquela coisa falsa
vida, porque vive a alma do artífice, na qual existem no pensamento ou no intelecto, porque enquanto
todas estas coisas antes de serem produzidas". Com posso pensar aquela coisa em conformidade com
efeito, como estas coisas na alma viven- te do artífice uma realidade verdadeira e por mim conhecida,
são vida, a não ser porque não são mais que a Deus, ao contrário, não o posso absolutamente pen-
ciência ou inteligência de sua alma? sar a não ser apenas conforme as palavras. Mas
Ao contrário, de tudo aquilo que o intelecto apenas com as palavras se pode bem pouco, ou
percebe como verdadeiro, tendo-o ouvido ou nunca se pode, pensar algo de verdadeiro, porque
pensado, com exceção das coisas que são quando se pensa deste modo não se pensa tanto na
conhecidas como pertencentes à própria natureza da própria palavra, isto é, no som das letras ou das
mente, uma coisa é sem dúvida o conteúdo sílabas, que é uma realidade certamente verdadeira,
verdadeiro e outra o próprio intelecto com que é e sim no significado da palavra ouvida. Mas este não
captado. Portanto, mesmo que fosse verdadeiro que é pensado como quem sabe o que aquela palavra
existe o ente do qual nada pode ser pensado maior, normalmente significa, isto é, como quem a pensa
este ser, todavia, ouvido e compreendido, não é conforme uma realidade verdadeira ao menos
como a pintura ainda não executada e presente no apenas no pensamento, e sim como quem não
intelecto do pintor. conhece aquele significado e o pensa apenas
conforme o movimento do espírito provocado pela
escuta de tal palavra, na tentativa de construir para si
4. Pode-se pensar que Deus não exista,
o significado da palavra percebida. Seria
seguindo o argumento de Rnselmo
verdadeiramente admirável, se pudesse fazê-lo
A isso acrescentemos aquilo que observamos, colhendo a verdade da coisa.
isto é, que não posso, pelo fato de tê-lo ouvido, Assim, portanto, e com certeza não diver-
pensar ou ter no intelecto aquele ente maior do que samente, me consta ter até agora em meu intelecto
todas as coisas que se podem pensar, do qual se diz aquele ente, quando ouço e compreendo quem diz
que não pode ser outra coisa a não ser o próprio que existe um ente maior do que todas as coisas que
Deus, como não posso pensar ou ter no intelecto podem ser pensadas. Que isto seja dito a respeito
aquele ente em base o uma coisa por mim conhecida daquela afirmação segundo a qual aquela sumo
tanto pela suo espécie como pelo seu gênero, natureza já está em meu intelecto.
também não posso pensar ou ter no intelecto, da
mesma forma, nem sequer o próprio Deus;
justamente por este motivo, portanto, posso também 5. Se Deus é pensado
pensar que Deus não existe. apenas "secundum vocem",
Com efeito, não conheço a própria coisa, nem não se pode deduzir sua existência real
posso conjeturá-la o partir de outra coisa que lhe seja Que o suma natureza exista necessariamente
semelhante, pois tu mesmo afirmas que ela é uma também na realidade, isso me é demonstrado
realidade de tal modo feita, que nenhuma coisa pode dizendo que, se não fosse assim, tudo aquilo que
ser-lhe semelhante. De fato, se eu ouvisse falar de existe na realidade seria maior do que ela; portanto,
um homem que me é completamente desconhecido, elo não seria aquele ente maior do que todos, do
do qual ignorasse também a existência, poderia toda- qual já se provou que seguramente já está no
via pensá-lo segundo a própria realidade que é o intelecto. A esta argumentação respondo: se é
homem, por meio da noção específica ou genérica preciso dizer, daquilo que não 'pode sequer ser
em virtude da qual sei o que seja um homem ou o pensodo segundo a verdade de uma coisa qualquer,
que sejam os homens. Todavia, poderia ocorrer, se que está no intelecto, eu não nego que deste modo
quem me fala disso mentisse, que aquele homem ele estejo também em meu intelecto. Mas uma vez
pensado por mim não existisse, embora eu o tenho que disso não se pode de foto deduzir que ele existo
em todo caso também na realidade, não lhe concedo
Capitulo nono - y\^sel mo de y\os+a
absolutamente a existência real, até que não me seja mais duvidar da verdadeira existência daquela ilha,
provada com um argumento indu- bitável. ou eu creria que deseja brincar ou não saberia a
Quem diz que este ente existe, porque quem considerar mais estulto, se lhe concedesse ter
diversamente aquilo que é maior do que todos não razão, e ele, se cresse ter estabelecido com alguma
seria maior do que todos, não presta suficiente certeza a existência daquela ilha, sem ter-me antes
atenção a quem está falando. Eu, com efeito, não demonstrado que o sua perfeição se encontra em
digo ainda, ao contrário, nego ou duvido, que este meu intelecto como uma coisa verdadeiramente e
ente seja maior do que alguma coisa verdadeira, nem indubitavelmente existente, e não como algo falso ou
lhe concedo outro ser senão aquele, admitido que se incerto.
