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G. Reale - D.

Antiseri

HISTÓRIA DA
FILOSOFIA
Patrística e
Escolástica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reale, Giovanni
História da filosofia : patrística e escolástica, v. 2 / Giovanni Reale, Dario Antiseri;
[tradução Ivo Storniolo]. — São Paulo : Paulus, 2003.

Título original: Storia delia filosofia. Patrística e Scolastica.


Bibliografia.
ISBN 85-349-2042-7

1. Filosofia - História I. Antiseri, Dario. II. Título. III. Título: Patrística e Escolástica.

02-178 CDD-109

índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia : História 109

Título original
Storia delia filosofia - Volume II: Patrística e Scolastica. © Editrice LA SCUOLA,
Brescia, Itália, 1997
Tradução Ivo Storniolo
Revisão Zolferino Tonon
Impressão e acabamento PAULUS

2 a edição, 2005

© PAULUS - 2003 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax
(11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066 www.paulus.com.br*editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2042-7 ISBN 88-350-9218-3 (ed. original)
p fôse Kitac ão

Existem teorias, argumentações e ■k -k -k


disputas filosóficas pelo fato de existirem pro- A história da filosofia é a história dos
blemas filos óficos. Assim como na pesquisa
problemas filosóficos, das teorias filosóficas
científica idéias e teorias científicas são res- e das argumentações filosóficas. É a história
postas a problemas científicos, da mesma das disputas entre filósofos e dos erros dos
forma, analogicamente, na pesquisa filosófica filósofos. É sempre a história de novas
as teorias filosóficas são tentativas de tentativas de versar sobre questões
solução dos problemas filos óficos. inevitáveis, na esperança de conhecer sempre
Os problemas filosóficos, portanto,
existem, são inevitáveis e irreprimíveis; en- melhor a nós mesmos e de encontrar
volvem cada homem particular que não orientações para nossa vida e motivações
renuncie a pensar. A maioria desses pro- menos frágeis para nossas escolhas.
blemas não nos deixa em paz: Deus existe, ou A história da filosofia ocidental é a
existiríamos apenas nós, perdidos neste história das idéias que in-formaram, ou seja,
imenso universo? 0 mundo é um cosmo ou que deram forma à história do Ocidente. É um
um caos? A história humana tem sentido? Ese patrimônio para não ser dissipado, uma
tem, qualé? Ou, então, tudo riqueza que não se deve perder. E
- a glória e a miséria, as grandes conquistas e
exatamente para tal fim os problemas, as
os sofrimentos inocentes, vítimas e carrascos - teorias, as argumentações e as disputas
tudo acabará no absurdo, desprovido de filosóficas são analiticamente explicados,
expostos com a maior clareza poss ível.
qualquer sentido? E o homem: é livre e ★* *
responsável ou é um simples fragmento
insignificante do universo, determinado em Uma explicação que pretenda ser clara e
suas ações por rígidas leis naturais? A ciência detalhada, a mais compreensível na medida
pode nos dar certezas? O que é a verdade? do possível, e que ao mesmo tempo ofereça
Quais são as relações entre razão científica e explicações exaustivas comporta, todavia, um
fé religiosa? Quando podemos dizer que um "efeito perverso", pelo fato de que pode não
Estado é democrático? E quais são os raramente constituir um obstáculo ã
fundamentos da democracia? É possível obter "memorização" do complexo pensamento dos
uma justificação racional dos valores mais filósofos.
elevados? E quando é que somos racionais? Esta é a razão pela qual os autores
Eis, portanto, alguns dos problemas pensaram, seguindo o paradigma clássico do
filosóficos de fundo, que dizem respeito às Überweg, antepor à exposição analítíca dos
escolhas e ao destino de todo homem, e com problemas e das idéias dos diferentes
os quais se aventuraram as mentes mais filósofos uma síntese de tais problemas e
elevadas da humanidade, deixando-nos como idéias, concebida como instrumento didático e
herança um verdadeiro patrimônio de idéias, auxiliar para a memorização.
que constitui a identidade e a grande riqueza
do Ocidente.
p s e. K\+a<pão

* ** ★★★

Afirmou-se com justeza que, em linha Ao executar este complexo traçado, os


geral, um grande filósofo é o gênio de uma autores se inspiraram em cânones psico-
grande idéia: Platão e o mundo das idéias, pedagógicos precisos, a fim de agilizar a
Aristóteles e o conceito de Ser, Plotino e a memorização das idéias filosóficas, que são
concepção do Uno, Agostinho e a "terceira as mais difíceis de assimilar: seguiram o
navegação" sobre o lenho da cruz, Descartes método da repetição de alguns conceitos-
e o "cogito", Leibnizeas "mônadas”, Kanteo chave, assim como em círculos cada vez mais
transcendental, Hegel e a dialética, Marx e a amplos, que vão justamente da síntese à
alienação do trabalho, Kierke- gaard e o análise e aos textos. Tais repetições,
"singular", Bergson e a "duração", Wittgenstein retomadas e amplificadas de modo oportuno,
e os "jogos de linguagem", Popper e a ajudam, de modo extremamente eficaz, a fixar
"falsificabilidade" das teorias científicas, e na atenção e na memória os nexos fundantes
assim por diante. e as estruturas que sustentam o pensamento
Pois bem, os dois autores desta obra ocidental.
* * *
propõem um léxico filosófico, um dicionário
dos conceitos fundamentais dos diversos Buscou-se também oferecerão jovem,
filósofos, apresentados de maneira didática atualmente educado para o pensamento
totalmente nova. Se as sínteses iniciais são o visual, tabelas que representam sinotica-
instrumento didático da memorização, o mente mapas conceituais.
léxico foi idealizado e construído como Além disso, julgou-se oportuno enri-
instrumento da conceitualiza- ção; e, juntos, quecer o texto com vasta e seleta série de
uma espécie de chave que permita entrar nos imagens, que apresentam, além do rosto dos
escritos dos filósofos e deles apresentar filósofos, textos e momentos típicos da
interpretações que encontrem pontos de apoio discussão filosófica.
mais sólidos nos próprios textos. ★★ ★
Apresentamos, portanto, um texto ci-
Sínteses, análises, léxico ligam-se, entífica e didaticamente construído, com a
portanto, ã ampla e meditada escolha dos intenção de oferecer instrumentos adequados
textos, pois os dois autores da presente obra para introduzir nossos jovens a olhar para a
estão profundamente convencidos do fato de história dos problemas e das idéias filosóficas
que a compreensão de um filósofo se alcança como para a história grande, fascinante e
de modo adequado não só recebendo aquilo difícil dos esforços intelectuais que os mais
que o autor diz, mas lançando sondas elevados intelectos do Ocidente nos deixaram
intelectuais também nos modos e nos jargões como dom, mas também como empenho.
específicos dos textos filosóficos. G IOVAN NI RE ALE - D ARIO ANTISE RI
J7ndice CX^cxI

índice dos nomes, XIII a pureza e a humildade, 20; 10. A ressurreição


índice dos conceitos fundamentais, XVII
dos mortos, 21.

III. Para além do horizonte cultural


Primeira parte grego 22
1. O desenvolvimento retilíneo da história que
A REVOLUÇÃO tem como fim o Juízo universal, 22;
ESPIRITUAL DA 2. A nova “medida” do homem no pensa-
mento cristão, 23.
MENSAGEM BÍBLICA

Segunda parte

Capítulo primeiro A Bíblia, sua A PATRÍSTICA NA ÁREA


mensagem e suas influências CULTURAL DE LÍNGUA
sobre o pensamento ocidental — 3 GREGA
I. Estrutura e significado da Bíblia 3
1. O significado do termo “Bíblia”, 3;
2. Os escritos que constituem o Antigo Tes- Capítulo segundo Os problemas
tamento, 3; 3. Os vinte e sete livros do Novo
Testamento, 5; 4. O conceito de “Testamento”,
filosóficos essenciais que derivam do
6; 5. A inspiração divina da Bíblia, 8; 6. A encontro entre “fé” e “razão”.
importância da Bíblia em âmbito filosófico, 8. Fílon de Alexandria e a Gnose ___ 27
II. As idéias bíblicas que influíram I. Problemas emergentes do impacto
sobre o pensamento ocidental 10 com a Bíblia ------------------------- 27
1. Passagem do politeísmo grego ao mono- I. A questão da autenticidade dos textos
teísmo cristão, 11; 2. A criação a partir do nada, bíblicos, 27; 2. A questão da conciliabi- lidade
12; 3. A concepção antropocêntrica contida na do Antigo e do Novo Testamento, 28; 3. A
Bíblia, 12; 4. O respeito pelos mandamentos questão da identidade do cristão, 29; 4. Os
divinos: a virtude e o pecado, 13; 5. O conceito grandes problemas teológicos, 29; 5. O grande
de Providência na Bíblia, 14; 6. A desobediência Prólogo do Evangelho de João, 30.
a Deus resgatada pela paixão de Cristo, 15; 7. O
valor da fé e a participação no Divino, 17; 8. O II. Um precursor: Fílon de Alexandria
eros grego, o amor (agápe) cristão e a graça, 18; 31
9. Os valores fundamentais do cristianismo: 1. A “filosofia mosaica”, 32; 2. Deus, “Lo- gos”
e “Poder”, 32; 3. A antropologia filo- niana, 33;
4. A nova ética, 33.
VIII Dnc\i cei qecaI

III. AGn II. Gregório de Nissa e os Padres


ose 34 Capadócios 57
1. Significado do termo “gnose”, 34; 2. Os 1. A recuperação da cultura clássica dentro da
novos documentos gnósticos descobertos, 35; 3. fé, 57; 2. Realidade inteligível e mundo
Os traços essenciais da doutrina da gnose, 35; sensível, 58; 3. A doutrina do homem, 58;
4. A “gnose” como expressão da angústia de 4. A ascensão a Deus, 58.
uma época, 36.
T EXTOS -
Fílon de Alexandria: 1. A criação do mundo,
III. O Pseudo-Dionísio Areopagita 59
1. Formulação da teologia apofática, 59.
37; 2. A nulidade do homem, 38.
IV. Máximo o Confessor e a última
grande batalha cristológica 61
Capítulo terceiro Os apologistas gregos 1. Afirmação do dogma de Cristo “verdadeiro
e a Escola catequética de Alexandria 39 Deus e verdadeiro homem”, 61.
I. Os Apologistas gregos do século II: V. João Damasceno ____________ 62
Aristides, Justino, Taciano 39
1. Recuperação da filosofia aristotélica, 62.
I. Marcião Aristides, 39; 2. Justino Mártir, 39;
2.1. O primeiro platônico cristão, 39; 2.2. A T EXTOS-Gregório de Nissa: 1. Os dois planos da
doutrina do Logos, 39; 2.3. A doutrina da alma, realidade: sensível e supra-sensível, 63; Pseudo-
40; 2.4. A condenação de Justino à morte, 40; Dionísio Areopagita: 2. A concepção de Deus como
3. Taciano, 40; 4. Atenágoras, 41; 5. Teófilo de “acima de tudo ”, 65; Máximo o Confessor: 3. As
Antioquia, 41; 6. A Carta a Diogneto, 41. cinco divisões da natureza, 66; 4.0 amor, 66; 5. A
“liturgia cósmica”, 67.
II. A Escola catequética de Alexandria:
Clemente e Orígenes 43
1. Clemente e a verdadeira “gnose”, 43; 2. A
figura e os fundamentos do pensamento de
Orígenes, 44; 2.1. Vida e obras filosóficas, 44;
2.2. Doutrina da Trindade e Neoplatonismo,
44; 2.3. Criação, “apocatástase” e encarnação,
45; 2.4. Importância de Orígenes, 46. Terceira parte
TEXTos-Justino Mártir: 1. O itinerário filosófico
de Justino, 47; 2. O Logos é Cristo, 48; Carta a A PATRÍSTICA NA ÁREA
Diogneto: 3. Os cristãos são a alma do mundo, 49; CULTURAL DE LÍNGUA
Clemente de Alexandria: 4. A concepção platônica
de Deus, 50; 5. A beleza espiritual, 51; Orígenes: 6. LATINA
Sabedoria grega e mensagem cristã, 52; 7. A
apocatástase, 53.
Capítulo quinto A Patrística latina
Capítulo quarto antes de santo Agostinho________ 71
Os três luminares da Capadócia I. Minúcio Félix, Tertuliano e os
e as grandes figuras escritores cristãos até o século IV 71
do Pseudo-Dionísio Areopagita, I. O primeiro escrito apologético cristão-
Máximo o Confessor latino, 71; 2. Os fortes ataques de Minúcio Félix
contra os filósofos gregos, 72; 3. Para
e João Damasceno ________________ 55 Tertuliano, Atenas e Jerusalém nada têm em
I. A era áurea da Patrística e o Concilio comum, 72; 4. O fideísmo de Tertuliano: “credo
de Nicéia ___________________ 55 quia absurdum”, 72; 5. Influxos es- tóicos na
1. O edito de Milão e as disputas teológicas, 55; ontologia de Tertuliano, 73; 6. Escritores
2. O Concilio de Nicéia e a fixação do “credo”, cristãos do século III e dos inícios do IV, 73; 7.
56. Tradutores, comentadores e eruditos cristãos
do século IV, 73.
II. As figuras de Ambrósio, Jerônimo e
Rufino 74
JTudice

1. Ambrósio, 74; 2. Jerônimo e Rufino, 74. II. As Escolas monacais, episcopais e


Textos - Minúcio Félix:Concordância entre filósofos
1. palatinas __________________ 121
e cristãos, 76; Tertuliano: 2. A filosofia e o 1. A Escolástica e os vários tipos de escola da
cristianismo estão em contradição, 77; Ambrósio: 3. Idade Média, 121; 2. A escola palatina criada
Os deveres, 80. por Alcuíno, 122.
III. A Universidade ______________ 123
1. As Universidades de Bolonha e Paris, 123;
Capítulo sexto
2. Efeitos explosivos da Universidade, 124;
Santo 3. Razão e fé, 125; 4. Faculdade das artes e
Agostinho Faculdade de teologia, 126; 5. A “Cidade de
e o apogeu da Patrística _________ 81 Deus” de Agostinho, 127.
I. A vida, a evolução espiritual e as IV. Joaquim de Fiore____________ 128
obras de santo Agostinho — 81 1. A concepção trinitária da história, 128.
I. A vida, 81; 2. A evolução espiritual, 82; 3. As
obras, 84. Capítulo oitavo O surgimento da
II. Fé, filosofia e vida no pensamento de Escolástica e seus desenvolvimentos de
Agostinho — 86 Boécio a Escoto Eriúgena ________ 129
I. O filosofar na fé, 88; 2. A descoberta da I. A obra e o pensamento de Severino
pessoa e a metafísica da interioridade, 89; 3. A
verdade e a iluminação, 90; 4. Deus, 91;
Boécio ______________________ 129
5. A Trindade, 93; 6. A doutrina da criação, 94;
I. Boécio: “o último dos romanos e o primeiro
dos escolásticos”, 129; 2. Boécio e a lógica, 130;
7. A doutrina das Idéias e das razões seminais,
95; 8. A eternidade e a estrutura da tempo- 3.0 De consolatione philosophiae: Deus é a própria
ralidade, 97; 9. O mal e seu estatuto ontológi- felicidade, 131; 4. O problema do mal e a
co, 97; 10. A vontade, a liberdade, a graça, 98; questão da liberdade, 132;
II. A “Cidade terrena” e a “Cidade divina”, 5. Razão e fé em Boécio, 133; 6. Outros autores
99; 12. A essência do homem é o amor, 100. do século VI ao século VIII, 133.
II. João Escoto Eriúgena _________ 135
M APA CONCEITUAL - A centralidade da Trindade divina,
1. A figura e a obra de Escoto Eriúgena, 135;
101.
2. Escoto Eriúgena e o Pseudo-Dionísio, 136;
T EXTOS-Agostinho: l.A terceira navegação, 102; 2. O 3. O De divisione naturae, 137; 4. A razão em
círculo hermenêutico entre razão e fé, 104; 3. A função da fé, 138.
natureza da Verdade, 106; 4. A iluminação, 106; 5. A T EXTOS -Boécio:
1. A consolação da filosofia, 139;
natureza do Bem, 107; Escoto Eriúgena: 2. A quadrúplice divisão da
6. As “Idéias” como pensamentos de Deus, 110; 7. A natureza, 143.
criação do tempo e sua natureza, 112; 8. O “sábado”
de felicidade eterna na Cidade de Deus e o “oitavo
dia”, 114.

Quarta parte
GÊNESE Quinta parte
DA ESCOLÁSTICA A ESCOLÁSTICA NOS
SÉCULOS DÉCIMO
PRIMEIRO E DÉCIMO
Capítulo sétimo A filosofia na Idade
Média: a “Escolástica”, as “Escolas”, as
SEGUNDO
“Universidades” _______________ 119
I. Desenvolvimentos do pensamento Capítulo nono
medieval 119 Anselmo de Aosta _____________ 147
1. O quadro cronológico, 119. 1. A vida e as obras de Anselmo, 148; 2. Cen-
tralidade do problema de Deus em Ansel
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mo, 149; 3. As provas a posteriori da existência I. As Escolas de Chartres e de São


de Deus, 149; 4. A prova a priori da existência Vítor_______________________ 177
de Deus ou “argumento ontológico”, 150; 5.
I. Tradição e inovação, 177; 2. As artes do
Críticas e consensos ao argumento ontológico,
trívio em perspectiva religiosa, 178; 3. O Timeu
150; 6. Deus e o homem, 151; 7. A razão dentro
de Platão interpretado à luz do Gênesis, 179; 4.
do traçado da fé, 153; 8. Características do
O Didascalicon de Hugo de São Vítor, 180; 5. A
“realismo” de Anselmo, 153.
mística e Ricardo de São Vítor, 180.
M APA CONCEITUAI, - Deus e o homem, 155.
II. Pedro Lombardo e João de Salisbury
Tixios-Anselmo de Aosta: 1.O argumento on- 182
tológico, 156; 2. A disputa com Gaunihn, 157;
1. Os livros das Sentenças de Pedro Lombardo,
3.AmelmorespondeàsobjeçõesdeGaunilon,160.
182; 2. João de Salisbury: os limites da razão e
a autoridade da lei, 183.
Capítulo décimo T EXTOS -Hugo de São Vítor: 1. O valor dos clássicos,
Abelardo e a grande controvérsia 184; Pedro Lombardo: 2. Sentenças sobre filosofia e
sobre os universais _____________ 161 sobre teologia, 185.

I. Pedro Abelardo ______________ 161


I. A vida e as obras, 162; 2. A “dúvida” e as
“regras da pesquisa”, 162; 3. A “ratio” e seu
papel na teologia, 163; 4. Princípios fundamen- Sexta parte
tais da ética, 164; 5. “Intelligo utcredam”, 164.
II. A grande controvérsia sobre os
A ESCOLÁSTICA NO
universais 166 SÉCULO DÉCIMO
1. Os estudos “gramaticais”, 166; 2. A questão
da “dialética”, 167; 3.0 problema dos uni-
TERCEIRO
versais, 167; 3.1. A questão da relação dos
nomes e dos conceitos mentais com a realidade,
167; 3.2. A solução do realismo exagerado, 168; Capítulo décimo segundo A
3.3. A solução nominalista, 168; filosofia árabe e a hebraica, a
3.4. A solução moderada de Abelardo: o uni-
penetração de Aristóteles no
versal como “sermo” extraído da “ratio” sobre
a base do “status communis” dos indivíduos, Ocidente e a mediação entre
169; aristotelismo
3.5. Implicações lógicas e metafísicas da posi- e cristianismo __________________ 189
ção “conceitualista” de Abelardo, 169; 3.6. A
posição do “realismo moderado” que será as- I. A situação política e cultural no
sumida por santo Tomás e se imporá como clás- século XIII __________________ 189
sica, 170; 3.7. Quadro sinótico geral do pro- I. Situação político-social e instituições ecle-
blema dos universais e das suas soluções, 170. siásticas, 189; 2. A situação cultural, 190.
M APA CONCEITUAL - Disputa sobre os universais, 171. II. O aristotelismo de Avicena ____ 191
T EXTOS- Abelardo: 1. Confissões autobiográficas a um 1. A figura e a obra, 191; 2. O ser possível e o
amigo, 172; 2. A lógica a serviço da teologia, 174; ser necessário, 192; 3. A “lógica da geração” e a
Porfírio: 3. A questão dos universais, 175. influência de Avicena, 193.
III. O aristotelismo de Averróis„ 194
Capítulo décimo primeiro 1. A figura e as obras, 194; 2. Primado da
Centros promotores de cultura filosofia e eternidade do mundo, 195; 3. Uni-
do século décimo segundo. cidade do intelecto humano, 196; 4. Con-
seqüências da unicidade do intelecto, 197;
As escolas de Chartres e de São Vítor,
5. As primeiras condenações do aristotelismo,
Pedro Lombardo e João de Salisbury 197.
______________________________ 177
M APA CONCEITUAL - Averróis: A teoria do intelecto, 199.
tUrvdice ge^al

IV. A filosofia hebraica _________ 200 M APA C ONCEITUAI . - O conhecimento humano das leis,
1. Influxos hebraicos sobre o Ocidente: Avi- 230.
cebron, 200; 2. Moisés Maimônides, 200. V. O “filosofar na fé” em Tomás— 231
V. Alberto Magno ______________ 202 1. A fé, guia da razão, 231.
1. O programa de pesquisa de Alberto Magno, T EXTOS - Tomás: 1. Sobre a “cientificidade” da
202; 2. A distinção entre filosofia e teologia, doutrina sagrada, 233; 2. Ente e essência, 235; 3. A
203; 3. Filósofos gregos e teólogos cristãos, 204. natureza da alma, 241; 4. As cinco vias para
demonstrar a existência de Deus, 245; 5. Lei eterna,
T EXTOS- Avicena: 1. A teoria dos intelectos, 205;
lei natural, lei humana e lei divina, 248.
Alberto Magno: 2. A natureza do bem, 206.

Capítulo décimo quarto


Capítulo décimo terceiro A O movimento franciscano
grande síntese e Boaventura de
de Tomás de Aquino ___________ 211
Bagnoregio ------------------------------ 253
I. A vida e as obras de Tomás — 211 I. O franciscanismo ---------------------- 253
I. Tomás, um dos maiores pensadores de 1. São Francisco e o franciscanismo, 253;
todos os tempos, 211; 2. Razão e fé, filosofia e 2. Alexandre de Hales, 254.
teologia, 212; 3. A teologia não substitui a
filosofia, 213. II. São Boaventura e os vértices da
II. A ontologia _________________ 215 Escola franciscana 255
1. São Boaventura: a vida e as obras, 256;
1. O conceito de ente, 216; 2. O ente lógico, 216;
2. A posição de Boaventura contra o aristote-
3. O ente real e a distinção entre essência e
existência, 216; 4. Novidade da perspectiva lismo averroísta, 256; 3. Na origem dos erros
do aristotelismo, 257; 4. O exemplarismo, 258;
tomista em relação à ontologia grega, 217; 5. Os
5. As “rationes seminales”, 259; 6. Co-
transcendentais: o ente como uno, verdadeiro,
bom, 217; 5.1. A unidade do ente (“omne ens nhecimento humano e iluminação divina, 259;
7. Deus, o homem e a pluralidade das formas,
est unum”), 217; 5.2. A verdade do ente (“omne
260; 8. Boaventura e Tomás: “uma” fé e “duas”
ens est verum”), 218; 5.3. A bondade do ente (“
omne ens est bonum ”), 219; filosofias, 261.
6. A analogia do ser, 219; 7. Transcendência de M APA C ONCEITUAL - Boaventura: A criação, 262.
Deus e teologia negativa, 220. T EXTOS -Boaventura: 1. As seis etapas para chegar a
M APA C ONCEITUAI . - A ontologia, 221. Deus, 263.

III. A teologia: as cinco vias para provar


a existência de Deus 222 Capítulo décimo quinto
1. Conhecimento “a posteriori” da existência Averroísmo latino,
de Deus, 222; 2. A primeira via, ou via do neo-agostinismo
movimento, 223; 3. A segunda via, ou via da e filosofia experimental
causalidade eficiente, 223; 4. A terceira via, ou no século décimo terceiro ------------ 269
via da contingência, 224; 5. A quarta via, ou via
dos graus de perfeição, 225; I. Siger de Brabante e o averroísmo
6. A quinta via, ou via do finalismo, 225. latino 269
M APA C ONCF . ITUAL -As cinco provas da existência de I. O averroísmo latino, 269; 2. Siger de Bra-
bante e a doutrina da dupla verdade, 270;
Deus, 226.
3. Os franciscanos em polêmica contra o
IV. A teoria do direito __________ 227 aristotelismo e o relançamento do agostinis-
1. O livre-arbítrio, 227; 2. “Lex aeterna”, “lex mo, 271.
naturalis”, “lex humana”, “lex divina”, 228.
II. A filosofia experimental e as
primeiras pesquisas científicas na
era da Escolástica 272
ce gemi

1. Roberto Grosseteste, 272; 2. Roger Bacon, universal e o nominalismo, 300; 7. A “navalha


273; 2.1. A vida e as obras, 273; 2.2. An- de Ockham” e a dissolução da metafísica
tecipações por parte de Roger Bacon de idéias tradicional, 301; 8. A nova lógica, 302; 9. O
que Francis Bacon tornará famosas no séc. XVI, problema da existência de Deus, 303; 10. Con-
274; 2.3. A experiência como base de todo tra a teocracia, a favor do pluralismo, 304.
conhecimento, 274; 2.4. Problemas físicos e
M APA CONCEITUAL - A teoria do conhecimento, 306.
técnicos em Bacon, 274; 2.5. As idéias de Bacon
sobre as traduções, 275; 3. Pesquisas II. Ockham e a ciência dos Ockamistas
tecnológicas na Idade Média, 276. 307
1. O novo método da pesquisa científica
Capítulo décimo sexto João Duns proposto por Ockham, 307; 1.1. Fidelidade à
Escoto 277 I. A vida e a obra experiência, 307; 1.2. E preciso buscar não a
277 essência mas a função dos fenômenos, 308; 1.3.
Valorização de hipóteses explicativas, 308; 1.4.
I. O “Doutor sutil”, 277; 2. Distinção entre Para uma concepção do universo como
filosofia e teologia, 278. homogêneo, 308; 2. Os Ockhamistas e a ciência
II. A metafísica ------------------------- 279 aristotélica, 308;
2.1. Para um novo paradigma científico que
1. A univocidade do ente, 280; 2. O ente
ultrapassa o aristotelismo, 308; 2.2. Críticas de
unívoco, objeto primeiro do intelecto, 281;
Buridan a Aristóteles com o método da
3. A ascensão a Deus, 282; 4. A insuficiência do falsificação empírica, 309; 2.3. Outros
conceito de ente infinito, 282; 5.0 princípio de contributos significativos, 310; 3. Os Ockha-
individuação e a “haecceitas”, 283. mistas e a ciência de Galileu, 310.
III. A concepção do direito ---------- 285 T EXTOS- Guilherme de Ockam: 1. A lógica dos
1. O voluntarismo e o direito natural, 285. termos, 312.
M APA CONCEITUAL - A univocidade do ente, 287.

T EXTOS -
Duns Escoto: 1. A univocidade do ente, 288; Capítulo décimo oitavo Últimas figuras
2. O princípio de individuação, 290 e fim do pensamento medieval _ 321 I.
O problema do “primado” político
321
I. Egídio Romano e João de Paris: tem primado
a Igreja ou o Império?, 321; 2. O Defensor pacis
de Marsílio de Pádua, 322.
Sétima parte
II. Dois reformadores pré-luteranos:
A ESCOLÁSTICA NO João Wyclif e João Huss 324
1. João Wyclif, 324; 2. João Huss, 325.
SÉCULO DÉCIMO
III. Mestre Eckhart e a mística
QUARTO especulativa alemã _ 326
1. As razões da mística especulativa, 326;
2. Mestre Eckhart: o homem e o mundo são
Capítulo décimo sétimo Guilherme de nada sem Deus, 327; 3. O retorno do homem a
Ockham, os Ockhamistas e a crise da Deus, 328; 4. Oposições suscitadas por Eckhart
Escolástica 295 I. Guilherme de e seus discípulos, 328.
T EXTOS - Mestre Eckhart: 1. Ver Deus nas criaturas e
Ockham 295 as criaturas em Deus é fonte de verdadeira consolação,
1. A situação histórico-social do séc. XIV, 296;
330.
2. Guilherme de Ockham: a figura e as obras, Bibliografia do segundo volume, 333.
298; 3. Independência da fé em relação à razão,
299; 4. O empirismo e o primado do indivíduo,
299; 5. Conhecimento intuitivo e conhecimento
abstrato, 300; 6. O
ZJnclice de nomes*

A 170,175,178,185,189,190, Berrugue te P., 286 B OAV EN TURA D E


193,194,195,196,198,202, B AGNO REGIO , 119, 120, 137, 147, 151,
Abelardo P., 119, 120, 122, 146, 161 -
203,204,206,209,218,219, 187,
165,166,167,168,169, 170,171, 172-175, 178,
223,225,231,232,233,234, 188, 190, 193, 198,
182, 183, 190 Adeoda to, 82
235,242,243,244,245,248, 212, 254,255 -262,263 -
249,250,251,254,257,258, 268,271,
277,286 Boécio de
Agostinho de Hipona, 30, 44, 69, 70, 71, 73,
270,271,273,274,275,278, 284, 308, DáCia, 270 Boécio S.,
75, 81-101, 102-
309, 313, 326 A RNÓ BIO , 73 119,120,122,129 -1 34, 139-
116, 119,120,122,126,127,
A TANÁS IO DE A LEXAN DRIA , 28, 56 143,162, 207, 212, 237, 275
158,162,175,185,202,203,
204,206,227,228,233,242, 243,248,249,
A TENÁGO RAS DE A TENAS , 39, 41 A VERRÓI S , Bonifác io VIII, papa,
250,251,254, 257, 258, 271, 273, 330 126, 191, 194-199, 200, 271,277,296, 297, 322 Bottice lli S.,
Alberto Magno, 137, 190, 198, 202- 201,253,257,258,269,270, 271,274,284 92, 96 B RADWA RDINE T., 310, 324
204, 206-210, 211, 212, 270, 272, 200
A VIC F . BRON , B U RIDAN J., 305, 307, 309 -310
273, 276, 326, 329 Alcuíno de York, Avicena, 126, 191-193, 194, 195, 200, 201,
121, 122, 134, 205-206, 235, 236, 237,
135 238,241,257,284

A LEXAN DRE III, P APA , 128 A LEXAN DRE DE


A F RO DÍ SIA , 130 A LEXAN DRE DE H ALES ,
190,198,253,
Magno,
254,
275
256 Alexandre
Alpago A., 205 c
Ambrósio, 74, 80, 81, 82, 83, 84, 120
Amélio, 89 Amônio Sacas, 45 Anselmo de C ALC I DIO , 73 Calisto II, antipapa,
Aosta, 119, 120, 122, 145, 146, 147-155,
B 128Carlos IV, imperador, 297
156-160, Carlos Magno, 121, 122, 134 Carlos
162,164,166,169,171,190, 257, 260 B A CON F., 272, 274 B A CON R., o Calvo, imperador, 5, 135,

A N SELM O DE L AON , 162 A RC ES ILAU DE 272, 273-276, 277 B ALTHA SAR , 136

P I TANE , 72 Á RI O , 56 H.U. VON , 62 B A S ( LIDES , 36 C A RN ÉADES , 72

A RIS TÓ TELES , 8, 11, 12, 14, 19, 21, 62, 92, 97, B ASÍ LIO DE C ESA RÉIA , 56, 57 Beato C A RP ÓC RATES , 36
112, 120, 129, Angélic o, 244 Beatus de Carta A Diogneto, 39, 41-42,49-50
130,131,141,162,166,168, Lié ba na, 9 B ECKET , T., 183 B EDA , O Cassiodoro M.A., 122, 134 Celino de
V EN ERÁ VEL , 122, 134 B F . RENGÁ RIO DE Nese, 126 Chenu M.-D., 233 Cícero,

T OU RS , 167 Bergognone, Marco Túlio, 73, 74, 82,

Ambrósio 122, 249, 250 C INO DE P IS TÓ IA , 126

de Fossa no dito o, 75 C IP RIANO DE C A RTAGO , 71, 73, 130 C LEANTO

B ERNA RDO DE C HARTRES , 166, 177, 178, 179, DE A S SOS , 76 Clemente IV, pa pa, 274

184 B ERNA RDO DE C LARA VA L , 254

* Neste índic e:
-repor tam-se em versal -versa lete os nomes dos filós ofo s e dos home ns de cultura liga dos ao desenvolvi -
mento do pe nsamento oc idental, para os qua is indicam -se em negrito as páginas em que o autor é tratado
de acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-repor tam-se em itá lico os nome s dos críticos;
-repor tam-se em redondo todos os nomes nã o perte nce ntes a os agrupamentos anteriores.
ÓnJi ice de nomes

C LEMEN TE DE A LEXAN DRIA , 43-44, S0-S1, 3


76 C LEMEN TE R O MANO , 29, 43
CONSTANTINO, IMPERADOR, 55, 73
Gaddi T., 182 G A LILEI G., 310 Galla Jaeger W., 57
C OU SIN V., 130 C RIS IPO DE S Ô LI ,12, 76
Plac ídia, 16 G AUNILON , 147, 151, J ERÔNIMO , 6, 74-75, 120, 234 J ERÔNIMO
C RI SP O , 73 C ROC E B., 8
157, 160 Gelásio I, papa, 321, 322 DE Á S CO LI , 274 J OÃO C LÍMA CO , 68 J OÃO

G HERA RDO DE C REM ONA , 192 G I LBERTO D AMA SC ENO , 26, 62, 68, 120, 235, 245

P ORRETANO , 177, 178 G ONSA LVO J OÃO DE J AN DUN , 322 J OÃO DE P A RIS , 321-

H I SPANO , 277 G OTES CALCO , 135 322 I OÁO DE S A LI SBU RY , 146, 166, 178,
G REGÓ RIO M A GNO , PAPA , 120, 208 182,183
Gregório VII, papa, 128, 296 João Evangelista, 1, 5, 19, 27, 30,
Gregório IX, papa, 19 7 Gregório 32, 102, 103,327 J OÃO I BN D AHU T , 200
J OÃO XXII, 297, 298, 324, 328
V X, papa, 212, 276 G REGÓ RIO
N A ZIAN ZENO , 56, 57, 66 G REGÓ RIO DE Joaquim De Fiore, 128 J U STINIANO ,
N I SSA , 56 G ROUS SET , R., 24 G UA LTIER DE IMPERADOR, 44, 121 J U STINO M ÁRTI R ,
Dàmaso, papa, 74 D ANTE A LI GHI ERI ,321,
B RU G ES , 254 G UI LH ERME II, o R UI VO , REI 39-40, 47-48, 49, 76
322 Demétrio (bispo), 44 D E R EGINA J.,
DA I NG LATERRA , 148 G UI LH ERME DE Justo de Gand, 286
271 D ES CARTES R., 90, 147, 151 D E L A
M A RE G., 271 122 D UNS
D ONATO , H F . LI O , A U XERRE , 198 G UI LH ERME DE C HAM P EAUX ,

J., 119,120,147,151,
E S COTO 162,166, 168, 171, 172, 173, 180
190,192,193,277 -2 87,288 292, G UI LHERM E DE C ONCH ES , 177, 179, 180
301,303,324 G UI LHERM E DE M O ERBECK E , 326
G UNDIS SALVI D., 192, 200

K
KantI., 147, 151 Kilwardby R.,

271, 297, 322 K UHN T., 310

Ecberto, 134
E G ÍDIO DE L A SS INES , 270
E GÍDIO R O MANO , 269,271, 321 -322 ■H
Elias, 277
E P ICU RO , 24
Hayim, 4 H ELOÍ SA , 162, 165 H EN RIQU E I,
o L EÃ O , REI DA I NG LATERRA , 148 L
E P ÍFAN ES , 36
E SCO TO E RIÚG ENA J., 61, 66, 117, 118, H EN RIQUE VI DF . S U F . VIA , 128 H EN RIQU E

119, 122, 135-138, 143144, 148, 166, DF , G AN D , 271 H EN RIQU E S USO , 328 L A CTÂN CIO , L Ú CIO F I RM IANO , 71, 73
168, 190 E STÊVÃO DE P ROVIN S , 198 H ERÁ CLIDES P ÔN TI CO , 76 H ERÁCLI TO , 48 Landolfo de A quino, 211 L EI BNI Z

E USÉBIO D E C ESA RÉIA , 55 H ESÍ ODO , 76 H I LÁ RIO DF . P OI TI ERS , 73 G. W., 147, 151 Leão XIII, papa,
Holder A133 261 Leônidas, pa i de Orígenes,
H UGO D E S ÃO V Í TO R , 137,177,180, 181, 44 Lippi F., 167
184-185, 235, 254 Huss J., 305, 325 Lucas Eva nge lis ta, 5, 8, 15
Ludovic o o Bávaro, impera dor,
297, 299
L UTF . RO M., 304

Fabro C., 220 F AU STO , 83


Filipe o Belo, r ei da Fra nça, 277,
297
Fílon de Ale xandria, 26, 28, 31-34,
M
37-38, 39, 74, 91, 110 F Í RMI CO
M ATERNO , J ÚLIO , 73 Francisco de J Macrina, 63, 64
Assis, 253, 263, 267 Frederico I M AC RÓ BI O , A MBRÓ SIO T EO DÓ SIO , 73
Barbarroxa, impera dor, INÁCIO de Antioquia, 29 Inocêncio III, M F . S TRF . E CKHA RT ,293, 326, 327 328,
123, 128 papa, 189, 190, 296, 322 330-331 Magno, 234
Frederic o II de Suévia, I SAC J U DEU , 200 I S I DO RO , M AI MÔNI DES M., 200-201
impera dor, ( GN ÓS TIC O ), 36 I SI DO RO DE M A RC IANO 39
A RIS TIDF . S ,
189, 211 S EVILHA , 122 M A RC IANO C AP ELLA , 136,
Fulberto, 177 178
- TI . j XV
unaice de nomes

M ARCIÀO DH S INOPE , gnóstico 179 Pinturicchio, Bernardino de Símaco, Quinto Auré lio Mêmio,
Marcos Eva ngelis ta, 5, 19, 20 Betto dito o, 94 P I RRO D F . E LIDA , 72 130
M ARSÍ LIOD E P ÁDUA , 321,322-323,324 P I TÁGO RAS , 40, 72, 185 P LA TÃO , 8, 11, S IMÃ O DF A U THI E , 198

M ÁXIMO O C ON FESSOR , 25, 26, 6162, 12, 14, 17, 18, 21, 33,39,40,50, 62, S IN ÉS IO DE C I RFNF , 56
66-68, 119, 136 M A TEUS D F , 72, 73,89, 91, 95, 102, 106, 107, S ÓC RA TES , 21, 24, 48,
A CQUA SPA RTA , 269, 271 Mateus 110, 111,112,114,115,120,130, 249
135,177,179,180,184,185, 231,232,
Eva ngelis ta, 5, 7, 15, 20 Melitã o
249,257, 279, 326 P I . O TINO ,
G., 256 M INÚ CIO F ÉLI X , 71, 72, 76-77
11,12,21,35,45, 81, 84, 88,89,91, 92,
Moeller C., 24 Mônica, 81, 82
95, 96, 112 Pohlenz M., 15, 84 T
P OLI CARPO D E E SMI RNA , 29 P ORFÍ RIO DE
T I RO , 81, 84, 89, 129, 130, 162, 175 -
39, 40-41 T AULER J.,
T ACIAN O , O A S SÍ RIO ,
176, 278, 289 P RI SCIANO D E L ÍDIA , 122 328
P ROCLO , 327
Tempier E., 269,270,271,297, 322
Pseudo -Dionís io Areopa gita, 26, Teodora, 211
A) 59-60, 65-66, 135, 136, 137, 143, Teodorico, impera dor, 129, 131
212, 264, 327 P TO LOM EU , C LÁUDIO , 178 T EODO RI CO D F . C HA RTRES , 177, 179,
P TOLOM EU F ILAD ELFO , 6
N ÉDÉLEC H., 271 N EM ÉSI O DE E M ESA , 56 180
T EO DO RICO DE F RIBU RG O , 276 T EÓF ILO DE
N ES TÓ RIO DE A N TI OQUIA , 30 N ICO LAU DE
A N TI OQUIA , 39, 41, 58 T ERTU LIANO Q.
A U TRECOU RT , 305 N I COLAU DE O RESM E ,
S ÉTIMO F LO RENTF ., 71, 72-73, 77-79
305, 307, 310 N OVA CIANO , 71, 73
T OMÁ S DE A QUINO , 62, 119, 120,
137, 147, 151, 166,
167, 170, 171, 188, 190, 192,
193, 198, 201, 203, 204, 211 -
232,233-25 2,259,261, 269,
271, 277, 286, 301, 303, 322,
O
Q 326, 328 Tomás de Módena,
202
Q UAS TEN , 43
119, 120,
O CKHAM , G UI LH ERME DF ., Q UI RINO , 48
171,294,295,296,298 -3 06, 307,
308,309,312-320, 321, 324, 326, 327,
329 O RÍG EN ES , O C RISTÃO , 43,44-46,52-
54
R
V
Raffaello Sanzio, 120
Reginaldo de Piper no, V A LE N TI M , 36 Valério (bis po), 82
P 212 Rena n E., 269 S., 182, 216 Vítor IV,
V A N N I R OV I G H I

R ICA RDO DE M I DDLF . TOWN , 271 R I CARDO antipa pa, 128 V IT O RI N O , G A I O M Á RI O ,


Pacher M., 85 P ANTF . N O , 43 DFSão V ÍTOR , 177, 180181,254 71, 73, 84, 130
12, 24 Pasc oal
P A RM Ê NI D E S , Rober to de C ourçon, 190, 197
III, antipapa, 128 P ATRÍ CI O , R OBERTO DE M ELUN , 235 R OBERTO
82 G ROS SETF . S TF ., 272-273, 274, 275, 276,
Paulo de Tarso, 3, 5,16,17,19,21, 277 R OG ER DE M A RS TON , 271 R O SC EUNO
27, 52, 59, 65, 79, 80, 83, DF C OM PI ÉGN E , 162,166, 168, 169, 171
136, 183, 246, 328 Peckham R U FINO , 74-75 Rusticia na, 129
w
J„ 271, 277, 297 P ED RO D A MI ÃO , 166 329
R U YS BRO FCK , J. DF ,
P ED RO L O M BA RD O , 146, 182 -183, 185-186,

202, 212, 235, 277, 278,283,298 W I TELO , 276


W YCI . I F J., 304, 305,324 -325
P ED RO , P A PA , 8 P F . D R O D E J OÃ O O L IV I , 27 1

84 P ER E GR I NO P., 273 P E TR AR CA F.,


P E LÁ GI O ,

89, 297 P ED RO , O V E N ERÁ V F . I ., 1 62 PlLATOS,


PÔNCIO, 48

2
Sala dino, sultã o, 200 S ÊN ECA , Z ENÀO DE C Í CIO , 12

L Ú CIO A N F XI , 71, 73 S IG ER DF . Zósimo, papa, 8 4


B RA BAN TE , 269, 270-271 Zurbará n,
Francisc o de, 232
ZJndice de concei+os
jundame ufa is

agápe, 19 alegoria, 32 analogia,


220 apocatástase, 46
argumento ontológico, 150

monoteísmo, 11

conceitualismo, 169
criacionismo, 12
navalha de Ockham, 302
nominalismo, 169

ente e essência, 193

realismo exagerado, 168


realismo moderado, 170

fé e razão, 88

El
haecceitas, 284 teologia apofática, 59
transcendentais, 219

m
iluminação, 91 intelecto
“possível” e intelecto universais, 154
“agente”, 196 univocidade, 281
PATRÍSTICA E
ESCOLÁSTICA
A REVOLUÇÃO
ESPIRITUAL DA
MENSAGEM BÍBLICA

“Em verdade, em verdade, vos digo:


ninguém poderá vero Reino de Deus se
não nascer de novo.”

Evangelho segundo João


Capítulo primeiro

A Bíblia, sua mensagem e suas influências sobre


o pensamento ocidental
CSapítulo primeiro

jA BíbliCK,
sua. mensagem e suas influências sobre
o pensamen+o ocidenfal

I. (Ss+m+um e sigmficado da 3íblia

• Com o nome de Bíblia (do grego biblía = "livros") indicam-se 73 livros con-
siderados inspirados, distintos em Antigo Testamento (46 livros) e Novo Testamen-
to (27 livros).
O Antigo Testamento divide-se por sua vez em livros his- ,
tóricos, livros didáticos e livros proféticos. Os primeiros cinco ^u.e |3 livros
históricos (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deute- ' ronômio) são os
livros da Lei ou Pentateuco.
O Novo Testamento é composto pelos quatro Evangelhos, pelas Cartas de
Paulo, pelas Cartas dos Apóstolos e pelo Apocalipse.
"Testamento" traduz o termo grego diathéke e indica o pacto ou aliança que
Deus ofereceu a Israel.