deve chamá-lo "ser", de uma coisa completamente
ignota que a mente se esforça para imaginar apenas 7. Crítica final do argumento
segundo a palavra ouvida. Portanto, de que modo me Cstas coisas, no entanto, responderia aquele
é demonstrado que este ser maior existe na verdade insipiente às objeções. Quando se lhe diz que aquele
da coisa, enquanto consta que é maior do que todas ente maior do que todos é tal de modo a não poder
as coisas, quando até agora eu nego ou coloco em ser sequer pensado como não existente, e isto de
dúvida justamente este constar, não admitindo que tal novo não é demonstrado de outro modo, a não ser
ente maior do que todos exista em meu intelecto ou dizendo que de outra forma não seria o ente moior do
em meu pensamento, nem mesmo naquele modo que todos, o insipiente poderia repetir a mesma
com o qual existem também muitas coisas dúbias e resposta e dizer: quando foi que eu disse que na
incertas? 6 primeiro necessário, com efeito, que me realidade verdadeira existe tal ente, ou seja, o “maior
seja certo que tal ser maior existe em uma realidade do que todos", de forma que disso se me deva provar
verdadeira em algum lugar; então apenas, pelo fato que ele existe também na própria realidade, de modo
de que é maior do que todas as coisas, não será a não poder ser sequer pensado como não
mais incerto que subsiste também em si mesmo. existente? Em primeiro lugar deve-se por isso provar,
com algum argumento certíssimo, que há alguma
6. O exemplo da Ilha Perdida natureza superior, isto é, maior e melhor do que
todas as que existem, de modo que disso possamos
Tomemos um exemplo. Alguém diz que em
depois demonstrar todas as outras qualidades, das
alguma parte do oceano há uma ilha que, por causa
quais não pode necessariamente faltar o ente que é
da dificuldade, ou melhor, da impossibilidade de
maior e melhor do que todos.
encontrar aquilo que não existe, alguns chamam
Quando depois se diz que esta suma realidade
"Perdida". Eles fabulam que, muito mais do que se
não pode ser pensado como não existente, dir-se-ia
diz dos Ilhas Afortunadas, esta ilha é opulento pela
talvez melhor que suo não existência, ou também a
sua inestimável abundância de todo tipo de riqueza e
possibilidade de sua não existência, não pode ser
de toda delícia; e que, sem possuidor ou habitante
entendido. Com efeito, conforme o significado desta
qualquer, seja superior pela superabundância de
palavra, não se podem compreender as coisas
bens a todas as outras terras habitadas em todo lugar
falsas; que certamente podem ser pensadas, da
pelos homens. Que alguém me diga tudo isso, e eu
mesma formo com que o insipiente pensou que Deus
compreenderei facilmente este dizer, no qual não há
não existe. Também eu sei com absoluta certeza que
nenhuma dificuldade.
existo, mas sei ainda que poderia também não
Todavia, se depois acrescentasse, como se
existir. Ao invés disso, compreendo de modo
fosse uma conseqüência: não podes duvidar que esta
indubitável que aquele ser que é sumo, isto é, Deus,
ilha melhor do que todas as terras existe
existe e não pode não existir.
verdadeiramente em algum lugar no realidade, mais
Depois não sei se posso pensar que não
do que o fato de não duvida- res que existe em teu
existo, enquanto sei com absoluta certeza que existo.
intelecto; e uma vez que é melhor existir não só no
Mas se posso, por que não valeria o mesmo também
intelecto, mas também na realidade, porque se não
para todas as outras coisas que conheço com o
existisse na realidade qualquer outra terra existente
mesma certeza? Se ao invés não posso, tal
na realidade seria melhor do que ela, e assim a ilha
impossibilidade não se referirá apenas a Deus.
já por ti entendida como superior não serio superior. Anselmo, Prosiogion
Se este, digo, quisesse convencer-me com tais
argumentos que não se deve
Quititd patte -JK Escolástica nos séculos décimo pnmei^o e décimo segundo
seus contemporâneos, ele não crê que a ra- sivas. Daí seus conflitos com as autoridades
zão possa dar explicações definitivas. e com a tradição. Mas o esforço de Abelardo
Todas as explicações dos filósofos, bem para aprofundar com a razão os problemas
como dos Padres e dos teólogos, são máximos da teologia foi apenas contrastado,
opiniões, mais ou menos abalizadas, mas e não bloqueado, por esses conflitos.