• A mensagem bíblica, mesmo que não tenha sido inspirada pela razão e sim
pela fé, teve tal impacto histórico e incidiu de modo tão profundo na concepção do
mundo e da natureza do homem, que deve ser considerada
também do ponto de vista filosófico. A importância
Neste sentido, ela trouxe algumas contribuições revolu- histórico-cultural
cionárias para a história do pensamento. da Bíblia
-> § 6

O significado do Os livros da Bíblia dividem-se em dois


grandes grupos:
termo ^Bíbli a"
a) os do Antigo Testamento (redigidos a
partir de aproximadamente 1300 a.C. até 100
“Bíblia”, do grego biblía, significa “li- a.C.; entretanto, os primeiros livros baseiam-se
vros”. E um plural (de biblíon) que, no latim e em uma tradição oral antiquíssima;
nas línguas modernas, foi transliterado como b) os do Novo Testamento, que remontam
singular para indicar o “livro” por excelência. todos ao século I d. C., centrando-se in-
Na realidade, a Bíblia não é um só livro, mas teiramente na nova mensagem de Cristo.
coletânea de uma série de livros, cada qual
apresentando um título e peculiaridades
específicas, caracterizado também por extensão 2 CDs escritos que constituem o
diversa e diferentes estilos literários e
redacionais. Chegou-se a falar até mesmo da Antigo Xestamento
Bíblia como de uma “coletânea de coletâneas”
de livros, já que, por seu turno, alguns livros Os livros do Antigo Testamento re-
são precisamente coletâneas de vários livros. conhecidos como canônicos pela Igreja católica
(ou seja, que contêm o “cânon” ou
Primeira parte - . A rev olução espiritual da mensagem bí blica

a “regra” em que deve se basear o crente no que


se refere à verdade da fé) são quarenta e seis,
subdivididos da seguinte maneira:
Livros históricos:
1. Gênesis
2. Êxodo
3. Levítico
4. Números
5. Deuteronômio
(os livros de Moisés — 1/5 — de-
nominam-se Pentateuco, que significa,
precisamente, “conjunto de cinco livros”.
Também são chamados Torá, que quer dizer
“Lei”, ou seja, os livros que contêm a lei.)
6. Josué
7. Juizes
8. Rute
9. Primeiro Samuel
10. Segundo Samuel
11. Primeiro Reis
12. Segundo Reis
(os livros 9/12 indicam-se também com o
título geral de Reis I, II, III, IV)
13. Primeiro Crônicas
14. Segundo Crônicas Bíblia de Scbocken (Jerusalém, Instituto Schocken).
15. Esdras iluminura de página inteira
com a palavra Bercshith
16. Neemias
(“No princípio"), início do livro do Gênesis ,
(os livros 15/16 são também indicados decorada com 46 medalhões
por Esdras 1 e II) que representam episódios bíblicos ordenados
seqüencialmente da direita para a esquerda
17. Tobias e do alto para baixo;
18. Judite os primeiros episódios são dedicados
19. Ester a Adão e Eva, e o último a Balaão e ao anjo.
20. Primeiro livro dos Macabeus O ilustrador, chamado Hayim,
21. Segundo livro dos Macabeus trabalhou por volta de 1300 na
Alemanha meridional.
Livros sapienciais ou poéticos:
22. Jó
23. Salmos
24. Provérbios 33. Ezequiel
34. Daniel
25. Eclesiastes
26. Cântico dos Cânticos (este segundo grupo — 35/46 — é cha-
27. Sabedoria mado de “profetas menores” por causa da
28. Eclesiástico quantidade exígua de seus escritos)
Livros proféticos: 35. Oséias
(este primeiro grupo — 29/34 — de- 36. Joel
nomina-se “profetas maiores”, por causa da 37. Amós
extensão dos escritos) 38. Abdias
29. Isaias 39. Jonas
30. Jeremias 40. Miquéias
31. Lamentações 41. Naum
32. Baruc 42. Habacuc
43. Sofonias
44. Ageu
45. Zacarias
46. Malaquias
Cãpítulo primeiro - y\ Bí blia, su a mensa gem e su as influências. ..

Esse “cânon”, que consta já ter assumido Os vmte e sete livros do


consistência entre os cristãos desde o século IV,
/\]ovo Testamento
foi sancionado definitivamente pelo Concilio de
Trento (os protestantes, porém, adotaram o
cânon hebraico, do qual falaremos logo Os livros do Novo Testamento reconhecidos
adiante). como canônicos são 27, divididos da seguinte
Os hebreus adotaram apenas trinta e seis maneira:
livros (dividindo-os em “Torá”, “Profetas” e Quatro Evangelhos, com os Atos dos
“Livros”), excluindo Tobias, Judite, Primeiro e Apóstolos:
Segundo Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e 1. Evangelho segundo Mateus
também parte de Daniel, que são livros 2. Evangelho segundo Marcos
redigidos em grego ou que nos são conhecidos 3. Evangelho segundo Lucas
somente no texto grego. (Hoje, porém, estamos 4. Evangelho segundo João
em condições de estabelecer que tal restrição 5. Atos dos Apóstolos
remonta aos fariseus da Palestina, que Um corpus de cartas de são Paulo (ou a
pensavam que, depois de Esdras, cessara a ele atribuídas):
inspiração divina, enquanto outras 6. Carta aos Romanos
comunidades hebraicas incluíam entre os livros 7. Primeira carta aos Coríntios
sagrados também alguns destes livros. Com 8. Segunda carta aos Coríntios
efeito, nas descobertas ocorridas em 1947 em 9. Carta aos Gálatas
Qumran, que trouxeram à luz numerosos livros 10. Carta aos Efésios
pertencentes a uma comunidade hebraica ativa 11. Carta aos Filipenses
da época de Cristo, foram achados os livros de 12. Carta aos Colossenses
Tobias e o Eclesiástico, que, portanto, não 13. Primeira carta aos Tessalonicenses
estavam excluídos dos livros sagrados.) 14. Segunda carta aos Tessalonicenses
15. Primeira carta a Timóteo
16. Segunda carta a Timóteo
17. Carta a Tito
18. Carta a Filemon
19. Carta aos Hebreus
Sete cartas de apóstolos ou atribuídas a
apóstolos:
20. Carta de Tiago
21. Primeira carta de Pedro
22. Segunda carta de Pedro
23. Primeira carta de João
24. Segunda carta de João
25. Terceira carta de João
26. Carta de Judas
Um livro profético de S. João:
27. Apocalipse

Hoje, os estudiosos estão bastante con-


cordes em considerar que a Carta aos Hebreus
não foi escrita por Paulo, embora o autor esteja
próximo da visão paulina.
Os textos da Bíblia foram redigidos em
três línguas:
- hebraico (a maior parte do Antigo
Testamento);
- pequena parte em aramaico (um dialeto
hebraico);
- e em grego (alguns textos do Antigo
Testamento e todo o Novo Testamento; ape

Uma página da preciosa Bíblia de Carlos o Calvo com as


histórias de Adão (séc. IX).
Primeira pãrte - y\ **ev olu(pào espiritu al da mensagem bí blica

nas o Evangelho de Mateus, ao que parece, foi tando-se de manhã, construiu um altar ao pé
redigido primeiro em aramaico e depois da montanha e doze esteias para as doze tribos
traduzido em grego). de Israel. Depois enviou alguns jovens dos
Duas traduções basilares tiveram grande filhos de Israel, e ofereceram os seus
importância histórica. Uma, em língua grega, holocaustos e imolaram a Javé novilhos como
de todo o Antigo Testamento: a chamada sacrifícios de comunhão. Moisés tomou a
tradução dos “Setenta”, iniciada em Alexandria metade do sangue e colocou-a em bacias, e
sob o reinado de Ptolomeu Fi- ladelfo (285-246 espargiu a outra metade do sangue sobre o
a.C.), que ficou como ponto de referência na altar. Tomou o livro da aliança e o leu para o
área da cultura grega para os próprios hebreus povo; e eles disseram: „Tudo o que Javé falou,
helenizados, e para os gregos (muitas nós o faremos e obedeceremos.‟ Moisés tomou
referências dos próprios Evangelhos baseiam-se do sangue e o aspergiu sobre o povo, e disse:
nela). „Este é o sangue da aliança que Javé fez convosco,
A partir do século II d.C. a Bíblia foi por meio de todas estas cláusulas‟ ”.
traduzida também para o latim. Entretanto, a E no profeta Jeremias (31,31ss), eis a
tradução feita por são Jerônimo entre 390 e 406 promessa de uma “nova aliança” (aquela que
foi a que se impôs de modo estável, a ponto de seria inaugurada por Cristo): “Eis que dias
ser oficialmente adotada pela Igreja, sendo virão — oráculo de Javé — em que selarei com a
conhecida com o nome de Vulgata, por ser casa de Israel (e a casa de Judá) uma aliança
considerada a tradução latina por excelência. nova. Não como a aliança que selei com seus
pais, no dia em que os tomei pela mão para
fazê-los sair da terra do Egito — minha aliança
que eles mesmos romperam, embora eu fosse o seu
Senhor, oráculo de Javé! Porque esta é a aliança
que selarei com a casa de Israel depois desses
4 O conceito de Testamento" dias, oráculo de Javé. Eu porei minha lei no seu
seio e a escreverei em seu coração. Então eu
Como vimos, as duas partes da Bíblia são serei seu Deus e eles serão meu povo. Eles não
chamadas de Antigo e Novo Testamento. O que terão mais de instruir seu próximo ou seu
significa “Testamento”? Esse termo traduz o irmão, dizendo: „Conhecei a Javé!‟ Porque
grego diathéke, indicando o “pacto” ou “aliança” todos me conhecerão, dos menores aos maiores
que Deus ofereceu a Israel. Nesse pacto (a — oráculo de Javé —, porque vou perdoar sua
oferta do pacto e aquilo que ele comporta), a culpa e não me lembrarei mais de seu pecado”.
iniciativa é unilateral, ou seja, inteiramente E o autor da Carta aos Hebreus (9,1122)
dependente de Deus, que o ofereceu. E Deus o assim explica o sentido do novo “testamento” e
ofereceu por mera benevolência, vale dizer, da nova “aliança” que é sancionada
como dom gratuito. precisamente com a vinda de Cristo: “Cristo,
Eis alguns textos particularmente sig- porém, veio como sumo sacerdote dos bens
nificativos nesse sentido. Em Gênesis 9,9ss após vindouros. Ele atravessou uma tenda maior e
o dilúvio, Deus diz a Noé e seus filhos: “Eis que mais perfeita, que não é obra de mãos
estabeleço minha aliança convosco e com os humanas, isto é, que não pertence a esta
vossos descendentes depois de vós e com todos criação. Ele entrou uma vez por todas no Santuário,
os seres animados que estão convosco. (...) não com o sangue de bodes e novilhos, mas com
Estabeleço a minha aliança convosco: tudo o que o próprio sangue, obtendo uma redenção eterna. De
existe não será mais destruído pelas águas do fato, se o sangue de bodes e de novilhos, e se a
dilúvio; não haverá mais dilúvio para devastar cinza da novilha, espalhada sobre os seres
a terra”. Em Êxodo 24,3-8, podemos ler a ritualmente impuros, os santifica purificando
passagem mais significativa relativa ao os seus corpos, quanto mais o sangue de Cristo
“antigo” testamento, ou seja, a aliança sinaítica que, por um espírito eterno, se ofereceu a si
entre Deus e Israel, que devia durar até Cristo: mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de
“Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as purificar a nossa consciência das obras mortas
palavras de Javé e todas as leis, e todo o povo para que prestemos um culto ao Deus vivo. Eis
respondeu a uma só voz: „Nós observaremos por que ele é media-
todas as palavras ditas por Javé‟. Moisés
escreveu todas as palavras de Javé; e, levan
Cãpítulo primeiro - /\ 3íblia, sua mensagem e su as influências. ..

#1 ^aXLT'.U-
dor de uma nova „aliança‟. A sua morte aconteceu
para o resgate das transgressões cometidas no regime
811 ■—i í: da primeira aliança; e, por isso, aqueles que são
■ 1 1 [Í;- chamados recebem a herança eterna que foi prometida.
Com efeito, onde existe testamento, é necessário que
se constate a morte do testa- dor. O testamento, de
fato, só tem valor no caso de morte. Nada vale
enquanto o testador estiver vivo. Ora, nem mesmo
a primeira aliança foi inaugurada sem efusão
de sangue. De fato, depois que Moisés pro-
clamou a todo o povo cada mandamento da
Lei, ele tomou o sangue de novilhos e de
bodes, juntamente com a água, a lã escarlate e
o hissopo, e aspergiu o próprio livro e todo o
povo, anunciando: „Este é o sangue da aliança
que Deus vos ordenou‟. Em seguida ele
aspergiu com o sangue a tenda e todos os
utensílios do culto. Segundo a Lei, quase todas
as coisas se purificam com sangue; e sem
efusão de sangue não há remissão”.
E, no Evangelho de Mateus (26,2728),
estas palavras são postas na boca do próprio
Cristo: “Depois, tomou um cálice

V nm ci rd / hi gn ui ,1c um di ili go I rdi t gel ho ,/(' N.ío AI,í; 1 1

<s (\ 7c;/,/, l Uhhul ct j Ndci oi ull .

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I rdl l gel ho ll f A1j/í7/S de um

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produzido
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Rdveud, i Líl ui (Vi eii d,

r >i hl i oh ' ( \i N dc i om i l ).
Primeira parte - A rev olução espiritual da mensagem bíblica

e, dando graças, deu-lho dizendo: „Bebei dele 6 importância da Bíblia em


todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da
aliança (diathéke), que é derramado por muitos âmbito filosófico
para remissão dos pecados‟
A Bíblia, portanto, se apresenta como
“palavra de Deus”. E, como tal, a sua men-
sagem é objeto de fé. Quem acredita poder pôr a
fé entre parênteses e ler a Bíblia como “simples
5 ;A inspiração divina cientista”, como se lê um texto de filosofia de
Platão ou de Aristóteles, na realidade está
da BíU ia
realizando um tipo de operação que é contra o
espírito desse texto. A Bíblia muda
Numerosas passagens da Bíblia fazem completamente de significado à medida que é
referência à “inspiração divina” do escrito, lida acreditando-se ou não que se trata de
quando não à ordem direta do próprio Deus “palavra de Deus”. Entretanto, embora não
para escrever. No Êxodo, lê-se: “Javé disse a sendo uma “filosofia” no sentido grego do
Moisés: „Escreve isso em um livro como recordação termo, a visão geral da realidade e do homem
(...)‟ Ou então: “Javé disse a Moisés: „Escreve que a Bíblia nos apresenta, no que se refere a
estas palavras (...)‟ Em Isaías (30,8) pode-se ler: alguns conteúdos essenciais dos quais a
“Vai agora e escreve-o sobre uma prancheta, filosofia também trata, contém uma série de
grava-o em um livro”. João, no início do idéias fundamentais que têm uma relevância
Apocalipse (l,9ss), registra: “Eu, João, vosso também filosófica de primeira ordem. Aliás,
irmão e companheiro na tribu- lação, na realeza trata-se de idéias tão importantes que, não só
e na perseverança em Jesus, encontrava-me na para os crentes, mas também para os
ilha de Patmos, por causa da Palavra de Deus e incrédulos, a difusão da mensagem bíblica
do Testemunho de Jesus. No dia do Senhor, fui mudou de modo irreversível a fisionomia
movido pelo Espírito e ouvi atrás de mim uma voz espiritual do Ocidente. Em suma, pode-se dizer
forte, como de trombeta, ordenando: „Escreve o que a palavra de Cristo contida no Novo
que vês num livro e envia-o às sete Igrejas‟ (...)”. Testamento (a qual se apresenta como revelação
Quanto à inspiração por parte de Deus, que completa, aperfeiçoa e coroa a revelação
podemos ler em Jeremias: “Tu serás como a dos profetas contida no Antigo Testamento) pro-
minha boca”. E a segunda carta de Pedro (1,20- duziu uma revolução de tal alcance que mudou
21) afirma: “Sabei isto: que nenhuma profecia todos os termos de todos os problemas que o
da Escritura resulta de uma interpretação homem se propusera em filosofia no passado e
particular, pois que a profecia jamais veio por passou a condicionar também os termos nos
vontade humana, mas os homens, impelidos pelo quais o homem os proporia no futuro. Em
Espírito Santo, falaram da parte de Deus”. Lucas outras palavras, a mensagem bíblica
(24,27) escreve em seu Evangelho que o condicionará aqueles que a aceitam,
Messias, “começando por Moisés e por todos os obviamente de modo positivo, mas também
Profetas, interpretou-lhes em todas as Es- condicionará aqueles que a rejeitam: em pri-
crituras o que a ele dizia respeito”. E Paulo meiro lugar, como termo dialético de uma
reafirma: “Toda escritura é inspirada por Deus”. antítese (a antítese só tem sentido, sempre, em
Os mandamentos, inclusive, são escritos função da tese à qual se contrapõe); e, mais
diretamente por Deus. No Êxodo (24,12) lê-se: globalmente, como um verdadeiro “horizonte”
“Sobe a mim na montanha e fica lá: dar-te-ei espiritual que iria impor-se de tal modo a
tábuas de pedra, a lei e os mandamentos que escrevi ponto de não ser mais suscetível de eliminação.
para ensinares a eles”. Ou então (34,1): “Lavra Para se entender o que estamos dizendo, é
duas tábuas de pedra, como as primeiras, sobe paradigmático o título (que representa todo um
a mim na montanha, e eu escreverei as mesmas programa espiritual) do célebre ensaio do
palavras que estavam nas primeiras tábuas, que idealista e não-crente Be- nedetto Croce, Percbe
quebraste”. non possiamo non direi cristiani (“Por que não
podemos deixar de nos dizer cristãos”), o que
significa precisamente que, uma vez surgido, o
cristianismo tornou-se um horizonte intrans-
ponível.
Capitulo prítneirO - y\ Bíblia, sua mensagem e suas injluências...

Depois da difusão da mensagem bíblica, na história. Por essa razão, o horizonte bíblico
portanto, serão possíveis só estas posições: permanece um horizonte estruturalmente
a) filosofar na fé, ou seja, crendo; intransponível, no sentido que esclarecemos,
b) filosofar procurando distinguir os âm- isto é, no sentido de um horizonte para além do
bitos da “razão” e da “fé”, embora crendo; qual já não podemos nos colocar, tanto quem
c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou crê como quem não crê.
seja, não crendo. Com essas premissas, tratemos de exa-
Não será mais possível filosofar fora da minar as principais idéias bíblicas que apre-
fé, no sentido de filosofar como se a mensagem sentam relevância filosófica e colocá-las em
bíblica nunca tivesse feito seu ingresso confronto prospectivo e estrutural com a visão
anterior dos gregos.

Duas imagens tiradas do


Comentár io do Apoc alipse de
Beatus de Liébana,
executado no séc. XI em Saint-Sever, na França (Paris,
Biblioteca Nacional).
10
Primeira parte - y\ rev olu ção espiritu al da mensagem bíblica

II. As ideias bíblicas que


influíram
sobre o pensamento ocidental

• As mais significativas contribuições filosóficas da mensa-


O monoteísmo
e o gem bíblica são:
criacionismo a 1) o conceito de monoteísmo que substitui o politeísmo
partir do nada - grego;
+§1-2 2) o criacionismo a partir do nada, que faz o ser depender
de um ato de vontade de Deus, e que se contrapõe
à proibição
O antropocentrismo de Parmênides da geração do ser a partir do não
e a lei posta por ser;
Deus -^§3 3) uma concepção do mundo fortemente antropocêntrica
que não tem precedentes na filosofia helênica, que foi mais
cosmocêntrica;
4) uma interpretação da lei moral diretamente ligada à
vontade de Deus: Deus seria a fonte definitiva da lei moral e o
dever do homem estaria em obedecer seus mandamentos. Para o grego, ao con-
trário, a lei teria o seu fundamento na natureza e a ela também Deus estaria
vinculado;
5) uma desobediência à lei teria
causado a queda do
O pecado e a graça homem;
->§4 6) o resgate desta situação depende não do homem, mas
da iniciativa gratuita de Deus; para os gregos — em particular
Providência
para os órf icos e para os filósofos que neles se inspiraram — dependeria, ao
eRedenção
contrá-
rio,
->§5-7 apenas do homem;
7) a Providência de que fala a Bíblia, diversamente da gre-
ga (em particular socrática e estóica), dirige-se ao homem indi-
Eros grego e vidual; a ela está ligada à Redenção operada por Deus por amor
agápe cristão da humanidade;
—>§8 8) esta atenção de Deus pelo homem
revoluciona com-
pletamente o conceito do amor em vários sentidos: primeira-
mente, porque o amor cristão ( agápe) é característica emi-
nentemente divina, enquanto para os gregos Deus era amado
e não amante; em segundo lugar porque a dimensão do eros
helênico era aquisitiva, enquanto a do agápe cristão é dona-
tiva;
9) tal inversão não diz respeito apenas ao tema do amor, mas a toda a série
dos valores dos gregos, que o cristianismo ilumina sobre a base do discurso das
bem-aventuranças, em que se privilegia a dimensão da humildade e da mansidão;
Asberr)
- 10) igualmente importante é a mudança de perspectiva
aventuranças na escatologia — que não está mais ancorada apenas no dogma da
imortalidade da alma, mas também no da ressurreição dos
corpos —;
11) é significativo, por fim, o novo sentido da história, como progresso para a
salvação e para a realização do reino de Deus: o desenvolvimento da história se-
gundo os gregos tem um andamento circular (a história não Escatologia tem
início nem fim, mas retorna sempre idêntica), enquanto o
e história bíblico-cristão acontece segundo um trajeto retilíneo, que tem
->§10 um fim e uma consumação (o Juízo universal).
Capítulo primeiro - A Bí bl ia, su a mensagem e su as influências. ..

1 Passagem
do poli+eísmo grego ao
monoteísmo cris+ão ■ Monoteísmo. A doutrina da unici-
dade de Deus é especificamente
judai- co-cristã, enquanto todo o
A filosofia grega chegara a conceber a mundo helênico é condicionado pelo
poli- teísmo. No âmbito do
unidade do divino como unidade de uma esfera
pensamento grego, todavia, Platão,
que admitia essencialmente em seu próprio Aristóteles, e sobretudo Plotino,
âmbito uma pluralidade de entidades, forças e haviam antecipado alguns aspectos
manifestações em diferentes graus e níveis com orientação monoteista.
hierárquicos. Portanto, não chegara a conceber Platão, com efeito, no Timeu fala da
a unicidade de Deus e, conseqüentemente, nunca unicidade do divino Demiurgo orde-
havia sentido como um dilema a questão de se nador do cosmo e, nas doutrinas não
Deus era uno ou múltiplo. Desse modo, escritas, põe o Uno no vértice do
mundo supra-sensível (mesmo
permaneceu sempre aquém de uma concepção
admitindo uma série de divindades
monoteísta. Somente com a difusão da criadas pelo Demiurgo).
mensagem bíblica no Ocidente é que se impôs a Aristóteles, embora admitindo uma
concepção do Deus uno e único. E a dificuldade multiplicidade de inteligências moto-
do homem em chegar a essa concepção demons- ras divinas, colocava um primeiro
tra-se pelo próprio mandamento divino “não Motor imóvel único, que pensa a si
terás outro Deus além de mim” (o que significa mesmo.
que o monoteísmo não é, em absoluto, uma Plotino faz toda a realidade derivar do
absoluto e transcendente princípio
concepção espontânea), e pelas contínuas
do Uno.
recaídas na idolatria (o que implica sempre uma Em todo caso, o Ocidente ganhou o
concepção politeísta) por parte do próprio povo conceito de monoteísmo apenas da
hebreu, através do qual foi transmitida essa mensagem bíblica.
mensagem. E, com essa concepção do Deus
único, infinito em potência, radicalmente
diverso de todo o resto, nasce uma nova e
radical concepção da transcendência,
derrubando qualquer possibilidade de
considerar qualquer outra coisa como “divino”
no sentido forte do termo. Os maiores
pensadores da Grécia, Platão e Aristóteles,
haviam considerado como “divinos” (ou até
mesmo como deuses) os astros, e Platão chegara
a chamar o cosmo de “Deus visível” e os astros
de “deuses criados”; em As Leis, inclusive, ele
deu a partida para a religião chamada “astral”,
precisamente com base em tais pressupostos. A
Bíblia corta pela base toda forma de poli-
teísmo e idolatria, mas também qualquer
compromisso desse tipo. No Deuteronômio,
podemos ler: “E quando ergueres os olhos para
o céu e vires o sol, a lua, as estrelas,

Imagem da arte paleocristã que figura Cristo tendo na


mão sua mensagem da Verdade, sentado sobre o
Cosmo, representado pela significativa personificação
sob seus pés
(particular de um sarcófago conservado no Museu do
Latrão).
Primeira purte * y\ rev olução espiri+u al da mensagem bíblica

isto é, todo o exército do céu, não te deixes como e por que os múltiplos derivam do Uno e
arrastar, não te prostres diante deles e não lhes prestes o finito deriva do infinito. A própria conotação
culto ”. A unicidade do Deus bíblico comporta que Deus dá de si mesmo a Moisés, “Eu sou
transcendência absoluta, que coloca Deus como Aquele-que-é”, será interpretada, em certo
totalmente outro em relação a todas as coisas, sentido, como a chave para se entender
de um modo inteiramente impensável no ontologicamente a doutrina da criação: Deus é
contexto dos filósofos gregos. o Ser por sua própria essência e a criação é uma
participação no ser, ou seja, Deus é o ser e as
coisas criadas não são ser, mas têm o ser (que
receberam por participação).

2 A criação a parHr do nada

Já vimos quais e quantos foram os vários 3 A concepção


tipos de solução propostos pelos gregos no que
an+ropocêntrica
se refere ao problema da “origem dos seres”: de
Parmênides, que resolvia o próprio problema conHcia na Bíblia
com a negação de qualquer forma de devir, aos
pluralistas, que falavam de “reunião” ou
Entre os filósofos gregos, a concepção
“combinação” de elementos eternos; de Platão,
antropocêntrica teve uma dimensão apenas um
que falava de um demiurgo e de uma atividade
tanto limitada. Podemos encontrar traços dela
demiúr- gica, a Aristóteles, que falava da
nos Memorabilia de Xenofonte, que,
atração de um Motor imóvel; dos estóicos, que
naturalmente, são eco de idéias socráticas.
propunham uma forma de monismo panteísta,
Posteriormente, encontramos interessantes
a Plotino, que falava de uma “processão” me-
desdobramentos nesse terreno na Estoá de
tafísica. E vimos também as diferentes apo- rias
Zenao e Crisipo. Mas, como foi demonstrado
que se aninhavam nessas soluções.
recentemente, Zenão e Crisipo eram de origem
A mensagem bíblica, ao contrário, fala de
semítica, de forma que levantou- se a hipótese
“criação”, precisamente in limine: “No princípio,
de que o antropocentrismo por eles professado
Deus criou o céu e a terra”. E os criou pela sua
poderia ser um eco de idéias bíblicas,
“palavra”: Deus “disse” e as coisas “existiram”.
proveniente de seu patrimônio cultural étnico.
E, como todas as coisas do mundo, Deus criou
Contudo, o antropocentrismo não foi marca do
diretamente também o homem: “Deus disse:
pensamento grego, que, ao contrário,
„Façamos o homem...‟ ” E Deus não usou nada
apresentou-se sempre como fortemente
de preexistente, como o demiurgo platônico,
cosmocêntrico. Homem e cosmo apresentam-se
nem se valeu de “intermédios” na criação: ele
estreitamente conjugados e nunca radicalmente
produziu tudo do nada.
contrapostos, até porque, no mais das vezes, o
Com essa concepção de criação a partir
cosmo é concebido como sendo dotado de alma
“do nada”, cortava-se pela base a maior parte
e de vida
das aporias que, desde Parmênides, haviam
afligido a ontologia grega. Todas as coisas têm
origem do “nada”, sem distinção. Deus cria
livremente, ou seja, com um ato de vontade,
por causa do bem. Ele produz as coisas como
“dom” gratuito. O criado, portanto, é positivo.
Falando da criação, a Bíblia ressalta
insistentemente: “E Deus viu que era bom”. A ■ Criacionismo. A doutrina da cria- |
concepção platônica do Timeu, que também ção do mundo a partir do nada é de f
origem bíblica. í
sustenta que o demiurgo plasmou o mundo por
No âmbito do pensamento grego, em j
causa do bem, é apresentada aqui sob um novo
particular no que se refere a Platão, |
enfoque e num contexto bem mais coerente. pode-se falar de "semicriacionismo": |
O criacionismo impor-se-á como a solução segundo Platão, com efeito, o Demiur- j
por excelência do antigo problema de go não cria do nada, mas plasma e j
ordena uma matéria caótica e infor- J
me preexistente. j
13
Capitulo primeiro - , A Bí blia/ su a mensagem e suas influências.

como o homem. E, por maiores que possam ter conhecimento. A Bíblia, porém, atribui à
sido os reconhecimentos da dignidade e da vontade o instrumento da assimilação: as-
grandeza do homem pelos gregos, eles se semelhar-se a Deus e santificar-se significa fazer
inscrevem sempre em um horizonte cosmo- a vontade de Deus, ou seja, querer o querer de
cêntrico global. Na visão helênica, o homem Deus. E é exatamente essa capacidade de fazer
não é a realidade mais elevada do cosmo, como livremente a vontade de Deus que põe o homem
revela este exemplar texto aristotélico: “Há acima de todas as
muitas outras coisas que, por natureza, são coisas.
mais divinas (= perfeitas) do que o homem,
como, para ficar apenas nas mais visíveis, os
astros de que se compõe o universo”.
Na Bíblia, ao contrário, mais do que como 4 O respeito
um momento do cosmo, ou seja, como uma pelos mandamentos divinos: a
coisa entre as coisas do cosmo, o homem é visto
como criatura privilegiada de Deus, feita “à virtude e o pecaclo
imagem” do próprio Deus e, portanto, dono e
senhor de todas as outras coisas criadas por ele.
Os gregos entenderam a lei moral como
No Gênesis está escrito: “Deus disse: „Façamos o
lei da physis, a lei da própria natureza: uma lei
homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e
que se impõe a Deus e ao homem ao mesmo
que ele domine sobre os peixes do mar, as aves
tempo, visto que não foi feita por Deus e que a
do céu, os animais domésticos, todas as feras e
ela o próprio Deus está vinculado. O conceito
todos os répteis que rastejam sobre a terra”. E
de um Deus que dá a lei moral (um Deus
ainda: “Então Javé Deus modelou o homem
“nomóteta”) é estranho a todos os filósofos
com a argila do solo, insuflou em suas narinas
gregos.
um hálito de vida e o homem se tornou um ser
O Deus bíblico, ao contrário, dá a lei ao
vivente”. E o Salmo 8 diz ainda, de modo
homem como “mandamento”. Primeiro, ele a
paradigmático:
dá diretamente a Adão e Eva: “E Javé Deus deu
“Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, ao homem este mandamento: „Podes comer de
a lua e as estrelas que fixaste, o que é um todas as árvores do jardim. Mas da árvore do
mortal, para dele conhecimento do bem e do mal não comerás,
[te lembrares, e porque no dia em que dela comeres terás de
um filho de Adão, que venhas morrer‟ ”. Posteriormente, como já dissemos,
[visitá-lo? Deus “escreve” diretamente os mandamentos.
E o fizeste pouco menos do que um A virtude (o bem moral supremo) torna-
[deus, se obediência aos mandamentos de Deus,
coincidindo com a “santidade”, virtude que, na
coroando-o de glória e beleza.
visão “naturalista” dos gregos, ficava em
Para que domine as obras
segundo plano. O pecado (o mal moral su-
[de tuas mãos,
premo), ao contrário, torna-se desobediência a
sob seus pés tudo colocaste: ovelhas e bois,
Deus, dirigindo-se portanto contra Deus, à
todos eles, e as feras do campo também;
medida que vai contra os seus mandamentos.
as aves do céu e os peixes do oceano que
percorrem as sendas dos mares”. Diz o Salmo 119:
“Indica-me, Javé, o caminho dos teus
E, sendo feito à imagem e semelhança de [estatutos,
Deus, o homem deve se esforçar por todos os eu quero guardá-lo como recompensa.
modos para “assemelhar-se a ele”. O Levítico já Faze-me entender e guardar tua lei, para
afirmava: “Não deveis vos contaminar. Porque observá-la de todo o coração. Guia-me no
o vosso Deus sou eu, Javé, que vos fez sair da caminho dos teus
terra do Egito para ser o vosso Deus: vós, pois, [mandamentos,
sereis santos como eu sou santo”. Os gregos já pois nele está meu prazer”.
falavam de “assimilação a Deus”, mas E no Salmo 51 podemos ler:
acreditavam poder alcançá-la com o intelecto, “Pequei contra ti, contra ti somente, pratiquei
com o o que é mau aos teus olhos”.
Primeira pãrte - , A rev olução espiri+ual da mensagem bí blica

A vida, a paixão e a morte de Cristo 5 O conceito


desenvolvem-se inteiramente sob o signo do de Providência na Bíbl ia
fazer a vontade do Pai que o enviou. O Novo
Testamento também faz com que o objetivo
Sócrates e Platão já haviam falado do
supremo da vida, o amor de Deus, coincida
Deus-Providência: o primeiro no plano in-
com o fazer a vontade de Deus, com o seguir a
tuitivo, o segundo com referência ao demiurgo
Cristo, que concretizou com perfeição aquela
que constrói e governa o mundo. Mas
vontade.
Aristóteles ignorou esse conceito, como o ig-
Desse modo, o antigo “intelectualis- mo”
norou também a maior parte dos filósofos
grego é inteiramente subvertido pelo
gregos, exceto os estóicos. Mas os estóicos
“voluntarismo”: o “querer de Deus” é a lei
moral e o “querer o querer de Deus” é a virtude podem ter extraído tal concepção, mais uma
do homem. A boa vontade (o coração puro) vez, de sua bagagem cultural originária, que
torna-se a nova marca do homem moral. tinha suas raízes na origem semítica dos fun-
dadores do Pórtico, como sustenta a hipó

O “Cristo Pantocrator” (aqui reproduzido do mosaico normando da ábside da C,atedra l de Montreal), representando bem a
centralidade do mistério da redenção dentro da história da salvação.
Capítulo primeiro - A Bí blia, su a mensagem e su as influências. ..

tese de Pohlenz. O certo é que a Providência dos levantar para dá-los a ti.‟ Digo-vos, mesmo que
gregos nunca diz respeito ao homem individual, e não se levante para dá-los por ser amigo,
a Providência estóica chega até a coincidir com levantar-se-á ao menos por causa da sua
o Destino, nada mais sendo do que o aspecto insistência e lhe dará tudo aquilo de que
racional da Necessidade com que o logos produz precisa. Também eu vos digo: pedi e vos será
e governa todas as coisas. Já a Providência dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto. Pois
bíblica não apenas é própria de um Deus que é todo o que pede, recebe; o que busca, acha; e ao que
pessoal em alto grau, mas também, além de se bate, se abrirá ”.
dirigir para o criado em geral, dirige-se ainda e Mas esse sentido de confiança total na
particularmente para os homens individuais, espe- Providência divina também está presente no
cialmente para os mais humildes e necessitados Antigo Testamento, na mesma dimensão e com
e para os próprios pecadores (basta recordar as o mesmo alcance, como se pode depreender,
parábolas do “filho pródigo” e da “ovelha por exemplo, do belíssimo Salmo 91:
perdida”). Eis uma das passagens mais famosas
Tu, que dizes “Javé é o meu abrigo” e
e significativas a esse respeito, registrada no
fazes do Altíssimo o teu refúgio.
Evangelho de Mateus: “Por isso vos digo: não
A desgraça jamais te atingirá e praga
vos preocupeis com a vossa vida, quanto ao que
nenhuma chegará à tua tenda: pois em
haveis de comer, nem com o vosso corpo,
teu favor ele ordenou aos seus
quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida
[anjos
mais do que o alimento e o corpo mais do que a
que te guardem em teus caminhos todos.
roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem
Eles te levarão em suas mãos, para que
colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto,
teus pés não tropecem numa
vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não vaieis
[pedra;
vós mais do que elas? Quem dentre vós, com as
poderás caminhar sobre o leão
suas preocupações, pode prolongar, por pouco
[e a víbora,
que seja, a duração da sua vida? E com a roupa,
pisarás o leãozinho e o dragão.
por que andais preocupados? Aprendei dos
Porque a mim se apegou, eu o livrarei, eu
lírios do campo, como crescem, e não trabalham
o protegerei, pois conhece o meu
e nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que
[nome.
nem Salomão, em todo o seu esplendor, se
Ele me invocará e eu responderei:
vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim
a erva do campo, que existe hoje e amanhã será “Na angústia estarei com ele, eu o livrarei
lançada ao forno, não fará ele muito mais por e o glorificarei; vou saciá-lo com longos
vós, homens fracos na fé? Por isso, não andeis dias e lhe mostrarei a minha salvação”.
preocupados, dizendo: „Que iremos comer?‟ Ou: Essa é uma mensagem de segurança total,
„Que iremos beber?‟ Ou: „Que iremos vestir?‟ De que estava destinada a subverter as frágeis
fato, são os gentios que estão à procura de tudo seguranças humanas que os sistemas da época
isso: o vosso Pai celeste sabe que tendes helenística haviam construído, pois nenhuma
necessidade de todas estas coisas. Buscai, em segurança pode ser absoluta se não tiver uma
primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, vinculaçáo precisa com um Absoluto. E,
e todas estas coisas vos serão acrescentadas. precisamente, o homem sente necessidade
Não vos preocupeis, portanto, com o dia de
desse tipo de segurança total.
amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará
consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal”.
E com a mesma eficácia escreve Lucas em
seu Evangelho: “Quem dentre vós, se tiver um
amigo e for procurá-lo no meio da noite,
dizendo: „Meu amigo, empresta- me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e nada tenho para lhe oferecer.‟ E ele responder
de dentro: „Não me importunes; a porta já está 6 desobediência a Deus
fechada e meus filhos e eu estamos na cama; resgatada
não posso me
pela paixão de (Sristo

Com base no que dissemos, também fica


claro o sentido do “pecado original”. Como
todo pecado, ele é desobediência,
Primeira parte - A revolução espiritual da meus agem bíblica

mais precisamente desobediência ao man- morte, o afastamento de Deus. Em Adão, toda a


damento original de não comer do fruto “da humanidade pecou; com Adão, o pecado
árvore do conhecimento do bem e do mal”. A ingressou na história dos homens
raiz dessa desobediência foi a soberba do — e, com o pecado, todas as suas conse-
homem, que não queria tolerar limitação qüências. Como escreve Paulo: “...por obra de
nenhuma, que não queria ter os vínculos do um só homem o pecado entrou no mundo e,
bem e do mal (dos mandamentos) e, portanto, pelo pecado, a morte; assim, a morte passou
que queria ser como Deus. Javé havia dito: “Da para todos os homens, porque todos
árvore do conhecimento do bem e do mal não pecaram...”
comereis, porque no dia em que dela comerdes Por si só, o homem não teria podido
tereis de morrer”. Mas a tentação do maligno salvar-se do pecado original e de todas as suas
insinua: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe conseqüências. Assim como a criação foi um
que, no dia em que dela comerdes, vossos dom e assim como a antiga “aliança”,
olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados sancionada e muitas vezes traída pelo homem,
no bem e no mal”. À culpa de Adão e Eva, que foi um dom, da mesma forma o resgate também
cedem à tentação, transgredindo o manda- foi um dom, o maior dos dons: Deus se fez
mento divino, segue-se, como punição divina, a homem e, com sua paixão e morte, resgatou a
expulsão do paraíso terrestre, com todas as humanidade do pecado. E, com sua
suas conseqüências. E assim fazem seu ressurreição, derrotou a própria morte,
ingresso no mundo o mal, a dor e a conseqüência do pecado. Como escreve Paulo
na Carta aos Romanos: “Não

Este é o célebre arco do “Bom Pastor” no Mausoléu de Galla Placídia em Ravena (séc. V): o “Bom Pastor" exprime de
modo emblemático a nova imagem de Deus, própria do cristianismo.
Capítulo primeiro - y\ Bíblia, sua mensag&m e suas influências...

sabeis que todos os que fomos batizados em é uma rebelião contra Deus, a nova mensagem
Cristo Jesus, é na sua morte que fomos revela que nenhuma força da natureza ou do
batizados? Pois pelo batismo nós fomos se- intelecto humano podia resgatar o homem.
pultados com ele na morte para que, como Cristo Para tanto, eram necessárias a obra do próprio
foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Deus feito homem e a participação do homem
Pai, assim também nós vivamos vida nova. na paixão de Cristo em uma dimensão que
Porque se nos tornamos uma coisa só com ele permanecera quase inteiramente desconhecida
por morte semelhante à sua, assim seremos para os gregos: a dimensão da “fé”.
igualmente semelhantes na sua ressurreição,
sabendo que nosso velho homem foi crucificado
com ele para que fosse destruído este corpo de
pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado.
Com efeito, quem morreu ficou livre do pecado. 7 O valor da fé.
Mas, se morremos com Cristo, temos fé que tam- e a participação no Divino
bém viveremos com ele, sabendo que Cristo,
uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não
morre, a morte não tem mais domínio sobre ele. A filosofia grega subestimara a fé ou
Porque, morrendo, ele morreu para o pecado crença (pístis) do ponto de vista cognosciti- vo,
uma vez por todas; vivendo, ele vive para Deus. pois dizia respeito às coisas sensíveis,
Assim também vós considerai-vos mortos para o mutáveis, sendo portanto uma forma de opi-
pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus. nião (dóxa). Em verdade, Platão a valorizou
Portanto, que o pecado não impere mais em como componente do mito, mas, em seu
vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas pai- conjunto, o ideal da filosofia grega era a
xões; nem entregueis vossos membros, como epistéme, o conhecimento. E, como vimos, todos os
armas de injustiça, ao pecado; pelo contrário, pensadores gregos viam no conhecimento a
oferecei-vos a Deus como vivos provindos dos virtude por excelência do homem e a realização
mortos e oferecei vossos membros como armas da essência do próprio homem. Pois a nova
de justiça a serviço de Deus. E o pecado não vos mensagem exige do homem precisamente uma
dominará, porque não estais debaixo da Lei, mas superação dessa dimensão, invertendo os
sob a graça”. termos do problema e pondo a fé acima da ciência.
A encarnação de Cristo, sua paixão ex- Isso não significa que a fé não tem um
piadora do antigo pecado, que fez seu ingresso valor cognoscitivo próprio: entretanto, trata-se
no mundo com Adão, e sua ressurreição de um valor cognoscitivo de natureza
resumem o sentido da mensagem cristã — e inteiramente diferente, em comparação com o
essa mensagem subverte inteiramente os conhecimento da razão e do intelecto; de todo
quadros do pensamento grego. Os filósofos modo, trata-se de um valor cognoscitivo que só
gregos haviam falado de uma culpa original, se impõe a quem possui aquela fé. Como tal,
extraindo o conceito dos mistérios órficos. E, de ela constitui verdadeira “provocação” em
certa forma, haviam vinculado a essa culpa o relação ao intelecto e à razão.
mal que o homem sofre em si. Mas, em primeiro Adiante, falaremos sobre as conseqüên-
lugar, ficaram muito longe da explicação da cias dessa provocação. Antes, é necessário
natureza dessa culpa (basta ler, por exemplo, o captar o seu sentido geral. E é ainda Paulo
mito platônico do Fedro). Em segundo lugar, quem o revela do modo mais sugestivo, em sua
estavam convencidos de que: primeira carta aos Coríntios: “A linguagem da
a) “naturalmente”, o ciclo dos nasci- cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas
mentos (a metempsicose) teria cancelado a para aqueles que se salvam, para nós, é poder
culpa nos homens comuns; de Deus. Pois está escrito: „Destruirei a
b) os filósofos podiam libertar-se das sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência
conseqüências daquela culpa em virtude do dos inteligentes‟. Onde está o sábio? Onde está
conhecimento e, portanto, pela força humana, ou o homem culto? Onde está o argumentador
seja, de modo autônomo. deste século? Deus não tornou louca a
Todavia, além de mostrar a realidade bem sabedoria deste século? Com efeito, visto que o
mais inquietante da culpa original, que mundo por meio da sabedoria não reconheceu
a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus
pe
Primeira pãrte ' j\ rev olução espiri+ual da mensagem bí blica

la loucura da pregação salvar aqueles que ninguém o conhece senão o Espírito de Deus.
crêem. Os judeus pedem sinais e os gregos Quanto a nós, não recebemos o espírito do
andam em busca da sabedoria; nós, porém, mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de
anunciamos Cristo crucificado, que, para os que conheçamos os dons da graça de Deus.
judeus, é escândalo, para os gentios é loucura, Desses dons não falamos segundo a linguagem
mas, para aqueles que são chamados, tanto ensinada pela sabedoria humana, mas segundo
judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e aquela que o Espírito ensina, exprimindo
sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de realidades espirituais em termos espirituais. O
Deus é mais sábio do que os homens e o que é homem psíquico não aceita o que vem do
fraqueza de Deus é mais forte do que os Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode
homens. Vede, pois, quem sois, irmãos, vós compreender, pois isso deve ser julgado
que recebestes o chamado de Deus; não há espiritualmente. O homem espiritual, ao
entre vós muitos sábios segundo a carne, nem contrário, julga a respeito de tudo e por
muitos poderosos, nem muitos de família ninguém é julgado. Pois „quem conheceu o
prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, pensamento do Senhor para poder instruí-lo?‟
Deus o escolheu para confundir o que é forte, e Nós, porém, temos
o que no mundo é vil e desprezado, o que não o pensamento de Cristo ”.
é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a Essa mensagem subversiva de todos os
fim de que nenhuma criatura se possa esquemas tradicionais dá origem inclusive a
vangloriar diante de Deus. Ora, é por ele que uma nova antropologia (de resto, já am-
vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para plamente antecipada no Antigo Testamento): o
nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, homem não é mais simplesmente “corpo” e
santificação e redenção, a fim de que, como diz “alma” (entendendo-se por “alma” razão e
a Escritura, „aquele que se gloria, se glorie no intelecto), isto é, em duas dimensões, mas sim
Senhor‟. Eu mesmo, quando fui ter con- vosco, em três dimensões: “corpo”, “alma” e
irmãos, não me apresentei com o prestígio da “espírito”, onde o “espírito” é exatamente essa
palavra ou da sabedoria para vos anunciar o participação no divino através da fé, a abertura
mistério de Deus. Pois não quis saber outra do homem para a Palavra divina e para a
coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Sabedoria divina, que o preenche com nova
Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de força e, em certo sentido, lhe dá nova estatura
fraqueza, receio e tremor; minha palavra e onto- lógica.
minha pregação nada tinham da persuasiva A nova dimensão da fé, portanto, é a
linguagem da sabedoria, mas eram uma dimensão do Espírito em sentido bíblico. Os
demonstração do Espírito e o poder divino, a gregos haviam conhecido a dimensão do nous,
fim de que a vossa fé não se baseie sobre a mas não a do pneuma, que passaria a ser a
sabedoria dos homens, mas sobre o poder de dimensão dos cristãos.
Deus. No entanto, é realmente de sabedoria
que falamos entre os perfeitos, sabedoria que
não é deste mundo nem dos príncipes deste
mundo, votados à destruição. Ensinamos a
sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que
Deus, antes dos séculos, de antemão destinou 8 C> "eros" 0t A ego /
para a nossa glória. Nenhum dos príncipes o amor ("agápe.") cristão e a
deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem
graça.
conhecido, não teriam crucificado o Senhor da
glória. Mas, como está escrito, „o que os olhos
não viram, os ouvidos não ouviram e Em um de seus cumes mais significati-
o coração do homem não percebeu, isso Deus vos, o pensamento grego criou, sobretudo com
preparou para aqueles que o amam‟. A nós, Platão, a admirável teoria do eros, da qual já
porém, Deus o revelou pelo Espírito. Pois o falamos amplamente. Mas o eros não é Deus,
Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as porque é desejo de perfeição, tensão mediadora
profundidades de Deus. Quem, pois, dentre os que torna possível a elevação do sensível ao
homens conhece o que é do homem, senão o supra-sensível, força que tende a conquistar a
espírito do homem que nele está? Da mesma dimensão do divino. O eros grego é falta-e-
forma, o que está em Deus, posse em uma conexão estrutural entendida em
sentido dinâmico e, por isso, é força de
conquista e ascensão, que se acende sobretudo
à luz da beleza.
Capitulo ptiflíBÍTO - :A Bíblia, sua mensagem e suas influências...