nunca conclu
Abelardo (1079-1142) e o
pensador mais prestigioso
do séc. XII. Por sua vida
atormentada e inquieta, por
suas obras ricas de
jermentos e ile novas
indicações uietodoh jgicas,
foi definido como "a outra
vertente ila Idade Média”.
iâm (na ifcíêtmmmúc
Aqui Abelardo é ^ uptmdtt om (n /òmw com
representado ao lado de
Heloísa, com a qual teve a
Mfçimimttme
conhecida aventura nfliííjimiapiíttíiitttw ^ nammwiammmm
amorosa, no fim da qual s
uma e outro entraram para ^ iwamtTmtt fiíictt tctirc -* tlncu ntmm
o mosteiro. Heloísa, ao iltíctt atmr
morrer, quis ser sepultada
na mesma tumba de ^ wpiiiiciw «ii d|ginfr
Abelardo. Miniatura do séc.
XIV (de I e roman de Ia Rose,
Museu C.ondé, ('.bantilh).
Jt--.
Quiflta parte - ;A Escolástica nos séculos décimo primeiro e décimo segundo
• Abelardo, todavia, passou para a história também pela posição que assu-
miu na secular questão dos universais. As soluções oferecidas a tal problema a
partir da especulação medieval eram as seguintes:
Roma, Igreja de Santa Maria sobre Minerva: “A disputa de santo Tomás de Aquino com os heréticos"
(Filippino Lippi).
ta tão bem essa reação, no tratado Sobre a A íntima ligação entre os estudos gra-
perfeição monástica chega a considerar que o maticais e a dialética foi evidenciada sobre-
iniciador desses estudos foi o diabo: “Não tudo por Abelardo.
disse ele ‘vós sereis como deuses’? Os nos- Identificada com a lógica e, portanto,
sos progenitores aprenderam com o tentador com a ratio in exercitio, a dialética impõe o
a declinar Deus e a falar dele no plural”. rigor na investigação, que se concretiza na
análise dos termos do discurso, através de
um exame crítico do processo de
“imposição” das voces ou termos às res
2 ;A questão da ^dialética” designadas e pela identificação do papel que
tais voces desempenham na estrutura e no
contexto do discurso.
Relacionada com os estudos gramaticais
e seu posterior desenvolvimento, a dialética
levou ainda à maior exaltação da ratio.
A propósito disso, escreve Berengário
3 O problema dos universais
de Tours (falecido em 1088): “E próprio de
um grande coração recorrer à dialética para
cada coisa, pois recorrer a ela é recorrer à
tn A questão da relação dos nomes e dos
razão, de modo que aquele que a ela não
conceitos mentais com a realidade
recorre, sendo feito à imagem de Deus se-
gundo a razão, despreza a própria dignidade e A relação entre voces e res, entre
não pode renovar-se dia-a-dia à imagem de linguagem e realidade, que está no centro
Deus”. dos estudos gramaticais e da dialética,
constitui o elemen
Quinta parte - A £ scolás+ica nos séculos décimo primeiro ■ ’ décimo bfgundo
Ü1 A solução modelada de
y\L>e!a rdo: o universal como
líl implicações lc>0Ícas e metafísicas cia
ex+raído da Va+io^ sob^e a base do
posição ^conceitualista” de .At -^l^rclo
^status communis” dos indivíduos
Os
universais
podem ser
in re / ou seja, í nas
coisas sensíveis, j
ante rem / isto como suas como puros
postrem ou conotações
é, antes , das coisas seja, \ na I nomes \ |
sensíveis, j ou seja, ontológicas / sem uma relação j \
mente
\ existem em . . estrutural j com as
si e por si I coisas /
\ como conceitos /
abstratos
T
CONCEITUALISMO Foi a tese WT
propugnada sobretudo por
REALISMO MODERADO
Abelardo que, porém,
Foi a tese de Tomás: os
admitia certa relação com a
universais existem ante rem na
realidade das coisas no que
mente de Deus, in re como
se refere ao status forma das coisas, e post rem
communis como conceito mental
Quinta parte - A Escolástica nos séculos décimo primeiro e décimo segundo
enquanto aqui todos aqueles que queriam aprender cola de dialética é quase impossível. Lívido de bílis
a dialética me esperavam ansiosamente. e vermelho de raiva, não conseguia suportar tal
Rlguns anos depois, estando já há tempo situação, e com astúcia procurou afastar- me mais
curado, fiquei sabendo que meu antigo mestre, uma vez. Todavia, como não tinha elementos
Guilherme, que era arquidiácono de Paris, trocara o suficientes para atingir-me diretamente, mandou
antigo hábito para entrar na Ordem dos Cônegos destituir do cargo, atribuindo-lhe culpas infamantes,
Regulares, pois, pelo que se dizia, esperava assim oquele que me deixara seu lugar e o substituiu por
ter mais fácil acesso aos cargos mais elevados com outro discípulo, notoriamente contrário a mim. Voltei
este gesto de zelo religioso, como de fato aconteceu então para Melun e reabri minha escola; a fama de
quando foi nomeado bispo de Châlons. Mas nem que eu gozava era proporcional à hostilidade
mesmo depois desta espécie de conversão ele invejosa da qual Guilherme não fazia mistério,
deixou Paris ou abandonou seus estudos de porque é verdade aquilo que diz o poeta Ovídio:
filosofia, e no próprio mosteiro, para o qual se fí invejo é como o vento, que Fustigo mois
transferira depois de ter entrado na Ordem, abriu os cimos mois oitos.