Já o novo conceito bíblico de “amor”


(agápe) é de natureza bem diferente. O amor não
é primordialmente “subida” do homem, mas ; ■ Agápe. A doutrina cristã do amor
“descida” de Deus em direção aos homens. Não (agápe, charitas)opera uma revolução
é “conquista”, mas “dom”. Não é algo estrutural em relação à concep-
motivado pelo valor do objeto ao qual se dirige, i ção grega do eros.
Para o grego Deus não pode amar
mas, ao contrário, algo espontâneo e gratuito. 1 porque o amor pressupõe falta e,
Para os gregos, é o homem que ama, não portanto, imperfeição.
Deus. Para os cristãos, é sobretudo Deus que Para Platão, por exemplo, o eros de
ama: o homem só pode amar na dimensão do - riva da falta do belo e do desejo de í
novo amor realizando uma revolução interior possuí-lo e, portanto, em dimensão
radical e assemelhando o seu comportamento 1 aquisitiva e ascensiva, é próprio do
ao de Deus. homem e não de Deus.
O amor cristão é verdadeiramente sem | Mesmo para Aristóteles o Motor imó- ?
vel é amado e não amante (move co- f
limite, é infinito: Deus ama os homens até o
mo objeto de amor).
sacrifício da cruz; ama os homens inclusive em
O amor cristão é, ao contrário,
suas fraquezas. Aliás, é sobretudo nisso que o primei- í ramente próprio de Deus, que
amor cristão revela a sua desconcertante ama « em dimensão donativa, como
grandeza: na desproporção entre o dom e o supe- rabundância de bem.
beneficiário desse dom, ou seja, na absoluta
gratuidade de tal dom.
É no mandamento do amor que Cristo
resume a essência dos mandamentos e da lei em
seu conjunto. No Evangelho de Marcos,
podemos ler esta precisa resposta que Cristo
deu à pergunta de um escriba, que queria saber
ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele
qual era o primeiro dos mandamentos: “O
que não ama não conheceu a Deus, porque
primeiro é: (...) o Senhor nosso Deus é o único
Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de
Senhor; amarás, portanto, o Senhor teu Deus de
Deus entre nós: Deus enviou o seu Filho
todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu
unigênito ao mundo para que vivamos por ele.
entendimento e com toda a tua força. O
Nisto consiste o amor: não fomos nós que
segundo é: amarás o teu próximo como a ti
amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e
mesmo. Não existe outro mandamento maior
enviou-nos o seu Filho como vítima de
do que esses (Mc 12,29-31)”.
expiação pelos nossos pecados. Caríssimos, se
A ilimitação do amor cristão (agápe) se
Deus assim nos amou, devemos, nós também,
expressa ainda mais profundamente nestas
amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais
palavras do Evangelho de Mateus: “Ou- vistes
contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos
que foi dito: „Amarás o teu próximo e odiarás o
outros, Deus permanece em nós e o seu amor
teu inimigo‟. Eu, porém, vos digo: amai os
em nós é perfeito. Nisto reconhecemos que
vossos inimigos e orai pelos que vos
permanecemos nele e ele em nós: ele nos deu o
perseguem; deste modo vos tornareis filhos do
seu Espírito” (ljo 4.7-13).
vosso Pai que está nos céus, porque ele faz
E a primeira carta aos Coríntios, de
nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e
Paulo, contém o mais exaltado hino ao agápe, ao
cair a chuva sobre justos e injustos. Com efeito,
novo amor cristão: “Ainda que eu falasse
se amais aos que vos amam, que recompensa
línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu
tendes? Não fazem também os publicanos a
não tivesse a caridade, seria como um bronze
mesma coisa? E se saudais apenas os vossos
que soa ou como um cím- balo que tine. Ainda
irmãos, que fazeis de mais? Não fazem também
que eu tivesse o dom da profecia, o
os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser
conhecimento de todos os mistérios e de toda a
perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt
ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de
5,43-48).
transportar os montes, se não tivesse a
A seguinte passagem da primeira carta de
caridade, eu nada seria. Ainda que eu
João resume muito bem o arco da temática do
distribuísse os meus bens aos famintos, ainda
amor cristão: “. ..amemo-nos uns aos outros,
que entregasse o meu corpo às chamas, se não
pois o amor é de Deus e aquele que
tivesse a caridade, isso nada me adiantaria. A
carida
Primeira parte - y\ rev olução espiritual da mensagem bí blica

de é paciente, a caridade é prestativa, não é Bem-aventurados os que são perseguidos por


invejosa, não se ostenta, não se incha de causa da justiça, porque deles é o Reino dos
orgulho. Nada faz de inconveniente, não Céus.
procura o seu próprio interesse, não se irrita, Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e
não guarda rancor. Não se alegra com a vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o
injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e
desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. regozijai-vos, porque será grande a vossa
A caridade jamais passará. Quanto às recompensa nos céus, pois foi assim que
profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, perseguiram os profetas, que vieram antes de
cessarão. Quanto à ciência, também vós”.
desaparecerá. Pois o nosso conhecimento é
limitado e limitada é a nossa profecia. Mas, Segundo o novo quadro de valores, é
quando vier a perfeição, o que é limitado preciso retornar à simplicidade e à pureza da
desaparecerá. Quando eu era criança, falava criança, porque aquele que é o primeiro segundo
como criança, pensava como criança, o juízo do mundo será o último segundo o juízo
raciocinava como criança. Depois que me de Deus, e vice-versa. Escreve Mateus: “Nessa
tornei homem, fiz desaparecer o que era ocasião, os discípulos aproximaram-se de Jesus
próprio da criança. Agora vemos em espelho e e lhe perguntaram: „Quem é o maior no Reino
de maneira confusa, mas, depois, veremos face dos Céus?‟ Ele chamou perto de si uma criança,
a face. Agora o meu conhecimento é limitado, colocou-a no meio deles e disse: „Em verdade
mas, depois, conhecerei como sou conhecido. vos digo que, se não mudardes e não vos
Agora, portanto, permanecem estas três coisas: tornardes como as crianças, de modo algum
a fé, a esperança, a caridade. A maior delas, entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto,
porém, é a caridade” (ICor 13,13). que se tornar pequenino como esta criança,
esse é o maior no Reino dos Céus. E aquele que
receber uma criança como esta por causa do
meu nome, recebe a mim‟ ”. E Marcos escreve:
“Ele, sentando-se, chamou os Doze e disse: „Se
9 Os valores fundamentais do alguém quiser ser o primeiro, seja o último e
aquele que serve a todos‟ ”.
cristianismo: a pu^e.za e a Desse modo, a humildade torna-se uma
kumildade virtude fundamental do cristão: o caminho
estreito que dá acesso ao Reino dos Céus. E
essa também era uma virtude desconhecida dos
A mensagem cristã assinalou sem dúvida
filósofos gregos. Cristo chega a dizer o
a mais radical revolução de valores da história
seguinte: “Se alguém quiser vir após mim,
humana. Nietzsche chegou a falar até mesmo
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga- me.
de total subversão dos valores antigos, subversão
Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai
que tem sua formulação programática no
perdê-la; mas o que perder a sua vida por
“Sermão da Montanha”, que podemos ler no
causa de mim e do Evangelho, vai salvá- la”. E
Evangelho de Mateus (5,1-12):
isso, para o filósofo grego, seria simplesmente
“Bem-aventurados os pobres em espírito, incompreensível. Portanto, cai por terra
porque deles é o Reino dos Céus. Bem- também o ideal supremo do sábio helenístico
aventurados os mansos, porque que compreendera a vaidade do mundo e de
[herdarão a terra. todos os bens “exteriores” e do “corpo”, mas,
Bem-aventurados os aflitos, porque no entanto, punha em si mesmo a certeza
[serão consolados. suprema, proclamando-se “autárquico” e
Bem-aventurados os que têm fome e absolutamente “auto-suficiente”, capaz de
sede de justiça, porque serão saciados. alcançar sozinho o fim último. Esse ideal do
Bem-aventurados os misericordiosos, homem grego, que acreditava em si mais do
porque alcançarão misericórdia. que em todas as coisas exteriores com extrema
Bem-aventurados os puros de coração, firmeza, havia sido, indubitavelmente, um
[porque verão a Deus. nobre ideal. Mas a mensagem evangélica agora
Bem-aventurados os que promovem a o declara ilusório — e o faz de maneira
[paz, categórica. A salvação não apenas não pode vir
porque serão chamados filhos de Deus. das coi
21
Capítulo primeiro - y\ Bíbl ia, su a mensagem e su as influências.

sas, mas sequer de si mesmo, como diz Cristo: para a “ressurreição dos mortos”. Essa é uma
“Sem mim, nada podeis fazer”. Em uma das marcas da nova fé. E a ressurreição implica
esplêndida passagem da segunda Epístola aos o retorno também do corpo à vida.
Coríntios, Paulo sela essa reviravolta no Precisamente isso constituía um gravís-
pensamento antigo. Depois de ter suplicado a simo obstáculo para os filósofos gregos: era um
Deus três vezes, para que dele afastasse uma absurdo que devesse renascer aquele corpo que
grave aflição que o atribulava, teve a seguinte era visto por eles como “obstáculo” e como
resposta: “Basta-te a minha graça, pois é na fonte de toda negatividade e de mal.
fraqueza que a força manifesta o seu poder”. A reação de alguns estóicos e epicu- ristas
Por isso, Paulo conclui: “Por conseguinte, com ao discurso pronunciado por Paulo no
todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas Areópago, em Atenas, é muito eloqüente. Eles
fraquezas, para que pouse sobre mim a força de ouviram Paulo enquanto ele falava de Deus.
Cristo”. Mas, quando falou em “ressurreição dos
mortos”, não lhe permitiram que continuasse a
falar. Está registrado nos Atos dos Apóstolos:
“Ao ouvirem falar de ressurreição dos mortos,
10 A ressurreição dos mortos uns zombavam, outros diziam: „Ouvir-te-emos
a respeito disto outra vez.‟ Foi assim que Paulo
se retirou do meio deles”.
E Plotino, na renovada perspectiva da
O conceito de “alma” é uma criação grega,
metafísica platônica, escrevia, em aberta
cuja evolução nós seguimos a partir de Sócrates,
polêmica com essa crença dos cristãos: “O que
que fez dela a essência do homem, a Platão, que
existe de alma no corpo nada mais é que alma
fundamenta a sua imortalidade com provas
adormecida. E o verdadeiro despertar consite
racionais, e a Plotino, que dela faz uma das três
na ressurreição — a verdadeira ressurreição, que é
hipóstases. Certamente, a psyché é uma das
do corpo, não com
figuras teoréti- cas que melhor marcam o
o corpo. Pois ressurgir com um corpo eqüivale a
quadro do pensamento grego e o seu idealismo
cair de um sono em outro, a passar, por assim
metafísico. Recorde-se que os próprios estóicos,
dizer, de um leito a outro. Mas o verdadeiro
embora fazendo aberta profissão de materialis-
levantar-se tem algo de definitivo, não de um
mo, admitiam uma sobrevivência da alma
só corpo, mas de todos os corpos, que são
(ainda que até o fim da posterior conflagração
radicalmente contrários à alma;
cósmica). Em suma, desde Sócrates, os gregos
conseqüentemente levam a contrariedade até a
passaram a ver na alma a verdadeira essência
raiz do ser. Dá-nos prova disso, senão o seu
do homem, não sabendo pensar o homem senão
devir, pelo menos o seu transcorrer e o seu
em termos de corpo e alma
extermínio, que certamente não pertencem ao
— e toda a tradição platônico-pitagórica e o
âmbito do ser”.
próprio Aristóteles (e, portanto, a maior parte
Por seu turno, muitos pensadores cristãos,
da filosofia grega) consideraram a alma imortal
ao contrário, não consideraram a doutrina do
por natureza.
Fédon e dos platônicos como negação de sua fé,
A mensagem cristã propôs o problema do
procurando até acolhê-la como clarificadora. O
homem em termos completamente diferentes. Nos
tema da mediação entre a temática da alma e a
textos sagrados, o termo “alma” não aparece
temática da ressurreição dos mortos, com a
nas acepções gregas. O cristianismo não nega
inserção da nova temática do Espírito,
que, com a morte do homem, sobreviva algo
constituirá um dos temas mais debatidos pela
dele; pelo contrário, fala expressamente dos
reflexão filosófica dos cristãos, com diferentes
mortos como sendo recebidos no “seio de
resultados, como veremos.
Abraão”. Entretanto, o cristianismo não aponta
de modo absoluto para a imortalidade da alma,
mas sim
Primeira parte - rev olução espiritual da mensagem bí blica

— III. Pa ra além do Korizonfe


cultural grego

• Todos estes ganhos de ordem moral e filosófica foram propostos não à luz
de um aprofundamento racional e lógico — como objetos de ciência —, mas por via
de fé, também nisso subvertendo o modo comum de pensar dos gregos, que
consideravam a fé uma forma deteriorada de conhecimento — A fé cristã
próprio da sensação — e a ciência como saber supremo. O anún-
como fermento cio do Evangelho torna-se, assim, fermento de civilização ca- de
civilização paz de ultrapassar o horizonte clássico, sem enfraquecer a con-
* 7-2 tribuição para o desenvolvimento da humanidade.

1 O desenvolvimento retilíneo tanto no seu conjunto como em suas diversas


fases.
da kistória que tem como fim
E, conseqüentemente, na história assim
o ^uízo universal entendida, também o homem se compreende a
si mesmo bem melhor: compreende melhor de onde
Os gregos não tiveram um sentido vem, onde se encontra e aonde é chamado a chegar.
preciso da história: o seu pensamento é Sabe que o Reino de Deus já fez seu ingresso
substancialmente a-bistórico. A idéia de no mundo com Cristo e com sua Igreja e que,
progresso não lhes foi familiar ou só o foi em portanto, já se encontra entre nós, ainda que só
escala reduzida. Aristóteles falou de catástrofes no fim dos tempos se realizará em toda a sua
recorrentes, que levam continuamente a plenitude.
humanidade ao estágio primitivo, ao que se O antigo grego vivia na dimensão da pólis
segue uma evolução, que leva novamente a e pela pólis — e só sabia pensar dentro de seus
humanidade a um estágio de civilização quadros. Destruída a pólis, como vimos, o
avançada, que atinge o ponto atingido pela filósofo grego refugiou-se no individualismo,
anterior, ao que se segue nova catástrofe e sem descobrir um novo tipo de sociedade. Já o
assim por diante, ao infinito. Os estóicos cristão vive na Igreja, que não é uma sociedade
introduziram a teoria da destruição cíclica não política nem uma sociedade puramente
só da civilização sobre a terra, mas também do natural. E uma sociedade que, por assim dizer,
cosmo inteiro, que, depois, se reforma ciclica- é ao mesmo tempo horizontal e vertical: vive
mente, da mesma forma que antes, até nos neste mundo, mas não para este mundo; mani-
pormenores mais insignificantes. Em suma, festa-se em aparências naturais, mas tem raízes
repete-se tal qual no passado, ao infinito. E sobrenaturais. Na Igreja de Cristo,
isso, examinando-se bem, é a negação do o cristão vive a vida de Cristo na graça de
progresso. Cristo. A parábola da videira e dos ramos, que
A concepção de história expressa na Cristo conta aos seus apóstolos no Evangelho
mensagem bíblica, ao contrário, não é cíclica, mas de João, expressa melhor do que qualquer
retilínea. No transcorrer do tempo, verificam-se outra coisa o novo sentido da vida do cristão
eventos decisivos e irrepetí- veis, que são como em união com Cristo e com os outros que
que etapas que destacam o seu sentido. O fim vivem em Cristo: “Eu sou a verdadeira videira
dos tempos é também o fim para o qual eles e meu Pai é o agricultor. Todo ramo em mim
foram criados: é o Juízo universal e o advento que não produz fruto ele o corta, e o que
do Reino de Deus em sua plenitude. E assim a produz fruto ele o poda, para que produza
história, que vai da criação à queda, da aliança mais fruto ainda. Vós já estais puros, por causa
ao tempo de espera do Messias, da vinda de da palavra que vos fiz ouvir. Permanecei em
Cristo ao juízo final, adquire um sentido, mim, como
Capitulo primeiro - y\ Bíblia, sua mensagem e su as influ ências.. .

eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto


por si mesmo, se não permanece na videira, do komem
assim também vós, se não perma- necerdes em
no pensamento cristão
mim. Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele
que permanece em mim e eu nele produz muito
fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer. Se
Há grande riqueza no pensamento grego.
alguém não permanece em mim, é lançado
Mas a mensagem cristã vai muito além,
fora, como o ramo, e seca; tais ramos são
ultrapassando-o precisamente nos pontos
recolhidos, lançados ao fogo e se queimam. Se
essenciais. Entretanto, seria um grave erro
perma- necerdes em mim e minhas palavras
acreditar que essa enorme diferença comporte
permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e
apenas antíteses insanáveis. De todo modo,
ser-vos-á concedido” (Jo 15,1-7).
ainda que alguns hoje sejam desse

Este ícone reproduz bela imagem difundida com diversas variantes no ambiente greco -bizantino. Representa de modo
emblemático a frase evangélica:
"Eu sou a videira e vós os ramos".
Na representação do livro de Cristo e dos outros livros na mão dos Apóstolos, está simbolizada a fonte da Verdade e sua
expansão.
Primeira pãtte - ; A rev olução espiritu al da mensagem bí blica

parecer, essa não foi a tese dos primeiros Mas, depois da mensagem cristã, até a
cristãos, que, depois do brusco impacto inicial, medida grega do homem deve ser reavaliada.
trabalharam duramente para construir uma Como diz R. Grousset, “o coração humano é
síntese, como veremos. mais profundo do que a sabedoria antiga”.
Um erro de fundo dos gregos, para usar Com efeito, o homem, que os gregos tanto
as palavras de C. Moeller, está no fato de que exaltaram, é para o cristão algo muito maior do
“procuraram no homem aquilo que só podiam que pensavam os gregos, mas numa dimensão
encontrar em Deus. Foi grande o seu erro, mas diversa e por razões diversas: se Deus
trata-se do erro das almas nobres”. considerou que devia confiar aos homens a
Outro erro de fundo foi o de ter negado difusão de sua própria mensagem e se, até
com armas dialéticas aquelas realidades que mesmo, chegou a fazer-se-homem para salvar o
não se enquadravam em seus quadros homem, então a “medida grega” do homem,
perfeitos, como o mal, a dor e a morte (o mesmo tendo sido tão elevada, torna-se insu-
pecado é um erro de cálculo, dizia Sócrates; até ficiente e deve ser repensada a fundo. E, na
o cadáver vive, dizia Parmênides; a morte não é grandiosa tentativa de construir essa nova
nada, dizia Epicuro; até na tortura do ferro “medida” do homem, nasceria o humanismo
incandescente o sábio é feliz, dizia toda a cristão.
filosofia helenística).
A PATRÍSTICA NA
ÁREA CULTURAL DE
LÍNGUA GREGA

■ A elaboração da mensagem bíblica e o


filosofar na fé

“Cristo é o mais forte de todos,


porque se diz e é a verdade.”

Máximo o Confessor
Capítulo segundo

Os problemas filosóficos essenciais que derivam do encontro entre


“fé” e “razão”
Fílon de Alexandria e a Gnose

Capítulo terce iro

Os apologistas gregos e a Escola catequética de Alexandria

Capítulo quarto

Os três luminares da Capadócia e as grandes figuras do Pseudo-


Dionísio Areopagita, Máximo o Confessor e João Damasceno
Capítulo segundo

Os problemas filosóficos essenciais que


derivam do encontro , // r» // // ~ // entre te

e razao Fíl on de ;AI e^andria e a


C\nose

— I. Problemas emergentes ~
do impacto com a Kíblia

• A mensagem evangélica em sua complexidade suscitou uma série de pro-


blemas de grande porte:
1) problemas textuais (a seleção dos textos inspirados, ou probiemas seja,
a fixação do cânon); textuais,
2) problemas de coerência com o Antigo Testamento (como c/e coerência
conciliar o Deus de justiça do Antigo Testamento com o Deus entre os dois
de amor do Novo); Testamentos,
3) problemas teológicos (o problema trinitário e a fixação e teológicos
do dogma da Trindade no Concilio de Nicéia em 325). -> § 1-2

• Sobre a base desses grandes problemas era claro o esforço de definir a iden-
tidade do cristão, o que ocorreu em três momentos:
1) o dos Padres Apostólicos do séc. I (discípulos diretos dos
apóstolos), que tiveram de modo prevalente interesses morais Os Padres
e ascéticos); Apostólicos,
2) o dos Padres Apologistas do séc. II, que tentaram uma os
a
Apologistas,
Pat lca
defesa do cristianismo, recorrendo também a argumentos filo- ^
sóficos (de resto, o próprio Prólogo do evangelho de João abria 5

um caminho neste sentido);


3) por fim, o momento da Patrística (a partir do séc. III d.C.), que usou de modo
sistemático a filosofia (principalmente platônica) para dar uma base teórica para a
Revelação.

1 ;A questão da autenticidade dos ou seja, distinguir os documentos fidedignos


dos falsos, os autênticos dos inautênticos. Ao
textos bíblicos que parece, os primeiros documentos a serem
coligidos foram as Cartas endereçadas por
Cristo anunciou sua mensagem confian- Paulo às várias comunidades cristãs, às quais,
do-a à viva voz. Depois de sua morte, essa pouco a pouco, acrescentaram-se outros
palavra foi fixada em alguns escritos, a partir documentos. Mas foi bastante complexa a
da metade do século I. No curso do tempo, história que levou à formação do cânon
esses escritos se multiplicaram, mas somente definitivo (cuja composição apresentamos),
alguns ofereciam as necessárias garantias de sendo necessários três séculos e notáveis
credibilidade histórica. Portanto, a primeira esforços, porque alguns textos que, pouco a
tarefa urgente foi não apenas a de recolher esse pouco, com o amadurecimento da consciência
material, mas também selecioná-lo, crítica dos cristãos, tiveram de
Segunda pãYte - y \ T-^a+rí s+ica na área cul -fu ral cie Imgu a grega

ser excluídos do cânon, já se haviam tornado rente do Deus de amor do segundo. Para
familiares e caros para muitos. O cânon do muitos, uma grave dificuldade era represen-
Novo Testamento acabou sendo fixado em 367, tada sobretudo pela linguagem antropomór-
mediante uma carta de Atanásio. Mas, mesmo fica veterotestamentária. Tudo isso gerou
depois de fixado o cânon, continuou a grandes debates, favorecendo particularmente
produção de textos sacros. Os escritos a grande difusão da interpretação alegórica do
excluídos do cânon ou produzidos depois de Antigo Testamento (difundida por Fílon de
sua determinação denominam-se apócrifos do Alexandria, de que falaremos adiante) e a
Novo Testamento (por analogia com os apócrifos distinção de vários níveis de compreensão do texto
do Antigo Testamento, ou seja, os escritos que não bíblico, que abririam amplos espaços para a
se encontram no cânon do Antigo Testamento). reflexão teológica, moral e filosófica.

2 questão
da conciliabilidade do
y\ntigo
e do A) ovo "Testamento

A segunda questão, ligada a essa, diz


respeito ao Antigo Testamento. O cristão deve
aceitá-lo. Cristo foi categórico sobre esse ponto:
“Não penseis que vim revogar a Lei e os
Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes
pleno cumprimento, porque em verdade vos
digo que, até que passem o céu e a terra, não
será omitido nem um só i, uma só vírgula da
Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele,
portanto, que violar um só destes menores
mandamentos e ensinar os homens a fazerem o
mesmo, será chamado o menor no Reino dos
Céus”. E o próprio Cristo citou grande número
de passagens do Antigo Testamento como
tendo valor de verdade e de autoridade
indiscutível. Mas como interpretar as verdades
expressas no Antigo Testamento? Como
conciliar as diferenças existentes entre o Novo e
o Antigo Testamento? Os gnósticos (de que
falaremos adiante) ainda complicaram as
coisas, rejeitando o Antigo Testamento e
chegando a declará-lo até mesmo obra de um
E)eus diferente e inferior ao do Novo
Testamento. Para alguns, o Deus de justiça do
primeiro pareceu dife-

Díptico com as Festas do Senhor, chamado "grego"


(marfim do séc, XI conservado em Milão, Tesouro
da Catedral).
Sobre duas lâminas estão representadas cenas
evangélicas - que aludem ao dogma da redenção
por meio da encarnação e da paixão de Cristo -,
bem identificadas e por vezes comentadas por uma
inscrição em grego.
Capitulo SCgundo - PVoblemas filosóficos essenciais...

3 ;A questão Nesse trabalho complexo, que levou al-


da identidade do cristão guns séculos, podemos distinguir três mo-
mentos fundamentais:
a) o dos “Padres apostólicos” do séc. I
Ademais, logo nasceria a urgente neces- (assim chamados porque ligados aos apóstolos
sidade de se defender das acusações de seus e ao seu espírito), que ainda não enfrentam
adversários (particularmente dos hebreus, dos problemas filosóficos, limitando-se à temática
pagãos e, depois, também dos heréticos, moral e ascética (Clemente Romano, Inácio de
sobretudo dos gnósticos), que deformavam a Antioquia, Policarpo de Es- mirna);
mensagem evangélica, bem como de construir a b) o dos “Padres apologistas”, que, ao
identidade dos cristãos em todos os níveis. longo do séc. II, realizaram uma “defesa”
sistemática do cristianismo, na qual os filósofos
aparecem freqüentemente como os adversários
a combater, mas quando se começa também a
usar as armas dos filósofos para construir a
própria defesa;
c) o momento da Patrística propriamente
dita, que vai do séc. III ao início da Idade
Média e no qual o elemento filosófico,
especialmente platônico, desempenha papel
bastante considerável.
“Padres da Igreja”, portanto, são todos
aqueles homens que contribuíram de modo
determinante para construir o edifício
doutrinário do cristianismo, que a Igreja
acolheu e sancionou.

4 mdt
Os grandes problemas )t>lé
teol ógicos

Como fica claro pelo que se disse, o


interesse desses homens, até dos mais cultos, é
antes de mais nada religioso e teológico. Sua
“filosofia” é sempre parte integrante de sua fé.
Os problemas teológicos maiores que
reclamaram o envolvimento de importantes
conceitos filosóficos (com as respectivas
discussões) foram:
a) o da Trindade;
b) o da Encarnação;
c) o das relações entre liberdade e graça;
d) o das relações entre fé e razão.

a) A formulação definitiva do dogma da


Trindade só ocorreu em 325, no Concilio de
Nicéia, depois de longas discussões e
polêmicas, quando foram identificados e
denunciados os perigos opostos do adocio-
nismo (que consistia em não considerar Cristo
como filho “gerado”, mas sim “adotado” por
Deus Pai), que comprometia a divindade de
Jesus, e do modalismo (que consistia
Segunda parte - 7^ Patrística na área cu ltu ral de lí ngua grega

em considerar as pessoas da Trindade como cos, como os de geração, criação, emanação,


modos de ser e funções do único Deus), bem como processão, substância, consubstancia- lidade,
uma série de posições relacionadas a estas de bipóstase, pessoa, livre-arbítrio, vontade e
diversos modos. semelhantes — acarretando assim grande
b) O problema cristológico também re- densidade filosófica nas discussões e o seu
quereu séculos de trabalhosa elaboração e a progressivo crescimento em sentido ontológico
superação de obstáculos de grande dificuldade, e metafísico.
sobretudo o perigo de cindir as duas naturezas
(a divina e a humana) de Cristo, a ponto de
perder sua unidade intrínseca (como ocorreu
com a doutrina de Nestório e com o 5 O grande. Prólogo
nestorianismo), ou então de reduzir essas do ÊvangeIko de ^João
naturezas a uma só (monofisismo). O Concilio
de Éfeso (431) condenou o mono- .fisismo, e o
O texto básico para a mediação racional e
Concilio de Calcedônia (451) condenou o
a sistematização da doutrina e da filosofia
nestorianismo, estabelecendo a fórmula “duas
cristãs foi o prólogo do Evangelho de João
naturezas em uma só pessoa, a de Jesus”, ou
(além das Epístolas de Paulo), que fala do
seja, definindo que Jesus é “verdadeiro Deus” e
“Verbo” ou “Logos” divino, e fala de Cristo
“verdadeiro homem”. Os debates sobre esses
precisamente em termos de Lo- gos: “No
dogmas continuaram mesmo depois disso, mas
princípio era o Verbo (Logos) e o Verbo estava
já sobre bases essenciais consolidadas.
com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele
c) Sobre o terceiro problema, trataremos
estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele
ao falar de santo Agostinho.
e sem ele nada foi feito de tudo o que existe.
d) Por fim, o problema das relações entre
Nele estava a vida e a vida era a luz dos
fé e razão, expressamente levantado na escola
homens e a luz brilha nas trevas, mas as trevas
catequética de Alexandria e que já encontra
não a apreenderam. (...) Ele estava no mundo e
uma primeira solução muito clara em
o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo
Agostinho, mas que se tornaria problema
não o conheceu. Veio para o que era seu e os
central na Escolástica, dando origem a
seus não o receberam. Mas aos que o receberam
diferentes tipos de soluções, ricas em impli-
deu o poder de se tornarem filhos de Deus: os
cações e conseqüências.
que crêem em seu nome, que não nasceram do
Todos esses problemas, como já obser-
sangue, nem da vontade da carne, nem da
vamos, envolveram a discussão de importantes
vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo se
conceitos metafísicos e antropológi
fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua
glória, como a glória do Unigênito do Pai,
cheio de graça e de verdade. (...) Porque a lei
foi dada por meio de Moisés; a graça e a
verdade nos vieram por Jesus Cristo. Ninguém
jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está
voltado para o seio do Pai, este o deu a co-
nhecer”.
Esse texto se apresentou como o mapa
fundamental dos problemas essenciais. E o
conceitò de Logos permitiu utilizar de modo
fecundo uma série de elementos do pensa-
mento helênico, que culminara no conceito de
Logos, como gradualmente examinaremos.

Cabeça do apóstolo João. Mosaico do séc. XII (Basílica


Ursiana, Ravena).
Cãpítulo Segundo - Problemas filosóficos essenciais...

; II. LAm precursor: : Fíl


o n de y\lexandria

• Fílon de Alexandria (ou Fílon Judeu) toma da Estoá o Precedentes


conceito de Logos, e de Platão a estrutura do mundo supra- edesenvolvimentos
sensível e o das Idéias, que reforma de modo profundo, consi- § 1
derando-o como objeto do pensamento de Deus e criação de
Deus. Do Antigo Testamento toma grande parte dos traços éticos, antropológicos
e teológicos que interpreta e traduz à luz da alegorização filosófica.

• Fílon pode ser considerado precursor dos Padres, princi- a/eoona


palmente porque foi o primeiro a tentar uma mediação entre 7
a mensagem bíblica e a filosofia grega, dando assim forma ao
que ele próprio chamava de "filosofia mosaica". O instrumen-
to dessa filosofia é a alegoria filosófica que procura, sob a letra do texto revelado,
significados e conceitos filosóficos, de modo que no fim o relato histórico da Sa-
grada Escritura é transcrito como mensagem filosófico-teológica.

• Esta operação permitiu produzir termos e conceitos de grande relevo e de


grande utilidade para os primeiros exegetas cristãos, como, por exemplo, os con-
ceitos de Logos, Potência e Cosmo inteligível. Logos, com efei-
to, significa também "palavra" e no texto bíblico indica a pala- o Logos
vra criadora de Deus ou a Sabedoria. Fílon transforma essa "pa- -> § 2
lavra" em uma hipóstase criadora (chamando-a por vezes de
"Arcanjo", "Mente de Deus", "Filho primogênito de Deus" etc.), na qual se forma
o projeto ideal do mundo (= cosmo inteligível, correspondente do mundo das
Idéias platônicas) durante a criação.

• Deus, conforme o relato bíblico, tem outras atividades (por exemplo, rege o
mundo, julga, dispensa as graças) e, como no caso da Palavra, também estas são
hipostatizadas e tomam o nome de Potências: teremos assim a _,
Potência real, a benfeitora etc. Toda essa formação de hipóstases Potências
tem a função de não pôr Deus em contato direto com o mundo ^§2
material, considerado mau.

% Fílon introduz conspícuas novidades também em antro- Antropologia pologia, e


sempre com base na leitura alegórica da Bíblia; in- ^ . § 3 terpreta o homem como
constituído por três elementos: o corpo, a alma-intelecto e o Espírito; apenas este
último seria imortal, porque diretamente inspirado por Deus.

• No campo moral, o Alexandrino fundiu de modo coerente a fé com a razão,


considerando a ética como um itinerário para Deus, uma "migração" (análoga à do
pai Abraão da terra da Caldéia), que nos leva a entrar de novo em nós mesmos,
depois de deixar todo interesse pelo mundo externo. Uma vez descoberta nossa
nulidade e o fato de que nós mesmos somos Ética um dom de Deus, é preciso
remontar até Ele e a Ele nos ligar- § 4 mos no êxtase.
32
Segunda paTte - y\ T-^atrí stica na área cultu ral de lí ngua grega

iliii .A "filosofia mosaica* "L . •

■ Logos. Provavelmente deduzindo-


O judeu Fílon, que nasceu em Alexandria o do texto bíblico, onde a "palavra"
entre 15 e 10 a.C., desenvolvendo suas (em grego logos) de Deus é criadora
do mundo, e talvez também com a
atividades na primeira metade do século I d.C.,
intenção de interpor entre Deus e o
pode ser considerado um precursor dos Padres, mundo hipóstases para lhe garantir
pelo menos em certa medida. a transcendência, o judeu Fflon apre-
Entre suas obras numerosas, destaca- se a sentou pela primeira vez o Logos
série de tratados que constituem um Comentário como Deus segundo, ou Filho primo-
alegórico do Pentateuco (devemos recordar sobretudo gênito do Pai, criador do mundo. Re-
A criação do mundo, As alegorias das leis, O herdeiro metendo-se também à imagem da
das coisas divinas, A migração de Abraão e A "Sabedoria" bíblica, ele concebeu o
mutação dos nomes, que estão entre os mais belos).
Logos como mente de Deus, na qual
Deus traça, sob a forma das Idéias
O mérito histórico de Fílon está em ter pla-
tentado pela primeira vez na história uma fusão tônicas, o projeto do cosmo, ao ato
entre filosofia grega e teologia mosaica, da criação.
criando assim uma “filosofia mosaica”. O Como é fácil imaginar, os primeiros
método com o qual Fílon operou a mediação pensadores cristãos, já a partir do
foi o da “alegorese”. Ele sustenta que a Bíblia evan-
tem: gelista João, encontraram neste con-
ceito uma poderosa prefiguração de
a) um significado literal, que, no entanto,
Cristo, e o assumiram de modo está-
não é o mais importante;
s
vel em sua bagagem cultural e teoló-
b) um significado oculto, segundo o qual gica.
as personagens e eventos bíblicos são símbolos
de conceitos e verdades morais, espirituais e
metafísicas.
Essas verdades subjacentes (que se co- górica alcançará grande êxito, tornando-se um
locam em diferentes níveis) requerem parti- verdadeiro método de leitura da Bíblia para a
cular disposição de espírito (quando não, até maioria dos Padres da Igreja e transformando-
mesmo, uma verdadeira inspiração) para que se, assim, por longo tempo, numa constante.
se possa captá-las. A interpretação ale- A filosofia mosaica de Fílon representou
a aquisição de uma série de novos conceitos,
desconhecidos para o pensamento grego, a
começar pelo conceito de “criação”, do qual ele
forneceu a primeira formulação em termos
') l,- sistemáticos: Deus cria a matéria do nada e
depois imprime a forma sobre ela. Mas, para
■ Alegoria. É uma imagem que é criar o mundo físico, Deus cria, antes dele, o
apresentada como símbolo de um cosmo inteligível (as Idéias) como “modelo
conceito. Interpretação alegórica dos
ideal”. E esse “cosmo inteligível outra coisa
textos é, portanto, a que procura
percorrer de novo em sentido inverso não é que o Logos de Deus no ato de formar o
esta relação, ou seja, reconduzir as mundo” (as Idéias platônicas, desse modo,
imagens ao sentido filosófico que as tornam-se definitivamente pensamentos de
inspirou. Mestre e também teórico Deus presentes no Logos de Deus e
deste gênero de exegese foi Fílon, coincidentes com ele).
que o aplicou de modo sistemático à
Bíblia. Segundo Fílon, sob as
personagens e os eventos estão
precisos significados filosóficos, em
vários níveis. A filosofia de Fílon
consiste justamente em uma 2V eus. "La 9 os
"Pod ev-
interpretação da Bíblia em chave
alegórica. Do método de Fílon
depende em grande medida a
Fílon distingue o Logos de Deus, dele
interpretação da Sagrada Escritura
dos primeiros pensadores cristãos. fazendo uma hipóstase, a ponto de denominá-
lo até “Filho primogênito do Pai incria- do”,
“Deus segundo” e “Imagem de Deus”.
Capítulo segundo - Pr oblemas filosóficos essenciais...

Em algumas passagens, fala dele até como dimensão, de tal natureza que chega a trans-
causa instrumental e eficiente. Em outras formar radicalmente o significado, o valor e o
passagens, porém, fala dele como Arcanjo, alcance das outras duas. Segundo essa nova
Mediador entre criador e criaturas (à medida concepção, na qual o componente bíblico torna-
que não é incriado, como Deus, mas também se predominante, o homem é constituído por:
não é criado, como as criaturas do mundo), 1) corpo;
Arauto da paz de Deus e Conservador da paz 2) alma-intelecto;
de Deus no mundo. 3) Espírito proveniente de Deus.
Além disso, o que é muito importante, o Segundo a nova perspectiva, o intelecto
Logos de Fílon expressa as valências fun- humano é corruptível, no sentido de que é
damentais da “Sabedoria bíblica” e da “Palavra intelecto “terreno”, a menos que Deus inspire
de Deus” bíblica, que é a Palavra criadora e nele “uma força de verdadeira vida”, que é o
produtora. Por fim, o Logos também expressa o Espírito divino (pneuma).
significado ético de “Palavra com que Deus Está claro que, considerada em si mesma,
guia ao bem”, o significado de “Palavra que a alma humana (ou seja, o intelecto humano)
salva”. Em todos esses significados, o Logos seria algo muito pobre se Deus nela não
indica uma realidade incor- pórea, ou seja, soprasse o seu Espírito (pneuma). Para Fílon, o
metassensível e transcendente. Mas, como o momento que realiza o vínculo do homem ao
mundo sensível é construído segundo o modelo divino não é mais a alma, como para os gregos,
inteligível, ou seja, segundo o Logos — e mais: nem sequer a sua parte mais elevada, o
pelo instrumento do Logos —, existe também intelecto, mas sim o Espírito, que deriva
um aspecto ima- nente do Logos, que é ação do diretamente de Deus. Conseqüentemente, o
Logos incor- póreo sobre o mundo corpóreo. homem tem uma vida que se desenvolve em
Nesse sentido imanente, o Logos é o vínculo que três dimensões:
mantém o mundo unido, o princípio que o 1) segundo a dimensão física puramente
conserva e a norma que o governa. animal (corpo);
Como Deus não é finito, inumeráveis são 2) segundo a dimensão racional (alma-
as manifestações de sua atividade, que Fílon intelecto);
chama de “Poderes”. No entanto, ele só 3) segundo a dimensão superior, divina e
menciona um número limitado desses poderes transcendente do Espírito.
e, normalmente, só chama em causa os dois Em si mesma mortal, a alma-intelecto
principais (e a eles subordina todos os torna-se imortal à medida que Deus lhe dá o
restantes): o Poder criador, com o qual o Criador seu Espírito, ela se vincula ao Espírito e vive
produz o universo, e o Poder régio, com o qual o segundo o Espírito. E caem assim os
Criador governa aquilo que criou. sustentáculos sobre os quais Platão procurara
A relação entre o Logos e os dois Poderes alicerçar a imortalidade da alma. A alma não é
supremos (e, portanto, entre o Logos e todos os imortal em si mesma, mas pode- se tornar
outros poderes, que, como dissemos, se imortal à medida que sabe viver segundo o
subordinam aos dois principais) é Espírito.
expressamente tematizada por Fílon. Em alguns
textos, ele considera o Logos como fonte dos
outros poderes; em outros, porém, ele atribui
ao Logos a função de reunir os outros poderes. i
i]
4 A nova ética

Todas as significativas novidades que


Fílon introduz na ética dependem precisamente
dessa terceira dimensão — o Espírito de Deus
3 ;A antropologia fil oniana —, que deriva diretamente da interpretação da
doutrina da criação e da teologia bíblica em
geral. A moral torna-se inseparável da fé e da
Na antropologia, Fílon parece seguir em religião, desembocando em verdadeira união
parte Platão, distinguindo “alma” e “corpo” no mística com Deus e em uma visão extática.
homem. Mas, pouco a pouco, ele amadurece Por causa desse aspecto é a figura de
uma concepção mais avançada, fazendo Abraão que serve como modelo, principal
irromper no homem uma terceira
Segunda parte - A Pa+r í s+i ca na ár ea c ul + ur al de l í ng u a g r eg a

mente por seu caráter de “migrante”. Com nós mesmos, compreendendo que tudo o que
ousada transposição alegórica, a migração de temos não é nosso e dedicando-o a quem no-lo
Abraão torna-se o símbolo da viagem de toda deu. E é nesse preciso momento que Deus se dá
alma para a salvação e as várias terras que o a nós. Eis um texto significativo: “Para a
patriarca atravessou na sua vida (Egito, criatura, o momento justo para encontrar o seu
Caldéia...), tornando-se igualmente etapas que Criador ocorre quando ela reconheceu a sua própria
a alma deve alcançar na sua purificação nulidade”. E eis outro texto, que resume o
segundo uma perspectiva moral (do vício à itinerário: “A glória de uma alma
virtude), intelectual (da fé no cosmo à fé em extraordinariamente grande é ultrapassar o
Deus) e psicológico-pedagógica (da infância à criado, superar os seus limites e vincular-se
maturidade). somente ao incriado, segundo os preceitos
Por esse caminho, Fílon antecipa aquele sagrados, nos quais é prescrito „apegar-se a ele‟
“itinerário para Deus” que, posteriormente, em (Dt 30,20). Por isso, àqueles que se apegam a
alguns Padres, especialmente de Agostinho em ele e o servem sem interrupção, em troca, ele se
diante, se tornará canônico. Do conhecimento dá a si mesmo em herança”.
do cosmo, transcendendo o próprio cosmo, A vida feliz consiste precisamente nessa
devemos passar a nós mesmos e ao transcendência do humano na dimensão do
conhecimento de nós mesmos; mas divino, “vivendo inteiramente para Deus ao
o dado essencial consiste exatamente no invés de viver para si mesmo”.
momento em que também transcendemos a

III. y\ nose

• Gnose significa "conhecimento" e designa a iluminação particular que al-


gumas correntes religioso-filosóficas consideravam possuir e que codificavam em
determinadas fórmulas, ou imagens, ou conceitos. Os principais são os seguintes:
1) o conhecimento gnóstico se refere a Deus e à salvação
ultraterrena, apresenta-se como doutrina secreta revelada por Os fundamentos Cristo
a poucos discípulos, e transcrita nos Evangelhos gnósticos; do pensamento 2) a
concepção do mundo dos Gnósticos é pessimista e é
9n
°s 7 4° expressão da humanidade angustiada: ela, com efeito, vê o
’ cosmo como reino do mal, e considera a nossa permanência
nele como um exílio;
3) os homens, conforme sua relação com a Gnose, distinguem-se em pneumá-
ticos (os que mais participam do conhecimento e se destinam à salvação), hílicos
(ou seja, ligados à terra e destinados à perdição) e psíquicos (abertos a uma ou
outra destinação);
4) este mundo foi criado por um Demiurgo mau (o Deus do Antigo Testamento)
e é resgatado por um Deus bom (Cristo);
5) a derivação da realidade cósmica e inteligível a partir da unidade primor dial
explica-se por via alegórica com a separação de casais de seres eternos (chamados
"éons") em uma ordem bastante complicada, e por vezes fruto de fantasia.

1 Sig nificado mas correntes religioso-filosóficas do tardio


do termo “gnose" paganismo, sobretudo de algumas seitas he-
réticas inspiradas no cristianismo.
As doutrinas herméticas e a dos Oráculos
O termo gnose quer dizer, literalmente, caldeus podem ser consideradas formas de
“conhecimento”, mas, tecnicamente, tornou-se gnose pagã. Mas a gnose que nos interessa aqui
indicador daquela forma particular de é a que se vinculou ao cristianismo, a ele
conhecimento místico própria de algu misturando vários elementos
Capitulo SegUHdo - Problemas filosóficos essenciais...

helenísticos e também orientais, e contra a qual revelando ademais nossa verdadeira identi-
os Padres vivamente polemizaram. dade, que consiste na pertença ao bem origi-
nário: se o homem sofre o mal, isso significa
que ele pertence ao bem. Portanto, o homem
2 Os novos documentos provém de outro mundo e a ele deve retornar.
gnósticos descobertos Este mundo é o nosso “exílio” e o outro mundo
é a nossa “pátria”. Um dos mais significativos
Até há pouco tempo, os estudiosos la- documentos gnósticos afirma: “Quem conheceu
mentavam a grande penúria de documentos o mundo, encontrou um cadáver. E o mundo
conservados sobre a gnose e o fato de que não é digno de quem encontrou um cadáver”.
precisavam se basear predominantemente nos O gnóstico deve tomar consciência de si e,
testemunhos dos seus adversários para conhecendo-se a si mesmo através de si
reconstruir a gnose cristã. mesmo, poderá então retornar à pátria
Todavia, em 1945, em Nag Hammadi (no originária. Papel essencial nesse “retorno” é
Alto Egito), foram casualmente descobertos em desempenhado pelo Salvador (Cristo), que é
um cântaro enterrado nada menos que um dos “éons” divinos.
cinqüenta e três escritos, quase todos gnósticos, c) Os gnósticos dividem os homens em
em língua copta, dos quais pelo menos três categorias:
quarenta e três eram inteiramente novos. 1) pneumáticos;
Entretanto, só foram publicados entre 1972 e 2) psíquicos-,
1977, devido a uma série de contrariedades de 3) hílicos.
diversos tipos e à proibição de livre acesso feita Nos primeiros, predomina o Espírito
pelo Museu Copta do Egito, que se reservou a (pneuma); nos segundos, a alma (psyché); nos
posse dos textos. Somente em 1977 foi ultimada terceiros, a matéria (hyle). Os últimos são
uma tradução inglesa completa dos destinados à morte, os primeiros à salvação e
documentos. os segundos têm a possibilidade de salvação,
Muitos desses textos tornaram-se recen- caso sigam as indicações dos primeiros, isto é,
temente disponíveis em outras línguas, na co- os eleitos, que possuem a “gnose”.
letânea Os apócrifos do Novo Testamento.
Entretanto, serão necessários muitos anos d) Este mundo, que é mal, não foi feito
ainda para que as necessárias e prévias por Deus, mas sim por um demiurgo mau.
investigações analíticas e particulares possam Alguns acreditam que a essência do Gnosti- cismo
permitir conclusões sintéticas e gerais. se expressa perfeitamente nas seguintes
palavras de Plotino: os gnósticos “sustentam
que o demiurgo deste mundo é mau e que o
3 CDs traços essenciais cosmo é mau”. Explica-se, assim, o fato de que
da doutrina da gnose o Deus do Antigo Testamento, criador deste
mundo, fosse identificado com esse “demiurgo
a) O objeto específico do “conhecimento” mau”, e que se contrapunha ao Deus benigno
gnóstico é Deus e as coisas últimas relativas à do Evangelho, que, ao contrário, enviou o
salvação do homem. Um texto básico explica, de Cristo salvador. Cristo é uma entidade divina,
modo resumido, que a gnose diz respeito aos que veio à terra revestida de um corpo apenas
seguintes pontos: aparente. A interpretação alegórica dos textos
1) quem éramos e o que nos tornamos; sacros permitia aos gnósticos dobrá-los às suas
2) onde estávamos e onde fomos lan- exigências.
çados;
e) O sistema gnóstico complica-se par-
3) aonde desejamos ir e de onde fomos
ticularmente quando tenta explicar a derivação
resgatados;
de toda a realidade inteligível da unidade
4) o que é o nascimento e o que é o
primordial por meio de uma série de “éons”
renascimento.
(entidades eternas), que emanam em duplas
b) Na experiência do gnóstico, a tristeza e a (segundo alguns, Cristo seria o último éon),
angústia emergem como dados fundamentais, porque bem como a própria derivação do homem. A
revelam um impacto com o negativo e a propósito disso, o pensamento gnóstico revela-
conseqüente tomada de consciência de uma se ainda mais complicado pela presença de
cisão radical entre o bem e o mal, narrativas mitológicas e fantásticas de vários
gêneros e diversas gêneses.
Segunda parte - A PaMs+i ca na área cul+ural de língua grega

f) A doutrina gnóstica se apresenta como lêmicas demonstram a forte influência que esse
doutrina secreta, revelada por Cristo a poucos movimento deve ter exercido na antiguidade
discípulos, dirigindo-se especialmente às sobre os espíritos. Com efeito, naquela época
camadas cultas e refinadas e, portanto, tem que via um mundo espiritual perecer e outro
caráter aristocrático, em antítese com o surgir — e que exatamente por isso foi uma
autêntico espírito evangélico. Os Evangelhos época dominada pela angústia —, os gnósticos
gnósticos apresentam-se precisamente como os davam (talvez mais do que outros movimentos
documentos dessa “revelação secreta”. filosóficos) um sentido a essa angústia e,
Entre os defensores das doutrinas gnós- portanto, estavam em sintonia com certo modo
ticas, destacamos: Carpócrates e seu filho Epí- de sentir próprio daqueles tempos.
fanes, Basílides e seu filho Isidoro e, sobretudo, Um dos documentos descobertos em Nag
Valentim, que teve muitos seguidores. Hammadi afirma: “A ignorância do Pai havia
causado angústia e terror. A angústia se fizera
densa como a névoa, de modo que ninguém
4 A “QV\ose." pudesse ver...”. E, como sabemos de outra
como expressão da angústia de fonte, a própria materialidade e a corporeidade
constituíam para eles experiências de “terror,
uma época dor e falta de saída”. Mas, por mais que
pudesse responder a instâncias precisas
Os Padres encontraram (e com justa ra-
daquela época, a mensagem gnóstica revelou-se
zão) nas doutrinas gnósticas um viveiro de
frágil e sem futuro.
doutrinas heréticas. Mas suas insistentes po
, 37
Cãpítulo segundo - Pfoblemas filosóficos essenciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3. Portanto, quando o Cscritura diz: “No sexto


FÍLON DE ALEXANDRIA dia levou a termo as obras" (Gn 2,2), não se deve
crer que ela faça referência a certo número de dias,
mas 00 número 6, que é perfeito, porque é a
primeiro cifra que é igual à [soma das] suas partes
(ou seja, à sua metade, mais o seu terço, mais o seu
fl criação do mundo sexto) e é o produto de fatores desiguais:
justamente o 2 e o 3. De resto, a díade e a tríade
infringiram a não-corpo- reidade do mônada, uma
vez que a primeira é imagem da matéria, enquanto,
fí passagem que citamos ilustra de modo como a matéria, é divisível e seccionável, enquanto
exemplar quol é o movimento da exegese alegórica a tríade é imagem do corpo sólido, porque nele se
de fílon, ou seja, da Bíblia à filosofia, e do "Fato" ao distinguem as três dimensões.
conceito. 4. Além disso, o número 6 é congênere ao
O livro do Gênesis apresenta, de Formas movimento dos seres vivos dotados de aparato
concretas ("míticas"), o evento do criação, mas o locomotor. O corpo destes seres, com efeito, é, por
intérprete transforma estes Fatos em equivalentes natureza, capaz de se mover em seis direções: para
conceitos de cunho platônico: “céu, terro e mundo" a frente, para trás, para o alto, para baixo, para a
tornam-se idéias exemplares: os sete dias da direita e para a esquerda. A sagrada Cscritura quer,
criação representam a ordem numérica e, portonto, portanto, mostrar-nos como os gêneros mortais e
raciono!, da ação divina. também os incorruptíveis estão em relação com
números correspondentes: o gênero mortal,
conforme se disse, equipara-se à êxade,' e o gênero
feliz e beato à hebdômada. 2
1. A criação e os números
2. O valor alegórico do número 7
1. "6 o céu e o terra e todo o seu mundo
5. No início, portanto, depois de ter concluído
Foram computados" (Gn 2,1). Se ant 0s fala- ra-s0 da
a constituição dos seres mortais, Deus começa, no
gênese do intelecto e da sensação, agora se Fala do
sétimo dia, a formação dos outros seres, os mais
cumprimento de ambas. A sagrada Cscritura, porém,
divinos. Deus, na verdade, jamais cessa de criar,
diz qu0 não foram o in- t0l0cto individual e a
sensação particular que foram levados ao mas, como é próprio do fogo queimar e da neve
cumprimento, mas as Idéias correspondentes, a do resfriar, também é próprio de Deus o fazer: melhor,
intelecto e a da sensação. Do ponto de vista estas propriedades competem a ele muito mais do
alegórico, o intelecto é chamado de "céu", que aos outros, uma vez que ele é também a origem
justamente porque as naturezas inteligíveis estão no da atividade de todos os outros seres.
céu, 0 a sensação d0 "terra", dado que esta possui ó. Todavia, a Escrituro não erra ao dizer que
uma constituição corpórea e mais semelhante à "pôs fim” (Gn 2,2) em vez de "parou". Deus, com
terra. O "mundo" do intelecto é, portanto, o conjunto efeito, "põe fim" às realidades que parecem agir,
das realidades incorpóreas e inteligíveis; o do sen- mas que, na verdade, são inativas, enquanto, de
sação, o conjunto dos seres corpóreos e dos fato, ele próprio não "deixa" de agir. Por tal motivo,
sensíveis em geral. acrescenta-se "pôs fim às coisas que havia
empreendido" (Gn 2,3). Com efeito, tudo o que
nossa arte produz, uma vez realizado, permanece
2. "€ no sexto dia Deus levou a termo suas imóvel e permanece tal e qual; todavia, as
obras, as que havia criado" (Gn 2,2). S 0m dúvida realidades que a ciência de Deus cria, uma vez
S0ria tolice crer que o cosmo tenha sido gerado em realizados, estão em movimento, de modo que o fim
seis dias, ou, em geral, no tempo. Por quê? Porque de algumas é o início de outras, assim como o fim
se o tempo em sua complexidade nasce da
do dia é o início da noite. Do mesmo modo,
seqüência dos dias e das noites (cf. Gn 1,14), e isso
certamente, devemos crer que os meses e o ano
se realiza necessariamente por meio do movimento
presentes são o fim dos passados.
do sol acima e sob a terra (e, por outro lado, o sol é
uma parte do céu, de modo que é preciso convir que
o tempo nasceu depois do cosmo), então é to-
talmente justo aFirmar que o cosmo não Foi criado
no tempo, mas que, ao contrário deste último,
subsiste em razão do cosmo. Com efeito, foi
justamente o movimento do céu que tornou manifesta
a natureza do tempo. 'isto 0, 00 número 6 0 suas propriedades simbólicas. 2lsto é,
ao número 7 e suas propriedades simbólicas.
38
Segunda parte - y\ Patrí stica na área cu ltu ral de lí ngu a grege

7. Como o nascimento de alguns seres pos irrigados: com efeito, se o fluxo excessivo
depende da dissolução de outros, assim também, transborda, o terreno ficará lodoso e barrento, em
por sua vez, a dissolução de alguns depende do vez de fértil. Para que eu seja fecundo, é preciso
nascimento de outros. Neste sentido é verdadeiro o que o fluxo esteja em minha medida e não
dito: "Nada morre daguilo que nasce, mas, desmedido.
dividindo-se uma coisa em outra, dão lugar a uma 33. Por isso eu pergunto: "O que me darás",
única forma".3 tu que me fizeste dons infinitos, no limite do que
Fílon, fís alegorias das Leis, I, em Todos pode receber uma natureza mortal? Aquilo que, por
os tratados do Comentário alegórico da outro lado, desejo ainda aprender e adquirir é isto:
Bíblia. quem poderá ser o digno herdeiro de teus
benefícios?
34. Ou então "arrisco a morrer sem filhos"
(Gn 1 5,2), tendo recebido um bem caduco, efêmero,
de breve duração, eu que peço ter o contrário, isto é,
um bem duradouro, que permaneça no tempo,
A nulidcide do homem incontestável, imortal, que possa espalhar suas
sementes, estender suas raízes, que tenho solidez e
que possa levantar seu tronco direto para o céu?
Fl nulidade do homem, proclamada aqui por
35. G certamente necessário que a virtude do
Fílon, está longe de ser uma humilhação da
homem caminhe sobre a terra, mas também que
pessoa humana ou um perder-se em Deus. Se
chegue até o céu, a fim de que lá, nutrida pela
dermos atenção à psicologia dos personagens,
incorruptibilidade, possa permanecer incólume para
notaremos que a personalidade de Rbraão de
sempre.
modo nenhum está "perdida", mas muito mais
3ó. Sei bem que tu, que conduzes ao ser as
viva e determinada. Fílon, portanto, une
coisas que não existem e geras todas os realidades,
estreitamente o reconhecimento dos próprios
não amas uma alma estéril e infe- cunda, uma vez
limites com a consciência da dignidade humana,
que concedeste à estirpe dos videntes a graça
pois o homem é exatamente parente e íntimo de
extraordinária de jamais serem estéreis e sem
Deus.
descendentes. Pois bem, também eu, que faço parte
dessa estirpe, desejo, com todo direito, ter um
herdeiro. C, a partir do momento que vejo que essa
30. C meu estado de ânimo que Moisés, o
estirpe não se extingue, penso que seria tanto mais
perserutador, inscreveu sobre o meu memorial. Ge,
indigno permitir que meu desejo de beleza acabe em
com efeito, diz: “Aproximando-se, Abraão disse:
nada.
'Agora cheguei a falar com meu Senhor, eu que sou
37. Portanto, suplico e imploro que, assim
terra e pó" (Gn 18,23.27), uma vez que o momento
como as sementes e as brasas jazem sob a cinza,
exato para a criatura encontrar seu Criador chega
também a chama salvífica do virtude possa acender-
quando ela reconheceu sua própria nulidade.
se e resplandecer e, transmitindo-se como chama de
31. As palavras "O que me darás?" não
uma geração para outro, dure o quanto o mundo
exprimem a pergunta de quem se encontra no
durar.
dúvida, e sim de quem está grato por causa da
38. Aos ascetas concedeste o ardente desejo
grandeza e da plenitude dos bens de que goza. "O
de semear e gerar filhos da alma, e, quando os
que me darás?" significa: o que mais poderia ainda
obtiveram, gritaram de alegria e disseram: "Gis as
esperar em acréscimo? Ó tu, que gostas de dar,
crianças; através delas Deus mostrou a compaixão
tuas graças são abundantes, sem confins, e não
para com seu servo" (Gn 33,5). A inocência é sua
têm limite nem termo e, como fontes, derramam
oma e nutriz; suas almas são puras, suaves e
águas mais abundantes do que as que delas são
nobres; estão preparadas para receber as marcas
alcançadas.
sublimes e divinas da virtude.
32. € bom, porém, olhar não só para o fluxo
sempre transbordante de seus benefícios, mas Fílon,
também para nós que somos como cam O herdeiro das coisas divinas, em Todos
os tratados do Comentário alegórico do
Bíblia.

3
€urípides, fr. 839 Nciuck.
(Sapí+ulo terceiro

Os apologistas gregos e a Êscola


catequética de 7Alexci^vdria

I. Os ;Apologis+as gregos do século II:


^Aris+ides, 3^ us ^' KVO / "Caciano

• Justino foi o primeiro platônico cristão e o mais importante dos apologistas.


Retomou de Fílon a doutrina do Logos, que identificou com Cristo: nos homens
estão presentes "sementes" do Logos, graças às quais cada ho-
mem pode conhecer parte da verdade. Concebeu a alma hu- Justino
mana como mortal por natureza, porque tudo o que vem de- Mártir e os
pois de Deus, enquanto gerado, é corruptível. outros
Outros apologistas do séc. II foram: apologistas
-Taciano, discípulo de Justino, valente adversário da filo-
do séc. II
H>§ 1-6
sofia grega;
- Atenágoras, que forneceu a primeira prova racional da unicidade de Deus e
se empenhou sobre o problema trinitário;
-Teófilo de Antioquia, que retoma a doutrina do Logos de Justino para explicar
a Trindade;
- o autor da Carta a Diogneto, pequena jóia da literatura cristã antiga.

. j \ \ i uvii uu> ^Aris+ides de um Diálogo com Trifão. A fervorosa busca da


verdade levou-o de Platão a Cristo. Para sua
A primeira Apologia do cristianismo que conversão, porém, revelou-se determinante o
chegou até nós (descoberta somente no sécu testemunho dos mártires. Eis suas próprias
lo passado) é da autoria de Marciano Aristi- palavras: “Quando ainda era discípulo de
des, na época do imperador Antonino Pio, Platão, eu ouvia as acusações dirigidas contra
aproximadamente de meados do século II. os cristãos. Mas, vendo-os intrépidos diante da
Ele sustenta que só os cristãos possuem a morte e diante daquilo que os homens mais
verdadeira filosofia, porque encontraram mais temem, compreendi que era impossível que
do que todos os outros a verdade acerca de eles vivessem no mal”.
Deus e, em sua pureza de vida, testemunham A seguinte passagem da segunda Apologia
adequadamente a verdade em que crêem. resume perfeitamente sua posição de cristão
em relação à filosofia: “Eu sou cristão, glorio-
me disso e, confesso, desejo fazer-me
2 j^Mstirvo y\A<\Hi reconhecer como tal. A doutrina de Platão não
é incompatível com a de Cristo, mas não se
casa perfeitamente com ela, não mais do que a
EU O pr i mei V o pl afôni co cr i stão
dos outros, dos estóicos, dos poetas e dos
A figura de maior destaque foi Justino escritores. Cada um destes viu, do Verbo divino que
Mártir, que nasceu em Flávia Neápolis, na estava disseminado pelo mundo, aquilo que estava em
Palestina, sendo autor de duas Apologias e relação com a sua natureza, chegando desse modo
Segunda parte - y\ Patrí s+iea na área cu l+u ral de lí ngu a gt*ega

a expressar uma verdade parcial. Mas, à medida que corruptível, e é justamente por isso que é Deus,
se contradizem nos pontos fundamentais, ao passo que tudo o que vem depois dele é
mostram que não estão de posse de uma ciência gerado e corruptível. Eis por que as almas
infalível e de um conhecimento irrefutável. morrem e são punidas; se não fossem
Tudo aquilo que ensinaram com veracidade pertence a corruptíveis, não pecariam”. Nem se pode
nós, cristãos. Com efeito, depois de Deus nós pensar que haja tipos diferentes de realidade
adoramos e amamos o Logos nascido de Deus, incorruptíveis, porque não se entenderia como
eterno e inefável, porque ele se fez homem por poderiam ser diferentes. E isso que Platão e
nós, para curar-nos dos nossos males, tomando- Pitágoras não entenderam. Justino escreve:
os sobre si. Os escritores puderam ver a verdade de “Platão e Pitágoras não me interessam, nem
modo obscuro, graças à semente do Logos que neles foi quem simplesmente defende doutrinas desse
depositada. Mas uma coisa é possuir uma tipo. A verdade é esta: podes aprendê- la do
semente e uma semelhança proporcional às que se segue. A alma é vida ou tem vida. Se é
próprias faculdades e outra é o próprio Logos, vida, fará viver alguma outra coisa, ao invés de
cuja participação e imitação deriva da graça que si mesma [...]. Ninguém nega que a alma vive.
dele provém”. Se portanto vive, vive sem ser ela própria a
vida, mas participando da vida. Ora, o que
WSM ;A d ou +ri n a d o L-ocfos participa de algo é diverso daquilo de que
participa. A alma participa da vida porque
Entre suas doutrinas particulares, des- Deus quer que tenha a vida”. O homem não é
taca-se a doutrina sobre as relações entre o eterno, e o corpo não está unido perenemente à
Logos-Filho e Deus-Pai, interpretada através de alma; e quando esta harmonia se rompe, a alma
uma inteligente utilização do conceito estóico abandona o corpo e o homem já não existe.
de “Logos proferido”, que Fílon já havia “Assim a alma cessará de existir, o espírito de
utilizado, e de outros conceitos destinados a ter vida separa- se dela: a alma já não existe e
grande eco posteriormente: “Como princípio, retorna ao lugar de onde veio”. Desse modo
antes de todas as criaturas, Deus gerou de si Justino abre espaço à doutrina da ressurreição.
mesmo certa potência racional (loghiké), que o
Espírito Santo chama ora „Glória do Senhor‟,
E £1 A co nde naç ão de
ora „Sabedoria‟, ora „Anjo‟, „Deus‟, „Senhor‟ e
à morte
Logos (= Verbo, Palavra) (...) e porta todos os
nomes, porque cumpre a vontade do Pai e O testemunho dos mártires convertera
nasceu da vontade do Pai. E, assim, vemos que Justino.
algumas coisas acontecem entre nós: proferindo Ele, por seu turno, também deu teste-
uma palavra (= logos, verbum), nós geramos uma
munho profundo de Cristo, cuja fé havia abra-
palavra (logos), mas, no entanto, não ocorre uma
çado. Com efeito, morreu decapitado em 165,
divisão e uma diminuição do logos (= palavra,
condenado pelo prefeito de Roma por sua
pensamento) que está dentro de nós. E assim
profissão de fé no cristianismo. um
vemos também que, de um fogo, acende-se
outro fogo sem que o fogo que acende seja
diminuído: este permanece igual e o novo fogo
que se acendeu subsiste sem diminuir aquele
do qual se acendeu”.
3 ~Cac\ano
E* J d o u+W n a d a alm a

O “platônico” Justino, que conhecia bem a


doutrina da alma do Fédon, julga que essa deve Outros apologistas do século II, que tive-
ser reformada estruturalmente. A alma não ram certa importância, foram: Taciano o As-
pode ser eterna nem incorruptível por sua sírio, Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antio-
natureza. De fato, ele escreve: “Tudo o que quia e o autor anônimo da Carta a Diogneto, um
existe fora de Deus [—] é por sua natureza documento bastante significativo.
corruptível, pode desaparecer e não mais Taciano foi discípulo de Justino, por
existir. Apenas Deus não é gerado e in quem foi convertido. Em seu Discurso aos gregos,
ele manifesta acentuada aversão à filosofia e à
cultura grega, ao contrário de seu mestre,
vangloriando-se polemicamente de ser
“bárbaro” e de ter encontrado a ver
Cãpítulo terceiro - Os apologis+as gregos e a í Sscol a ca+equ éiica de . Alexandria

dade e a salvação em escritos “bárbaros” (a 3) sobre o fato de que o corpo é mo-


Bíblia). Ele destaca que todas as coisas criadas, ralmente co-responsável pela virtude e pelo
incluindo a alma, não são eternas. A alma não é vício da alma e, portanto, deve co-dividir o
imortal por sua natureza. Ela é ressuscitada por castigo ou a recompensa.
Deus juntamente com o corpo. Interessante é a
retomada da tripar- tição, que está presente
tanto em Paulo como em Fílon, do homem em:
1) corpo; 5 Xeófilo de wia
2) alma;
3) espírito.
Aquilo que, em nós, é “imagem e se- Teófilo de Antioquia é autor de três livros
melhança” de Deus é o espírito, bem superior à A Autólico, elaborados na segunda metade do
alma. É o espírito — e apenas ele — que torna o século II. No primeiro livro fala- se da essência
homem (que, por sua natureza, é mortal) de Deus; no segundo, realiza- se um confronto
imortal. entre o relato bíblico e a mitologia pagã; o
terceiro livro, que tem aspecto prevalentemente
apologético, defende a moral e os costumes
cristãos.
E belíssima a resposta ao desafio que lhe
4 ^\ie.nágorcxs fora lançado por Autólico, no sentido de que
lhe mostrasse o seu Deus, o Deus cristão. Com
efeito, Teófilo responde: “Mostra-me o teu
Atenágoras de Atenas é autor de uma homem e eu te mostrarei o meu Deus”. O que
Súplica pelos cristãos, composta na segunda significa: dize-me que homem és e te direi se e
metade do século II, na qual refuta as acusa- que Deus podes ver. Diz Teófilo: “O homem
ções dirigidas contra os cristãos, particular- deve ter alma pura como um límpido espelho.
mente a de “ateísmo”, fornecendo a primeira Se a ferrugem corrompe o espelho, não é mais
prova racional em favor da unicidade de Deus possível ver nele refletida a fisionomia
e procurando esclarecer o conceito de Trindade humana. Analogamente, se há uma culpa no
da seguinte maneira: “O Filho de Deus, que é homem, não lhe é possível ver Deus”.
mente (nous), é o primeiro rebento do Pai. Não Teófilo retoma e aprofunda a explicação
que ele seja criado, porque desde o princípio da Trindade (Trias) em termos de Logos
Deus tinha em si o Logos, sendo eternamente imanente ou interno a Deus (Logos endiá- thetos)
conjugado ao Logos”. O Filho, o Logos, procede e Logos proferido ou pronunciado (Logos
do Pai a fim de ser “Idéia e atividade prophorikós), prosseguindo no caminho traçado
produtora” de todas as coisas. O Espírito Santo por Justino. Em si mesma, a alma não é mortal
“flui de Deus (...) e nele de novo entra como nem imortal, mas é suscetível tanto de
um raio de sol”. Em outro escrito seu que mortalidade quanto de imortalidade. A
chegou até nós, Sobre a ressurreição dos mortos, ele imortalidade é o prêmio que Deus dá a quem
fornece uma série de provas em favor da observa sua lei.
ressurreição. A base de sua antropologia
ressente- se, porém, do platonismo. O homem é
corpo e alma. O primeiro é mortal; a segunda é
criada, como o corpo, mas não mortal. Quando
o corpo ressuscita, conjuga-se novamente com
a alma, que permanecera quase em um estado 6 A a T)iogne.io
de torpor, e reconstitui-se assim aquela
unidade na qual consiste o verdadeiro homem,
o homem integral. Por fim, ao século II remonta breve Carta
Tal doutrina da ressurreição repousa dirigida a Diogneto, na qual a identidade dos
substancialmente sobre três princípios: cristãos no mundo e em relação ao mundo é
1) sobre o fato de que o homem é criado determinada com clareza e coerência
para a eternidade; extraordinárias: “Os cristãos (...) não se
2) que é estruturalmente composto de diferenciam dos outros homens nem por
alma e corpo, e esta unidade não pode se território, nem por língua ou por hábitos. Eles
perder nem mesmo com a morte; não habitam em cidades próprias, nem falam
uma linguagem inusitada. A vida que levam
nada tem de estranho. Sua doutrina
Segunda pãTte - y\ Patrí stica na área cu ltu ral de lí ngu a grega

não é fruto de considerações e elucubrações de tudo como cidadãos e tudo suportam como
pessoas curiosas; nem se fazem promotores, forasteiros. Toda terra estrangeira é sua pátria
como alguns, de uma teoria humana qualquer. e toda pátria é para eles terra estrangeira. (...)
(...) Habitam em sua própria pátria, mas como Habitam na terra, mas são cidadãos do céu”.
estrangeiros; participam de [3]

l.ivro de Bênçãos da metade


do séc. XI (Bari). Õmega
(fi), a última letra ilo
alfabeto grego, símbolo do
rélos < >ii fim de todas tis
coisas, circunda Cristo em
sua majestade.
Cüpittílo terceiro - Os apologis+as gregos e CK Escola ca+equética de ;Alexandria

II. y\ Escola ca+equé+ica de


;AlexandHa: Clemente e
Orígenes

• Clemente (nascido por volta de 150) se propõe demons- clemente- trar a


perfeita harmonia entre fé e razão, que existe no cristia- a harmonia
nismo. A filosofia não torna a verdade mais forte, mas defen- entre ^ e razão de
a fé dos ataques dos inimigos da verdade. § 7

• Deus, para Orígenes (185-253), é uma realidade incorpórea, e sua natureza


transcendente o torna incompreensível à mente humana. Jesus, unigênito filho de
Deus, é "a sabedoria de Deus substancialmente subsistente", na qual existem desde
sempre as Idéias de todos os Orígenes:
entes existentes. Embora o Filho seja da mesma natureza do o Pai e o Filho Pai,
Orígenes, talvez influenciado pela estrutura hipostática do pensamento médio-
platônico/neoplatônico, considera-o subordinado ao Pai: com efeito, enquanto o Pai
é unidade absoluta, o Filho explica múltiplas atividades.

• A encarnação da alma humana depende do pecado, mas o corpo em si não é


negativo, porque pode tomar-se instrumento de expiação e purificação. Todavia,
Orígenes não considera que uma só vida seja suficiente para realizar plenamente a
purificação e, portanto, admite a existência de mais
mundos que se sucedem um ao outro e a doutrina da reencar- A doutrjna
nação das almas. No fim tudo será exatamente igual ao princí- ^ a ap0catástase pio
(= apocatástase) e a pureza original da criação será reinte- § 2 grada.

1 (Slemen+e exagero louvar nele o fundador da teologia


e a verdadeira especulativa. (...) Clemente foi o iniciador arguto
9 nose
e feliz de uma escola que se propunha a defender e
aprofundar a fé com o auxílio da filosofia Clemente
Por volta de 180, em Alexandria, Pan- não se limita a combater a falsa gnose, nem se
teno, um estóico que se converteu ao cristia- detém numa atitude puramente negativa. Com
nismo, fundou uma escola catequética que efeito, ele “opõe à falsa gnose uma gnose
estava destinada a encontrar seu máximo autenticamente cristã, propondo-se a dispor a serviço
esplendor com Clemente e Orígenes. da fé o tesouro de verdade que se encerra nos diversos
Clemente, chamado “Alexandrino” para sistemas filosóficos. Os partidários da gnose
distingui-lo do homônimo “Romano” (morto herética ensinavam a impossibilidade de uma
em 97), nasceu em torno de 150 (em Atenas ou reconciliação entre a ciência e a fé, nas quais
Alexandria). Seu encontro com Panteno foi viam dois elementos contraditórios. Clemente,
decisivo: tornou-se seu aluno, colaborador e, porém, procura demonstrar sua harmonia. E a
por fim, também sucessor. Dele nos ficaram o concordância da fé (pistis) com o conhecimento
Protréptico aos gregos, o Pedagogo, os Estrômatas, (gnosis) que faz o perfeito cristão e o verdadeiro
uma Homilia e diversos fragmentos. gnóstico. A fé é o princípio e o fundamento da
Quasten, um dos maiores estudiosos filosofia. Esta, por seu turno, é da máxima
modernos de patrologia, assim caracteriza importância para o cristão desejoso de
nosso autor: “A obra de Clemente de Ale- aprofundar o conteúdo de sua fé por meio da
xandria marca toda uma época. Não seria razão”.
Segunda parte - y\ Patrística na área cu! twm 1 de lín gua grega

Acrescida à fé, a filosofia não torna a O pensamento de Orígenes foi durante


verdade mais forte em si mesma, mas torna longo tempo objeto de debates e acesas
impotentes os ataques dos inimigos da ver- polêmicas, que envenenaram os ânimos e
dade, constituindo, portanto, um válido ba- alcançaram sua fase culminante no início do
luarte de defesa. Contudo, para Clemente, a século VI, a ponto de provocarem a conde-
fé permanece como critério da ciência. E a nação de algumas teses de Orígenes até pelo
ciência constitui um auxílio de caráter como imperador Justiniano, em 543, e depois por
que auxiliar para a fé. um concilio, em 553. Provocadas em larga
O conceito que constitui o eixo básico medida pelos excessos a que haviam sido
das reflexões de Clemente é o conceito de levados os origenistas, essas condenações
“Logos”, entendido em triplo sentido: causaram a perda de grande parte da enorme
a) princípio criador do mundo; produção de Orígenes. Entre as obras que
b) princípio de toda forma de sabedoria, nos chegaram, interessam à filosofia: Os
que inspirou os profetas e os filósofos; princípios, que é sua obra-prima doutrinária
c) princípio de salvação (Logos encar- (infelizmente, porém, não nos chegou em sua
nado). redação original), Contra Celso e Comentário
O Logos é verdadeiramente o princípio ao evangelho de João.
e o fim, o alfa e o ômega, aquilo de que tudo
provém, e para onde tudo retorna; o Logos é
Doutrina da Trindade e
mestre e salvador.
E, no novo sentido do Logos, a “justa y\]eoplatonismo

medida”, que era a marca da antiga sabedoria


O pensamento de Orígenes coloca no
e da virtude grega, se integra no ensinamento
centro Deus e a Trindade (não o Logos, como
de Cristo. f4~||T1
fizera Clemente). A chave filosófica

2 A figura e os fundamentos do
pensamento de Orígenes

EH Vida e obras filosóficas

De outra robustez é o pensamento de


Orígenes, que representa a primeira e gran-
diosa tentativa de síntese entre filosofia e fé
cristã; nele, as doutrinas dos gregos (parti-
cularmente dos platônicos, mas também de
outros filósofos, como, por exemplo, os es-
tóicos) são utilizadas como instrumentos
conceituais aptos para expressar e interpre-
tar racionalmente as verdades reveladas na
Escritura. Orígenes nasceu por volta de 185,
em Alexandria. Seu pai Leônidas morreu
mártir, testemunhando a fé de Cristo. O pa-
trimônio da família foi confiscado e Orígenes
passou a ganhar a vida ensinando. Ainda jo-
vem, a partir de 203, assumiu a direção da
escola catequética, tornando-se verdadeiro
modelo pela doutrina e pelas virtudes. Em
231, forçado a abandonar Alexandria pela
aversão que lhe devotava o bispo Demétrio,
Orígenes prosseguiu sua atividade em Cesa-
réia, na Palestina, com grande sucesso.
Atingido pela perseguição aos cristãos
ordenada por Décio, foi preso e torturado. Miniatura que se imagina representar ( )rígenes,
Morreu em 253 devido às conseqüências contida em uma rersao francesa da Cidade de Deus
dessas torturas. de Agostinho.
Cãpítulo terceiro - CDs apologistas gregos e a Escola cate quética de ^Alexan dria

em que pensa Deus é a da incorporeidade. nistro. Esse subordinacionismo reflete


Enganam-se aqueles que (interpretando indubitavelmente influências da concepção
grosseiramente a Bíblia) pensam que Deus hierárquica do inteligível do Medioplatonismo
seja fogo ou sopro ou então que (como os e do nascente Neoplatonismo. Enquanto o Pai
estói- cos) pensam o ser somente como é unidade absoluta, o Filho, embora também
corpo: “Deus não pode ser entendido como sendo unidade, desenvolve múltiplas
corpo”, mas sim como “realidade intelectual e atividades e por isso recebe muitos nomes na
espiritual” e “natureza intelectual simples”. Escritura, conforme as atividades desen-
Deus não pode ser conhecido em sua natu- volvidas. Cristo tem duas naturezas: é verda-
reza: “Em sua realidade, Deus é incompreen- deiro Deus e verdadeiro homem (não homem
sível e inescrutável”, porque transcende as aparente, como pretende a heresia docetis-
capacidades da mente humana. ta) e, como tal, tem corpo e alma (a alma de
Nessas palavras podemos ouvir ecos Cristo desempenha papel mediador entre o
neoplatônicos: com efeito, em Alexandria, Logos divino e o corpo humano).
Orígenes freqüentou as aulas de Amônio Foi Orígenes quem estudou com atenção
Sacas, cuja escola foi a forja do neoplato- o Espírito Santo, pela primeira vez, iden-
nismo. Orígenes chega até a falar de Deus tificando sua função específica na ação
como de “mônadas e ênadas” e usa até a santificante.
expressão “acima da inteligência e do ser”, Ao caracterizar o Pai, o Filho e o Espí-
que Plotino tornará famosa. Entretanto, ele rito Santo como hierarquia, Orígenes revela
não hesita em considerar Deus também como mais influências platônicas do que em
“Inteligência, fonte de toda inteligência e de qualquer outro ponto de seu sistema.
toda substância intelectual”, como Ser que dá Devemos observar, ademais, que o
o ser a todas as coisas, ou melhor, que “subordinacionismo” de Orígenes foi exa-
“participa de tudo o que é ser”, e como Bem gerado por seus adversários, que dele tira-
ou “Bondade absoluta”, do qual deriva todo ram conclusões indevidas. É bom destacar
outro bem. que Orígenes traça essa hierarquia, mas, ao
O Filho unigênito de Deus, segunda mesmo tempo, ressalta a identidade de na-
pessoa da Trindade, é “a Sabedoria de Deus tureza, substância ou essência entre Pai e
substancialmente subsistente”. E nessa “sa- Filho.
bedoria existente estavam contidas virtua- Ademais, o que é fundamental, afasta-
lidade e forma de toda futura criatura, seja se de modo bastante claro do neoplatonismo,
daquelas que existem primariamente, seja pondo entre Deus-Trindade e as outras
daquelas que delas derivam de modo aci- coisas uma separação ontológica através do
dental e acessório, todas pré-formadas e dis- conceito de criação do nada, de modo que o
postas em virtude de presciência”. As Idéias esquema metafísico segundo o qual a
platônicas tornam-se assim a sabedoria de realidade é desenvolvida revela-se comple-
Deus: “E se tudo foi feito na sabedoria, já que tamente diferente do esquema da processão
a sabedoria sempre existiu, sempre existiram neoplatônica, tanto mais que, na obra sobre
na sabedoria, pré-constituídos sob a forma de Os princípios, ele nos fala de criação ab
Idéias, os seres que posteriormente seriam aeterno das idéias no Verbo e não de toda a
criados também segundo a substância”. realidade. jjT]
Combatendo Gnósticos, Adocionistas e
Modalistas, Orígenes sustenta que o Filho de
Deus foi “gerado” ab aeterno pelo Pai e não
“criado” como as outras coisas, nem k*l (Z-naç.ão, "apocotás+ase^ e
“emanado”: foi gerado por via de atividade encarnação
espiritual, como, por exemplo, a “vontade”
deriva da mente. E “essa geração é eterna e A doutrina da criação em Orígenes é
perpétua, assim como o esplendor é gerado bastante complexa. Primeiro, Deus criou se-
pela luz, já que o Filho tornou-se tal não por res racionais, livres, todos iguais entre si, e
adoção do Espírito, do exterior, mas é Filho os criou à própria imagem (como racionais).
por natureza”. O Filho é “da mesma natureza” A natureza finita das criaturas e sua
(homooúsios) do Pai. liberdade deram origem a uma diversidade no
Orígenes, entretanto, admite certa “su- seu comportamento: algumas permaneceram
bordinação” do Filho ao Pai, do qual é mi unidas a Deus, outras se afastaram, pecando,
por causa de um esfriamento do amor a
Deus. E assim nasceu a distinção
Segunda pavte - jA Pa+Wsfica na área cultural de língua grega

Portanto, para Orígenes, o fim será


exatamente igual ao princípio, isto é, tudo
■ Apocatástase. Orígenes reelabora deverá tornar a ser como Deus criou. Essa é
em chave cristã a doutrina de origem a célebre doutrina origeniana da apocatás-
estóica da recapitulação final do cosmo. tase, ou seja, a reconstituição de todos os
No fim tudo será exatamente igual ao
seres no estado original.
princípio, e Deus será tudo em todos:
No processo das reencarnações, porém,
essa concepção implica a redenção
final de toda criatura (também dos deve-se destacar que, para as criaturas indi-
demônios e dos danados). vidualmente, pode-se verificar tanto um pro-
gresso como um retrocesso, ou seja, tanto a
passagem de demônio a homem, a anjo ou
vice-versa, antes que tudo retorne ao estado
original.
entre anjos, homens e demônios, conforme Cristo se encarnou uma só vez neste
tenham permanecido fiéis a Deus, ou se afas- mundo. Sua encarnação destina-se a perma-
tado em certa medida ou se afastado muito necer um evento único e irrepetível.
de Deus. O corpo e o mundo corpóreo em Orígenes exaltou ao máximo o livre-
geral nasceram como conseqüência do pe- arbítrio das criaturas, em todos os níveis de
cado. Deus revestiu de corpos as almas que sua existência. No próprio estágio final, será
se afastaram parcialmente dele. Mas o corpo o livre-arbítrio de cada uma e de todas as
não é algo negativo (como para os platônicos criaturas que, vencido pelo amor de Deus,
e, sobretudo, para os gnósticos): ele é o continuará a aderir a ele, agora, porém, sem
instrumento e o meio de expiação e pu- mais recaídas. |T]
rificação. A alma, portanto, preexistia ao
corpo, ainda que não de modo platônico, lUmportcmcia. de. OrÍ0enes
porque criada do nada. E a diversidade dos
homens e de suas condições remonta à di-
A importância de Orígenes é notável em
versidade de comportamento na vida anterior
todos os campos. Seus próprios erros
(maior ou menor afastamento de Deus).
devem-se aos excessos de um grande
E doutrina típica de Orígenes (derivada
espírito generoso, não a mesquinhos desejos
dos gregos, embora com notáveis correções)
a que segundo a qual o “mundo” deve ser de originalidade. Ele quis ser cristão até as
entendido como série de mundos, não últimas conseqüências, suportando com he-
contemporâneos, mas subseqüentes um ao roísmo as torturas que o levariam à morte,
outro. Tal visão relaciona-se estreitamente para permanecer fiel a Cristo. As próprias
com a concepção origeniana segundo a qual, doutrinas que não se inserem nos quadros da
no fim, todos os espíritos se purificarão, res- ortodoxia são explicáveis, plausivelmen- te,
gatando suas culpas, mas, para se purifica- se colocadas na situação concreta do
rem inteiramente é necessário que sofram momento histórico em que Orígenes viveu. E,
longa, gradual e progressiva expiação e cor- como alguns estudiosos ressaltaram muito
reção, passando, portanto, por muitas reen- bem, elas revelam um profundo significado
carnações em mundos sucessivos. “apologético” em favor do cristianismo.
47
, . . , . . Cctpltulo terceiro - CDs apologistas gregos e a (r^scola catequética de yMexandria _

tipo inteligente, ou, pelo menos, tinha essa fama.