uma escola pública. Cntão voltei para junto dele Pouco tempo depois, Guilherme, percebendo
paro estudar retórica e, para recordar apenas uma que quase todas as pessoas de bom senso,
de nossas tantas disputas, refutei justamente duvidando da sinceridade de sua fé e ironizando de
naqueles dias, ou melhor, demoli, fazendo até com sua conversão pelo fato de que continuara a viver
que mudasse de opinião, sua velha doutrina sobre em Paris, transferiu-se com seu pequeno grupo de
os universais. fl propósito da existência comum dos irmãos e com toda sua escola para um vilarejo
universais, com efeito, Guilherme sustentava que em distante de Paris. Depressa, de Melun voltei para
todos os indivíduos está presente essencialmente a Paris, na esperança de que me teria deixado em
mesma realidade, de modo que não há nenhuma paz, mas, como encontrei a cátedra ocupada por
diferença em essência, mas apenas certa variedade aquele rival que Guilherme nomeara seu sucessor,
como conseqüência da multiplicidade dos fui instalar-me com minha escola um pouco fora da
acidentes. Depois de nossa disputa, porém, ele cidade, sobre a colina de Sainte Geneviève, como
que para assediar aquele que havia ocupado meu
modificou sua teoria e chegou a sustentar que a lugar.
própria realidade está presente nos indivíduos Guando soube disso. Guilherme, deixando de
singulares, não essencialmente mas lado qualquer escrúpulo, não hesitou em voltar a
indiferentemente. Todavia, como se sabe, o Paris e o recolocar no antigo mosteiro seus
problema dos universais em nosso campo é um coirmãos e os poucos alunos que conseguira reunir.
problema fundamental (não por nada também Seu escopo, por assim dizer, era o de liberar,
Porfírio, no Isagoge, tratando dos universais, não depois de tê-lo abandonado, seu fiel de meu
ousa proceder a uma verdadeira e própria definição assédio, mas, apesar de tudo, isso mais o
da questão e se limita a dizer que "a coisa não é das prejudicou do que ajudou. Com efeito, esse infeliz
mais simples"), e por isso quando Guilherme tinha ainda um minguado grupo de discípulos,
corrigiu, ou melhor, foi forçado a modificar graças sobretudo a seus comentários sobre
completamente seu pensamento a respeito, suas Prisciano, questão em que era considerado muito
aulas caíram em tal descrédito que com muito favor hábil, mas depois da chegada de seu mestre
lhe foi concedido tratar os outras partes da dialética, perdeu quase todos aqueles poucos alunos e foi
e com razão, pois na realidade o ponto mais forçado a abandonar a direção da escola; aliás, não
importante de nossos estudos é justamente o que se muito depois, desistindo de poder conseguir algum
refere oo problema dos universais. sucesso nesse campo, também ele entrou na vida
Cm todo caso, a partir daquele momento, monástica.
tornei-me neste campo tal autoridade que também Quais foram as disputas que meus alunos
aqueles que antes eram os mais apaixonados tiveram com Guilherme e com seus discípulos de-
seguidores daquele grande mestre e meus mais pois de sua volta, quais êxitos nesses desencontros
ferrenhos adversários, se precipitam em massa em a sorte reservou a meus alunos e também a mim por
minhas aulas; mais ainda, o próprio sucessor de meio deles, é coisa conhecida de todos e também
Guilherme na escola de Paris veio oferecer-me seu tu o sabes. €u, como fljax na ilíodo, poderio limitar-
lugar, para poder assistir junto com todos os outros me a dizer, com um pouco de modéstia talvez, mas
minhas aulas, justamente onde pouco tempo antes com o mesmo tom:
havia triunfado seu e meu mestre. Queres sober o resultado da batalha?