JUSTINO MÁRTIR Manteve-me consigo os primeiros dias, mas depois
me pediu para fixar um pagamento para continuar, a
fim de que nossa interação não fosse sem frutos. Por
este motivo deixei também a ele, convicto de que
não era de fato um filósofo.
O itinerário filosófico 4. Minha alma, porém, ainda ansiava escutar
o grande ensinamento característico da filosofia,
de Justino razão pela qual me dirigi a um famosíssimo
pitagórico, um homem que possuía muitos
conhecimentos sobre a sabedoria. Logo que me
encontrei com ele, uma vez que desejava tornar-me
O itinerário filosófico e espiritual de seu ouvinte e discípulo, ele me disse: "Conte-me um
Justino é marcado por numerosas etapas (do pouco. Cstudaste música, astronomia e geometria?
Estoicismo ao Cristianismo), que são narradas na Ou pensas poder contemplar algo daquilo que leva
seguinte passagem tirada do prólogo do Diálogo à felicidade, sem primeiro ter aprendido estas
com Trifão. disciplinas, que afastam a alma das realidades
sensíveis e a preparam para a aquisição das
inteligíveis, até contemplar a Beleza, que coincide
1. fl discussão sobre a origem da filosofia
com o Bem?"
5. Depois de ter elogiado grandemente tais
1. €u te direi o que é claro para mim — disse- disciplinas, afirmando que são indispensáveis,
lhe. fl filosofia é, na realidade, a riqueza maior e mais mandou-me embora, pois eu lhe confessara que as
preciosa para Deus, a única que nos leva a ele e nos ignorava, fiquei desconsolado, como é óbvio, dado
une a ele, e tais são aqueles que dedicaram sua que minhas aspirações ficaram desiludidas,
mente à filosofia. Todavia, muitos esqueceram o que sobretudo porque estava convicto de que aquele
seja a filosofia e por qual razão foi enviada aos homem fosse de fato sábio; por outro lado,
homens; de outro modo não teria havido platônicos, considerando o tempo que gastaria para aprender
nem estóicos, nem peripatéticos, nem teóricos, nem aquelas disciplinas, não me animei a esperar tanto
pítagóricos, porque esta sabedoria é apenas uma. tempo.
6. Cncontrando-me nesta condição de im-
potência, decidi dirigir-me aos platônicos: também
2. Çuero explicar-te, portanto, por qual razão eles, com efeito, gozavam de grande fama. Dessa
ela se tornou multiforme. Aconteceu que os forma, entrei em contato em particular com um
seguidores daqueles que na origem dedicaram-se a homem que chegara há pouco em nossa cidade,
esta disciplina, e por isso se tornaram famosos, os inteligente e distinto entre os platônicos, e com ele a
seguiram não em vista da busca da verdade, mas cada dia fazia progressos notáveis. Sentia-me
apenas porque estavam fascinados pela sua força de atraído pelo conhecimento das realidades supra-
ânimo, por sua castidade e pela maravilha de seus sensíveis, e a contemplação das Idéias dava asas à
discursos: cada um deles considerou verdadeiro minha mente e, portanto, depois de pouco tempo,
apenas aquilo que aprendera de seu mestre e, por pensava ter-me tornodo sábio, e esperava in-
conseguinte, eles próprios, que transmitiram a seus genuamente alcançar logo a visão de Deus: este,
sucessores tais doutrinas e outras análogas, se com efeito, é o escopo da filosofia de Platão.
ornaram com o nome do pai da doutrina.
3. fl diferença entre os filósofos e os profetas
2. O itinerário filosófico de Justino: 1. Perguntei-lhe então: ”A quem mais se
estoicismo, aristotelismo, poderá tomar como mestre e onde se poderá tirar
pitagorismo e platonismo vantagem, se nem sequer em homens como estes
se encontra a verdade?". €le respondeu: "Há muito
tempo, antes ainda de todos estes presumidos
3. Também eu, de resto, desejava antes filósofos, existiram homens beatos, justos e amigos
encontrar-me com algum deles, e portanto me de Deus, que falaram por inspiração do Cspírito
dirigi a um estóico: depois de passar um tem divino e pre
po suficiente com ele, a partir do momento que
não aprendia nada sobre o problema de Deus
(ele nada sabia disso, e afirmava tratar-se de
matéria não necessária), o abandonei e me
dirigi a outro, que se definia peripatético: um
Segunda pãrte - /\ 'Patrística na área cultural de língua grega

viram o futuro, qu® ogoro s® verificou: chamam- se


profetas. Cies são os únicos que viram a verdade e a 2 O Logos é Cristo
anunciaram aos homens sem temer ou adular
ninguém, e sem deixar-se dominar pela ambição,
mas proclamando apenas aquilo que tinham visto e O ponto centrol da apologética de Justino
ouvido, inspirados pelo Cspírito Santo. consiste em demonstrar que Jesus Cristo é o
2. Seus escritos nos foram transmitidos e Logos do qual todos os Filósofos gregos
quem os lê pode deles tirar enorme proveito, tanto falaram. Se isso é verdade, todo filósofo, a
sobre os princípios como sobre os fins, e sobre tudo medida que participa do Logos, que é Cristo,
aquilo que o filósofo deve saber, se neles crê. Eles, conhece porte da verdade e, neste sentido,
com efeito, não apresentaram seus argumentos de pode dizer-se cristão.
modo demonstrativo, pois dão do verdade um
testemunho digno de fé e superior a qualquer
demonstração-, os eventos passados e presentes
forçam a aceitar aquilo que foi dito por meio deles. 1. Os homens como Sócrotes e Abraão, que viveram
segundo o logos, são cristãos
3. €les, além disso, se demonstraram dignos
de fé graças aos milagres que realizaram, pois 1. Portanto, para que não haja ninguém que,
glorificaram Deus Pai, Criador do universo, e para liquidar nossas doutrinas sem nenhum
anunciaram seu filho, Cristo, que dele vem; os falsos raciocínio, nos objete que, se afirmamos efeti-
profetas, inspirados pelo espírito falso e impuro, não vamente que Cristo nasceu há cento e cinqüenta
fizeram e nada fazem de semelhante, pois ousam até anos sob Quirino e, alguns anos mais tarde, sob
operar prodígios para extraviar os homens e dar Pôncio Pilotos, pregou aquilo que ensinamos, seguir-
glória aos espíritos e aos demônios do erro. Pede, se-ia que todos os homens que viveram antes dele
portanto, para que, antes de tudo, te sejam abertas não poderiam se considerar responsáveis pelas
as portas do luz: não são todos, com efeito, que próprias ações, procuramos prevenir e resolver
podem perceber e compreender tais verdades, a também esta aporia.
não ser pelo dom de Deus e de seu Cristo". 2. Aprendemos que Cristo é o primogênito de
Deus, e recordamos que é o Logos, do qual todo
4. Conversão de Justino oo cristianismo gênero humano participa.
1. Depois de dizer estas e outras coisas, que 3. Os que viveram conforme o Logos são
agora não é oportuno referir, foi-se embora, cristãos, mesmo que tenham sido considerados
exortando-me a não deixá-las cair (no es- ateus, como, entre os gregos, Sócrates e Herá- dito,
quecimento): nunca mais o revi. No que a mim se e outros semelhantes, e, entre os bárbaros, Abraão,
refere, um fogo irrompeu de repente na minha alma, Ananias, Azarias, Misael, Clias, e muitos outros ainda,
fui tomado de amor pelos profetas e por aqueles dos quais agora não elen- camos as obras e os
homens que são amigos de Cristo: refletindo comigo nomes, sabendo que isso seria demasiado longo.
mesmo sobre suas palavras, cheguei à conclusão de
que esta era a única filosofia certa e salvífica. 4. Conseqüentemente, aqueles que viveram
2. Desse modo e por essa razão sou um antes de Cristo, mas não segundo o Logos, foram
filósofo. Gostaria que todos tivessem a mesma maus, inimigos de Cristo e assassinos dos que viviam
coragem que eu e não se afastassem mais das conforme o Logos-, ao contrário, aqueles que
polavras do Salvador: nelas, com efeito, estão viveram e vivem conforme o Logos são cristãos, e
presentes motivos de temor, e são suficientes para não estão sujeitos a medos e perturbações.
confundir aqueles que se desviam do reto caminho,
enquonto uma paz dulcíssima invade aqueles que 5. Qual seja, portanto, o motivo pelo qual,
as põem em prática. Se, portanto, também tu prezas através da potência do Logos e pela vontade de
teu destino, se pedes salvação e tens confiança em Deus Pai e Senhor do universo, um homem tenha
Deus, e se não te sentes estranho ao problemo, tens sido concebido de uma virgem, tenha-se chamado
a possibilidade de, uma vez reconhecido o Cristo de Jesus, tenha sido crucificado, morto, ressuscitado e
Deus e te tornado perfeito, ser feliz. ascendido oo céu, todo homem dotado de razão
Justino,
poderá compreendê-lo com base nos argumentos
Diálogo com Triíõo, ®m fípologias. que expus.
6. Quanto a nós, dado que por ora não é
necessário insistir sobre a demonstração desta
doutrina, passaremos às demonstrações mais
urgentes no momento.
Justino, Primeira Flpologia, em
Rpologias.
49
Cãpltulo terceiro - Os apologistas gregos e a Escola catequética de ;Alexan dria ---------------------------------

cem a muitos; sõo carentes de tudo e têm


CARTA A DIOGNETO abundância de tudo. São desprezados, mas no
desprezo adquirem glória; são xingados e ao
mesmo tempo se dá testemunho de sua justiça. São
ultrajados e bendizem; são insultados e, ao
contrário, honram. Cmbora realizem o bem, são
punidos como malfeitores; embora punidos, se
3 Os cristãos são a olmo alegram, como se recebessem a vida.
do mundo São combatidos pelos judeus como estran-
geiros e são perseguidos pelos gregos, mas quem
os odeia não sobe explicar o motivo do própria
aversão em relação a eles.
fl Carta a Diogneto, transmitido com o nome Gnfim, para dizer brevemente, os cristãos
de Justino, é considerado pelos estudiosos como desenvolvem no mundo a mesma funçõo da alma no
não autêntico. Todavia, é uma pequeno jóia da corpo. A alma está espalhada em todos os membros
literatura cristã, tanto pela profundidade espiritual do corpo; também os cristãos estão espalhados
do conteúdo, como pela beleza estilística e pelas cidades do mundo. A alma habita no corpo,
retórica da forma, mas também pela modernidade mas não pertence ao corpo; também os cristãos
e pela atualidade de muitos temas discutidos e habitam no mundo, mas não pertencem ao mundo.
em particular pela dimensão político do vida A alma invisível está aprisionada no corpo visível; os
cristã. cristãos, estando no mundo, são visíveis, mas o
culto que dirigem a Deus permanece invisível. A car-
ne odeia a alma e a combate, embora sem receber
nenhuma injustiça, porque a impede de abandonar-
se aos prazeres; também os cristãos são odiados
1. A identidade dos cristãos: vivem
pelo mundo, embora nõo lhe façam nenhum mal,
neste mundo, cidadãos de um
porque se opõem aos prazeres. A alma ama o corne
outro
e os membros que a odeiam, assim como os
Os cristãos, com efeito, não se diferenciam cristãos amam quem os odeia. A alma, que também
dos outros homens nem pelo território nem pela sustento o corpo, está presa neste; também os
língua ou costumes. Não habitam em cidades cristãos, embora sejam o apoio do mundo, são
próprias nem falam uma linguagem inusitada; a vida aprisionados neste como em um cárcere. A olmo
que levam nada tem de estranho. Sua doutrina não imortal habita em uma morodia mortal; também os
é fruto de considerações e elucubrações de cristãos vivem como estrangeiros entre aquilo que é
pessoas curiosas, nem se apresentam como corruptível, enquanto esperam o incorruptibilidade
promotores, como alguns, de alguma teoria celeste. Com as mortificações no comer e no beber,
humana. Habitando nas cidades gregos e bárbaras, a alma se torno melhor; os cristãos, embora
como coube a coda um, e conformando-se com os perseguidos, a cada dia se tornam mais numerosos.
costumes locais no que se refere ao vestuário, à Deus lhes reservou um lugor tão sublime, e a
alimentação e ao resto do vida cotidiana, eles não é lícito abandoná-lo.
demonstram o caráter admirável e extraordinário, no
dizer de todos, de seu sistema de vida. Habitam na
própria pátrio, mas como estrangeiros, participam
de tudo como cidadãos, e tudo suportam como
forasteiros, qualquer terra estrangeira é sua pátria e
qualquer pátria é terra estrangeira.
Cosam-se como todos, geram filhos, mas não 2. O cristianismo
expõem os recém-noscidos. Têm em comum a e o desígnio transcendente da salvação
mesa, mas não o leito. Cstão na carne, mas não
vivem segundo o carne. Moram sobre a terra, mas Com efeito, conforme disse, não é uma
são cidadãos do céu. Obedecem às leis invenção terrena o que lhes foi transmitido, nem
estabelecidas, e com sua vida superam as leis. afirmam guordor com tonto cuidado uma doutrina
Amam o todos e são perseguidos por todos. Não passageira, nem lhes foi confiado o encargo de
sõo conhecidos, e assim mesmo são condenados; dispensar mistérios humanos. Mas aquele que é
são mortos, e todavia são vivificados. Sõo pobres e verdadeiramente onipotente, criador de tudo, Deus
enrique invisível, dos céus pôs entre os homens e
estabeleceu em seus corações a Verdade, o Verbo
santo e incom
Segunda paYte - y\ l-^afrís+ica n a área cultural de lín gua g^ega

preensível; não enviou aos homens, como alguém


poderia imaginar, um servo, um anjo, um arconte ou CLEMENTE DE ALEXANDRIA
um dos seres a quem fosse confiado o governo da
terra ou a administração nos céus, mas o próprio
artífice e autor de tudo. Por meio dele criou os céus,
encerrou o mor em seus próprios confins; seus
mistérios são fielmente guardados por todos os fl concepção
elementos. C ele que faz o sol observar as leis que
regulam seu curso cotidiano, sua ordem de brilhar platônico de Deus
durante a noite é obedecida pela lua e a ele
obedecem os astros que seguem o curso da lua;
ordenou e dispôs tudo, e a ele estão submetidas
todas as coisas: os céus e tudo o que neles há, a Segundo Clemente, a Filosofia platônica é
terra e tudo o que ela contém, o mar 0 aquilo que conciliável com a fé cristã. Isso provém do Fato de
nele existe, o fogo, o ar, o abismo, aquilo que está que, talvez, Plotõo conheceu as Sagradas
no alto, nas profundezas e no meio. (Este é aquele Cscrituras e a extraiu delas.
que foi enviado aos homens.
Talvez, poderia alguém pensar, para mandar,
amedrontar, aterrar? De modo nenhum, fio contrário, Por isso, não sem razão, Demócrito afirma
foi enviado na humildade e bondade, como um rei qu© "poucos dos homons sábios, alçando os mãos
manda seu filho rei, foi enviado como Deus, como àquel0 que agora os gregos chamam ar, fabulam de
homem entre os homens, para salvar com a Zeus; este, com efeito, sabe tudo e dá e retira e é rei
persuasão, não paro dominar, pois a violência não se de todas as coisas". Raciocinando de modo
coaduna com Deus. [Deus] o enviou para chamar, análogo, também Platão falo obscuramente de
não para acusar; para amar, não para julgar; ele o Deus: "Cm torno do rei do universo gravitam todos
enviará para julgar, e quem poderá agüentar sua vin- os seres 0 ele 0 a causa de toda b0l0za".
da? [...] [Não vês que os cristãos] são jogados às Quom é, portanto, o rei de todos as coisas?
feras, para que reneguem o Senhor, 0 todavia não se Deus, medida da verdade das coisas que existem.
deixam vencer? Não vês que quanto mais são Como, portanto, as coisas medidas são
perseguidos, tanto mais crescem em número? Isto compreendidas na medida, também a verdade
não parece obra humana, isto é poder de Deus; esta modo-se 0 compreende-se ao pensar Deus.
0 uma prova da sua presença. Moisés verdadeiramente santo diz: “Não
Com efeito, quem entre os homens conhecia haverá na tua sacola dois pesos diferent0s, um
plenamente a essência de Deus, antes da sua grande 0 um pequeno. Não terás em casa dois tipos
vinda? de medida, uma grande e uma pequena. Terás um
Crês talvoz nos discursos vazios 0 insos- sos peso completo ejusto", tomando Deus como balança
daqu0les filósofos considerados dignos de fé? e medida e número de todas as coisas.
Alguns destes diziam que Deus 0 fogo: chamam Os ídolos injustos e iníquos estão escondidos
D©us aquilo em que irão acabar; outros o em cosa, na sacola e na alma, por assim dizer, suja.
identificavam com a água, outros com algum outro A única medida justa, ao invés, o único
elemento criodo por Deus. Certamente, se For aceito verdadeiramente Deus, o qual é sempre igual e
algum destes raciocínios, qualquer outro ser criado imparcial, medo 0 pesa todas as coisas abraçando
poderia igualmente ser identificado com Deus. Mas e mantendo em equilíbrio a natureza do universo
estas são fofocas 0 imposturas do charlatões; com sua justiça, como com uma balança. '
nenhum homem viu ou conheceu Deus, mas ele "Deus, como diz também o antigo discur^ so,
próprio se revelou. Revelou-se por meio da fé, e tendo em suas mãos o princípio e o fim e o centro
apenas com ela 0 possível ver Deus. de todas as coisas, vai direto ao seu fim, andando
Cie, com efeito, senhor e criador de tudo, autor conforme a natureza. Cie tem sempre atrás de si a
e ordenador de todas as coisas, mostrou paro com justiça que pune aqueles que se desviaram da lei de
os homens não só amor, mas também paciência. Deus".
R Diogneto. De onde, Platão, tens esta verdade da qual
obscuramente falas? De onde esta abundância de
argumentos vaticina o culto de Deus? São mais
sábios que estes — diz elo — os povos bárbaros.
Conheço teus mestres, mesmo
Capítulo terceiro - Os apologistas gregos e a Escola catequética de Alexandria

que queiras escondê-los; aprendes a geometria dos viço e se destrói. A concupiscência, com eFeito,
egípcios, a astronomia dos babilônios, tomas dos torna-se tudo e se transforma em tudo e tudo quer
trácios os sábios encantamentos, muitos coisas te embelezar para esconder o homem.
ensinaram também os assírios, para as leis verazes e Mas o homem, com o qual coabita o Logos,
a crença em relação a Deus foste ajudado pelos não altero seu aspecto, não se transforma, tem o
próprios hebreus. Forma do Logos, é semelhante a Deus, é belo, não
Clemente de Alexandria, O se enFeita. C a beleza verdadeira e, com eFeito, é
Protréptico. Deus; tal homem se torna Deus, porque Deus o quer.
De Fato, Heráclito disse bem: "Os homens são
deuses, os deuses homens, uma vez que a razão é a
mesma". O mistério é claro: Deus está no homem e o
homem se torno Deus, e o mediador realiza a
vontade do pai. Mediador é o Logos, que é comum a
fl beleza espiritual
ambos: Filho de Deus, salvador dos homens, de
Deus servo, de nós pedagogo.
Uma vez que a carne é serva, conForme Paulo
Uma vido conforme o Logos propicio o atesta, quem de Fato irá1 querer enFeitar esta criada,
capacidade de viver segundo a justa medida e, à guisa de olcoviteiro? Que a carne seja Forma de
assim, alcançar a verdadeira beleza espiritual. servo é atestado pelo Apóstolo quando Fala do
Senhor. "Aniquilou a si mesmo, tomando a natureza
de escravo", chamando escravo o homem de carne
antes que o Senhor se tornasse escravo e se
encarnasse.
A maior de todas as ciências, ao que parece, é O próprio Deus, porém, sofrendo na carne,
conhecer a si mesmo; quem, com eFeito, conhece o libertou a carne da corrupção e, depois de tê-la
si mesmo, conhecerá Deus e, conhecendo Deus, se aFastado da escravidão portadora de morte e
tornará semelhante o ele, não levando ouro nem amarga, a revestiu de imortalidade, dando-lhe este
manto FilosóFico, mas operando o bem e tendo santo ornamento de eternidade: a imortalidade.
necessidade de pouquíssimas coisas. Cxiste ainda outro beleza dos homens, a
Apenas Deus não tem necessidade de noda e caridade. "A caridade — diz o Apóstolo — é
goza sumamente vendo-nos puros na ordem do magnânima, é benigna, não é invejosa, não se
pensamento e na do corpo, revestidos de uma estola vangloria, não se incho". C vangloria o ornamento
cândida, o temperança. que tem a aparência do supérfluo e do não
Tríplice é o atividade do alma. A de entender— necessário. Por isso acrescenta: "não se comporta
que se chama racional — é o homem interior, e guia indecorosamente". Indecorosa é uma Figuro
este homem visível; o homem interior, ao contrário, é estranha e não segundo a natureza. A alusão é
guiado por outro, ou seja, Deus. A alma irascível, estranha, como claramente explica o Apóstolo,
sendo algo de Ferino, está próximo da mania. dizendo: "não procura aquilo que não é seu". A
Multiforme é a apetitiva que é o terceira, mais variada verdade, com eFeito, chama natural aquilo que lhe é
que o deus marinho Proteu; toma Formas diversas e próprio; a ambição, ao contrário, procura o que é de
estimula os adultérios, o volúpia e a molície. outrem, permanecendo Fora de Deus, do Logos e
Tornou-se primeiro um leão barbudo (ainda há da caridade.
o enFeite); os pêlos do queixo mostram que é Que o próprio Senhor Fosse feio de aspecto o
um homem; depois um dragão, um leopardo, atesta o Cspírito pela boca de Isaías: "Nós o vimos,
um grande não tem aparência nem beleza, mas um aspecto
porco; desprezível, rejeitado diante dos homens". Todavia,
o amor pelo ornamento escorregou no quem é melhor que o Senhor? Não a beleza
intemperonça. O homem não aparece mais enganadora da carne, mas a verdadeiro beleza da
semelhante a uma Forte Fera, mas tornou-se alma e da corpo ele fez ver, mostrando a
água mole benevolência da alma e a imortalidade da carne.
e árvore altíssima. Clemente de Alexandria, O Protréptico.
Desencadeiam-se as paixões, se desenfreiam os
prazeres, murcha a beleza e quando sopram contra
ela as paixões eróticas do devassidão cai por terra
ainda mais depressa que a pétala, e antes mesmo do
outono perde o
'Mediador de relações ilícitos.
Segunda patte - y\ Patrística na área cultural de língua grega

acima de todas os coisas. Riem disso, o discípulo


ORÍGENES verdadeiro de Jesus, Paulo, nos mostra que
segundo o entendimento da doutrina cristã é muito
melhor aceitar os argumentos da fé com o auxílio do
razão e da sabedoria, do que com o auxílio da
simples fé, 0 o mostro dizendo (1 Coríntios 1,21):
"Uma voz que, com efeito, nos sábios desígnios de
Sabedoria grega e Deus o mundo não conheceu Deus por meio da
mensagem cristã sabedoria, ele se com- prouve de salvar os fiéis
mediante a estultice da pregação". C bem claro,
portanto, que, com estas palavras, ele quis mostrar
Respondendo oo FilósoFo pagão Celso, que era necessário conhecer Deus no sabedoria de
que atacara violentamente a mensagem cristã, Deus. C umo vez que isso não se verificou. Deus se
Orígenes aFirma que a "sabedoria deste mundo" comprouve em um segundo tempo de salvar os fiéis,
é uma concepção errônea da FiiosoFia: Deus não mediante a simples estultice, mos mediante a
deve ser conhecido segundo a sabedoria de estultícia que se refere e concerne à pregação.
Deus, portanto não na dimensão do corpóreo, Disso temos, portanto, que por estultícia de
mas na dimensão do espírito. pregação devemos entender a mensagem de Jesus
Cristo crucificado, como de resto o entende Paulo,
quando diz (ICoríntios 1,23-24): "Nós anunciamos
Jesus Cristo crucificado, escândalo para os judeus,
estultícia para os gentios, mas para aqueles que
foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo,
1. n "sabedoria” de Deus e a "estultícia" deste
poder de Deus e sabedoria de Deus".
mundo Orígenes, Contra Celso,
Oro, já qu© Celso põe em questão esto frase, livro I, 13.
como se tivesse sido pronunciada por muitos
cristãos: "a sabedoria no vida é um mal, a estultícia, 2. Deus transcende
ao contrário, é um bem", é preciso dizer que ele as capacidades de compreender que
calunia, falseando nossa palavra, pois não refere são próprias do homem
exatamente o passagem de Paulo, que diz Afirmamos que na sua realidade Deus é
precisamente o seguinte (ICoríntios 3,18-19): "Se incompreensível e imperscrutóvel. Rinda que
alguém entre vós crê ser sábio do sabedoria deste possamos pensar e compreender alguma coisa de
mundo, torne-se estulto, para tornar-se sábio; com Deus, devemos crer que ele sejo de longe superior
efeito, a sabedoria deste mundo é estultício diante de àquilo que dele pensamos. Rdmitamos, com efeito,
Deus". Ora, o apóstolo nõo diz simplesmente: "a ver umo pessoa que o custo pode observar a
sabedoria é estultícia diante de Deus", mas diz "a centelha de uma luz ou o clarão de uma fraca
sabedoria deste mundo". C ainda, quando diz: “se lamparina: se quisermos comparar com a
alguém entre vós crê ser sábio", não acrescenta em luminosidade e o esplendor do sol aquele cuja visto
duas palavras "torne-se estulto", mas especifica: não pode acolher mais luz do que a que dissemos,
"neste mundo, tome-se estulto, para tornar-se sábio". não lhe deveremos dizer que a luz do sol é
Por "sabedoria deste mundo" nós entendemos incomparavelmente superior à luz que ele vê?
portanto toda filosofia, fundada sobre falsos finalogamente, quando nossa inteligência está
conceitos, que se toma ociosa e inútil, conforme as fechada no estreitezo do carne e do sangue e se
Sagradas Gscrituras; por outro lado, dizemos que a torna mais tarda e obtuso pelo contoto com esta
estultícia é boa não em sentido absoluto, mas matéria, mesmo que no confronto com a natureza
quando alguém parece estulto aos olhos deste corpóreo seja de longe superior, todavia, quondo
mundo. O mesmo seria, se nós chamássemos estulto tende às realidades incorpóreas e procura
um filósofo platônico, o quol crê no imortalidade da compreendê-las, tem a custo o volor de umo
alma e na doutrina do sua tronsmigração, diante dos centelha ou de umo lamparina. Mas, entre as
estóícos, dos peripatéticos e dos epicuristas: os realidades intelectuais, ou seja, incorpóreos, o que é
estóicos, com efeito, caçoam desta convicção, os tão superior a todos, tão inefavelmente e inestima-
peripatéticos põem no berlinda as fofocas de Platão, velmente excelente quanto Deus? Por isso o
enquanto os epicuristas tacham de superstição aque- natureza dele não pode ser compreendido pela
les que odmitem a providência e põem Deus
53
'•,. Capitulo terceiro - CDs apologistas gre-gos e a Escola ca+e.cjuética de Alexandria -------------

capacidade da mente humana, mesmo que seja a do (Provérbios 8,30ss), motivo pelo qual também
mais pura e a mais límpida. entendemos que Deus sempre se alegra. Ora, nesta
Todavia, não parece Fora de lugar se, para sabedoria, que sempre estava com o Pai, estava
tornar mais evidente o conceito, nos servirmos de sempre contida, preordenada sob a forma de idéias,
outra comparação. Por vezes nossos olhos não a criação, de modo que não houve momento em que
podem olhar a natureza da luz, ou seja, a substância a idéia daquilo que teria sido criado não estivesse na
do sol; mas observando seu esplendor e os raios que sabedoria.
se difundem nas janelas ou em pequenos ambientes Parece-me que talvez desse modo nós, nos
aptos a receber a luz, daqui podemos argüir quão limites da nossa pequenez, possamos pensar Deus
grande é o princípio e a fonte da luz material. de modo ortodoxo, pois não dizemos que os
Analogamente, as obras da providência e a maestria criaturas são não-geradas e coeternas com Deus, e
que se revela em nosso universo são, por assim por outro lado nem que Deus, antes nada tendo feito
dizer, os raios de Deus em comparação com sua na- de bom, tenha começado o operar depois de uma
tureza e sua substância. Portanto, uma vez que com mudança, a partir do momento que é verdadeiro o
suas forças nossa mente não pode conceber Deus que foi escrito: "Tudo fizeste na sabedoria" (Salmo
como ele é, pelo beieza de suas obras e pela 103,24). € se tudo foi feito na sabedoria, pois a
magnificência de suas criaturas ela o reconhece sabedoria sempre existiu, pré-constituídos sob a
como pai do universo. forma de idéias sempre existiam na sabedoria os se-
Por isso não devemos crer que Deus seja res que sucessivamente teriam sido criados também
corpo ou seja encerrado em um corpo, e sim que ele segundo a substância. Penso que pensando
é natureza intelectual simples, à qual absolutamente justamente nisso Salomão diz no Eclesiastes: "O que
nada se pode acrescentar, para que não se pense foi feito? O mesmo que será feito; o que foi criado? O
que ele tenha em si algo de mais ou de menos: ele é, mesmo que será criado. Não há nado de novo sob o
em sentido absoluto, mônada e, por assim dizer, sol. 6 se alguém disser: 'Gis, isto é novo', isso já
ênada:' inteligência e fonte da qual derivam toda existiu nos séculos que existiram antes de nós"
inteligência e toda substância intelectual. (Gclesiastes l,9ss). Portanto, se tudo isso que existe
Orígenes, Os princípios,
livro I, 1,5-6. sob o sol existiu já nos séculos que se passaram
antes de nós, pois não há nada de novo sob o sol,
3. O mundo das Idéias platônicas sem dúvida sempre existiram todas as coisas, os
incluído e transfigurado na gêneros e as espécies, e poderíamos dizer também
Sabedoria de Deus aquilo que é numericamente uno.
Orígenes, Os princípios,
A este ponto, porém, a inteligência humana se livro I, 4,4-5.
entrega, forçada a se perguntar como é possível
explicar que, a partir do momento que Deus sempre
existiu, também as criaturas sempre existiram; e que
existiram, por assim dizer, sem ter tido início, as
criaturas que sem dúvida devemos crer que foram
criadas e feitas por Deus. Visto que, aqui entram em
contraste entre si as idéias dos homens, enquanto de
ambas as partes se opõem e contrastam conceitos 7 fl apocatástase
validíssimos que procuram atrair a si aquele que os
considera, eis o que, segundo a limitadíssima
capacidade da nossa inteligência, nos vem à mente, Na passagem seguinte, Orígenes ilustra sua
e que pode ser declarado sem nenhum perigo para célebre teoria da apocatástase, segundo a qual
a fé. Deus sempre foi Pai, e sempre teve o Filho todas as coisas no Fim do mundo serão
unigênito, que, conforme tudo o que expusemos recapituladas na unidade originária de Deus, que
acima, é chamado também de sabedoria: esta é a será tudo em todos.
sabedoria com a qual Deus sempre se alegrava
tendo criado o mun
O fim do mundo é prova de que todas as
coisas chegaram à plena realização. €ste fato nos
lembra que se alguém é tomado pelo desejo de ler e
conhecer argumentos tão árduos e difíceis deverá
ter inteligência cultivada e completa. Com efeito, se
ele nõo tiver tido certa experiência de questões de
'Ou seja, realidade absolutamente unitária e simples que não tal gênero, estes argumentos lhe parecerão inúteis e
admite em si nenhuma forma de multiplicidade. supérfluos [...].
ScgUndci parte - jA Patrística na área cultural de língua grega

O fim do mundo ocorrerá quando cada um for Devemos crer que toda esta nossa substancio
submetido às penas conforme os próprios pecados corpóreo será tirada de tal condição quando cada
(Mateus 24,36); e somente Deus conhece o tempo coisa for reintegrada para ser uma só coisa (João
em que coda um receberá aquilo que merece. 17,21), e Deus será tudo em todos (1 Coríntios 1
Consideremos todavia que a bondade de Deus por 5,28). Isso, porém, não acontecerá em um momento,
obra de Cristo conduzirá todas as criaturas para um mas lenta e gradualmente, através de séculos
fim único, depois de ter vencido e submetido infinitos, pois a correção e o purificação sucederão
também os adversários. Com efeito, assim diz a pouco a pouco e singularmente, e enquanto alguns
Cscritura: “Disse o Senhor oo meu senhor: Senta-te à com ritmo mais veloz se apressarão em primeiro
minha direita até que eu ponha teus inimigos como lugar para a meta e outros os seguirão de perto,
esca- belo de teus pés" (Salmo 109,1). Se não pare- outros, ao contrário, permanecerão muito atrás. C
ce claro aquilo que a palavra do profeta quer dizer, assim, mediante inumeráveis ordens constituídas
aprendamos mais abertamente de Paulo, que diz: "€ por aqueles que progridem e, de inimigos que eram,
preciso que Cristo reine até que tenha posto todos os se reconciliam com Deus, chega-se ao último
seus inimigos sob seus pés" (i Coríntios 1 5,25). € se inimigo, a morte, para que também este seja
nem estas palavras tão evidentes do apóstolo nos destruído e não haja mais inimigo (1 Coríntios 1
esclarecem suficientemente o que significa pôr os 5,26).
inimigos sob os pés, ouve como ele continua: “Com Quando todos os almas racionais forem
efeito, é preciso que tudo lhe seja submetido" (1 reconduzidas a esta condição, então também a
Coríntios 15,27). Mas o que é a submissão pelo qual natureza deste nosso corpo será levado à glória de
tudo deve estar submetido a Cristo? Creio que seja corpo espiritual. Com efeito, como vemos que das
aquelo pela qual também nós desejamos estar naturezas racionais as que mereceram a bem-
submetidos a ele, pelo qual se lhe submetem os aventurança não são de natureza diferente em
apóstolos e todos os santos que o seguiram: com relação às que viveram na indignidade do pecado,
efeito, submissão pelo qual estamos submetidos a mas são as mesmas, que antes pecaram e depois,
Cristo significa salvação que Cristo dá a seus convertidas e reconciliadas com Deus, foram
submetidos, conforme tudo o que dizia também Davi: novamente chamadas à bem- aventurança: da
“Não estará minha alma submetida o Deus? Com mesma forma, tombém sobre a natureza do corpo
efeito, dele vem minha salvação" (Salmo 61,1). não devemos crer que um corpo é este de que
Observando tal fim, em que todos os inimigos agora usamos na ignomínia, na corruptibilidade e na
serão submetidos a Cristo e também será destruído fraqueza, e outro será aquele do qual faremos uso
o último inimigo, a morte, e Cristo, a quem tudo foi na incorruptibilidade, no poder e na glória; mas será
submetido, entregará o reino a Deus pai (1 Coríntios sempre este mesmo corpo que, deixando estas im-
1 5,24ss), disso conhecemos o início das coisos. perfeições de agora, será transformado na glória e
Com efeito, o fim é sempre semelhante ao início: e se tornará corpo espiritual, de modo que tendo sido
como um só é o fim de tudo, assim devemos vaso para uso vulgar, uma vez purificado se tornará
entender um só início de tudo, e como um só é o fim vaso de luxo (Romanos 9,21), receptáculo de bem-
de múltiplas coisas, assim, de um só início derivaram aventurança. € devemos crer que nesta condição
coisos muito variadas e diferentes, que de novo, pela permanecerá sempre e imutavelmente por vontade
bondade de Deus, a submissão de Cristo e a do Criador, segundo a fé de Paulo que diz: “Temos
unidade do Cspírito Santo são reconduzidas a um só uma habitação não feita por mão de homens, eterna
fim, que é semelhante ao início [...]. nos céus" (2Coríntios 5,1).
Orígenes, Os princípios,
livro III, 6.
íSapítulo quarto

Os frês I uminares da (Sapadócia e as grande.s


figuras do Pseud o- D ÍOKVÍSÍO yAreopagi+a/
y\Aa?d^\o o (Scmfessor e João Damasce^o

— I. y\ era áurea da Pa+rísfica

— e o (Sorvcílio de /sjicéia

•A promulgação do edito de Constantino em 313 permite Q edjtQ de Mjj§0


à fé cristã manifestar-se publicamente, saindo da clandestini- p13^
dade. Isso influiu também sobre a reflexão teológica, que, en- § 7 quanto estava
sempre mais se medindo com a filosofia e as disciplinas profanas, registrava o
acender-se de debates e polêmicas sobre o conteúdo da doutrina.
• Se o evento principal do séc. IV foi o Concilio de Nicéia 0 concilio
(325) que fixou o "Credo", isto é, o símbolo da fé dos cristãos, o ^ /v/cé/a (325)
evento filosófico mais significativo foi a tentativa de recuperar § 2 a cultura clássica
dentro da fé.

0
bIiü e d i t o de Milao ^ ^
e as disputas teológicas

O ano de 313 marca uma reviravolta


decisiva: Constantino promulga o edito de
Milão, no qual sanciona a liberdade de cul-
to e procura conquistar o favor dos cristãos.
Cessando as perseguições, o pensamento
cristão caminha para se tornar soberano. Ao
longo do século IV e na primeira metade do
século V, a dogmática cristã tomou forma
definitiva, através de acesos debates, que se
concluíram em alguns concílios, que se tor-
naram marcos na história da Igreja, como
os de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedônia
(451). ^
Entre os teólogos desse período que se
destacaram por engenho e cultura, podemos
recordar os seguintes.
Eusébio de Cesaréia (263-340) escre-
veu uma História da Igreja que vai até 324
Uma página dos Cânones das Concordâncias
e defendeu firmemente Orígenes; em sua
dos F.vangelistas de Eusébio
Preparação evangélica mostra muita sim- (de um códice dos sécs. X-XI,
conservado na Biblioteca Oueriniana de Bréscia).
Segunda parte - y\ Patrística na área cultural dt? língua grega

patias pelo platonismo, a ponto de considerar vezes, onde nasceu o símbolo da fé, destina-
Platão em concordância com Moisés. do a ser o “credo” de todos aqueles que se
Ário, que nasceu na Líbia em 256 e reconhecem como cristãos.
morreu em 336, sustenta que o Filho de Deus Eis os pontos centrais do grande sím-
foi criado do não-ser como todo o resto e, bolo de Nicéia: “Cremos em um só Deus
conseqüentemente, desencadeou a grande onipotente (pantokrátor = omnipotens), cria-
discussão trinitária que levaria ao Concilio de dor (poietés = factor) de todas as coisas,
Nicéia. visíveis e invisíveis. E em um só Senhor, Je-
Atanásio (295-373) foi o campeão da sus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado
tese da “consubstancialidade” do Pai e do Fi- (genethéis = natus) do Pai, ou seja, da subs-
lho e, portanto, o grande adversário de Ário tância (ousía = substantia) do Pai, Deus de
e o triunfador do Concilio de Nicéia. Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus
Basílio de Cesaréia, Gregório Nazian- verdadeiro: gerado (ghenetós = genitus) e não
zeno e Gregório de Nissa sobressaem do criado (poiethéis = factus), consubstanciai
ponto de vista cultural e filosófico, e deles (homooúsios = consubstantialis) ao Pai, pelo
falaremos adiante. qual todas as coisas foram criadas (eghéneto
Nemésio de Emesa (sécs. IV-V) foi autor de = facta sunt), as que estão no céu e as que
um tratado Sobre a natureza do homem. estão na terra; por nós e por nossa salvação,
Por fim, recordemos Sinésio de Cirene ele desceu, se encarnou por obra do Espírito
(370413), formado na última escola platônica Santo (...) e ao terceiro dia ressuscitou, subiu
de Alexandria, que se tornou bispo de ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos
Ptolemaida. (...). Creio no Espírito Santo (...)”.
Faltam ainda a aquisição do conceito de
2 CD (Z-oncílio de Aíicéia Pessoa e o aprofundamento das relações
e a fi XQ ÇQ O do “c^edo" entre as três Pessoas (hypostáseis,
personae), que só chegariam posteriormente
O acontecimento principal desse pe- e dos quais falaremos quando tratarmos de
ríodo pode ser considerado o Concilio de santo Agostinho.
Nicéia de 325, ao qual já acenamos várias

O primeiro concilio
ecumênico (Niceia, 325)
cm que se condena o
arianismo: o ícone do
mosteiro grego
Mctamorphosis
representa Ario
submetido pela unidade
da fé do concilio
ecumênico.
Capítulo quarto - Os três luminares da íSapadócia...

: II. (^Àregorio de A) issa : e


os Padres (Sapadócios

• Os pontos principais do pensamento de Gregório de Nissa (335-394), o maior


dos luminares da Capadócia, são três:
1) a prevalência do mundo inteligível sobre o mundo sen- Gregório de Nissa sível,
que é concebido como produto de qualidades e de forças § 1-4 incorpóreas (cor,
forma, extensão etc.);
2) a antropologia fundada não mais sobre a semelhança entre o homem e o
cosmo, mas sobre a semelhança entre o homem e Deus;
3) a possibilidade de ascender até Deus, removendo tudo aquilo de carnal e de
passional que nos separa dele.

1 A recuperação da cultura parecia digno de sobreviver na tradição gre-


ga. Com isso, ele não apenas se fortalece e
clássica dervtro da fé
reforça sua posição no mundo civil, como
também salva e dá nova vida a um patrimônio
Na história das idéias filosóficas, dos
cultural que, em grande parte, sobretudo nas
teólogos mencionados, interessa sobretudo
escolas retóricas da época, se tornara uma
Gregório de Nissa (335-394), que, juntamen-
forma vazia e adulterada de uma tradição
te com seu irmão Basílio de Cesaréia (331 -
clássica já enrijecida. Muito já se disse sobre
379) e com Gregório Nazianzeno (330-390),
os vários renascimentos que a cultura
retomou de seus antecessores a herança
clássica, tanto grega como romana, experi-
grega com maior consistência e consciência.
mentou ao longo da história, no Oriente e no
A esse propósito, escreve Werner
Ocidente. Mas pouca atenção se deu ao fato
Jaeger: “Orígenes e Clemente moveram-se
de que, no século IV, a época dos grandes
por esse caminho de altas reflexões, mas
Padres da Igreja, temos um verdadeiro
agora era preciso muito mais. Certamente,
renascimento que deu à literatura greco-
Orígenes dera sua teologia ã religião cristã no
romana algumas de suas maiores
espírito da tradição filosófica grega, mas
personalidades, que exerceram influência
aquilo a que os Padres da Capadócia visavam
duradoura na história e na cultura, desde sua
em seu pensamento era uma civilização cristã
época até nossos dias. E a diversidade do
total. E levavam para essa empresa a espírito grego em relação ao romano é bem
contribuição de vasta cultura, que fica
caracterizada pelo fato de que o Ocidente
evidente em cada parte de seus escritos.
latino tem o seu Agostinho, ao passo que foi
Apesar de suas convicções religiosas, que se
por intermédio dos Padres capadócios que o
opunham a uma reconquista da religião grega,
Oriente grego produziu nova cultura”.
que naquela época era solicitada por forças
A tese de Jaeger (que nos deu
poderosas do Estado (basta pensar nas
imponente edição crítica das obras de
tomadas de posição do imperador Juliano),
Gregório de Nissa) tem muito de verdadeiro,
não mantiveram oculto o seu alto apreço pela
pois apresenta
herança cultural da antiga Grécia.
o mérito de reler os capadócios sob nova e
E assim encontramos uma clara linha de
fecunda ótica. Entretanto, essa recuperação
demarcação entre religião grega e cultura
da cultura clássica redunda num aumento dos
grega. Desse modo, sob nova forma e em
espaços da razão no interior da fé, sem ne-
nível diferente, eles revivem a conexão, sem
nhuma redução da razão à dimensão mundana.
dúvida positiva e produtiva, entre cristia-
Gregório de Nissa é categórico: “Usamos a
nismo e helenismo, que já encontramos em
sagrada Escritura como norma e lei de toda
Orígenes. Nesse caso, não é exagerado falar
doutrina”. A cultura profana é “estéril,
de uma espécie de neoclassicismo cristão,
porque, quando concebe, não leva o parto a
que é mais do que um fato puramente formal.
cumprimento. (...) Mesmo que tais doutrinas
Graças à sua obra, o cristianismo ergue-se
nem sempre sejam de todo vãs e informes, o
agora como herdeiro de tudo o que
que acontece é que abortam antes de
Segunda parte - Pa+rís+ica na área cultural de língua grega

alcançar a luz do conhecimento de Deus”. A ser lidas na Criação do homem: os filósofos


filosofia grega é útil, mas só se pagãos “imaginaram coisas mesquinhas e
oportunamente purificada: “A filosofia moral indignas da magnificência do homem, na
e a filosofia política poderiam realmente tentativa de elevar o momento humano.
favorecer uma autêntica vida espiritual, se Disseram, com efeito, que o homem é um
conseguissem purificar seus dados microcosmo, composto pelos mesmos
doutrinários das deturpações de erros elementos do todo. E, com esse esplendor
profanos”. do nome, quiseram fazer o elogio da
O Grande discurso catequético, que natureza, esquecendo-se de que, desse
constitui a obra teológica de maior destaque modo, tornavam o homem semelhante às
de Gregório de Nissa, representa a primeira características próprias da mosca e do rato,
síntese orgânica dos dogmas cristãos, pois, com efeito, também neles há a mistura
amplamente fundamentada e muito bem de quatro elementos. (...) Que grandeza tem,
construída. Por longo tempo ela permaneceu portanto, o homem se o consideramos figura
como modelo e ponto de referência. e semelhança do cosmo ? Deste céu que nos
Entre os diversos temas tratados nas circunda, da terra que muda, de todas as
obras de Gregório de Nissa, apontamos três, coisas neles contidas e que passam, com
de particular interesse filosófico e moral. aquilo que os circunda? Mas em que
consiste então, segundo a Igreja, a grandeza
Realidade inteligível do homem? Não na semelhança com o
cosmo, mas sim no ser à imagem do Criador
e mundo sensível da nossa natureza”. A alma e o corpo do
homem são criados simultaneamente, a alma
Gregório distingue, platonicamente, a sobrevive e a ressurreição reconstitui a
realidade em mundo inteligível e mundo união. Gregório retoma de Orígenes a idéia
sensível e corpóreo. Mas, da apocatástase, ou seja, da reconstituição
neoplatonicamente, o mundo sensível é de todas as coisas assim como eram na ori-
quase esvaziado de sua materialidade, sendo gem: até mesmo os maus, depois de terem
concebido como produto de qualidades e sofrido as penas purificadoras, retornarão ao
forças incorpóreas, como se pode ler no De estado original (todos se salvarão).
opificio hominis: “Como não há corpo que
não seja dotado de cor, forma, resistência, A V eus
ascensao a
extensão, peso e das outras qualidades
restantes — cada uma das quais não é corpo,
mas algo diferente do corpo, segundo o Por fim, encontramos em Gregório uma
caráter particular —, assim, pelo contrário, versão cristã da elevação a Deus neoplatô-
onde quer que ocorram tais coisas se opera nica, que se realiza mediante a remoção da-
a existência do corpo. Mas, como a cognição quilo que nos divide de Deus: “A divindade
dessas qualidades é inteligível e como a é pureza, libertação em relação às paixões e
Divindade, por natureza, também é remoção de todo mal: se todas essas coisas
substância inteligível, então não é estão em vós, então Deus está realmente
inverossímil que, na natureza incorpórea, em vós. Se o vosso pensamento está livre
também possam existir esses princípios de todo mal, liberto das paixões, imune a
inteligíveis, pela gênese dos corpos, com a toda impureza, então vós sois bem-
natureza inteligível fazendo brotar as forças aventurados, porque vedes claramente e
espirituais e o encontro entre eles levando porque, estando purificados, percebeis
ao nascimento da natureza material”. aquilo que é invisível para aqueles que não
estão purificados. E, uma vez removida dos
y\ doutrina do Komem olhos de vossa alma a obscuridade carnal,
vereis claramente a bem-aventurada visão”.
Teófilo de Antioquia já dizia: “Mostra-
Outra idéia de Gregório de Nissa sobre me o teu homem e eu te mostrarei o meu
o homem também se destacou. Dizer que o Deus”. Aprofundando esse conceito,
homem é um “microcosmo”, como fizeram os Gregório de Nissa leva-o à sua formulação
filósofos gregos, significa dizer algo muito perfeita com esta afirmação, que o marca do
inadequado. O homem é muito mais. Eis as modo mais significativo: “A medida pela
palavras precisas de Gregório, que podem qual podeis conhecer a Deus está em vós
mesmos”. BSlglTI
Capítulo quarto - Os t n~ s I umin ares da (Sapadócia...

III. O IPse-udo-T) iomsio y\reopagi+a

• Entre os sécs. V e VI viveu o autor de um Corpus de escritos que chegou


até nós sob o nome de Dionísio Areopagita, que tenta uma interpretação do pensa-
mento cristão com base na filosofia de Proclo.
A característica conhecida do pensamento de Dionísio é a . ,.
introdução da teologia chamada apofática (negativa), pela qualAre ® aPseudo-Dionísio a
absoluta transcendência de Deus em relação ao mundo não °P 9>ta permite que
ele seja designado por nenhum termo, nem mesmo filosófico, dado que todo termo
designa uma realidade finita. Portanto, resta apenas designá-lo com uma série de
negações (dizer aquilo que não é, e não aquilo que é), ou recorrer até ao silêncio
místico.

||i "Formulação Eis o trecho mais significativo da Teo-


da feol ogia apofá-Hca logia mística: “A Causa boa de todas as coi-
sas pode ser expressa com muitas e com
poucas palavras, mas também com a ausência
Entre os séculos V e VI, viveu o autor absoluta de palavras. Com efeito, não há
que se denomina Pseudo-Dionísio Areopagi- palavra nem inteligência para expressá- la,
ta, que foi confundido com aquele Dionísio porque está colocada supra-substancial-
que são Paulo converteu com seu discurso no mente além de todas as coisas e só se revela
Areópago. Sob seu nome, chegou-nos um verdadeiramente e sem nenhum véu para
corpus de escritos (Hierarquia celeste, Hie- aqueles que transcendem todas as coisas im-
rarquia eclesiástica, Nomes divinos, Teologia puras e puras, superam toda a subida de
mística e Cartas), que teve grande reper- todos os cumes sagrados, abandonam todas
cussão na Idade Média (a própria estrutura as luzes divinas e os sons e discursos
hierárquica do Paraíso de Dante foi influen-
ciada pela concepção hierárquica da realidade
de Dionísio).
Dionísio repropõe o neoplatonismo em
termos cristãos, sobretudo o platonismo tal
como se configurara na formulação elaborada
por Proclo. Mas o que mais se destaca nesse
corpus, que contém muitas concepções ■ Teologia apofática. A teologia do
Pseudo-Dionísio Areopagita é forte-
bastante sugestivas, é a formulação da teo-
mente inspirada no Neoplatonismo, para
logia “apofática” (ou negativa). Deus pode ser o qual o Princípio primeiro e supremo do
designado por muitos nomes extraídos das Uno está acima de tudo, absolutamente
coisas sensíveis e entendidos em sentido transcendente e separado de todas as
translato, enquanto e à medida que ele é outras realidades que dele derivam. Isso
causa de tudo; de modo menos inadequado, implica que qualquer nome que se possa
Deus pode ser designado por nomes ex- atribuir a Deus é fortemente inadequado:
traídos da esfera das realidades inteligíveis, é muito melhor dizer aquilo que Deus
não é, do que aquilo que é; em outras
como “belo” e “beleza”, “amor” e “amado”,
palavras, é mais correto predicar de
“bem” e “bondade”, e assim por diante; mas, Deus atributos negativos (não-ge- rado,
melhor ainda, Deus pode ser designado incorruptível, imóvel, não-cau- sado
negando-lhe todo atributo, à medida que ele é etc.), do que atributos positivos (bom,
superior a todos; é o “supra-essen- cial” e, belo, santo etc.)
portanto, o silêncio e a treva expressam
melhor essa realidade supra-essencial do
que a palavra e a luz intelectual.
Segunda pãYte - ;A T^afrís+ica na área cultural de lírvgua grega

celestes e penetram na escuridão onde ver- mente impalpável e invisível” e pertencer


dadeiramente reside, como diz a Escritura, completamente “àquele que tudo transcende
aquele que está além de tudo”. E trascen- e a nenhum outro, pela inatividade de todo
dendo tudo aquilo que é sensível e também conhecimento”, tornando-se capaz de
aquilo que é inteligível e inteligente, o homem “conhecer para além da inteligência por meio
pode aderir “àquele que é completa do nada conhecer”. [21

Miniatura (tirada da
primeira página do Códice
de Urbitio lat. 62,
conservado na Biblioteca
Vaticana) que representa
o Pseudo-Dionísio
Areopagita, filósofo da
antiguidade tardia, que
teve grande influência
sobre o pensamento
medieval.
nfl^culmfrotoj2aDm
Capítulo quarto - Os wês I uminares da Capadóeia...

rv. ]v\áx imo o Confessor


e a ul+ima grande ba+alka cris+ológica

• A filosofia de Máximo o Confessor (579/580-662) é dirigida sobretudo à


tematização do papel centrai de Cristo e à defesa do dogma da presença nele de
duas vontades, a humana e a divina: Cristo, portanto, pode ser considerado
verdadeiro homem e verdadeiro Deus, diversamen- A defeSa te do que diziam os
monoenergistas (que consideravam que dogma em Cristo existisse apenas uma
energia divina) e os monotelitas cristológico (que consideravam que em Cristo
existisse apenas uma vonta- -> § 1 de divina).

1 y\fi rmação na e a humana. E assim conseguiu levar à


vitória a tese de Cristo como verdadeiro
do dogma de (Sristo Deus e verdadeiro homem. Mas pagou essa
“verdadeiro Dews e sua batalha com grandes sofrimentos: sua
verdadeiro Komem // língua foi cortada, sua mão direita amputada
e ele próprio mandado para o exílio. Por isso
foi chamado o “Confessor”, ou seja,
Máximo viveu de 579/580 a 662 e re- “Testemunha” da verdadeira fé em Cristo,
presenta a última grande voz original da que ele chamou “o mais forte de todos, por-
Patrística grega. Entre suas obras, podemos que é e se diz a Verdade”.
recordar os poderosos Ambigua, traduzidos O núcleo essencial do pensamento de
para o latim por Escoto Eriúgena, nos quais Máximo está na tematização do papel central
são discutidas passagens difíceis de Dionísio da pessoa de Cristo de um ponto de vista
e Gregório de Nissa, as Questões a Talássio, tanto antropológico como metafísico, on-
os sugestivos Pensamentos sobre o amor, tológico e cosmológico, com ousadíssimo
bem como os Pensamentos sobre o conheci- entrecruzamento de planos, em que
mento de Deus e sobre Cristo, o Livro as- convergem e se fundem suas concepções
cético, a Interpretação do pai-nosso, a Dis- antropocên- tricas, teocêntricas e
cussão com Pirro, a Mistagogia, numerosos cristocêntricas.
Opúsculos teológicos e várias Cartas. Em uma célebre passagem dos Ambi-
Máximo é importante tanto pelo aspecto gua, que exerceu profunda influência sobre
filosófico (ele apresenta uma forma de Escoto Eriúgena, Máximo apresentou cinco
neoplatonismo repensado a fundo em função distinções fundamentais da realidade: entre
da teologia cristã) como pelo aspecto Deus e criatura, entre mundo inteligível e
místico-ascético e, sobretudo, pelo aspecto sensível, entre céu e terra, entre paraíso e
teológico, particularmente por sua cristo- mundo habitado, entre homem e mulher. A
logia. partir da posição central do homem, que é
Ele foi grande sobretudo pela batalha imagem de Deus e, ao mesmo tempo, como
que travou com energia contra as últimas microcosmo — é, portanto, um privilegiado
doutrinas que ameaçavam o dogma anel de conjunção de todos os seres —,
cristológico sancionado pelo Concilio de Máximo explicou que a tarefa de unificação
Calcedônia. Com efeito, haviam-se difundido universal, confiada por Deus ao homem,
doutrinas que sustentavam que, em Cristo, decaído por causa do pecado original, foi
existe uma só energia (monoenergismo) e realizada pelo Verbo, em que a natureza
uma só vontade (monoteletismo) de natureza humana e a divina se uniram, sem mistura.
divina. Tratava-se de formas de cripto- Eis a passagem: “Uma vez que, portan-
monofisis- mo. Máximo as refutou, to, o homem, depois que foi criado, não se
demonstrando, com eficácia e grande moveu naturalmente para o imóvel, como seu
tenacidade, que em Cristo há duas atividades Princípio (quero dizer, Deus), mas se dirigiu,
e duas vontades: a divi contra a natureza, voluntariamen
62
Segunda parte - A Patrística na área cultural de lírvgua grega

te, de modo irracional, para aquilo que está realizou o grande Desígnio do Pai, recapi-
abaixo dele, sobre o qual ele próprio, por tulando tudo aquilo que está no céu e sobre a
ordem divina, teria devido comandar [...], e terra em Si, em que tudo foi criado”.
assim pouco faltou para que de novo mise- A partir da concepção do Confessor,
ravelmente corresse o perigo de afundar no segundo a qual tudo é recapitulado em Cristo,
não-ser, por isso são transformadas as natu- no qual e pelo qual tudo existe, o maior
rezas [...]. E Deus se torna homem a fim de estudioso moderno de Máximo (H. U. von
salvar o homem perdido, tendo unificado em Balthasar) descreveu a existência humana
si as partes dispersas da natureza na sua como ato litúrgico, oferta, adoração transfi-
totalidade e as formas universais dos guradora em um templo, tendo como nave o
particulares, de que devia surgir por natureza cosmo inteiro, ou seja, como “liturgia cós-
a união daquilo que estava dividido [...]. E mica”. [T]®®
assim

V-3 oão Da n\c\s<ze.no

• João Damasceno (primeira metade do séc. VIII), diversa- . .


mente dos outros Padres, assumiu elementos filosóficos também de
Aristóteles e não somente de Platão. §7
No Oriente, Damasceno gozou de autoridade semelhante à de que
gozou santo Tomás no Ocidente.

V^ecuperação da -filosofia
aris+o+élica

Com João Damasceno, que desenvolveu


suas atividades na primeira metade do século
VIII, encerra-se o período da Patrística
grega. João não foi uma mente especulativa
original, mas sim um grande sistematizador.
Sua obra intitulada Fonte do conhecimento,
subdividida em uma parte filosófica, uma
sobre a história das heresias e outra
teológico-doutrinária, tornou-se ponto de
referência por muito tempo. A terceira parte,
traduzida para o latim por Burgúndio de Pisa,
por volta de meados do século XII, sob o
título De fide orthodoxa, constituiu um
modelo para as sistematizações escolás-
ticas. Ao contrário da maior parte dos Padres
gregos, que haviam extraído os seus instru-
mentos conceituais de Platão e do Platonis-
mo, João Damasceno se apoiou na filosofia de
Aristóteles. No Oriente, gozou de autoridade
que pode até mesmo ser comparada à
usufruída por santo Tomás no Ocidente.

João Damasceno compõe um sermão. Miniatura do


séc. XI,
conservada na Biblioteca Apostólica Vaücana.
63
Capítulo quarto - Os teês I uminares da (Sapadócia... —

Por isso manifesta-se no homem a mistura de


GREGÓRIO DE NISSA inteligível e de sensível, que é obra da natureza
divina, conforme ensina o relato da criação do
mundo. Diz, com efeito, que "Deus, tomando barro
da terra, formou o homem e com o próprio sopro
infundiu a vida na sua criatura", para que desse
Os dois planos da realidade: modo o elemento terrestre se elevassejun- to ao
divino, e uma só e idêntica graça se expandisse por
sensível e supra-sensível toda a criação mediante a mistura da natureza
inferior com a natureza sobre-humana.
Gregório d® Nisso, Fl
gronde catequese.
Gregório utilizo a distinção platônica dos
dois planos da realidade (sensível e supra- 2. O homem não é apenas um microcosmo, mas
sensível) para exprimir algumas verdades da fé uma imagem do Criador do cosmo
cristã. Retoma o conceito de homem como "Mas como pode", objetei, “a certeza da
"microcosmo", enquanto imagem de Deus, que é existência de Deus demonstrar também a existência
seu Criador. da alma humano? fl alma não é idêntica a Deus;
apenas neste caso se admitíssemos uma coisa seria
necessário admitir tudo o mais".
1. Os dois planos da realidade: o C ela1 replicou: "Os sábios dizem que o ho-
supra-sensível e o sensível mem é um microcosmo que compreende em si os
Sõo dois os plonos que o pensamento percebe mesmos elementos dos quais o universo está cheio.
na realidade, onde a especulação distingue o mundo Se esta teoria for justa — e parece ser — não
inteligível e o mundo sensível. C nada se poderia teríamos talvez necessidade de outro aliado para
conceber além desta divisão na natureza dos seres confirmar nossas suposições sobre a alma.
existentes, Cstes dois planos são profundamente Supusemos que ela possui natureza distinta e
distintos entre si, de modo que nem a realidade particular, profundamente diversa do espessura
sensível está presente nas características do própria dos corpos. Ouando tomamos conhecimento
inteligível, nem a inteligível nas do sensível, mas de todo o universo mediante as percepções
cada uma delas caracteriza-se pelas qualidades sensoriais, a mesma energia que anima nossas
opostas. Com efeito, a natureza inteligível é uma sensações nos leva a pensar no objeto e na idéia
realidade incorpórea, intocável e sem forma; a que se encontra acima delas, e nosso olho se torna
natureza sensível, ao contrário, como o próprio riome o intérprete da sabedoria onipotente que se
indica, está sujeita à percepção dos sentidos. contempla no universo e que anuncia aquele que o
Todavia, assim como no próprio mundo sen- mantém unido por meio dela; do mesmo modo,
sível, onde a oposição entre os elementos é pro- quando olhamos nosso universo, sentimo-nos não
fundo, certo acordo de equilíbrio entre os contrários pouco ajudados a alcançar também aquilo que está
foi excogitado pela sabedoria que dirige o universo, e escondido por meio daquilo que nos aparece. C
assim toda a criação aparece internamente escondido fica aquele princípio que, sendo
harmonizada, sem que nenhuma dissonância natural destacado, inteligível e invisível, foge da percepção
interrompo a continuidade do acordo; do mesmo sensorial".
modo se realiza por obra da sabedoria divina uma Gregório de Nissa, fl alma
mistura e uma combinação do sensível com o e a ressurreição.
inteligível, para que tudo possa participar de modo
igual no bem e nada do que existe seja privado da 3. fl grandeza do homem
participação na natureza superior, flssim a esfera Voltemos às palavras divinas: "Façamos o
adequada à natureza inteligível é na realidade a homem conforme nossa imagem e semelhança".
essência sutil e móvel, que pelo espaço ocupado [Filósofos] pagãos imaginaram coisas mesquinhas e
acima do cosmo obtém do peculiaridade da sua indignas da magnificência do homem, na tentativo
notureza uma grande afinidade com o inteligível; mas de elevar a condição humana; com efeito, disseram
o ação de uma providência mais alta efetua uma que o homem é um microcosmo
mistura do inteligível com o mundo sensível, a fim de
que nada do que existe na criação possa ser
rejeitado, como diz o Apóstolo, nem excluído da
participação no divino.
'é Mocrino, irmã de Gregório, que protagonizo o diálogo com
ele.
Segunda parte - jA Patfís+ica na ó>*ea cul+ural de língua grega

composto dos mesmos elementos do todo e com do uma alma. fl inteligência, com efeito, se é própria
este esplendor do nome quiseram fazer o elogio da de todas estas faculdades, ou mostra que elas são
natureza, esquecendo que desse modo tornavam o todos as almas, ou priva cada uma delas, em igual
homem semelhante às características próprias da medida, das propriedades características da alma".
mosca e do rato, pois também neles existe a misturo C ela me respondeu: “Também tu queres
dos quatro elementos, porque certamente nos seres examinar de modo coerente esta questão já
animais se vê uma parte mais ou menos grande de debatida por muitos outros: trata-se da idéia que é
cada um dos elementos, sem os quais nenhum ser preciso ter destes dois princípios, o concupiscível e
que participa da sensibilidade teria natureza para o irascível, paro ver se fazem parte da essência da
subsistir. Que grandeza tem, portanto, o homem, se alma e se estão nela presentes desde sua formoção
o consideramos figura e semelhança do cosmo? originária ou se, ao contrário, são algo diferente,
Deste céu que circunda, da terra que muda, de inserido em nós posteriormente. Que sua presença
todas as coisas neles compreendidas e que passam se nota na alma é fato igualmente admitido por
com aquilo que as circunda? todos, mas nenhum raciocínio ainda soube dizer
Cm que consiste, conforme a Igreja, a gran- com exatidão o que é preciso pensar sobre eles, de
deza do homem? Não na semelhança com o cosmo, modo a ter uma idéia segura a propósito. Ao contrá-
mas em ser à imagem do Criador de nossa natureza. rio, quose todos [os filósofos] são tomados pela
Gregório de Nisso, O dúvida, por causa de suas opiniões erradas e
homem. diversas. Se a filosofia pogã, que debate este
argumento com seus artifícios, bastasse de fato paro
4. Na definição da alma dar-nos uma demonstração, seria talvez supérfluo
não entra aquilo que é completamente acrescentar à pesquisa um discurso sobre a alma;
estranho a Deus mas, visto que [os filósofos] chegaram a formular
€ eu, remetendo-me em meu pensamento à sobre a alma teorias baseadas sobre as aparências
definição da alma dada por ela [Macrina] em seu e arbitrárias, enquanto nós, que não somos livres
discurso anterior, lhe fiz notar que este não havia para dizer o que queremos, usamos a Cscritura
ilustrado suficientemente as faculdades que se santa como regra e lei de todo doutrina, [segue-se
podem pensar presentes na alma. “Conforme o teu que] nós, forçados a considerar apenas a Cscritura,
discurso, a alma é uma essência inteligente que aceitamos somente aquilo que concorda com suas
transmite ao corpo, seu instrumento, a força vital, de intenções. Deixemos andar, portanto, o carro pla-
modo que possa fazer funcionar as sensações. Mas tônico, o par de potros atrelados, diferentes em seus
nossa alma não se limita a pôr em movimento a impulsos, e o auriga que os guia, todos enigmas de
faculdade cognoscitiva e especulativa do que [Platão] se serve para formular sua doutrina
pensamento produzindo-a em virtude de sua sobre a alma; coloquemos igualmente de lado todas
essência inteligente, ou a governar as faculdades as teses do filósofo seguinte, que, pesquisando
sensoriais para que funcionem conforme sua habilmente os fenômenos e examinando com
natureza: nela se notam também muitos movimentos cuidado o problema que agora nos interessa, nos
ditados pela concupiscência e pela ira. Graças à mostrou que a alma é mortal; deixemos de lodo
presença em nós destas duas funções gerais, temos também os filósofos precedentes e sucessivos,
meio de constatar que sua atividade e seu tenham eles escrito em prosa ou em versos
movimento assumem uma grande variedade de baseados sobre o ritmo e sobre o metro; tomemos,
manifestações. São muitas as ações que se podem ao contrário, como base de nosso raciocínio a
ver guiadas pela faculdade concupiscível; e muitas Cscritura inspirado por Deus, que nos obriga a não
são também as ações produzidas pelo princípio considerar nada de excelso na alma, que não seja
irascível: nenhum desses dois princípios é corpóreo, próprio da natureza’ divina. Aquele que nos disse
e tudo aquilo que é incorpóreo possui uma que a alma se assemelha a Deus nos mostrou tam-
inteligência, fl definição que demos da alma nos bém que aquilo que é estranho a Deus não entra na
mostrou, por outro lado, que ela é um princípio definição da alma: a semelhança não poderia
inteligente. Por conseguinte, de nosso discurso subsistir naquilo que é diferente. Uma vez que estes
nasce um destes dois absurdos: ou a ira e a dois princípios não se vêem na natureza divina, não
concupiscência são em nós outras almas, e em nós é também justo supor que façam parte da essência
se pode notar, em vez de uma só alma, uma da alma.
pluralidade de almas; ou então nem o nosso Gregório de Nisso, R olmo
pensamento deve ser considera e a ressurreição.
65
Capítulo quarto - Os três I uminam s da íSapadócia... — ~

efeito, para expressá-la não há nem palavra nem


PSEUDO-DIONÍSIO inteligência, porque está colocada supra-
AREOPAGITA substancialmente além de todas os coisas, e se
revela verdadeiramente e sem nenhum véu apenas
para aqueles que transcendem todas as coisas
impuras e as puras e superam toda subida de todos
os sagrados cimos, e abandonam todas as luzes
2 R concepção de Deus divinas e os sons e discursos celestes, e penetram
como "acima de tudo"
na escuridão onde verdadeiramente reside,
conforme diz a Cscritura, aquele que está além de
tudo.
Não é, portanto, fora de propósito o fato de
Os escritos que estão sob o nome de que o divino Moisés recebe a ordem primeiro de
Dionísio Hreopagita (o personagem convertido purificar-se e depois de separar-se daqueles que
por são Paulo no fíreópago de Atenas) foram na não estão puros, e, portanto, depois de completa
realidade compostos por um autor do séc. V, purificação ouve as trombetas de muitos sons e vê
fortemente influenciado pelo tardio muitas luzes de que emanam raios puros e difusos
neoplatonismo de Proclo. em muitas partes; então ele se sepora da multidão e,
fí noção de Deus aí contida é, portanto, com os sacerdotes escolhidos, toca a sumidade das
análogo à noção do Uno neoplatônico, Princípio alturas divinos e aí não tem relação direto com Deus
absolutamente transcendente de toda realidade,
acima do ser, da vida e da inteligência. e não o vê, pois Deus é invisível, mas vê apenas o
lugar em que ele se encontrava. Isso significa, creio,
que as coisas mais divinas e mais altas vistas ou
pensadas são puras e simples indicações das
coisos submetidas àquele que transcende toda
1. Deus como realidade acima do coisa; e por meio delas se demonstra que a
ser da inteligência presença de Deus é superior a toda inteligência
Csteja, porém, atento para que nenhum enquanto reside sobre as sumidades inteligíveis dos
daqueles que não são iniciados escute estas coisas; seus lugares mais sontos.
quero dizer, aqueles que aderem às coisas que Cntão, Moisés se liberta de todos as coisas
existem e que não imaginam que exista algo de modo que são vistas e das que vêem e penetra na
supra-substancial para além dos seres, mas crêem escuridão verdadeiramente secreta da ignorância,
conhecer com sua própria ciência "aquele que pôs as na qual faz calar toda percepção cognoscitivo e
trevas como próprio esconderijo". Mas se os adere àquele que é completamente impalpável e
ensinamentos do mistério divino estão fora do invisível, pertencendo completamente àquele que
alcance destes, o que diremos daqueles ainda mais tudo transcende e a nenhum outro, nem a si nem a
profanos, que representam mediante as mais baixas outro, unido em um modo superior àquele que é
das criaturas a Causa que transcende todos as completamente desconhecido, mediante a
criaturas e afirmam que ela por nada supera as inatividade de todo conhecimento, e capaz de
formas ímpias e múltiplas por eles plasmadas? C conhecer para além da inteligência com o não
necessário, ao contrário, atribuir a ela e afirmar dela, conhecer nada.
enquanto Causa de todas as coisas, tudo aquilo que
se diz dos seres, e é ainda mais importante negar 2. R causa de todas as coisas
tudo isso, enquanto ela é superior a todas as coisas, está acima de tudo
nem se deve crer que as negações se oponham às
afirmações, mas que está muito mais acima das pri- Dizemos, portanto, que a Causa de todas as
vações essa que transcende toda privação e toda coisas e que está acima de todas as coisas não é
atribuição. nem carente de substância nem de vida, nem
Portanto, essa é a forma como o divino carente de razão nem sem inteligência; todavia, não
Bartolomeu diz que a palavra de Deus é grande e é nem um corpo nem umo figura nem uma forma, e
pequeníssima, e o Cvangelho é vasto e amplo e não tem quantidade ou qualidade ou peso; não está
também é conciso. Parece-me que ele tenha em um lugar; não vê, não possui tato sensível, nõo
compreendido de modo admirável que a Causa boa sente nem cai sob a sensibilidade; nõo conhece
de todas as coisas pode ser expressa com muitas desordem ou perturbação por ser agitada pelas
palovras e com poucas, mas também com o paixões materiais; não é fraca nem sujeito aos erros
ausência absoluta de palavras. Com sensí
66
___ Segunda parte - A Patrística na área cultural de língua grega

veis; nõo tem necessidade da luz, não sofre nhum evidente por si o que e como seja, chamando
mudança ou corrupção ou divisão ou privação ou distinção a ignorância sobre isso, que separa a
diminuição; não é nenhuma das coisas sensíveis, criatura de Deus. Com efeito, dado que ela distingue
nem as possui. estes entre si naturalmente, e não pode ser recolhida
Pseudo-Dionísio flreopogita, em unidade em uma só essência, porque não pode
Teologia mística. receber um único e idêntico termo, foi deixada não-
expressa. fl segunda divisão, ao contrário, em base
à qual se distingue toda o natureza que recebeu o
ser de Deus na criação, é a que está entre o inteli-
gível e o sensível, fl terceira é aquela segundo a
qual a natureza se distingue em céu e terra, fl
MÁXIMO O CONFESSOR quarta, depois, é aquela segundo a qual a terra se
divide em paraíso e terra habitada, e a quinta é
aquela segundo a qual o homem, que está acima de
todos como um cadinho que contém em si a
totalidade, tornando-se em si mediador entre todos
3 os extremos de toda divisão, com bondade
As cinco introduzido com o nascimento entre os existentes, se
divisões do subdivide em macho e fêmea. Tem claramente a
natureza plena capacidade de unir naturalmente, pois está no
meio de todos os extremos, graças às propriedades
6sto famosíssimo passagem dos flm- relativas a todos os extremos de suas partes, por
bigua (explicações de dificuldades presentes meio das quais, realizando o modo da gênese das
nas obras de Gregório Nazianzeno e Dionísio coisas distintas, de maneira conforme à causa, teria
Flreopogita) exerceu grande influencio sobre revelado por si o grande mistério do escopo divino,
(íscoto Eriúgena (tradutor de obras de Máximo e tendo feito harmoniosamente terminar em Deus o
autor do De divisione naturae). união recíproca dos extremos dos seres,
Rqui se apresentam cinco divisões fun- procedendo dos próximos aos distantes e
damentais: sucessivamente para o alto dos piores aos melhores
1) natureza criada/não-criada: [...]. Todavia, uma vez que o homem, depois que foi
2) mundo inteligível/sensível: criado, não se moveu naturalmente para o Imóvel,
3) céu/terra: como seu Princípio (digo, Deus), mas se dirigiu
4) paroíso/mundo habitado pelo homem: contra a natureza, voluntariamente, de modo
5) homem/mulher. irracional, para aquilo que está abaixo dele, sobre o
O homem, que é imagem de Deus e, qual ele próprio por ordem divina teria devido
como microcosmo, é um onel de conjunção comandar [...], e assim pouco faltou para que de
privilegiado entre os extremos, teria devido novo miseravelmente corresse o perigo de afundar
unificar os diversos opostos, reconduzindo o no não- ser, por ele são transformadas as naturezas,
Todo o Deus. e de modo paradoxal e sobrenatural. Aquilo que por
Uma vez que não realizou essa tarefa, natureza é absolutamente imóvel se move, por assim
Deus empreendeu a obra da salvação e da dizer, permanecendo imóvel, para aquilo que é por
unificação por meio do mistério da Encarnação natureza movido, C Deus se torna homem a fim de
do Verbo. salvar o homem perdido.
Máximo o Confessor,
fímbiguorum iiber.
Os santos que receberam a maior parte dos
mistérios divinos daqueles que foram seguidores e
ministros do Logos, e que portanto obtiveram
imediatamente o conhecimento dos mistérios
transmitido a eles por sucessão dos predecessores,
dizem que o substância de tudo
o que foi feito distingue-se em cinco divisões. Dizem O amor
que a primeira delas é a que distingue a Realidade
não-criada da criada na sua totalidade; esta recebeu
o ser por meio do nascimento. Rfirmam, com efeito, Muito significativa e tocante é o doutrina de
que Deus por bondade produziu a magnífica ordem Máximo sobre o agape, sobre o amor,
do totalidade dos seres, e que não se torna de modo concebido, no Novo Testamento, como amor
ne- -----------------------------------------------------------------

67
Cãpítulo CtUãYtO - Os três luminares da Capadócia... ........................... —

-- --------------------------
de Deus e do próximo. Tal temática se centraliza
sobre a natureza de Deus como agape e sobre a fl "liturgia cósmica"
pessoa de Cristo.
Cis uma passagem emblemática tirada do
Livro ascético: ela apresenta Deus como "amor". O ápice da doutrina do Confessor sobre
Cristo como o "próprio verdadeiro amor", o amor divisões e unificações, pelo gual tudo é
por todo homem como "sinal de amor de Deus". "recapitulado" em Cristo, é a concepção da
"liturgia cósmica". R unificação realizada pela
Cncarnação continua na obra transfiguradora
da Igreja.
Fl Igreja está no meio, entre cosmo natural
"Mesmo se [os mondamentos] são muitos, e sobrenatural; assim como a Igreja é um
irmão, todavia eles se recapitulam em um só mundo, também o mundo é uma "igreja
preceito, ou seja: 'flmarás o Senhor teu Deus com cósmica", cuja nave é o cosmo sensível. Neste
todas as tuas forças e com toda o tua mente, e o teu templo o homem, imagem de Deus, celebra a
próximo como a ti mesmo'. C guem luta para adoração, a oferta litúrgica transfiguradora.
observar esse preceito, cumpre junto todos os fípresentamos duas passagens signifi-
mandamentos. Com efeito, aquele que não se cativas, tirados da Mystagogia, que é uma
afastou do poixão por aquilo que é material [...] não interpretação simbólica da liturgia.
pode amar nem Deus nem o próximo com verdade,
porque é impossível ser ao mesmo tempo inclinado
à matéria e amor Deus. C isso é aquilo que diz o
Senhor: 'Ninguém pode servir a dois patrões[...]'.
Com efeito, pelo Fato de que nossa mente está 1. fl Igreja, figura do cosmo
apegada às coisas do mundo, é escravizada por
elas e despreza o mandamento de Deus, transgre- Fl santo Igreja de Deus é a figura e a imagem
dindo-o". do cosmo inteiro, constituído de seres visíveis e
C o irmão disse: "De quois coisas Falas, pai?" invisíveis, porque apresenta em si a mesmo união e
C o ancião respondeu: "De alimentos, rique- distinção. Cmbora ela seja de fato como uma só
zas, propriedades, glória, parentes e daí por diante". casa pela construção, por certa particularidade na
C o irmão perguntou: “Dize-me, pai: Deus por disposição da estrutura admitirá a distinção, sendo
acaso não criou essas coisas e não os deu acaso dividida, com uma porte reservada exclusivamente
para que os homens as usassem? Como então aos sacerdotes e aos ministros, chamada santuário,
ordena não estar apegado a elas?" e outra acessível a todo o povo fiel, chamada nave.
G o ancião respondeu: "C evidente que Deus Por outro lado, é una por essência, não estando
criou estas coisas e as deu para que os homens as dividida de suas partes por sua diferença recíproca,
usassem. C todas as coisas criadas por Deus são mas libertando as próprias partes da diferenço que
boas, porque servindo-nos delas bem tornamo-nos brota de seu nome por sua relação com a unidade, e
agradáveis a Deus; nós, porém, sendo Fracos e mostrando que ambas são reciprocamente a mesma
ligados tanto à matéria como oo modo de pensar, coisa, e manifestando que, por coesão, uma é para a
pusemos as coisas materiais na frente do outro aquilo que cada uma é para si mesma [...]. Do
mandamento do amor, e ficando apegados a elas, mesmo modo, também todo o cosmo dos seres,
combatemos os homens. Devemos, porém, antepor gerado por Deus, está subdividido tanto em um
a todas as coisas visíveis e ao próprio corpo o mundo inteligível, formado por essências inteligíveis
amor por todo homem, gue é sinal do amor por e incorpóreas, quanto neste mundo sensível e cor-
Deus, como o próprio Senhor indica nos póreo, também magnificamente entretecido por
Cvangelhos: 'Quem me ama — diz — observará os muitas formas e naturezas. Trata-se, por assim dizer,
meus mandamentos'. C qual seja o mandamento, de outro Igreja, não feita por mãos de homem,
pela observância do qual nós o amamos, escuta ele revelada sabiamente por esta, feita por mãos de
próprio, que diz: 'Este é o meu mandamento: que homem, e que tem, como sontuário, o cosmo
vos ameis uns aos outros'. Vês que o amor mútuo superior, constituído pelas potências do alto e, como
testemunha o amor por Deus, que é a perfeição de nave, este cá debaixo, reservado aos seres aos
todo mandamento de Deus?" quais toca como sorte a vida sensível.
Máximo o Confessor,
Máximo o Confessor, Mystagogia.
Liber asceticus.
Segunda parte - T-^a+rística na área cultural de língua grega

2. O homem como Igreja mística veis, tiradas pelo espírito de modo puro do
C, vice-versa, o homem é umo Igreja místico: matéria, e por fim, com o altar do mente chama a
com a nave do corpo, ilumina virtuosamente a parte si o silêncio, celebrado nos templos, da grande
ativa da alma com a potência dos mandamentos, voz invisível e incognoscível do Divindade, por
conforme a filosofia ética, enquanto com o santuário meio de outro silêncio, loquaz e de muitos sons
do olmo conduz em Deus, conforme o [...].
contemplação natural, por meio do razão, os Máximo o Confessor,
formos dos coisos sensí Mystagogia.

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Clímaco, João
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Nacional de Paris.
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A PATRÍSTICA NA
ÁREA CULTURAL DE
LÍNGUA LATINA

■ O filosofar na fé de santo Agostinho

“Ninguém pode atravessar o mar deste século, se


não for carregado pela cruz de Cristo. ”
Agostinho
Capítulo quinto

A Patrística latina antes de santo Agostinho

Capítulo sexto

Santo Agostinho e o apogeu da Patrística


(Sapítulo quinto

y\ Pafrística la+i na. cm+es de santo


jAgos+mko

ZHZZ T^elix/ Xerfu liaK vo -------- ------


e os e.scHlores cHs+ãos ate o seculo ÍV

• Os Padres latinos anteriores a Agostinho foram pouco Minúcio


atraídos, quando não decisivamente hostis, à filosofia grega. e a
Minúcio Fél.ix, particularmente, condenava a sabedoria grega, sabedoria
acusando-a de ser tão grandiloqüente e pomposa, quanto vã, grega
abstrata e superficial. Para ele apenas a doutrina cristã pode ser -+§1-2
considerada sabedoria do coração, autêntica e profunda.
• Para Tertuliano, Atenas e Jerusalém nada têm em co-
mum: fé em Cristo e Sabedoria humana se contradizem (daqui Tertu
sua célebre afirmação: credo quia absurdum). Na verdade, a liano:
alma é naturaliter christiana e é a cultura filosófica que a afasta cred
da verdade. Tertuliano assumiu, talvez de Sêneca, uma con- o
cepção corpórea da realidade e do próprio Deus. quia
absu
• Os escritores cristãos dos sécs. III-IV moveram-se rdum
substancialmente em três direções: em sentido pastoral (como ->§3-
Outros escritores
Cipriano), em sentido teológico (como Novaciano) e em sentido 5cristãos
filosófico (como Arnóbio e Lactâncio), mas, neste último caso, -+§6
nem sempre em formas originais e adequadas à finalidade.
• Os tradutores e comentadores do séc. IV souberam man-
ter viva a tradição filosófica, sobretudo de estilo platônico e Os
neoplatônico — neste sentido tiveram particular importância as tradutor
traduções de Calcídio —, enquanto alguns deles, como Mário es
Vitorino, transpuseram para o âmbito teológico traços e idéias cristãos
adquiridas no estudo da filosofia. -> 5 7

1 o primeiro escrito ceram os interesses estritamente teológicos


e pastorais ou então filológicos e eruditos.
apologético cristão-latino
Em geral, o lugar que eles ocupam na história
da filosofia é bastante modesto. Sendo assim,
Os Padres latinos anteriores a santo limitar-nos-emos a uma abordagem sintética,
Agostinho foram geralmente muito pouco com o objetivo de conhecer, ainda que
atraídos pela filosofia e, mesmo quando se apenas em linhas gerais, o fundo sobre o qual
ocuparam dela, não criaram idéias verdadei- surgiu a poderosa figura de santo Agostinho.
ramente novas. A formação cultural dos pri- O primeiro escrito apologético em favor
meiros apologistas foi de caráter jurídico- dos cristãos foi provavelmente o Otávio, de
retórico, especialmente no sensível e vivo Minúcio Félix (um advogado romano), escrito
ambiente africano. Em outros Padres prevale pelos fins do século II em forma de diálogo.
Terceira parte - ;A 1~^a+rís+Íca na área cul+ural de Imcjua ta+ina

As finezas ciceronianas e a aparente paca- 3 Para Xertuliano,


tez no tom geral, próprias de Minúcio Félix,
induziram muitos a falar de um espírito jAtenas e ^Je.rusa\ém
conciliador com a cultura pagã. Na realidade nada têm em comum
não é assim, porque, como bem destacaram
alguns, os ataques contra os filósofos gregos,
A atitude polêmica em relação à filo-
substancialmente, são bastante duros.
sofia, assumida por Quinto Setímio Florente
Tertuliano, foi muito mais forte. Nascido
pouco depois da metade do século II em
Cartago, tem como grande destaque de suas
sie Os fortes ataques obras o Apologético. Outras obras suas in-
J I teressantes por vários aspectos são: O tes-
de Mi núcio Félix
contra os filósofos gregos temunho da alma, Contra os judeus, As pres-
crições contra os heréticos, Contra Marcião,
Contra os valentinianos, o tratado Sobre a
A propósito das concordâncias que alma, A carne de Cristo e A ressurreição da
podem ser constatadas entre os filósofos carne, entre outras.
gregos e o cristianismo, Minúcio Félix es- Depois de ilustrar no Apologético a
creve: “E note-se bem que os filósofos afir- contraditoriedade dos filósofos e sua imora-
mam as mesmas coisas em que cremos, não lidade, Tertuliano contrapõe os filósofos aos
porque nós tenhamos seguido os passos de- cristãos do seguinte modo: “Em seu conjunto,
les, mas porque eles se deixaram guiar por que semelhança pode-se perceber entre o
leve centelha, que os iluminou com as pre- filósofo e o cristão, entre o discípulo da
gações dos profetas sobre a divindade, in- Grécia e o candidato ao céu, entre o trafi-
serindo um fragmento de verdade em seus cante da fama terrena e aquele que faz ques-
sonhos”. tão de vida, entre o vendedor de palavras e o
E, depois de acenar à teoria da realizador de obras, entre quem constrói
transmi- gração das almas, propugnada por sobre a rocha e quem destrói, entre quem
Pitágoras e Platão, que ele julga verdadeira altera e quem tutela a verdade, entre o la-
aberração doutrinária, acrescenta o seguinte drão e o guardião da verdade?”
a propósito da admissão da idéia de que as Em outras obras, Tertuliano reafirma
almas podem assumir corpos também de que Atenas e Jerusalém nada têm em comum,
animais: “Essa afirmação não parece de fato a como também a Academia e a Igreja. O cris-
tese de um filósofo, parecendo muito mais a tão extrai seus ensinamentos do Pórtico de
tirada injuriosa de um cômico Salomão, que ensina a “procurar o Senhor
Falando de Sócrates, dos céticos e dos com simplicidade de coração”. Tertuliano
filósofos em geral, Minúcio afirma sem rejeita qualquer tentativa de fazer do cristia-
meios- termos o seguinte: “Que se vire, nismo “uma contaminação de estoicismo,
portanto, por sua conta Sócrates, o palhaço de platonismo e dialética”; com efeito, a fé torna
Atenas, com sua confissão de não saber nada, inútil qualquer outra doutrina.
e vanglorie-se com o atestado de um
demônio mentiroso; e também Arcesilau,
Carnéades e Pirro, com toda a turba dos
acadêmicos, continuem sempre duvidando 4 O fideísmo de Tertuliano:
(...): nós não sabemos o que fazer com a ^credo quia absurcíum"
teoria dos filósofos; sabemos muito bem que
são mestres de corrupção, corruptos eles
próprios, prepotentes e, além do mais, tão Para Tertuliano, os filósofos são os
descarados que estão sempre a clamar contra patriarcas dos heréticos. Como fé em Cristo e
aqueles vícios nos quais eles próprios se sabedoria humana se contradizem, ele
afundaram. Nós não trombeteamos sabedoria, escreve em Carne de Cristo: “O Filho de
mas a levamos viva no coração; não Deus foi crucificado: não me envergonho
dissertamos sobre a virtude, mas a disso, precisamente porque é vergonhoso. O
praticamos; em suma, temos o orgulho de Filho de Deus morreu: isto é crível, porque é
haver alcançado aquilo que eles procuraram uma loucura. Foi sepultado e ressuscitou:
com fatigante empenho e jamais conseguiram isto é certo, porque é impossível”. As
encontrar”. |T] expressões “prorsus credibile est, quia
ineptum est” e
Capitulo quinto - y\ l-^atrística latina antes de santo 7^gostinKo

“certum est, quia impossibile est” tornaram- ridade teológica antes de Agostinho. Desta-
se muito famosas, e foram condensadas na ca-se nele grande sentido eclesial. Deve-se
célebre fórmula “credo quia absurdum ”, que recordar também Novaciano (em atividade
resume muito bem o espírito de Tertuliano. pela metade do século III), que prosseguiu a
Para chegar a Deus, basta uma alma obra de aprofundamento da linguagem teo-
simples: a cultura filosófica não ajuda, até lógica técnica iniciada por Tertuliano, e tam-
atrapalha. No Testemunho da alma, podemos bém foi grande retor, além de filósofo de
ler: “Mas não me refiro àquela alma que se extração estóica.
formou na escola, que se treinou na biblio- No início do século IV, surgiu a obra
teca, que se empanturrou na Academia e no Contra os pagãos, de Arnóbio, de conteúdo
Pórtico da Grécia e agora dá seus arrotos filosófico, inspirada em grande sentido de
culturais. Para responder, é a ti que chamo, pessimismo acerca da condição do homem,
alma simples, ainda no redil, ainda não ma- que o leva a encontrar em Cristo a única
nipulada e privada de cultura, assim como és salvação possível. Mas o cristianismo de
naqueles que só têm a ti, alma íntegra que Arnóbio é superficial. Ele não mostra ter
vens dos ajuntamentos, das ruas, da fiação. familiaridade com a Escritura e, em parte,
Preciso da tua ignorância, porque ninguém ainda permanece dominado por concepções
confia em quatro noções de cultura”. E, em heréticas e até mesmo pagãs.
Apologético, Tertuliano escreve: “O testi- Lúcio Cecílio Firmiano Lactâncio, aluno
de Arnóbio, inicialmente ensinou retórica em
monium animae naturaliter christianae!”
Cartago e depois em Nicomédia. Depois de
velho (por volta de 317), tornou-se
preceptor de Crispo, filho do imperador
5 «Unfluxos estóicos Constantino. Foi claramente superior ao
na ontologia de Xertuliano mestre, mas não teve idéias filosóficas e teo-
lógicas verdadeiramente originais. Sua obra
mais conhecida são As instituições divinas,
Apesar dessa viva antifilosofia, Tertu-
em sete livros, que é ao mesmo tempo uma
liano, em certa medida, revela-se um estói-
polêmica contra a religião pagã e uma apai-
co em ontologia. Para ele, o ser é “corpo”:
xonada — mas nem sempre perspicaz —
“nihil emm, si non corpus, nihil est incor-
defesa do culto e da doutrina cristã.
porale, nisi quod non est”. Por vezes há,
porém, a suspeita de que Tertuliano não dis-
tinga claramente o corpus da substantia.
Ele deve ter absorvido essas teses so-
bretudo de Sêneca, que ele muito admirava. 7 Xradutores, comentadores e
Deus é corpo, embora sui generis, assim eruditos cristãos do século IV
como a alma também é corpo.
O seu De anima, como construção on-
São escassas as contribuições do Oci-
tológica de fundo, representa a antítese exata dente latino no século IV.
do espiritualismo do Fédon. Calcídio traduziu e comentou o Timeu
A Tertuliano cabe o mérito de ter criado de Platão, em chave interpretativa de caráter
a primeira linguagem da teologia latino- médio-platônico.
cristã e de ter denunciado muitos erros da Ambrósio Teodósio Macróbio escreveu
heresia gnóstica, refutada principalmente no um Comentário ao sonho de Cipião (ou seja,
escrito Adversus Valentinianos. |T] ao livro IV do De re publica, de Cícero), que
será muito lido na Idade Média.
Júlio Fírmico Materno escreveu uma
obra Sobre o erro das religiões profanas,
6 Escritores cristãos do contra o politeísmo pagão.
sécu lo m e dos Caio Mário Vitorino traduziu Plotino e
inícios do IV Porfírio e, tendo-se convertido ao cristia-
nismo, escreveu tratados teológicos.
Hilário de Poitiers ficou famoso por sua
Na África teve muita importância na obra Sobre a Trindade, a qual, porém, não
vida da Igreja são Cipriano, nascido no início tem implicações filosóficas importantes.
do século III e falecido ao redor de 258. Foi
grande pastor e tornou-se a maior auto
Terceira parte - T-^a+rística na área cul+u ral de língua la+ina

II. As figuras de ;Ambrc>sio,


jerônimo e, R uj"Í I i no

Ambrósio • Entre os vários pensadores (filósofos, tradutores, comen-


-^§1
tadores e eruditos) dos sécs. III-IV destaca-se a figura de Am-
brósio, bispo de Milão de 374 a 397. Assumiu de Fílon o método
alegórico no que se refere à Sagrada Escritura; teve considerável
influência sobre santo Agostinho, do qual foi mestre.
• Devemos lembrar também Jerônimo, autor da tradução
Jerônimo
e Rufino -
latina da Bíblia destinada a se tornar canônica (a Vulgata), e
+§2
Rufino, autor de traduções em latim dos Padres gregos (princi-
palmente Orígenes).

I ^Ambrósio 3) Os escritos dogmáticos, que


freqüentemente têm caráter polêmico contra
as doutrinas heréticas.
4) As obras de características variadas
Uma figura de grande destaque foi como os hinos, os discursos e as cartas. jT]
Ambrósio, bispo de Milão de 374 a 397.
Ambrósio foi grande como pastor, homem de
ação e erudito, mas não é um pensador
original. a ms jerônimo e T^ufino
Foi escritor muito fecundo. Tanto em
teologia como em exegese bíblica, depende
amplamente dos Padres gregos. Sua Jerônimo (nascido entre 340 e 350 e
originalidade se encontra sobretudo nos falecido entre 410 e 420) foi, sem dúvida, o
escritos ético-pastorais, campo no qual mais douto dos Padres da Igreja latina, bas-
deve-se destacar o seu De officiis ministro- tando citar seu perfeito conhecimento do
rum (que, de resto, se inspira em Cícero), no latim, do grego e do hebraico. Por tais com-
qual identifica o officium medium com os petências o papa Dâmaso lhe conferiu o
mandamentos divinos que valem para todos e encargo de rever as várias traduções latinas
o officium perfectum com os conselhos de da Bíblia que circulavam então e que mos-
perfeição que valem para os santos. Com travam algumas discordâncias. Mas, desde os
Ambrósio, o conceito greco-ro- mano de trabalhos preliminares, Jerônimo percebeu
officium (criado pela antiga Estoá e levado ao que não bastava simples revisão, mas que era
primeiro plano por Panécio e Cícero) é assim necessário um recurso sistemático às fontes
repensado em bases cristãs, tornando-se gregas (por exemplo, no que se refere ao
categoria moral estável no Ocidente. Antigo Testamento, à tradução dos Setenta) e
Suas obras em geral podem ser dividi- hebraicas. A tradução de Jerônimo (que
das em quatro grupos fundamentais. ocupou o período de 391 a 406) tornou-se
1) Os escritos exegéticos que nascem, a canônica, com o nome de Vulgata.
maioria, das reelaborações de homílias e que Além disso, Jerônimo foi autor de obras
se reportam em larga medida ao método de exegéticas do Antigo e do Novo Testamento,
leitura da Bíblia proposto por Fílon de de escritos de caráter dogmático e polêmico,
Alexandria, e que consistia em aplicar de de homilias e de rico epistolário muito
modo sistemático a alegoria filosófica. apreciado na Idade Média.
2) As obras morais, entre as quais Por fim, cabe mencionar Rufino (falecido
salienta-se o já citado De officiis em 410), que teve o mérito de traduzir para o
ministrorum. latim obras de Padres gregos, entre as quais
as de Orígenes (é sobretudo a ele que
devemos a possibilidade de poder re
Capítulo quinto - PaU-ís+i ca latina antes de santo ;Agostinko

construir hoje a obra Sobre os princípios, de Mas o espírito latino se expressou so-
Orígenes). Outras traduções importantes bretudo em Agostinho, com quem a Patrística
foram as da História eclesiástica de Eusébio alcançou os seus mais altos cumes e com
de Cesaréia e de alguns discursos significa- quem encerrou-se definitivamente uma
tivos de Gregório de Nazianzo. época e abriu-se uma nova.