Dizer quanta dor e quanta inveja provou Saiba que meu inimigo não me derrotou.
Guilherme nos poucos dias em que dirigi a es Abelardo e Heloísa,
Cartas de amor.
Quinta parte - y\ Escolástica nos séculos décimo primeiro e clé-c.\n\0 segundo
0 Faz seguir o resultado pelas palavras "e assim foi filho, hoje te gerei. Pede e eu te darei as nações
feito” (Gn l,7ss). Ge mostra que Deus criou todas as como herança" (SI 2,7ss). Quando afirma: "hoje te
coisas em seu Verbo, isto é, em sua sabedoria, gerei", é como se dissesse: tu és eternamente de
portanto racionalmente, fl este respeito em outro minha própria substancia. Com efeito, na
lugar o salmista afirma: “Cie disse e as coisas foram eternidade não há passado nem futuro, mas tudo
feitas" (51 32,9), isto é, ele criou e ordenou todas as está simplesmente presente, por isso o advérbio
coisos por meio da razão. Cm outro lugar, que indica o tempo presente é utilizado para
mostrando claramente que este Verbo não é uma significar a eternidade, diz portanto "hoje" para dizer
palavra passageira que se ouve, mas permanente e "eternamente". Corretamente acrescenta ao
inteligível, afirma: "Ge criou os céus com sabedoria" advérbio "hoje" o verbo "gerei", um passado unido
(51 135,5). Csta palavra intelectual de Deus, isto é, oo presente, paro indicar, mediante o termo "hoje",
a eterna disposição de sua sabedoria, é descrita que esta geração está sempre presente, e com o
deste modo por Agostinho: “A palavra divina é a termo "gerei", que elo está sempre realizada e com-
própria disposição de Deus, que não tem um som pleta, e por isso ele usou o passado como para
estridente e passageiro, mas uma força que indicar a perfeição, para mostrar que o Filho
permanece eternamente". A respeito dela no VIII sempre foi gerado e sempre foi gerado pelo Pai.
livro do De Trinitateafirma: "Ge chamou Filho seu Cm outro lugar ele proclama mais claramente a
Verbo para mostrar que é gerado por ele". eternidade do Filho, dizendo: "Permanecerá com o
sol e antes do lua de geração em geração" (51
4. Por que a bondade de Deus é 71,5). Ainda: "Contigo está o princípio, no dia de tua
chamada €spírito Santo virtude, no esplendor dos santos eu te gerei de meu
seio antes da aurora" (51 109,3).
O nome Cspírito Santo exprime o sentimento Abelardo, Teologia do
de bondade e de caridade, como o espírito, isto é, o Sumo Bem.
sopro que sai de nossa boca, manifesta sobretudo
os sentimentos do coração, tanto quando
suspiramos por amor, como quando nos
lamentamos de angústia pela fadiga ou pela dor.
Por este motivo o Cspírito Santo é entendido como
sentimento bom nesto passagem do livro da
Sabedoria: "8om é o espírito de sabedoria, não
sairão blasfêmias de seus lábios" (Sb 1,6). Aqui o PORFÍRIO
nome Cspírito Santo indica exclusivamente uma
pessoa, todavia tomado em outro significado ele é
comum às três pessoas, pelo fato de que a
substância divina é espiritual e não corpórea, e
também santa. Sucede freqüentemente que um
nome comum a muitas coisas se refira a uma delas
como seu nome próprio. C uma vez que as outras
D fl questão dos universais
coisas têm nomes próprios por meio dos quais se
distinguem mutuamente, enquanto esta não tem um fl passagem seguinte, tirado do Isagoge de
nome que indique sua diferença, o que antes era Porfírio, deu origem à célebre disputa sobre os
comum a todas as outras torna-se nome próprio universais. Porfírio se pergunta se os universais
desta. Como quando falamos de clérigos para tinham um estatuto ontológico, e de que
salientara diferença com os monges, embora natureza, ou se tinham uma existência apenas
também os monges sejam clérigos, ou ainda mentol, como puros conceitos. Porém, nesse
quando falamos de fiéis para salientar a diferença escrito, deixa a questão em suspenso, afirmando
com os mártires, embora sobretudo os mártires de- que se trata de um tema demosiado complexo
vam ser chamados de fiéis. para ser examinado em um breve tratado.