Santo Ambrósio e
outros santos, em um painel
pintado por Ambrósio de
Fossano, dito o Bergognone,
ativo na l.ombardia entre 1481
e 1522 (Certosa de Pavia).
Terceira parte - y\ 1-^atrrstica na área cultural de língua latina

rerias? Demócrito, que é também aquele que por


MINÚCIO FÉLIX primeiro colocou em baila os átomos, não chama
freqüentemente a natureza como Deus? C o próprio
Cpicuro, que representa os deuses em perpétuo
repouso, ou até não os admite, todavia põe a
natureza acima de todas as coisas. Aristóteles não
exprime sempre uma única potência divino,
D Concordância entre chamando Deus ora a inteligência e ora o mundo, e
outra vez apresenta explicitamente Deus como o
que governa o mundo. Também Teofrasto
filósofos e cristãos demonstra ter várias opiniões: ele coloca antes de
qualquer coisa o mundo, mas outras vezes a
Retomando as teses de Justino e de inteligência divina. C também Heráclides Pôntico,
Clemente, Minúcio félix revisa no Octavius todos os embora também este mutável em suas opiniões,
filósofos gregos, notando que cada um deles admite que o mundo é governado por uma mente
descobriu parte da verdade que se refere a Deus: divina. Também Zenão, Crisipo e Cleanto, apesar
os cristãos, portanto, são os filósofos por definição das diversas opiniões, acabam por admitir que a
e todos os filósofos são de olgum modo cristãos. Providência é única: com efeito, para Cleanto Deus
é oro o inteligência, ora a alma, ora o ar; para
Zenão, que foi seu mestre, o princípio que governa
o mundo é ora a lei natural e divina, ora a razão, e
€ o que dizemos de Deus senão que é o ele próprio combate e refuta com muito entusiasmo
inteligência, a razão, o espírito universal? aquilo que é o erro comum, dizendo que Juno não é
Se te agrada, podemos fazer uma revisão dos mais que o ar, Júpiter o céu, Netuno o mar, Vulcão o
doutrinas dos filósofos; perceberás que estes, fogo e demonstrando de modo semelhante que
embora com linguagem diferente, estão de acordo, também os outros deuses venerados pelo povo não
todavia, na substância, e admitem nossa própria são mais que os próprios elementos da natureza. A
opinião. mesma teoria é sustentada de perto por Crisipo:
Deixo de lado os filósofos antigos e os para ele Deus é ora uma potência divina dotada de
primitivos que mereceram o apelativo de sábios razão, a natureza e
apenas por suas sentenças, e me dirijo em primeiro o mundo, ora o destino fatal; e demonstra imitar
lugar a Tales de Mileto, que foi o primeiro a se Zenão quando dá uma interpretação fisiológica dos
ocupar de coisas celestes. Cie afirmou que o poemas de Hesíodo, de Homero e de Orfeu. De
princípio de todas as coisas é a água, e que Deus é resto, esta doutrina foi também sustentada por
a inteligência ordenadora que da água formou todas Diógenes de Babilônia, que afirmava que mitos,
os coisas. De minha parte, confesso que esto como o porto de Júpiter e o conseqüente
doutrino da água e do espírito é tão profunda e nascimento de Minerva, e outros semelhantes, eram
sublime que me parece difícil que tenha sido apenas símbolos de fenômenos naturais e não de
inventada por um homem, e a considero mais como deuses. Xe- nofonte, discípulo de Sócrates,
inspirada por Deus. Vê, portanto, como a opinião do sentencia ao contrário que, uma vez que é
filósofo mois antigo seja quase semelhante à nossa, impossível ver a figura do verdadeiro Deus, por isso
flnaxímenes depois e, depois ainda, Diógenes mesmo é inútil pesquisá-la, e o estóico Aristão acres-
afirmam que é o ar um deus imenso e infinito: centa que é de todo impossível podê-la entender;
também eles, portanto, têm sobre a divindade uma implicitamente um e outro, justamente porque
opinião semelhante à nossa, fl seguir, Rnaxágoras desistem de podê-la entender, mostraram perceber
entende Deus como inteligência infinita que ordena a majestade de Deus. O raciocínio de Platão a
e move o universo; enquanto para Pitágoras Deus é respeito de Deus e a respeito do próprio conteúdo
um espírito que permeio todo o universo e do qual do religião é mais claro, e, se não fosse contaminado
se origina também a vida animal. Sobe-se que pela mistura de preconceitos políticos, seria um
Xenófanes afirma que Deus é infinito e que tem uma raciocínio que poderia parecer inspirado pelo céu.
inteligência; e que flntístenes, embora admitindo que Cie, com efeito, no seu Timeu, diz que Deus é pai do
são muitos os deuses do povo, reconhece apenas mundo, formador das coisas celestes e dos terrenas,
um como verdadeiro e primeiro entre todos; e que e tal que, por causa da infinita e incrível potência, é
Cspeusipo chama Deus uma força da natureza pela difícil falar dele a outros.
qual são governadas todas as coisas. O que mais
que-
77
..
Cãpítulo quintO - y\ Patfística latina antes de santo /Xcjos+inKo ------------------------

Estos opiniões, mais ou monos, podem ser e provavelmente é por isso que a filosofia foi expulso
considerados semelhantes às nossos, uma vez que por certas legislações como o dos tebanos, dos
reconhecemos e dizemos que Deus é pai de todas espartanos, dos habitantes de Argos.
as coisas, mas não falamos disso o não ser quando Aproximando-se de nossas coisas, mas ao
somos interrogados a propósito. mesmo tempo, como dissemos, ávidos unicamente
Assim expus as opiniões de quase todos de glória e de fátua eloqüência, estes
aqueles filósofos que podem considerar como sua representantes da cultura profana, quando nas
glória mais excelsa ter indicado — embora com santas páginas se defrontaram com algo capaz de
nomes diversos — um só Deus, e poderíamos satisfazer sua curiosidade, o traduziram em
também pensar que hoje os cristãos são justamente elucubrações próprias.
filósofos ou então que, desde aquela época, os Não estavam suficientemente persuadidos de
filósofos foram cristãos. seu caráter divino para serem capazes de abster-se
Minúcio Félix, de qualquer interpolação tortuosa, e não estavam
Octovius. em grau de compreendê-las, escrituras árduas e
nebulosas como são, de modo o permanecer
impenetráveis aos próprios he- breus dos quais
também pareciam ser propriedade reservada. Pois
se a verdade se ostentava com sua luzente
simplicidade, mais a cavilosidode humana negava
seu assentimento e flutuava, acabando por reduzir à
incerteza aquilo que à primeira vista aparecera
TERTULIANO como indubitável.
Haviam encontrado Deus puro e indubitável e
ousaram submetê-lo a discussão, dis- sertando
sobre sua natureza, seus atributos, sua sede.
Assim, alguns o proclamaram incorpóreo;
outros, corpóreo; e eis os platônicos e os estóicos.
2 fl filosofia e o cristianismo Outros disseram que ele constava de átomos, outros
de números: e eis Epicuro e Pitágoras. Outros
estão em contradição disseram que ele era fogo, conforme pareceu a
Heráclito.
Os platônicos o consideraram providência dos
A/o âmbito dos Podres apologistas, coisas; outros, ao contrário, ou seja, os epicuristas, o
Tertuliano é expressão da tendência antifi- designaram inerte e indiferente e, por assim dizer,
losóFica que pretendia rejeitar completamente os ausente de todos as coisas humanas.
doutrinas dos gregos. Fl fé cristã, com efeito, Os estóicos colocaram-no fora do mundo em
torno inútil toda doutrina filosófica apenas ato de fazer mover em círculo, como um oleiro, esto
racional, porque a fé é superior à razão. mole universal do mundo. Os platônicos, oo invés, o
puseram no âmbito do mundo como um timoneiro
presente no nave por ele dirigido.
Igualmente variam as opiniões dos filósofos a
propósito do próprio mundo, se houve ou não um
1. fl antiguidade das Sagradas €scrituras das princípio, se haverá ou não um fim. Não há maior
quais apreenderam os próprios pagãos concordância sobre o natureza da olmo, que alguns
Também aqui me socorre a já consolidada consideram divino e eterna, outros, corruptível. Cada
antiguidade da escritura divina. Sobre a base de tol um a seu gosto transformou ou aumentou as
antiguidade não se poderá contestar ter ela opiniões precedentes.
representado o tesouro com o qual atingiu toda a Nenhuma maravilha, portanto, se nossos
sobedoria posterior. E se eu não sentisse o antigas tradições oficiais foram alteradas pelas
oportunidade de reduzir o peso deste volume, ter- elucubrações dos filósofos. Da estirpe de tais
me-io prolongado muito nesta demonstração sem filósofos pulularam aqueles que deformaram e
limites. falsificaram com suas opiniões nosso pró
Há poeta ou sofista que não se tenha
dessedentado na fonte dos profetas? E de lá que os
filósofos extraíram alimento para a fecundidade de
seu engenho, E o que eles tomaram de nós que os
torna nossos vizinhos,
Terceira parte - ;A Patrística na área cultural de língua lati na

prio acervo documentário para acomodá-lo às cárcere corpóreo, ferida e manchada por costumes
opiniões dos filósofos. De um só caminho fizeram deformantes, esgotada pelas paixões e pelas
numerosas trilhas oblíquas e inexplicáveis. Digo isso libidinagens, liberta de dignidades mentirosos, pois
de passagem para que ninguém invente de bem, apenas tenha um instante de arrependimento,
equiparar-nos aos filósofos justamente por esta logo que tenha um indício de cura de seus
reconhecida e admitida variedade existente em desregromentos, de sua letargia, de suas doenças
nossa confissão e de deduzir da multiplicidade das congênitas, não sabe fazer outra coisa a não ser
opiniões uma carência da verdade. nomear Deus com um único nome, Deus, porque é o
Sem hesitações contrapomos aos adul- verdadeiro nome de Deus. Qual é a exclamação de
teradores de nossa doutrina o argumento preliminar todos? "Deus grande, Deus bom. Seja o que Deus
da prescrição, em nome do qual proclamamos como quer". Mas há mais. A própria alma o reconhece
única regra de verdade aquela que nos foi como juiz. "Deus o sabe, entrego-me a Deus, Deus
transmitida por Cristo mediante seus apóstolos, dos providencie”. Ó testemunho da alma levada instinti-
quais é fácil constatar o quão tardios são estes vamente ao cristianismo! O que mais? Saindo destes
discursos comentadores. incidentes a alma não se dirige ao Capitólio, mas ao
céu. Cia sabe muito bem qual é a moradia do Deus
Tertuliano, vivo: dele, com efeito, tirou sua origem.
fípologético, XLVII. Tertuliano,
fípologético, XVII.
2. fl alma não se dirige ao Capitólio
mas a Deus, 3. Não há semelhança entre o filósofo grego e o
e é levada instintivamente ao cristianismo cristão
Aquele que adoramos é o Deus uno e único Alguém objetará que também entre os nossos
que tirou do nada, para decoro de sua infinita há aqueles que faltam para com as instruções da
majestade, toda esta mole imensa do mundo, com o disciplina. Mas lembrai-vos de que estes deixam
simples comando de sua palavra, com a simples imediatamente de ser considerados cristãos entre
explosão de seu gesto inteligente, com o simples nós. Vossos filósofos, ao invés, tendo na consciência
desdobramento de sua potência, esta mole imensa aquela carga de erros, permanecem no número e no
com todo o equipamento de seus elementos, de decoro da sabedoria.
seus organismos corpóreos, de seu exército No conjunto, que semelhança se pode captar
espiritual. Não sem razão os gregos aplicaram o entre o filósofo e o cristão, entre o discípulo da
qualificativo específico: o cosmo. Cie é invisível, Grécia e o candidato ao céu, entre o traficante da
embora possamos divisá-lo e percebê-lo. Cie está fama terrena e aquele que faz questão de vida, entre
além de toda a nossa compreensão, embora a sen- o vendedor de palavras 0 o realizador de obras,
sibilidade humana esteja em grau de percebê- lo e entre quem constrói sobre a rocha e quem destrói,
calculá-lo. Por isso é verdadeiro, embora sendo tão entre quem altera e quem tutela a verdade, entre o
grande. O que se pode ver, tocar, avaliar, é inferior ladrão e o guardião da verdade?
ao olho humano que o percebe, às mãos que o Tertuliano,
contaminam apalpando-o, aos sentidos mediante os fípologético, XLVII.
quais o encontramos. O infinito só é conhecido de si
mesmo. Deus é suscetível de compreensão apenas 4. fl sabedoria é estultice
pela sua superioridade a todo compreensão. A Cstas são as doutrinas dos homens e dos
extraordinária grandeza o torno ao mesmo tempo co- demônios, nascidas do espírito da sabedoria terrena
nhecido e desconhecido para os humanos. Aqui para aqueles ouvidos que têm o prurido de ouvi-las.
repousa toda a soma de culpabilidade daqueles que Mos o Senhor chamou de "estultice" tal sabedoria, e
não o querem reconhecer: a impossibilidade de escolheu aquilo que é estulto poro o 1mundo a fim de
ignorá-lo. confundir também a própria filosofia. Pois a filosofia
Quereis que dele demos as provas mediante
suas obras tão numerosas e tão grandiosos, que nos é a ma-
contêm, que nos sustentam, que nos alegram, que
nos aterrorizam? Quereis que dele tragamos o
testemunho do fundo da própria alma? Cis o voz
desta alma. Premida no

'Cf. 1 Coríntios 1,27: 3,19.


79
..
Capitulo qUÍHtO - y\ l-^atnstica latina antes de santo Agostin ho -----------------------

teria da sabedoria terrena, intérprete temerária da privado da possibilidade de senti-las? Dissemos


natureza e do disposição divino. Portanto, os antes que ele teria podido sofrer igualmente bem o
próprias heresias são subornadas pela filosofia. [...] ludibrio não real da natividade e da infância
Daqui derivam os mitos e os genealogias imaginário. Mas, responde-me agora, assassino da
intermináveis e as questões estéreis e os discursos verdade: Deus não foi verdadeiramente crucificado?
que serpenteiam como caranguejo: delas nos Não morreu verdadeiramente, uma vez que
mantém distantes o apóstolo, declarando2 verdadeiramente crucificado? Não ressuscitou
explicitamente, quando escreve aos Colossenses, verdadeiramente, obviamente porque estava
que devemos nos manter em guarda com a filosofia verdadeiramente morto?
e suo vã sedução — "estai atentos para que alguém Por conseguinte, terá errodo Paulo, que
não vos engane por meio da filosofia e suo vã sustentava não saber 4 outra coiso a não ser que
sedução, conforme o tradição dos homens" —, em Jesus fora crucificado;
5
terá errado por acrescentar
contraste com a providência do Espírito Santo. Paulo que fora sepultado; terá errodo afirmando que tinha
es- tivera em Fltenas, e conhecera, graças aos en- ressuscitado?6 Folsa é, portanto, nossa fé, e será um
contros que aí fizera, esta sabedoria humano que fantasma tudo aquilo que esperamos de Cristo,
pretende possuir a verdade e o corrompe, também Marcião, o mais celerado entre os homens, tu que
ela de vários modos dividida em suas heresias, ou desculpas os homicidas de Deus: desses, com
seja, na variedade de suas seitas que mutuamente efeito, Cristo nada teve a sofrer, se nada sofreu na
se contrastam. realidade. Poupo o única esperança de todo o
Portanto, o que Fltenas e Jerusolém têm em mundo: por que destróis a vergonha da fé, que nos
comum? O que a Academia e a Igreja têm em é necessária? Tudo o que é indigno de Deus é útil
comum? O que os hereges e os cristãos têm em, para mim: estou salvo se não estiver envergonhado
comum? Nossa disciplina vem do pórtico de a respeito de meu Senhor, que diz: "quem se
Salomão, o qual ensinara que se devio procurar envergonhar de mim, também eu me envergonharei
Deus com simplicidade de coração. Pensem nisso dele".7
oqueles que inventaram um cristianismo estóico e Não acho que existam outros motivos de
platônico e dialético. Não precisamos da vergonha, os quais, mediante meu desprezo pelo
curiosidade, depois de Jesus Cristo, nem da rubor, possam demonstror-me que faço bem de ser
pesquisa depois do Evangelho. Quando cremos, não impudente e que o minha é uma feliz estultice. O
sentimos necessidade de crer em outra coisa, uma Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho,
vez que cremos antes isto: não haver motivo de ter uma vez que deveria me envergonhar. O Filho de
de crer em outra coisa. Deus também foi morto: é sem dúvida crível, pois se
Tertuliano, trota de uma coisa tola. E depois de ser sepultado
Sobre o prescrição contra os heréticos, ressuscitou: é uma coisa certa, porque é uma coisa
7,1-9. impossível.
5. n fé acima da razão Tertuliano, Sobre a carne
de Cristo,
Há certamente outras coisas igualmente 5,1-4.
estultas, que se referem às ofensas e à paixão de
Deus: do contrário, que estes digam que é prudência
a crucifixão de Deus. Elimina, portanto, também isto,
Marcião,3 e sobretudo isto. O que, com efeito, é mais
indigno de Deus, o que merece maior rubor, o nascer
ou o morrer, o carregar o carne ou o carregar a cruz,
o ser cir- cunciso ou o ser traspassado, o ser nutrido
ou o ser sepultado, o ser deposto em uma manje-
doura ou o ser escondido em um sepulcro? Serás
mais sábio se não tiveres crido nem nessas coisas. 2
Cf. Colossenses 2,8.
Mas não serás sábio se não tiveres sido estulto no 3
/V\arcião (séc. II) se inspirava nas concepções gnós- ticas e
meio do mundo, crendo nas coisas estultas de Deus. rejeitava o Rntigo Testamento e a concepção de Deus aqui
Talvez não tenhas tirado de Cristo as paixões, expressa, em favor da concepção de Deus como amor expressa
no IMovo Testamento. Deus havia- se encarnado em Cristo,
enquanto, como fantasma, ele estava assumindo um corpo não real, mas aparente. Tertuliano, em
oposição a essa concepção, escreveu uma obra de peso
chomada Contra Marcião.
4
Cf. 1 Coríntios 2,2.
5
ldem, 1 5,4.
6
ldem, 15,16-19.
7
Mateus 10,33.
Terceira parte - y\ Patrís+ica na área cultural de língua latina

Se o justiça vale também na guerra, deve


AMBRÓSIO ainda mais ser observada na paz. C tal benefício o
profeta fez àqueles que vieram para capturá-lo. Com
efeito, oo saber que era Cliseu quem se opunha a
todos os seus planos, o rei da Síria havia mondado
seu exército para assediá-lo. Vendo tal exército,
Giezi, servo do profeta, começou a preocupar-se
Os deveres com sua própria salvação. Mas o profeta lhe disse:
"Não temas, porque os que estão conosco são mais
numerosos dos que os que estõo com eles”. O
fímbrósio, bispo de Milão, utilizo vários profeto orou pora que os olhos de seu servo se
conceitos Filosóficos deduzidos tonto da tradição abrissem, e, depois de abertos, Giezi viu todo o
platônica quanto da tradição estóico. monte cheio de cavalos e de carros ao redor de
No trecho seguinte reinterpreta em chove Cliseu. Cnquanto os inimigos vinham contra ele, o
cristã a doutrino platônico do justiço. profeta disse: "fira o Senhor com a cegueira o
exército da Síria". Obtendo a graça, disse aos Sírios:
"Segui-me e eu vos conduzirei até o homem que
procurais", C viram Giseu, que estavam ansiosos por
A importância da justiça pode ser entendido a capturar e, embora vendo-o, não podiam dele se
partir do fato de que ela não sofre exceções nem de apoderar. € claro, portanto, que também na guerra é
lugares nem de pessoas nem de tempos, mas é preciso observar a lealdade e que trair a palavra
garantida também aos inimigos; por isso, se foi dada não pode ser um ato de honra.
combinado com o inimigo o dia ou o lugar para a Por fim, também aos inimigos davam um
batalho, considera-se contra a justiça preveni-lo nome agradável e os chomovom de "estrangeiros";
sobre o lugar ou o tempo. Há diferença, com efeito, com efeito, conforme o uso antigo, os estrangeiros
entre o ser pego de improviso por uma batalha ou (peregrinos) eram chamados de hóspedes
por um duro confronto ou depois de uma situação (hospes). C podemos dizer que também este
antecedente favorável ao adversário e a um coso costume foi herdado dos nossos porque os hebreus
fortuito. Daí que se faz vingança mois áspera contra chamavam seus inimigos de "de outra raça"
os inimigos mais encarniçados, ou seja, contra os (allophylos), ou seja, com a palavra latina
desleais e os que cometeram maiores ofensas, como alienígenas [nascidos em outro lugar], Assim, no
no caso dos madianitas que, por meio de suas primeiro livro dos Reis lemos: "(E aconteceu que
mulheres, induziram ao pecado muitos do povo naqueles dias gente de outra raça [filisteus] se
hebreu, de modo que também sobre o povo dos reuniram paro combater contra Israel".
pois se derramou o cólera de Deus. O fundamento da justiça é a lealdade, o
6 por tal motivo aconteceu que Moisés, obtida coração do justo medita pensamentos de lealdade,
a vitória, não deixou sobreviver nenhum deles. e o justo que se acusa funda a justiça sobre a
Quanto aos gabaonitas, que invadiram o povo dos lealdade, porque suo justiça se manifesta quando
pais mais com o embuste do que com a guerra, confesso a verdade. Também o Senhor, por boca de
Josué não os aniquilou na batalha, mas os humilhou Isaías, diz: "Cis: eu coloco uma pedra como
impondo-lhes condições ofensivas. Cliseu, por sua fundamento para Sião", isto é, Cristo como
vez, não concordou com a vontade do rei de Israel fundamento da Igreja. Cristo, com efeito, é a fé de
de motor os sírios que, no decorrer do assédio, todos; a Igreja é, por assim dizer, a norma da
introduzira na cidade feridos pelo cegueira justiça, o direito comum de todos: ao mesmo tempo
momentânea, para que não pudessem ver onde ora, ao mesmo tempo age, ao mesmo tempo é posto
entravam, mos disse: “Não ferirás aqueles que nõo à prova. Assim, quem renego a si mesmo, este é
capturaste com tua lança e tua espada; oferece-lhes digno de Cristo. Também Paulo pôs Cristo como
pão e água para que comam e bebam1 e sejam dei- fundamento, a fim de que sobre ele fundássemos as
xados livres e se dirijam a seu senhor '. Agiu de tal obras de justiça, pois a fé é fundamento; nos obras,
modo para que eles, induzidos por um tratamento se más, está a iniqüidade; se boas, a justiça.
humano, se mostrassem gratos. Daí por diante os Ambrósio,
piratas da Síria cessaram de invadir a terra de Israel. Os deveres.
íSapí+uIo sexto

Sanio 7^0ostinko e o a p oge u da Patrística

I. jA vida, a evolução espiritual e


as obras de sarvfo y\ ostÍKiko 0

• Agostinho (354-430) é o mais importante dos Padres da Igreja. Seu itinerário


espiritual e filosófico foi muito articulado: a mãe Mônica, pela sua firme e tenaz fé, e
o bispo Ambrósio, que lhe ensinou o método da
exegese alegórico-filosófica da Bíblia, tiveram papel decisivo A formação na
sua conversão ao cristianismo. Sua formação cultural foi so- espiritual bretudo
de língua e de inspiração latina, marcada quando mui- e filosófica to pela
retórica, disciplina que Agostinho ensinou na África e ->§7-2 em Milão.
Os modelos culturais que sobre ele influíram foram os seguintes: Cícero, que o
converteu à filosofia; o Maniqueísmo, que influenciou boa parte de sua vida anterior
à conversão e também a posterior, enquanto áspera e prolongada foi sua polêmica
antimaniqueísta; o pensamento neoplatônico (particularmente de Plotino e de
Porfírio), que lhe acrescentou a dimensão do supra-sensível, além, naturalmente, da
Bíblia e particularmente das Cartas de Paulo.
A última parte da vida de Agostinho foi dedicada à luta contra as heresias dos
Donatistas (que não queriam readmitir na comunidade aqueles que tinham abjurado
durante as perseguições) e dos Pelagianos, que não consideravam o papel da graça
divina na salvação.
• A vasta produção literária de Agostinho pode ser dividida do seguinte modo:
1) obras de caráter filosófico (particularmente todos os diálogos);
2) obras teológicas, entre as quais sobressai A Cidade de Deus;
3) escritos exegéticos e polêmicos, principalmente contra os Maniqueus, os
Pelagianos e os Donatistas.
Confissões, que é a obra mais significativa de Agostinho, A produção
constitui, também no gênero, uma novidade absoluta. -> § 3

1 ;A vida de ter freqüentado as escolas em Tagaste e


na vizinha Madaura, conseguiu ir para Carta-
go, graças à ajuda financeira de um amigo de
Aurélio Agostinho nasceu em 354 em seu pai, para realizar seus estudos de re-
Tagaste, pequena cidade da Numídia, na tórica (370/371). Sua formação cultural re-
África. Seu pai, Patrício, era pequeno alizou-se inteiramente em língua latina e
proprietário de terras, ainda ligado ao com base nos autores latinos (só
paganismo (só iria se converter no fim da superficialmente e não de muito bom grado
vida). Já sua mãe, Mônica, era uma fervorosa ele se aproximou do grego). Para ele, Cícero
cristã. Depois manteve-se
Terceira parte - A Patrística na área cultural de língua latina

durante longo tempo como modelo e ponto de 2 A evolução espiritual


referência essencial.
Na época de Agostinho, o retórico já
perdera seu papel antigo, que, como sabe- Todas essas fases de sua vida e os
mos, era um papel político e civil, tendo-se acontecimentos a elas relacionados, em
tornado essencialmente professor. E, assim, muitos aspectos, mostraram-se decisivas
Agostinho ensinou primeiro em Tagaste (374) para a formação espiritual e a evolução do
e depois em Cartago (375-383). Mas a pensamento filosófico e teológico de
turbulência dos estudantes cartagineses o Agostinho. Por isso, falaremos com mais
levou a transferir-se para Roma em 384. pormenores desses aspectos.
No mesmo ano, passou de Roma para a) A primeira personalidade que incidiu
Milão, onde assumiu o cargo de professor profundamente sobre a alma de Agostinho,
oficial de retórica da cidade. Agostinho che- sem dúvida, foi a de sua mãe, Mônica (já a
gou a Milão graças ao apoio dos maniqueus, figura de seu pai, Patrício era bastante
dos quais, como veremos, foi seguidor du- esmaecida e evanescente). Foi ela quem,
rante certo período. Mas em Milão, entre 384 com sua firme fé e seu coerente testemunho
e 386, através de profundas reflexões cristão, lançou em certo sentido as bases e
espirituais, amadureceu sua conversão ao construiu as premissas da futura conversão
cristianismo. Conseqüentemente, Agostinho do filho, sobre o qual, depois, exerceu
demitiu-se do cargo de professor oficial e estímulo muito tenaz. Mônica tinha cultura
retirou-se para Cassiciaco (na Briância), modesta, mas possuía a força daquela fé que,
numa chácara, onde passou a levar uma vida na religião pregada por Cristo, mostra aos
em comum com os amigos, a mãe, o irmão e o humildes as verdades que oculta aos doutos
filho Adeodato. e sábios. Assim, as verdades de Cristo vistas
Em 387, Agostinho recebeu o batismo através da forte fé de sua mãe constituíram o
do bispo Ambrósio (que desempenhou um ponto de partida da evolução de Agostinho,
papel não desprezível, ainda que indireto, em embora por diversos anos ele não aceitasse a
sua conversão) e deixou Milão para retornar religião cristã católica e continuasse a
à África. No caminho de volta, em Ós- tia, procurar sua identidade em outras partes.
morreu sua mãe, Mônica. Agostinho só b) O segundo encontro fundamental foi
conseguiu voltar à África em 388, porque com o Ortensio, de Cícero, obra que
Máximo havia usurpado o poder naquela converteu Agostinho à filosofia quando es-
região e a viagem se tornara perigosa. Nesse tudava em Cartago. Nesse escrito, Cícero
meio tempo, esteve em Roma, onde per- defendia um conceito de filosofia entendida
maneceu durante quase um ano. de modo tipicamente helenístico, como
Voltando finalmente a Tagaste, vendeu sabedoria e arte de viver que traz a
os bens paternos e fundou uma comunidade felicidade. Agostinho escreveria depois nas
religiosa, logo adquirindo grande notoriedade Confissões: “Na verdade, aquele livro mudou
pela santidade de sua vida. Em 391, quando meus sentimentos e tornou até diferentes
se encontrava em Hipona, foi ordenado minhas preces (...) e diferentes meus votos e
sacerdote pelo bispo Valério, sob pressão dos meus desejos. De repente, toda esperança
fiéis. Em Hipona, ele ajudou Valério, humana tornou-se-me vil e eu proclamava a
sobretudo na pregação, e fundou um mos- sabedoria imortal com incrível ardor de
teiro, onde se reuniram velhos e fiéis amigos, espírito”. O ardor despertado pelo Ortensio,
aos quais se uniram novos adeptos. entretanto, era atenuado pelo fato de que
Em 395, foi consagrado bispo. E, no ano nele Agostinho não encontrava o nome de
seguinte, com a morte de Valério, Agostinho Cristo. Escreve ele: “Pois esse nome (...)
tornou-se bispo titular. Na pequena cidade de meu coração ainda tenro havia bebido
Hipona, travou grandes batalhas contra piamente junto com o leite materno e o
cismáticos e heréticos, nela escrevendo conservava profundamente esculpido. E tudo
também seus livros mais importantes. o que estivesse sem esse nome, por mais
Daquela pequena localidade africana, com seu que fosse litera- riamente límpido e
pensamento e sua obra tenaz, determinou verdadeiro, não me conquistava de todo”.
uma reviravolta decisiva na história da Igreja Agostinho voltou- se então para a Bíblia, mas
e do pensamento do Ocidente. Morreu em não a entendeu. O estilo com o qual estava
430, enquanto os vândalos sitiavam a cidade. redigida,
Cãpítulo Sexto - Santo y\gostmho e a apogeu da l^a+nstica

tão diverso do estilo rico em refinamento da buir o pecado ao livre-arbítrio do homem,


prosa ciceroniana, e o modo antropológico mas sim ao princípio universal do mal que
com que parecia falar de Deus, velaram sua atua também em nós. Escreve Agostinho:
compreensão, constituindo bloqueio “Pretendem que a concupiscência da carne
insuperável. (...) seja uma substância contrária (...) e que
c) Aos dezenove anos (373), Agostinho duas almas e duas inteligências, uma boa e a
abraçou o maniqueísmo, que parecia ofere- outra má, lutam entre si no homem, ser único,
cer-lhe ao mesmo tempo uma doutrina de quando a carne tem desejos contrários ao
salvação em nível racional e um espaço tam- espírito e o espírito desejos contrários à
bém para Cristo. O maniqueísmo, uma religião carne”. É evidente que o “racionalismo”
herética fundada pelo persa Mani no século dessa heresia está na eliminação da necessi-
III, implicava: dade da fé, muito mais do que na explicação
1) um vivo racionalismo; de toda a realidade pela pura razão. Mani era
2) um marcado materialismo; oriental e, como tal, abria amplo espaço para
3) um dualismo radical na concepção do a fantasia e a imaginação. Assim, sua doutrina
bem e do mal, entendidos não apenas como revela-se mais próxima das teosofias do
princípios morais, mas também como Oriente do que da filosofia dos gregos.
princípios ontológicos e cósmicos. Agostinho, conseqüentemente, logo foi
Eis alguns trechos do escrito Sobre as colhido por muitas dúvidas. Um encontro com
heresias, de Agostinho, que ilustram alguns o bispo maniqueu, Fausto, convenceu-o da
pontos destacados dessa religião. Os mani- insustentabilidade da doutrina maniqueísta.
queístas, escreve Agostinho, afirmaram “a Com efeito, Fausto, que era considerado
existência de dois princípios diversos e ad- como a maior autoridade da seita naquele
versos entre si, mas, ao mesmo tempo, eter- momento, não esteve em condições de
nos e coeternos (...) e, seguindo outros he- resolver nenhuma das dúvidas de Agostinho,
réticos antigos, imaginaram duas naturezas e inclusive admitindo-o sinceramente.
substâncias, a do bem e a do mal. Segundo d) Já em 383/384 Agostinho se afastava
seus dogmas, afirmam que essas duas interiormente do maniqueísmo, sendo tentado
substâncias estão em luta e mescladas entre a abraçar a filosofia da Academia cética,
si”. Como relata ainda Agostinho, a doutrina segundo a qual o homem deve duvidar de
maniqueísta apresentava as formas como o tudo, porque não pode ter conhecimento
bem se purifica do mal fazendo amplo uso de certo de nada, como já vimos acima. Mas,
narrações fantásticas. O bem é a luz, o sol e a outra vez, não se sentiu em condições de
lua são os barquinhos que levam a Deus a luz seguir os céticos porque em seus escritos
esparsa em todo o mundo e misturada ao não encontrava o nome de Cristo. Entretanto,
princípio oposto. A purificação do mal pelo do maniqueísmo ainda guardava
bem realiza-se também por obra da classe o materialismo, que lhe parecia o único modo
dos homens “eleitos”, que, juntamente com a possível de entender a realidade, e o dua-
classe dos “ouvintes”, constituía a sua Igreja. lismo, que lhe parecia explicar os fortes
Os eleitos purificavam o bem não só com uma conflitos entre bem e mal que sentia em seu
vida pura (castidade e renúncia à família), espírito.
mas também abstendo-se dos trabalhos e) Os encontros decisivos de Agostinho
materiais e seguindo uma alimentação deram-se em Milão:
especial. Os “ouvintes”, que viviam uma vida 1) do bispo Ambrósio, aprendeu o modo
menos perfeita, eram, em compensação, correto de abordar a Bíblia, que, conse-
aqueles que forneciam o que era necessário qüentemente, tornou-se-lhe inteligível;
para a vida dos “eleitos”. Para os 2) a leitura dos livros dos neoplatônicos
maniqueístas, Cristo foi revestido somente de revelou-lhe a realidade do imaterial e a não-
carne aparente e, portanto, também foram realidade do mal;
aparentes a sua morte e ressurreição. Moisés 3) lendo são Paulo, por fim, apreendeu
não foi inspirado por Deus, mas era um dos o sentido da fé, da graça e do Cristo redentor.
príncipes das trevas, razão pela qual se devia Os antigos elos, que por tanto tempo o
rejeitar o Antigo Testamento. A promessa do haviam mantido preso, romperam-se
Espírito Santo feita por Cristo ter-se-ia definitivamente.
realizado em Mani. Em seu dualismo extremo, Dada a importância desses encontros, é
os maniqueístas chegavam até mesmo a não necessário precisar alguns detalhes.
atri
Terceira parte - y\ Patríshca na área cui L ural de língua la+ina

1) Inicialmente Agostinho ouviu Am- f) A última fase da vida de Agostinho foi


brósio com interesse profissional, isto é, caracterizada pelos debates polêmicos e
como um retórico que ouve outro retórico. pelas batalhas contra os heréticos. A po-
Mas, como escreve ele nas Confissões, “en- lêmica contra os maniqueístas perdurou até
quanto abria o coração para acolher a elo- 404. Posteriormente, Agostinho esteve em-
qüência, nele entrava, ao mesmo tempo, penhado predominantemente contra os do-
também a verdade, mas só pouco a pouco natistas, que defendiam a necessidade de não
(...): especialmente depois que o ouvi expor e readmitir na comunidade cristã todos aqueles
freqüentemente resolver passagens obscuras que, durante as perseguições, haviam cedido
da antiga Escritura, que eu entendia ao pé da aos perseguidores, apostatan- do ou
letra, permanecendo sem saída”. A partir daí, sacrificando aos ídolos, sustentando
o repúdio maniqueísta ao Antigo Testamento conseqüentemente a não validade dos sa-
já lhe parecia injustificado e infundado. E cramentos administrados por bispos ou pa-
mais, ele ainda escreve: “Se eu conseguisse dres que houvessem incorrido em tais culpas.
pensar uma substância espiritual, todas as Agostinho compreendeu muito bem que o
complicadas construções dos maniqueus se erro de Donato e de seus seguidores
desmantelariam”. consistia em fazer a validade do sacramento
2) Plotino e Porfírio, que Agostinho leu depender da pureza do ministro e não da
na tradução de M. Vitorino, sugeriram-lhe graça de Deus. Na conferência de bispos
finalmente a solução das dificuldades onto- realizada em Cartago em 411, Agostinho
lógico-metafísicas em que se encontrava en- colheu os frutos de sua polêmica com clara
volvido. Além da concepção do incorpóreo e vitória. A partir de 412, Agostinho polemizou
da demonstração de que o mal não é subs- particularmente com Pelágio e seus
tância, mas simples privação, Agostinho seguidores, que sustentavam que a boa
também encontrou nos Platônicos muitas vontade e as obras eram suficientes para a
tangências com a Escritura, mas, ainda outra salvação do homem, desprezando a neces-
vez, neles não encontrou um ponto essencial, sidade da graça. Em uma série de obras,
ou seja, que Cristo morreu para a remissão santo Agostinho mostrou que a revelação
dos pecados dos homens: “isso não se lê cristã gira essencialmente em torno da ne-
neles”, escreveu. cessidade da graça, ao contrário do que os
3) Agostinho não podia encontrar em pelagianos acreditavam. Sua tese triunfou no
nenhum dos filósofos a verdade do Cristo Concilio de Cartago de 417, e o papa Zósimo
crucificado para a remissão dos pecados dos condenou o pelagianismo. A tese de Pelágio
homens porque, segundo a doutrina cristã, estava em sintonia substancial com as
como já recordamos, Deus quis mantê- la convicções dos gregos sobre a autarquia da
oculta aos sábios para revelá-la aos hu- vida moral do homem, enquanto a tese de
mildes, sendo, portanto, uma verdade que, Agostinho era de que o cristianismo subvertia
para ser adquirida, requer uma revolução aquela convicção. Escreve com razão M.
interior, não de razão, mas de fé. E Cristo Pohlenz: “O fato de a Igreja ter-se
crucificado é precisamente o caminho para pronunciado por tal doutrina assinalou o fim
operar essa revolução interior. E sobretudo da ética pagã e de toda a filosofia helênica —
com Paulo que Agostinho aprende isso, como e assim começou a Idade Média”.
ele próprio nos diz nas Confissões: “Uma
coisa é vislumbrar a pátria da paz do cume de
um monte cercado pelo bosque, não
encontrar o caminho que leva a ela e cansar-
se inutilmente por lugares impraticáveis,
cercados e infestados por desertores 3 ;As obras
fugitivos (...); outra coisa, porém, é
encontrar-se no bom caminho, tornado
seguro pela solicitude do imperador celeste, A produção literária de Agostinho é
livre dos assassinos que desertaram da imensa. Recordaremos somente as obras
milícia celeste, os quais o evitam como se principais.
fosse um suplício. Essas verdades penetra- a) O período de Cassiciaco caracteriza-
vam em mim de modo maravilhoso quando eu se pelos escritos de caráter
predominantemente filosófico: Contra os
lia as páginas do ‘menor’ dos teus apóstolos ”.
acadêmicos, A vida feliz, A ordem, Os
solilóquios, A imortalidade da alma (este
último escrito em Milão). A
Cüpítlilo SCXtO - Santo y\e|os+inko e o apoqf u da 1-^a+rís+ica

quantidade da alma, escrito em Roma, é de


388. Em Tagaste (388-391) foram compostas
as obras O mestre e A música. Trata-se de
escritos próximos aos de Cassiciaco.
b) Sua obra-prima dogmático-filosófi-
co-teológica é A Trindade (399-419).
c) Sua obra-prima apologética é A Ci-
dade de Deus (413-427).
d) Os escritos exegéticos de maior des-
taque são: A doutrina cristã (396-426), os
Comentários literais ao Gênesis (401-414), os
Comentários a João (414-417) e os Co-
mentários aos Salmos.
e) Das obras contra os maniqueístas,
podemos recordar: Sobre os costumes da
Igreja católica e os costumes dos maniqueus
(388-389), Sobre o livre-arbítrio (388 e 391/
395), A verdadeira religião (390) e Sobre o
Gênesis contra os maniqueus (398).
f) Dentre os escritos contra os donatis-
tas, recordamos: Contra a carta de Varme-
niano (400), Sobre o batismo contra os
donatistas (401) e Contra Gaudêncio, bispo
dos donatistas (419/420).
g) Fazem parte dos escritos polêmicos
antipelagianos: O espírito e a letra (412),
Sobre a gesta de Pelágio (417) e A graça de
Cristo e o pecado original (418).
h) Duas obras inauguraram gêneros li-
terários novos: as Confissões (397), que são
verdadeira obra-prima também do ponto de
vista literário, e as Retratações (426/ 427),
em que Agostinho reexamina e retifica
algumas teses contidas em sua produção
anterior, que não estavam ou não lhe
pareciam perfeitamente alinhadas com a fé
cristã.