Há também muitas outras passagens dos
profetas nas quais está claramente mostrada a
distinção dentro da Trindade. O próprio Davi
ensinou claramente a eterna geração do Filho a
partir do Pai, fazendo a pessoa do Filho falar deste Caro Crisaório, dado que para compreender
modo: "O Senhor me disse: tu és meu a doutrina das categorias de Aristóteles é
necessário saber o que sejam o gênero, a di-
ferença, a espécie, o próprio e o ocidente, e dado
que esta análise é basilar para a formulação das
definições, e, em todo caso, para tudo aqui-
Quitltã pãrte - Escolástica nos séculos décimo pWmeieo e décimo segundo
Io que se refere à divisão e à demonstração, farei para nalmente, se são separados ou se se encontram nas
ti uma breve exposição em poucos palavras, na forma, coisas sensíveis, inerentes a elas; este é, com efeito,
por assim dizer, de uma isagoge, daquilo que nos foi um tema muito complexo, que tem necessidade de
transmitido pelos antigos, deixando as questões mais outro tipo de pesquisa, muito mais aprofundado.
complexas e tratando em igual medida as mais Disponho-me, ao contrário, a explicar- te de
simples. um ponto de visto lógico aquilo que sustentaram
Previno-te logo que não enfrentarei o problema sobre estas duas questões e sobre outras, sobretudo os
dos gêneros e das espécies, isto é, se são subsistentes Peripatéticos.
por si ou se são simples conceitos mentais; e, no caso
que sejam subsistentes, se são corpóreos ou Porfírio, Isagoge.
incorpóreos; e, fi
íSapítulo ÁécÀyrxo primeiro
/A catedral de Chartres, da qual recelic o nome a Escola homônima, o maior centro de cultura do séc. XII.
Quinta parte - y\ Escolástica nos sáculos décimo primeiro e décimo segundo
Finalmente, há coisas supra rationem, isto é, si mesmas a sua razão. Esta reside, porém,
superiores à razão e objeto específico e único no ser infinito, incriado e eterno que é Deus.
da fé. Do conjunto resulta um pleno acordo Portanto, para Ricardo, a ascensão mística
entre razão e fé, mas sobretudo a superiori- parte da cogitatio e, através da meditatio,
dade desta como realização de todos os es- chega à contemplatio.
forços humanos, constituída pela contempla- Esta, que é preparada pelo exercício
ção e pela posse de Deus. das virtudes, conduz ao mergulho abissal em
Quem aprofundou a vida mística foi o Deus. À medida que ascende por meio dos
escocês Ricardo (morto em 1173) que suce- graus da contemplação, a alma se dilata, se
deu a Hugo como mestre e prior da Escola de eleva sobre si mesma e, no momento supre-
São Vítor. mo, se aliena completamente de si mesma
Fundamentalmente neoplatônico e pro- para transfigurar-se em Deus.
fundamente místico, Ricardo evidenciou a A Escola de São Vítor, portanto, culti-
ligação entre razão e fé. vou com grande empenho as ciências, a fi-
A fé nos diz que existe um só Deus; que losofia e a teologia, compenetradas entre si
Deus é eterno e incriado; que Deus é uno e por um espírito contemplativo dos mistérios
trino. Pois bem, a razão procura justamente divinos, ao qual tudo pode e deve conduzir,
as rationes necessariae da fé. As coisas como ao momento mais alto e significativo da
mudam e perecem, não encontram em vida intelectual e moral.
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/As Sentenças
das Sentenças que, embora não particularmente profundos no
campo filosófico, recolhem com diligência e com equilíbrio crítico os
de Pedro maiores contributos das correntes de pensamento anteriores, com a
Lombardo -
>§7 intenção de apresentar um compêndio da doutrina cristã.
Pedro Lombardo nasceu perto de No- boca”. Depois de ter passado alguns anos na
vara. Realizou seus estudos inicialmente em corte pontifícia, João voltou para a Inglaterra,
Bolonha e depois na Escola de São Vítor, em tornando-se secretário do arcebispo de
Paris. Aqui, a partir de 1140, ensinou na Canterbury, Thomas Becket, a quem dedicou
escola catedral. Tornou-se bispo de Paris em o Metalogicon e o Policraticus. A luta entre
1159, morreu em 1160. Thomas Becket e Henrique II teve como
Autor de um Comentário às cartas de epílogo o “assassínio na catedral”, do
são Paulo e de outro Comentário aos salmos, arcebispo. E João voltou à França, onde se
Pedro Lombardo escreveu os seus Libri tornou bispo de Chartres em 1176 e morreu
quattuor sententiarum — que seriam comen- em 1180.
tados por todos os grandes escolásticos — no João apreciava a cultura humanista e a
período de tempo que vai de 1150 a 1152. lógica. Não era cético. E, no entanto, en-
Trata-se de uma obra que se apresenta como tregava-se ao critério do conhecimento pro-
compêndio da doutrina cristã, extraída da vável de que falava Cícero. Era esse critério
Escritura e da autoridade dos Padres, e que lhe permitia fugir da verbosidade, por um
também estão presentes a Escola de são Vítor lado, e do dogmatismo, por outro. “Prefiro
e Abelardo. duvidar sobre as coisas em particular, junto
A obra de Pedro Lombardo não é, cer- com os acadêmicos, do que definir
tamente, obra original; é muito mais uma obra temerariamente, mediante danosa simulação,
de compilação na qual “desembocam todas as o que ainda permanece desconhecido e
correntes anteriores”. Entretanto, o oculto”, escrevia João.
comentário de Pedro se impõe por seu grande Em suma, ele se sentia próximo da
equilíbrio. Com efeito, ele reconhece os modéstia dos acadêmicos, uma atitude que
direitos da razão, mas somente até um ponto também estaria em consonância com os es-
em que submete a razão à fé. E esse seu tudiosos cristãos, se pensarmos que somente
equilíbrio foi certamente um dos motivos do Deus conhece completamente a verdadeira
sucesso de suas Sentenças. fifgflTl realidade do universo.
Claro, há verdades que o homem pode
alcançar, por meio dos sentidos, da razão e
da fé; mas também é preciso admitir com
muita franqueza que existem problemas
diante dos quais a razão faria muito bem em
os limi+es da razão e a suspender seus juízos e se deter. Eis, por
autoridade da lei exemplo, alguns problemas que obrigam a
razão a admitir seus próprios limites: a ques-
tão da origem da alma; os problemas da
Uma personagem característica do fim
providência, do acaso e do livre-arbítrio; a
do século XII foi João de Salisbury. Nascido
questão da infinidade dos números e da
na Inglaterra, precisamente em Salisbury, por
divisibilidade infinita das grandezas; o pro-
volta de 1110, João estudou na França, onde
blema dos universais etc. João não pretende
freqüentou a escola de Chartres, tendo sido
que não se discuta sobre essas questões,
aluno de Abelardo, como recorda o próprio mas exige que não se tenha como soluções
João: “A seus pés recebi os primeiros definitivas e absolutas as que que são apenas
rudimentos da arte lógica e absorvi com tentativas.
apaixonada avidez tudo o que vinha de sua
184
. .. Quifltã parte - ;A Escolástica nos séculos décimo primeiro e décimo segunde
Nõo subestimes portanto nenhuma forma de O estudante de valor deve ser humilde e
saber, porque toda ciência tem valor. Caso tenhas dócil, absolutamente alheio às ocupações mun-
tempo, não te eximas de ler os livros que se te danos e aos engodos das paixões, diligente e
apresentam: mesmo que deles não tires particular zeloso, disposto a aprender de bom grado algo de
utilidade, todavia deles nõo terás também nenhum todos; jamais deve ser presunçoso da própria
dano, porque, a meu parecer, nõo existe um escrito cultura, deve fugir como de comida envenenada
que não proponha algo de interessante, quando dos escritos que contêm doutrinas falsas, deve
examinado no tempo e no lugar devidos: pode tratar a fundo umo questão antes de formular seu
conter alguma notícia especial, que o leitor julgamento; deve preocupar-se de ser, nõo de
precavido poderá apreciar com maior prazer, parecer culto. Deverá preferir as palavras dos
quanto mais singular e preciosa for a informação. sábios e tê-las sempre presentes na mente, como
Não é um bem, todavia, aquilo que impede o modelo o ser imitado: se por vezes não conseguir
melhor: se não te é possível ler todos os livros, lê perceber uma passogem obscura, talvez pela
aqueles que são mais úteis para ti. Mesmo que profundidade dos conceitos, não prorromperá em
pudesses ler tudo, não deve- rias jornais colocar em invectivas, quase acreditando que nõo há nada de
todas as leituras o mesmo empenho: há alguns válido, a nõo ser aquilo que ele próprio está em
livros que é preciso ler, o fim de que não nos sejam grau de compreender.
totalmente desconhecidos, enquanto de outros Csta é a humildade que caracteriza os es-
devemos formar-nos ao menos um juízo, porque tudantes disciplinados.
freqüentemente arriscamo-nos o supervalorizar Hugo de São
justamente aquilo que ignoramos, e julgamos melhor Vítor,
quando temos algum conhecimento dos assuntos. Didascalicon.
Rgoro podes perceber por que a humildade
te é indispensável: não deixes de lodo nenhuma
ciência, mas esforça-te para aprender de bom
grado algo de todos,- depois, quando tiveres
alcançado certo grau de instrução, não desprezarás
ninguém; convém que adotes este comportamento. PEDRO LOMBARDO
Nestes últimos tempos, justamente por não ter
seguido estes princípios, algumas pessoas se
inflaram de orgulho: exaltavam com excessivo
complacência sua ciência e, crendo com absoluta
certeza serem grandes, pensavam que os outros
(também todos aqueles que jamais haviam
2 Sentenças sobre filosofia
conhecido) não fossem comparáveis a eles, nem e sobre teologia
teriam podido jamais se tornar iguais a eles. Desta
atitude derivou também o fato desconcertante que
certos tagarelas presunçosos tacharam de ingênuos Pedro Lombardo, em seu compêndio de
os antigos professores: pareciam convencidos de sentenças tiradas da tradição patrística, sustenta
que a sabedoria tivesse nascido com eles e que a utilidade da Filosofia apenas quando submetida
morreria com eles. Andavam dizendo que a à teologia: é esta atitude que se pode exprimir
linguagem dos textos divinos é de tal forma simples, com o célebre dito philo- sophia ancilla
que nõo preciso da explicação de nenhum professor theologiae.
poro ser compreendida: pode bastar a cada
estudonte a força de sua própria habilidade poro
explicar também as verdades mais profundas. Agostinho ensina: primeiro, que é necessário
Torciam o nariz e retorciam a boca, aludindo aos demonstrar segundo a autoridade das Sagradas
docentes de teologia; não percebiam que ofendiam Cscrituras que a fé seja assim; segundo, que contra
a Deus, enquonto andavam dizendo elegantemente os tagarelas raciocinadores, mais soberbos do que
que suas palavras são "simples", mas insinuando capazes, é preciso servir-se de razões católicas e
com malícia que são "insípidas". Não vos aconselho de comparações congruentes para a defesa e a
de modo algum a imitar tais indivíduos! afirmação do fé (.ISent., 2, 3).
Os doutos poderosos, que julgam sobre os
costumes, como Platão, Aristóteles, Pitágo- ras, são
anulados em comparação com Cristo, e nada
sabem; jazem mortos; sua sabedoria é estultícia
(Psalmum 140,7).
186 •
'' Quifltã parte - A Escolástica nos séculos décimo primeiro e clé.c.'imo segundo
De fato, tois argúcias e coisos semelhantes não se pode nem se pôde ter por meio da con-
têm lugar nas criaturas, mas o mistério da fé está templação das criaturas um suficiente conheci-
livre de argumentos filosóficos (III Sent., dist. 22). mento da Trindade sem a revelação da doutrina
Acrescentai a caridade à ciência e a ciência ou da inspiração interior. Daí que aqueles antigos
s©rá útil. Sozinha, com efeito, a ciência é inútil, filósofos quase na sombra e de longe viram a
com o caridade é útil; sozinha, porém, infla de verdade, faltando-lhes o intuito da Trindade
soberba, como para os demônios, que com termo (/Sent., 3, ó).
grego são denominados pela ciência; neles está a Por isso dizemos que esta distinção da
ciência sem a caridade (Epist. I od Corinthios, 8). suma Trindade, que a fé católica proclama, os
Por meio do céu e da terra e das outras antigos não a tiveram de nenhum modo 0 não a
criaturas, que eles compreenderam ser imensas e puderam ter sem a revelação da doutrina ou da
perpétuos, conheceram o próprio Criador inspiração interior. A revelação ocorre, com
incomparável, imenso, eterno ( €pist. od Romanos, efeito, de três modos; por meio das obras, por
I, 20, 23). meio da doutrina, por meio da inspiração. Deus
Não pode ser crido aquilo que pode ser lhes revelou a verdade por meio das obras, 0 não
percebido [...]. O qu0 é, com efeito, a fé senão por meio da doutrina ou da inspiração. CI0S,
crer aquilo que não vês? (III Sent., 22, 7). portanto, viram a V0rdade de longe, mas não se
C necessário qu©, conhecendo o Criador aproximaram dela por meio da humildade (€pist.
mediante seus efeitos, conheçamos a Trindade, od Romanos, I, 20-23).
cujo vestígio aparece nas criaturas (Çpist. ad Pedro Lombardo, em Gronde
Romonos, XI, 33-36). Antologia FHosofíco, vol. V,
foi demonstrado que nas criaturas se en- organizado por G. Di Napoli,
contra certa imagem da Trindade; com efeito, Marzorati.
A ESCOLÁSTICA NO
SÉCULO DÉCIMO
TERCEIRO
■ As grandes sistematizações da relação entre
razão e fé
Boaventura
Capítulo décimo segundo
26
9
(Sapítulo décimo segundo
2 ser possível
e o ser necessário
III. o a ri stotel i s mo
de y\veri^óis