Santo Agostinho, painel de Michael


Pacher (14J0-149S), Munique, Alte
Pinakothek.
Terceira parte - l-^atrís+ica na área cul+ural de língua la+ina

II. Fé, fil oso|ia e vida


no pensamento de yXgosfinko

c • Agostinho foi o primeiro pensador cristão a atuar uma


e compreender síntese madura entre fé, filosofia e vida, considerando que a § 7
fé teria recebido clareza da razão, mas também que a razão
teria ganho estímulo e impulso da fé (credo ut intelligam, intelligo
ut credam).
• O que leva Agostinho para além dos horizontes da Grécia é a referência ao
homem, não porém ao homem abstrato e geral, pelo qual também os gregos
se interessavam, mas ao indivíduo, ao eu singular, à pessoa. O
Do homem conceito de pessoa é elaborado por Agostinho sobre a base
em geral à pessoa do papel da vontade: de resto, nos esforços da conversão, ->5 2
tornava-se freqüentemente agudíssima e dramática justamen
te a percepção da vontade e da liberdade do homem. Apro-
fundando esse conceito, Agostinho viu na pessoa o reflexo de Deus Trindade nos
modos do ser, do conhecer e do amar.
• O conhecer tende à verdade e a verdade se identifica com Deus; a conse-
qüência é que a maior parte das demonstrações agostinianas da existência de
Deus são demonstrações da existência da verdade. Como é
posA iluminação sível que nós formemos conceitos imutáveis, se tudo está em -+§3
devir? Não é talvez porque existem verdades imutáveis que
determinam o conhecer, e são para nós critério de julgamento?
Agostinho, todavia, não aceita in toto a gnosiologia platônica, mas recusa sua teoria
da reminiscência, substituindo-a com a da iluminação: Deus, como na criação nos
torna participantes do ser, também nos torna participantes da verdade, sendo ele
próprio a fonte da verdade.
As orovas * A essa Prova c*a existência de Deus como Verdade se acres-
da existência centam outras, sem dúvida retomadas pela bagagem da teolo- de Deus
9'a clássica: a que da perfeição do mundo remonta ao seu Ar-
4 tífice divino; a baseada sobre o consensus gentium; a ex
gradibus, ou seja, que remonta dos diversos graus de bem pre-
sentes no mundo ao Bem em si.
Características * Dessas provas deriva uma concepção de Deus entendido
filosóficas como Ser, Verdade, Bem em forma absolutamente eminente,
de Deus que se pode exprimir tanto nas formas da teologia negativa,
-»4 quanto na atribuição a ele de tudo o que existe de positivo no
criado, sem os limites do negativo.
• A concepção filosófica de Deus deve ser integrada com o problema teológico
por excelência do cristianismo, ou seja, o dogma da Trindade.
Agostinho afirmou a identidade substancial das três Pes-
soas. Isso significa que Deus, em sentido absoluto, é tanto o Pai A Trindade como
o Filho e como o Espírito Santo, e que eles são inseparáveis
5 5
no ser e operam inseparavelmente. Todavia, essas três
Pessoas
são distintas, não do ponto de vista da substância, mas do da
relação, pelo que o Pai tem o Filho, mas não é o Filho, e o Filho tem o Pai, mas
não é o Pai, e o mesmo vale para o Espírito Santo.
Capítulo Sexto - Santo jAgostinko e o apoge.14 cia Pa+rís+rca

• Um ponto que claramente se destaca da filosofia grega se encontra na dou-


trina da criação ex nihilo. A criação pode ser:
1) uma geração, e neste caso o gerado deriva da substân- A criação ex nihilo
cia do gerador; §6
2) uma fabricação, e então o gerado deriva de uma maté-
ria externa ao gerador;
3) do nada, onde o gerado não vem nem da substância do gerador nem da
matéria externa. A criação ex nihilo implica um conceito de graça absoluto (o
homem depende in toto de Deus).
• No ato criador desenvolvem papel determinante as Idéias, entendidas do
modo médio-platônico como pensamentos de Deus, isto é, concebidas como o
modelo ideal do mundo. Isso não implica que o mundo tenha
nascido já perfeitamente formado: no momento da criação,
Deus produz apenas as sementes, as "razões seminais" de to- Idéias e razões
das as coisas, as quais têm necessidade de tempo para gerar seminais -+§7
aquilo que é inerente à sua natureza.
• O tempo é diverso do eterno: a natureza do tempo, com
efeito, explica-se em relação à alma, que conserva o passado e
antecipa o futuro.
Do ponto de vista ontológico, o tempo, portanto, não sub- Odistensio tempo como
siste: ele existe apenas como memória, intuição e antecipação animae ->§8
na alma.
• Agostinho considera o problema do mal segundo três pontos de vista.
Do ponto de vista metafísico, o mal não existe, mas existem apenas graus infe-
riores de ser em relação a Deus, Sumo Bem.
Do ponto de vista moral, o mal nasce da vontade má que, O mal § 9
em vez de tender ao Sumo Bem, tende a bens inferiores.
O mal físico é uma conseqüência do pecado original e todavia pode ter um
significado catártico em vista da salvação.
• A temática do mal moral põe em primeiro plano o con-
ceito de voluntas, que Agostinho considera como autônoma
em relação à razão. A razão conhece e a vontade escolhe, e A
pode escolher também contra a razão. Todavia, a vontade al- vontade
cança sua perfeição e sua plena liberdade quando não faz o e a
mal, mas nisso tem necessidade da graça. graça -
• A concepção agostiniana da história explica-se com a relação >entre
§10
duas
Cidades, que derivam de dois "amores" contrapostos: o amor de si (cupiditas), que é
princípio do mal, e o amor de Deus (charitas), que é prinCÍpio do bem. A
Cidade terrena
O conjunto dos homens que amam a Deus forma a Cidade e a Cidade divina
celeste e, ao contrário, o conjunto dos homens que amam a si —>§77 mesmos ou
ao mundo forma a Cidade terrena.
Tanto o cidadão da Cidade celeste como o da Cidade terrena ocupam a terra,
mas o primeiro a ocupa como peregrino,'enquanto o segundo como um dominador.
A história tem um andamento linear: tem uma meta final (o juízo universal), em que
o cidadão terreno destina-se à danação, enquanto o cidadão celeste à salvação.
• Nas vicissitudes do homem e do mundo, a categoria predominante e absoluta
não é mais a do saber, como queriam os gregos, mas a do amor: a ordo amoris é o
principal critério de referência; a consistência on-
tológica e moral do homem depende do grau e do peso de A ordo amoris seu
amor. -> S 72
Terceira parte - y\ "Patrística na área cultural de língua latina

1 O filosofar na fé elimina a inteligência; pelo contrário, como já


acenamos, a fé estimula e promove a inte-
ligência. A fé é um "cogitare cum assensio-
Plotino mudou o modo de pensar de ne ”, um modo de pensar assentindo; por
Agostinho, oferecendo-lhe as novas cate- isso, sem pensamento não haveria fé. E
gorias que iriam romper os esquemas do seu analogamente, por seu turno, a inteligência
materialismo e de sua concepção maniqueísta não elimina a fé, mas a fortalece e, de certo
da realidade substancial do mal. Então, todo o modo, a clarifica. Em suma: fé e razão são
universo e o homem apareceram-lhe sob comple- mentares. O “credo quia absurdum”
nova luz. Mas a conversão e a fé em Cristo e é uma postura espiritual inteiramente
em sua Igreja mudaram também o modo de estranha a Agostinho.
viver de Agostinho, abrindo-lhe novos Desse modo, nasce aquela posição que,
horizontes para seu próprio pensar. A fé mais tarde, seria resumida nas fórmulas "cre-
tornou-se substância de vida e pensamento do ut intelligam” e "intelligo ut credam”,
e, assim, tornou-se não só o horizonte de sua fórmulas que, de resto, o próprio Agostinho
vida, mas também de seu pensamento. E, antecipou na substância e em parte na forma.
estimulado e comprovado pela fé, seu A origem dessas fórmulas encontra-se em
pensamento adquiriu nova estatura e nova Isaías (Is 7,9, na versão grega dos Setenta),
essência. Nascia o filosofar-na- fé, nascia a onde se lê “se não tiverdes fé, não podereis
“filosofia cristã”, amplamente preparada entender”, ao que, em Agostinho,
pelos Padres gregos, mas que só iria chegar corresponde a precisa afirmação: “intellectus
ao perfeito amadurecimento com Agostinho. merces est fidei”, “a inteligência é recom-
A conversão, com a conseqüente con- pensa da fé”. Esta é a posição que Agostinho
quista da fé, foi, com efeito, o eixo em torno assumira desde sua primeira obra de
do qual passou a girar todo o pensamento de Cassiciaco, Contra os acadêmicos, que per-
Agostinho — e, portanto, constitui o caminho manece como a marca mais autêntica do seu
de acesso para a sua compreensão. filosofar: o homem olha para o que é
Será que se trata de uma forma de fi- verdadeiro tanto com a fé como com a inte-
deísmo? Não, Agostinho está bem distante do ligência.
fideísmo, que não deixa de ser uma forma de Platão, notemos, já compreendera que a
irracionalismo. A fé não substitui nem plenitude da inteligência, no que se refere às
verdades últimas, só podia se realizar através
de uma revelação divina, escrevendo o
seguinte: “Tratando-se dessas verdades, é
impossível deixar de fazer uma destas coisas:
aprender dos outros qual é a verdade,
descobri-la por si mesmo ou então, se isso
for impossível, aceitar, dentre os raciocínios
humanos, o melhor e menos fácil de refutar e
sobre ele, como sobre uma jangada, enfrentar
■ Fé e razão. O problema do equilíbrio o risco da travessia do mar da vida.” E havia
entre fé e razão é constante no arco do acrescentado, profeticamente: “A menos que
pensamento medieval. não se possa fazer a viagem de modo mais
A solução de Agostinho, para usar uma seguro e com menor risco, sobre uma nave
expressão da teoria gnosiológica mais sólida, isto é, confiando-se a uma
moderna, é um "círculo hermenêutico": revelação divina”.
este significa que todo conhecimento Para Agostinho essa nave é o “lignum
pressupõe pré-conhecimen- tos
crucis”, ou seja, Cristo crucificado. Diz ele:
apreendidos por outro caminho, que
podem depois ser confirmados, Cristo “pretendeu que passássemos através
desmentidos ou modificados. dele”. E mais: “Ninguém pode atravessar o
A fé é, portanto, um pré-conhecimen- to mar do século se não for carregado pela cruz
em relação à razão (credo utintelli- gam); de Cristo”. Nisso consiste precisamente o
mas a razão depois pode e deve “filosofar na fé”, ou seja, a “filosofia cristã”:
transpor criticamente as verdades de fé uma mensagem que mudou por mais de um
(intelligo ut credam). milênio o pensamento ocidental. 11 || 2
Cãpítulo SeXtO - Santo yNgostinko e o apogeu da "Pa+ns+ica

2 ;A descoberta da pessoa e a gou a responder a Amélio, que solicitava seu


consentimento para que lhe fizesse o retrato:
metafísica da inferioridade ‘Não basta arrastar este simulacro com o
qual a natureza quis nos revestir: vós pre-
tendeis ainda que eu permita deixar uma
imagem mais durável desse simulacro, como
“E dizer que os homens vão admirar as se fosse algo que verdadeiramente valha a
encostas das montanhas, os vastos fluxos do pena ver?’ ”. Agostinho, ao contrário, fala
mar, as amplas correntes dos rios, a extensão continuamente de si mesmo. E sua obra-pri-
do oceano, o girar dos astros, e abandonam a ma são exatamente as Confissões, nas quais
si mesmos”. Essas palavras de Agostinho, não só fala amplamente dos seus pais, de sua
que podem ser lidas nas Confissões (e que terra, das pessoas que lhe eram caras, mas
tanta impressão iriam causar inclusive em também põe a nu seu espírito em todos os
Petrarca), constituem verdadeiro problema. O seus mais recônditos cantos e em todas as
verdadeiro grande problema não é o do tensões íntimas de sua “vontade”. E mais: é
cosmo, mas o do homem. O verdadeiro precisamente nas tensões íntimas e
mistério não é o mundo, mas nós para nós lacerações de sua vontade, posta em con-
mesmos: “Que profundo mistério é o homem! fronto com a vontade de Deus, que Agostinho
E, no entanto, tu, Senhor, conheces até o descobre o eu, a personalidade humana, em
número dos seus cabelos, que em ti não um sentido inédito: “Quando eu estava
sofrem redução. E, entretanto, é mais fácil decidindo servir inteiramente ao Senhor meu
contar os cabelos dele do que os afetos e os Deus, como havia estabelecido há muito, era
movimentos de seu coração”. eu que queria e eu que não queria: era
Mas Agostinho não propõe o problema exatamente eu que nem o queria plenamente,
do homem em abstrato, ou seja, o problema nem o rejeitava plenamente. Por isso, lutava
da essência do homem em geral: o que ele comigo mesmo e dilacerava-me a mim
propõe é o problema mais concreto do eu, do mesmo [...]”.
homem como indivíduo irrepe- tível, como Estamos doravante bem distantes do
pessoa, como indivíduo, poder- se-ia dizer intelectualismo grego, que só havia deixado
com terminologia posterior. Nesse sentido, o um escasso espaço para a “vontade”.
problema de seu eu e o de sua pessoa Assim, é a problemática religiosa, o
tornam-se significativos: “eu próprio me confronto da vontade humana com a vontade
tornara um grande problema (magna divina, que leva à descoberta do eu como
quaestio) para mim”; “eu não compreendo pessoa.
tudo o que sou”. Como pessoa, Agostinho Na verdade, Agostinho vale-se ainda
torna-se protagonista de sua filosofia: ao também de fórmulas gregas para definir o
mesmo tempo observante e observado. homem, particularmente a fórmula de gênese
Uma comparação com o filósofo grego a socrática que se tornou famosa com o
ele mais caro e mais próximo pode nos Alcibíades de Platão, segundo a qual o ho-
mostrar a grande novidade dessa atitude. mem “é uma alma que se serve de um cor-
Embora pregue a necessidade de nos reti- po”. Nele, porém, tanto o conceito de alma
rarmos das coisas exteriores para o interior como o de corpo assumem novo significado
de nós mesmos, na alma, para encontrar a em virtude do conceito de criação (de que
verdade, Plotino fala da alma e da interio- falaremos adiante), do dogma da “ressur-
ridade do homem em abstrato, ou melhor, em reição” e, sobretudo, do dogma da encarnação
geral, despojando rigorosamente a alma de de Cristo. O corpo torna-se algo bem mais
sua individualidade e ignorando a questão importante do que aquele “vão simulacro” de
concreta da personalidade. Plotino não que Plotino se envergonhava, como vimos
apenas nunca falou de si mesmo em sua pró- acima.
pria obra, mas também não queria falar nem Mas a novidade está sobretudo no fato
aos amigos. Escreve Porfírio: “Plotino (...) de que, para Agostinho, o homem interior é
tinha o aspecto de alguém que se envergonha imagem de Deus e da Trindade. E a proble-
de estar em um corpo. Em virtude dessa mática da Trindade, centrada precisamente
disposição de espírito, tinha reservas para nas três pessoas e em sua unidade substan-
falar de seu nascimento, de seus pais, de sua cial e, portanto, na temática específica da
pátria. Desdenhava a tal ponto sujeitar-se a pessoa, mudaria radicalmente a concepção do
posar para um pintor ou escultor que che eu, que, à medida que reflete as três pes
Terceira parte - y\ Pa+rísfica na área cul+ural de lín gua la+ir\a

soas da Trindade e sua unidade, torna-se ele os objetivos específicos a que visa sejam di-
próprio pessoa. E Agostinho encontra no ferentes dos de Descartes.
homem toda uma série de tríades, que refle- Mais globalmente, Agostinho interpreta
tem de vários modos a Trindade, tendo no o processo cognoscitivo do seguinte modo:
vértice a tríade ser, conhecer e amar, que a) Como Plotino já havia ensinado, a
espelha as três pessoas da Trindade e sua sensação não é uma alteração sofrida pela
estrutura uno-trina. alma. Os objetos sensoriais agem sobre os
Assim, Deus se espelha na alma. E sentidos. Essa alteração do corpo não escapa
“alma” e “Deus” são os pilares da “filosofia à alma, que, conseqüentemente, “age”,
cristã” agostiniana. Não é indagando o mundo, extraindo, não do exterior, mas do interior de
mas escavando a alma que se encontra Deus. si mesma, a representação do objeto que é a
sensação. Assim, na sensação o corpo é
passivo, ao passo que a alma é ativa.
b) Mas a sensação é apenas o primeiro
degrau do conhecimento. Com efeito, a alma
3 A verdade e a iluminação mostra sua espontaneidade e sua autonomia
em relação às coisas corpóreas à medida que
as “julga” com a razão — e as julga com base
Nessa polaridade alma-Deus, o ponto em critérios que contêm um “algo mais” em
central é o conceito de “verdade”, ao qual relação aos objetos corpó- reos. Estes, com
Agostinho agregou uma série de outros con- efeito, são mutáveis e imperfeitos, ao passo
ceitos fundamentais. Uma passagem contida que os critérios segundo os quais a alma
em A verdadeira religião, que se tornou muito julga são imutáveis e perfeitos. E isso se
célebre, ilustra perfeitamente essa função do mostra de modo mais evidente quando
conceito de verdade: “Não busques fora de ti julgamos os objetos sensíveis em função de
(...); entra em ti mesmo. A verdade está no conceitos matemáticos ou geométricos, ou
homem interior. E, se descobrires que a tua mesmo estéticos, ou quando julgamos as
natureza é mutável, transcende-te a ti ações em função de parâmetros éticos. Os
mesmo. Lembra-te, porém, que, trans- conceitos matemáti- co-geométricos que
cendendo a ti mesmo, estás transcendendo a aplicamos aos objetos são necessários,
alma que raciocina, de modo que o termo da imutáveis e eternos, ao passo que os objetos
transcendência deve ser o princípio onde se são contingentes, mutáveis e corruptíveis. O
acende o próprio lume da razão. E, efeti- mesmo vale para os conceitos de unidade e
vamente, onde chega todo bom raciocinador proporção, que aplicamos aos objetos quando
senão à verdade? A verdade não é algo que os avaliamos esteticamente.
se constrói à medida que o raciocínio avança; c) Surge, então, o problema: de onde a
ao contrário, ela é aquilo a que tendem os que alma deriva esses critérios de conhecimento
raciocinam. Vês aqui uma harmonia que não com que julga as coisas e que são superiores
tem similares, e tu próprio conforme a ela. às coisas? Será que ela mesma os produz?
Reconhece que não és aquilo que a verdade é; Certamente não, porque, mesmo sendo
a verdade não busca a si própria, mas és tu superior aos objetos físicos, ela própria é
que a alcanças, procurando- a, não de lugar mutável, ao passo que tais critérios são
em lugar, mas com o afeto da mente, para imutáveis e necessários. Por isso, é
que o homem interior se encontre com aquilo necessário concluir que, acima de nossa
que nele habita com desejo não ínfimo e mente, existe um critério ou uma Lei que se
carnal, mas com sumo e espiritual desejo”. chama Verdade, e que, portanto, existe uma
Mas vejamos melhor como o homem natureza imutável, superior à alma humana.
chega à verdade. O intelecto humano, portanto, encontra
A argumentação mais conhecida é a a verdade como “objeto” superior a ele, com
seguinte. A dúvida cética derruba a si mesma, ela julga, mas por ela é julgado. A verdade é a
pois, no momento em que pretende negar a medida de todas as coisas e o próprio
verdade, a reafirma: si fallor, sum; se duvido, intelecto é “medido” em relação a ela.
precisamente por poder duvidar, existo e
estou certo de pensar. Com essa ar-
gumentação, Agostinho sem dúvida antecipou
o cartesiano cogito, ergo sum, embora
Capitulo SeXtO - Santo ^Agostinho e o apogeu da Patrística

transformada com base no criacionismo e a


similitude da luz é aquela já usada por Platão
em A República, conjugada com a da luz de
■ Iluminação. A doutrina de Agostinho que falam as Sagradas Escrituras. Da mesma
sobre a iluminação substitui a doutrina forma que Deus, que é puro Ser, com a
platônica da anamnese ou criação transmite o ser às outras coisas, as-
reminiscência. sim, analogamente, enquanto é Verdade,
Para Platão, as almas humanas con-
transmite às mentes a capacidade de co-
templaram as Idéias antes de encarnar-
se nos corpos, e depois se recordam nhecer a Verdade, produzindo uma metafísica
delas na experiência concreta. marcada pela própria Verdade nas mentes.
Para Agostinho, ao contrário, a suprema Deus nos cria como Ser, nos ilumina como
Verdade de Deus é uma espécie de luz Verdade, nos atrai e nos dá a paz como
que ilumina a mente humana no ato do Amor.
conhecimento, permitindo- lhe captar as Devemos destacar ainda um último
Idéias, entendidas como as verdades ponto. Agostinho insiste no fato de que só a
eternas e inteligíveis presentes na
mens, a parte mais elevada da alma, chega
própria mente divina.
ao conhecimento das Idéias. E diz mais: para
essa visão, “não é toda e qualquer alma que é
apta, mas somente aquela que é santa e pura,
ou seja, aquela que tem o olho santo, puro e
sereno com o qual pretende ver as Idéias, de
modo que seja semelhante às próprias Idéias”.
d) Essa verdade que captamos com o Trata-se do antigo tema da “purificação” e
puro “intelecto” é constituída pelas Idéias, da “assimilação” ao divino como condição de
que são rationes intelligibiles incorporales- acesso ao Verdadeiro, que fora desenvolvido
que rationes, as supremas realidades inteli- sobretudo pelos platônicos, mas que em
gíveis. Agostinho sabe muito bem que o Agostinho recebe as valências evangélicas da
termo “Idéia” em sentido técnico foi boa vontade e da pureza de coração. A
introduzido por Platão e que a teoria das pureza da alma torna-se condição necessária
Idéias é tipicamente platônica, mas mostra-se para a visão da Verdade, bem como para a
convicto de que os filósofos anteriores delas sua fruição. f3lf4l
tenham tido algum conhecimento, porque o
valor das Idéias é tal que ninguém pode ser
filósofo se delas não tem conhecimento. As
Idéias, diz Agostinho, são o parâmetro pelo
qual toda coisa é feita. 4 Deus
Entretanto, Agostinho reforma Platão em
dois pontos:
1) faz das Idéias os pensamentos de Alcançando a Verdade, o homem tam-
Deus (como já haviam feito, embora de modos bém alcança Deus — ou estará Deus ainda
diferentes, Fílon, os Medioplatônicos e Plo- acima da Verdade? Agostinho entende
tino); “Verdade” em muitos significados. Quando a
2) rejeita a doutrina da reminiscência, entende em seu significado mais forte, ou
ou melhor, ele a repensa ex novo. seja, como Verdade suprema, ela coincide
Sobre o primeiro ponto, devemos des- com Deus: “Compreende, portanto (...), ó
tacar que Agostinho transforma a doutrina da alma, (...) se puderes, que Deus é Verdade”.
reminiscência na célebre doutrina da “ilu- Por conseguinte, a demonstração da
minação”. E essa transformação se impunha existência da certeza e da Verdade coincide
no contexto geral do criacionismo, que está com a demonstração da existência de Deus.
na base da doutrina agostiniana. Como os estudiosos já observaram há tempo,
Os intérpretes tiveram muito trabalho todas as provas que Agostinho fornece da
para entender essa teoria da “iluminação”, existência de Deus reduzem-se, em última
porque, para interpretá-la, referiam-se a análise, ao esquema das argumentações
desdobramentos posteriores da doutrina do acima expostas: primeiro passa-se da exte-
conhecimento, introduzindo temas e proble- rioridade das coisas à interioridade do espí-
mas estranhos a Agostinho. Na realidade, a rito humano, depois da Verdade que está
doutrina agostiniana é a doutrina platônica
Terceira parte - y\ í\ \Irísfu< < na ái*ea cullui' t il de língua latina

presente no espírito ao Princípio de toda ver- alma uma luz que não se dissipa no lugar,
dade, que é precisamente Deus. onde ressoa uma voz que o tempo não rouba,
Mas também há em Agostinho outros onde exala um perfume que o vento não
tipos de provas, que vale a pena referir. dispersa, onde provo um sabor que a vora-
Em primeiro lugar, recordemos a prova, cidade não reduz, onde me aperta um am-
já bem conhecida dos gregos, que, partindo plexo que a saciedade jamais dissolve. E isso
das características de perfeição do mundo, que eu amo quando amo meu Deus”.
remonta ao seu artífice. Ser, Verdade, Bem (e Amor) são os
Uma segunda prova é a conhecida com o atributos essenciais de Deus para Agostinho.
nome de “consensus gentium”, também já Sobre o segundo e o terceiro já falamos.
presente nos pensadores da antiguidade Sobre o primeiro Agostinho se exprime com
pagã: “toda a espécie humana confessa que clareza, unindo a ontologia grega com a
Deus é criador do mundo”. revelação bíblica. Os gregos tinham dito que
Uma terceira prova é extraída dos di- Deus é o ser supremo (a substância primei-
versos graus do bem, a partir dos quais se ra), na Bíblia Deus diz de si mesmo: “Eu sou
remonta ao primeiro e supremo Bem, que é aquele que é”. Justamente enquanto ser
Deus.
Agostinho não demonstra Deus como,
por exemplo, o demonstra Aristóteles, ou
seja, com intenções puramente intelectuais e
a fim de explicar o cosmo, mas sim para
“fruir a Deus” (frui Deo), e portanto para
amá-lo, para preencher o vazio do seu es-
pírito, para pôr fim ã inquietude do seu co-
ração, para ser feliz. Contrariamente ao que
pensava Plotino, só há verdadeira felicidade
na outra vida, não sendo possível nesta.
Todavia, mesmo nesta terra podemos ter uma
pálida imagem daquela felicidade. Com efeito,
é muito significativo que, nas Confissões,
Agostinho recorra até mesmo ao vocabulário
das Enéadas para descrever o momento de
êxtase que alcançou em Ostia, juntamente
com a mãe, ao contemplar Deus. Também
significativos são o esvaziamento metafísico
de toda dimensão física e o despojamento de
toda alteridade, feitos de modo plotiniano,
embora com um pathos espiritual mais
ardente e carregado de novos significados,
que encontramos, por exemplo, nesta
passagem das Confissões sobre a fruição de
Deus, um dos mais belos escritos de
Agostinho: “Mas o que amo, amando-te? Não
uma beleza corpó- rea, não um encanto
transitório, não um fulgor como o da luz, que
agrada a estes olhos, não doces melodias de
cantos de todo tipo, não o suave perfume de
flores, de ungüentos e de aromas, não o maná
e o mel, não membros desfrutando no ample-
xo carnal. Não são essas coisas que amo,
amando meu Deus. E, no entanto, por assim
dizer, amo uma luz, uma voz, um perfume, um
alimento e um amplexo quando amo o meu
Deus: luz, voz, perfume, alimento e amplexo
do homem interior que está em mim, onde Santo Agostinho cm meditação c oraçao, em umà
resplandece em minha pintura de Sandro Bollieelli (1445- / S101,
conservada na Igreja de Todos os Santos em
1'loreuca.
Capítulo sexto - .Santo yAgos+inko e o apogeu da l-^a+rís+ica

supremo, Deus, criando as coisas, participa portanto, em sentido absoluto, é tanto o Pai,
com eles o ser, mas não o Ser sumo como ele como o Filho e como o Espírito Santo: eles
é, e sim um ser com diferentes graus em são inseparáveis no Ser e operam insepara-
escala hierárquica. velmente.
Apesar de todas estas precisações, per- Portanto, não havendo diferença on-
manece claro para Agostinho que é impos- tológica e hierárquica nem diferença de fun-
sível para o homem uma definição da natureza ções, a igualdade absoluta das três Pessoas
de Deus e que, em certo sentido, Deus scitur implica que a Trindade seja “o único verda-
melius nesciendo, pois é mais fácil saber deiro Deus”.
aquilo que ele não é do que aquilo que ele é: b) Agostinho realiza a distinção entre as
“Quando se trata de Deus, o pensamento é Pessoas com base no conceito de relação.
mais verdadeiro do que a palavra, e a Isto significa que, para Agostinho, cada uma
realidade de Deus mais verdadeira do que o das três Pessoas é distinta das outras, mas
pensamento”. não ontologicamente diversa. O Pai tem o
Os próprios atributos mencionados (e Filho mas não é o Filho, e o Filho tem o Pai,
todos os outros atributos positivos que se mas não é o Pai; e o mesmo se diga do Espí-
possam citar de Deus) não devem ser en- rito Santo.
tendidos como propriedade de um sujeito, Tais atributos, portanto, não pertencem
mas como coincidentes com a própria à dimensão do ser e da substância, e sim,
essência dele. Melhor ainda é afirmar atri- justamente, da relação. Mas nem por isso se
butos positivos de Deus, negando o negativo reduzem ao nível de meros acidentes. Os
da finitude categorial que os acompanha. acidentes são atributos mutáveis, enquanto o
Deus é todo o positivo que se encontra na tipo de relação que distingue as três Pessoas
criação, sem os limites que nela existem, da Trindade não é mutável e se coloca na
resumido no atributo da imutabilidade e dimensão da eternidade.
expresso na fórmula com que ele se indicou a c) Um terceiro ponto fundamental da
si mesmo: “Em sou aquele que é”. g-gffrm doutrina trinitária agostiniana consiste nas
analogias triádicas que ele descobre no cria-
do, as quais, de simples vestígios da Trinda-
de nas coisas e no homem exterior, tornam-
se, na alma humana, verdadeira imagem da
própria Trindade, como já vimos.
5 ATri ndade Entre as muitas analogias, recordemos
duas. .
Todas as coisas criadas apresentam
Todavia, este Deus, que é “Aquele que
unidade, forma e ordem, tanto as coisas
é”, para Agostinho é essencialmente
corpóreas como as almas incorpóreas. Ora,
Trindade. A esse tema ele dedica um de seus
assim como das obras remontamos ao Cria-
livros mais profundos, que, sob vários as-
dor, que é Deus uno e trino, podemos con-
pectos, se impôs como sua obra-prima dou-
siderar essas três características como
trinária.
vestígios de si deixados pela Trindade em
Devemos salientar três núcleos parti-
sua obra.
cularmente importantes dessa obra.
Analogamente, em um nível mais alto, a
a) O conceito básico sobre o qual ele
mente humana é imagem da Trindade, porque
alicerça sua interpretação é a identidade
também é una-e-trina, no sentido que é
substancial das três Pessoas.
mente e, como tal, conhece-se a si mesma e
Os gregos, precisa Agostinho, para ex-
ama-se a si mesma. Portanto, a “mente”, o
primir conceitualmente a Trindade falaram de
seu “conhecimento” e o “amor” são três
“uma essência, e três substâncias”; os latinos,
coisas e ao mesmo tempo não são mais que
porém, falam de “uma essência ou substância,
uma, e, quando são perfeitas, coincidem.
e três Pessoas”, porque, para os latinos,
Na investigação das analogias trini-
essência e substância são considerados
tárias do espírito humano está uma das
sinônimos. Todavia, mesmo com essa
maiores novidades de Agostinho em relação a
diferença terminológica, uns e outros pre-
esse tema.
tenderam dizer a mesma coisa. Isto implica
Conhecimento do homem e conheci-
que Pai, Filho e Espírito Santo tenham jus-
mento de Deus Uno-Trino iluminam-se
tamente uma substancial igualdade e não
sejam hierarquicamente distinguíveis. Deus,
Terceira parte - ;A Patrística na área cultural de língua latina

mutuamente, quase que como em um es- 6 jA doutrina da criação


pelho, de modo admirável, realizando per-
feitamente o projeto do filosofar agosti-
niano: conhecer Deus e a própria alma, Deus O problema metafísico que mais preo-
através da alma, a alma através de Deus. cupara os antigos era o da derivação do
múltiplo a partir do Uno: por que e como

Uma antiga lenda narra que Agostinho, enquanto passeava na praia, pensando no complexo mistério da Trindade
(sobre a qual estava preparando seu tratado), encontrou um menino que, tendo cavado um buraco na areia, com
uma colher queria aí colocar toda a água do mar. Quando Agostinho disse que era impossível pôr num buraco com
uma colher toda a água do mar, o menino, sob cujas aparências havia um anjo, respondeu: “Seria mais fácil para
mim derramar com esta colher toda a água do mar neste buraco, do que para ti resolver e inserir em um livro o
mistério da Trindade". Pinturiccbio (1454-1513) representou tal lenda neste belo quadro que se encontra em
Perúgia, na Galeria Nacional da IJmbria. Lembramos que esta lenda é particularmente significativa, porque o livro
de Agostinho sobre a Trindade está entre os mais notáveis escritos do Ocidente sobre o tema.
Capitulo SeXtO - San+o /Vgosfmko e o apogeu da Pa+Ws+ica

os múltiplos derivaram do Uno (ou de algu- O homem sabe “gerar” (os filhos) e
mas realidades originárias)? Por que e como, sabe “produzir” (os artefacta), mas não sabe
do Ser que não pode não ser, nasceu também “criar”, porque é um ser finito. Deus “gera”
o devir, que implica a passagem de ser a não de sua própria substância o Filho, que, como
ser e vice-versa? tal, é idêntico ao Pai, ao passo que “cria” o
Ao tentar resolver esses problemas, ne- cosmo do nada.
nhum dos antigos filósofos chegou ao con- Portanto, há diferença enorme entre
ceito de criação, que, como sabemos, é de “criação” e “geração”, porque, diferentemente
origem bíblica. Os Platônicos foram os fi- da primeira, esta última pressupõe o vir (a
lósofos que chegaram às posições menos ser) por outorga de ser por parte do criador
distantes do criacionismo. Entretanto, mesmo para “aquilo que absolutamente não existia”.
assim, ainda permaneceu significativa a E tal ação é “dom divino” gratuito, devido à
distância entre suas posições e o criacionismo livre vontade e à bondade de Deus, além de
bíblico. No Timeu, Platão havia introduzido a sua infinita potência.
figura do demiurgo. Entretanto, embora sendo Ao criar o mundo do nada, Deus criou,
racional, livre e motivada pela causa do bem, juntamente com o mundo, o próprio tempo.
a atividade do demiurgo é gravemente Com efeito, o tempo está estruturalmente
limitada, tanto acima como abaixo dele. Acima ligado ao movimento; mas não há movimento
do demiurgo está o mundo das Idéias, que o antes do mundo, só com o mundo.
transcende e no qual ele se inspira como em
Esta tese já fora (quase literalmente)
um modelo; abaixo, ao contrário, está a chora
antecipada por Platão no Timeu, mas em
ou matéria informe, também eterna como as
Agostinho ela simplesmente é melhor fun-
Idéias e como o próprio demiurgo. A obra do
damentada e melhor explicada. Assim, “antes
demiurgo, portanto, é obra de fabricação e
do mundo” não havia um “antes temporal”,
não de criação, porque pressupõe como
porque não havia tempo: o que havia (aliás,
preexistente e independente aquilo de que se
seria necessário dizer “há”) era o eterno, que
vale para construir o mundo. Plotino, no
é como que um infinito presente atemporal
entanto, deduziu as Idéias e a própria matéria
do Uno, muito engenhosamente, do modo (sem transcorrência nem distinção de “antes”
como vimos. Todavia, seu impulso o levou e “depois”). Mas da questão do tempo
aos limites de um verdadeiro acosmismo e, falaremos adiante.
oportunamente reformadas, suas categorias
poderiam servir para interpretar a dialética
trinitária, mas não para interpretar a criação
do mundo.
A solução criacionista, que, para Agos- 7 A t loulrii\ii das CJdéias e
tinho, é ao mesmo tempo verdade de fé e de
das razões seminais
razão, revela-se de uma clareza exemplar. A
criação das coisas se dá do nada (ex nihilo),
ou seja, não da substância de Deus nem de
algo que preexistia (a fórmula que posterior- As Idéias têm um papel essencial na
mente se tornaria canônica seria ex nihilo sui criação. Mas, de paradigmas absolutos fora e
et subiecti). Com efeito, explica Agostinho, acima da mente do demiurgo, como eram em
uma realidade pode derivar de outra de três Platão, elas se transformam, como já
modos: dissemos, em “pensamentos de Deus” ou
a) por geração, caso em que deriva da também como “Verbo de Deus”.
própria substância do gerador como o filho Agostinho declara a teoria das Idéias
deriva do pai, constituindo algo de idêntico ao como um pilar absolutamente fundamental e
gerador; irrenunciável, porque está intrinsecamen- te
b) por fabricação, caso em que a coisa vinculada à doutrina da criação.
que é fabricada deriva de algo preexistente Deus, com efeito, criou o mundo con-
fora do fabricante (de uma matéria), como forme a razão e, portanto, criou cada coisa
ocorre com todas as coisas que o homem conforme um modelo que ele próprio pro-
produz; duziu como seu pensamento, e as Idéias são
c) por criação a partir do nada absoluto, justamente estes pensamentos-modelo de
ou seja, não da própria substância nem de Deus, e como tais são a verdadeira realidade,
uma substância externa. ou seja, eternas e imutáveis, e por participa-
ção delas existem todas as coisas.
Terceira parte - y\ Patrística na área cultu ral de língua latina

Mas Agostinho utiliza, para explicar a dades de sua concretização, infundindo nela,
criação, além da teoria das Idéias, também a precisamente, as razões seminais de cada
teoria das “razões seminais”, criada pelos coisa. A evolução do mundo ao longo do
Estóicos e posteriormente retomada e tempo outra coisa não é do que a concre-
reelaborada em bases metafísicas por Plotino. tização e a realização de tais “razões semi-
A criação do mundo ocorre de modo nais” e, portanto, um prolongamento da ação
simultâneo. Mas Deus não cria a totalidade criadora de Deus.
das coisas possíveis como já concretizadas: O homem foi criado como “animal
ele insere no criado as “sementes” ou racional” e encontra-se no vértice do mundo
“germes” de todas as coisas possíveis, as sensível. Como já vimos, a sua alma é
quais, posteriormente, ao longo do tempo, imagem de Deus-Trindade. A alma é imortal.
desenvolvem-se pouco a pouco, de vários As provas da imortalidade são em parte
modos e com o concurso de várias cir- extraídas de Platão, mas em parte são
cunstâncias. aprofundamentos agostinianos, como, por
Em suma: juntamente com a matéria, exemplo, a prova que se baseia na
Deus criou virtualmente todas as possibili
Cdpítulo SeXtO - Santo ^Agostmho e o apogeu da l -^afnstica

autoconsciência, dela deduzindo a simpli- presentes tanto o passado como o presente e


cidade e a espiritualidade da própria alma e, o futuro. Mais propriamente, deveríamos
portanto, a sua incorruptibilidade, ou então a dizer que “os tempos são três: o presente do
prova que infere a imortalidade da alma da passado, o presente do presente e o pre-
presença nela da Verdade eterna: “Se a alma sente do futuro. E, de qualquer forma, é em
morresse, morreria também a Verdade”. nosso espírito que se encontram esses três
Agostinho fica na dúvida quanto à so- tempos, que não são vistos em outra parte: o
lução do problema do modo como as almas presente do passado, vale dizer, a memória;
singulares são geradas: isto é, se Deus cria o presente do presente, isto é, a intuição; o
cada alma diretamente, ou se as criou todas presente do futuro, ou seja, a espera”.
em Adão e de Adão sucessivamente se Assim, embora tendo uma ligação com o
“transmitem” mediante os pais. movimento, o tempo não está no movimento e
Agostinho parece ter nutrido simpatias nas coisas em movimento, mas sim na alma.
por uma solução “traducionista” deste último Mais precisamente: conforme se revela
tipo, embora entendida em nível espiritual, estruturalmente ligado à memória, à intuição e
que, a seu parecer, explicaria melhor a à espera, o tempo pertence à alma, sendo
transmissão do pecado original. Mas também predominantemente “uma extensão da alma”,
não exclui a criação direta. precisamente uma extensão entre “memória”,
“intuição” e “espera”.
Tal solução, em certa medida, já havia
sido antecipada por Aristóteles, mas Agosti-
nho a desenvolve em sentido marcadamente
8 ;A eternidade e a estrutura espiritual, levando-a às suas últimas conse-
qüências. [T]
da temporalidade

“O que fazia Deus antes de criar o céu e


a terra?”. Essa foi a pergunta que levou
Agostinho a uma análise do tempo e o con-
duziu a soluções geniais, que se tornaram 9 CD mal
muito famosas.
e seu estatuto ontolo0Íco
Antes de Deus criar o céu e a terra não
havia tempo e, portanto, como já indicamos,
não se pode falar de um “antes” anterior à Ao problema da criação está ligado o
criação do tempo. O tempo é criação de Deus grande problema do mal, para o qual Agos-
e, por isso, a pergunta proposta não tem tinho conseguiu apresentar uma explicação
sentido, pois põe para Deus uma categoria que constituiu ponto de referência durante
que vale só para a criatura, cometendo-se séculos e ainda guarda a sua validade
assim um erro estrutural. Com efeito, Se tudo provém de Deus, que é Bem, de
“tempo” e “eternidade” são duas dimensões onde provém o mal?
incomensuráveis; muitos dos erros cometidos Depois de ter sido vítima da explicação
pelos homens, quando falam de Deus, como dualista maniquéia, como vimos, Agostinho
na pergunta proposta acima, nascem da encontrou em Plotino a chave para resolver a
aplicação indevida do conceito de tempo ao questão: o mal não é um ser, mas deficiência
eterno, que é coisa totalmente diferente de e privação de ser.
tempo. Mas Agostinho aprofunda ainda mais a
Mas o que é o tempo? questão. O problema do mal pode ser exa-
O tempo implica passado, presente e minado em três planos: a) metafísico-on-
futuro. Mas o passado não é mais e o futuro tológico; b) moral; c) físico.
não é ainda. E o presente, “se existisse sem- a) Do ponto de vista metafísico-on-
pre e não transcorresse no passado, não seria tológico, não existe mal no cosmo, mas ape-
mais tempo, mas eternidade”. Na realidade, o nas graus inferiores de ser em relação a
ser do presente é um contínuo deixar de ser, Deus, que dependem da finitude da coisa
um tender continuamente ao não-ser. criada e dos diferentes níveis dessa finitude.
Agostinho destaca que, na realidade, o Mas, mesmo aquilo que, numa consideração
tempo existe no espírito do homem, porque é superficial, parece um “defeito” (e, portanto,
no espírito do homem que se mantêm poderia parecer um mal), na realidade,
Terceira parte - y\ Patrística na área cultural de língua latina

na ótica do universo visto em seu conjunto, tamente com Agostinho que a vontade se
desaparece. De fato, os graus inferiores do impôs à reflexão filosófica, subvertendo a
ser e as coisas finitas, mesmo as mais ínfi- antropologia dos gregos e superando defi-
mas, revelam-se momentos articulados de nitivamente o antigo intelectualismo moral,
um grande conjunto harmônico. Quando, por seus pressupostos e seus corolários. A ator-
exemplo, julgamos que a existência de certos mentada vida interior de santo Agostinho e
animais nocivos seja um “mal”, na realidade sua formação espiritual, realizada inteira-
nós estamos medindo com o metro da nossa mente na cultura latina, que dava à voluntas
utilidade e da nossa vantagem contingente e, um relevo desconhecido para os gregos,
portanto, numa ótica errada. Medida com o permitiram-lhe entender a mensagem bíblica
metro do todo, cada coisa, mesmo aquela precisamente em sentido “voluntarista”, fora
aparentemente mais insignificante, tem seu dos esquemas intelectualistas do mundo
sentido e sua razão de ser e, portanto, grego.
constitui algo positivo. De resto, Agostinho foi o primeiro es-
b) Já o mal moral é o pecado. E o pe- critor a nos apresentar os conflitos da von-
cado depende da má vontade. E a má vontade tade em termos precisos, como já destaca-
depende de quê? A resposta de Agostinho é mos: “Era eu que queria e eu que não queria:
bastante engenhosa. A má vontade não tem era exatamente eu que nem queria plena-
uma “causa eficiente”, mas, muito mais, uma mente, nem rejeitava plenamente. Por isso,
“causa deficiente”. Por sua natureza, a lutava comigo mesmo e dilacerava-me a mim
vontade deveria tender ao Bem supremo. mesmo”.
Mas, como existem muitos bens criados e A liberdade é própria da vontade e não
finitos, a vontade pode tender a eles e, da razão, no sentido em que a entendiam os
subvertendo a ordem hierárquica, pode gregos. E assim se resolve o antigo paradoxo
preferir a criatura a Deus, preferindo os bens socrático de que é impossível conhecer o
inferiores aos bens superiores. Sendo assim, bem e fazer o mal. A razão pode conhecer o
o mal deriva do fato de que não há um único bem e a vontade pode rejeitá-lo, porque,
Bem, mas muitos bens, consistindo, embora pertencendo ao espírito humano, a
precisamente, em uma escolha incorreta vontade é uma faculdade diferente da razão,
entre esses bens. O mal moral, portanto, é tendo uma autonomia própria em relação à
uma aversio a Deo e uma conversio ad razão, embora seja a ela ligada. A razão
creaturam, é a escolha de um ser inferior ao conhece e a vontade escolhe, podendo
invés do ser supremo. O fato de ter recebido escolher até o irracional, ou seja, aquilo que
de Deus uma vontade livre é um grande bem. não está em conformidade com a reta razão.
O mal é o mau uso desse grande bem, que se E desse modo se explica a possibilidade da
dá do modo que vimos. Por isso, Agostinho aversio a Deo e da conversio ad creaturam.
pode dizer: “O bem que está em mim é obra O pecado original foi um pecado de
tua, é teu dom; o mal em mim é meu pecado”. soberba, sendo o primeiro desvio da vontade.
c) O mal físico, como as doenças, os O arbítrio da vontade é verdadeiramente
sofrimentos, os tormentos do espírito e a livre, em sentido pleno, quando não faz o mal.
morte, tem significado bem preciso para Esta é, precisamente, a sua condição natural:
quem filosofa na fé: é a conseqüência do assim ele foi dado ao homem originalmente.
pecado original, ou seja, é uma conseqüência Mas, depois do pecado original, a verdade se
do mal moral. Na história da salvação, porém, corrompeu e se enfraqueceu, tornando-se
também ele tem um significado positivo. necessitada da graça divina.
Conseqüentemente, o homem não pode
ser “autárquico” em sua vida moral: ele
necessita de tal ajuda divina. Portanto,
quando o homem procura viver retamente
valendo-se unicamente de suas próprias
forças, sem ajuda da graça divina libertadora,
10 A vcmtade, então ele é vencido pelo pecado; liberta-se
a liberdade,, a graça do mal com o poder de crer na graça que o
salva, e com a livre escolha dessa graça.
Já acenamos ao papel que a “vontade”
desempenha em Agostinho. Aliás, há tempo
os estudiosos destacaram que foi exa
Capitulo SextO - Santo jAgostinko e. o apogeu da Pa+HS+ica

11 A “(Sidade terrena” e segundo o homem; a divina é a daqueles que


vivem segundo Deus”.
a “(Sidade divina” As duas Cidades têm um corresponden-
te no céu, mais precisamente nas fileiras dos
anjos rebeldes e dos que permaneceram fiéis
O mal é amor a si mesmo (soberba), o a Deus. Na terra, essa correspondência re-
bem é amor a Deus. Isso vale tanto para o velou-se em Caim e Abel: as duas persona-
homem como indivíduo quanto para o homem gens bíblicas assumem assim o valor de sím-
que vive em comunidade com os outros. O bolos das duas Cidades. Nesta terra, o
conjunto dos homens que vivem para Deus cidadão da Cidade terrena parece ser o
constitui a Cidade celeste. Escreve dominador, enquanto o cidadão da Cidade
Agostinho: “Dois amores diversos geram as celeste é peregrino. Mas o primeiro está
duas cidades: o amor a si mesmo, levado até destinado à eterna danação, enquanto o
o desprezo por Deus, gerou a Cidade terrena; segundo está destinado ã eterna salvação.
o amor a Deus, levado até o desprezo por si, Assim, a história adquire um sentido
gerou a Cidade celeste. Aquela gloria-se de totalmente desconhecido para os gregos,
si mesma, esta de Deus. Aquela procura a como já vimos: ela tem um princípio, com a
glória dos homens, esta tem por máxima criação, e um termo, com o fim do mundo, ou
glória a Deus”. E ainda: “A Cidade terrena é a seja, com o juízo final e com a ressurreição.
cidade daqueles que vivem E tem três momentos intermediários

Na ilustração, a mais antiga


representação de Agostinho que
chegou até nós (remonta ao
período entre o fim do séc. VI e
os inícios do séc. VII).
Conserva-se
na Biblioteca do Latrãio.
Terceira parte - y\ Patrística na ák*ea cultural de Iín 0ua latm a

essenciais, que marcam seu decurso: o peca- Agostinho apresenta também um critério
do original com suas conseqüências, a espera para o amor, com a distinção entre o uti e o
da vinda do Salvador e a encarnação e paixão frui. Os bens finitos devem ser usados como
do Filho de Deus, com a constituição de sua meios e não ser transformados em objeto de
Igreja. fruição e deleite, como se fossem fins.
Agostinho insiste muito, ao final da E, assim, a virtude do homem, que os
Cidade de Deus, na ressurreição. A carne filósofos gregos haviam determinado em
ressuscitará integrada e em certo sentido função do conhecimento, é recalibrada por
transfigurada, mas continuará carne. Agostinho em função do amor. A virtus é a
A história se concluirá com o Dia do ordo amoris, ou seja, o amar a si mesmo, os
Senhor, que será como que o oitavo dia con- outros e as coisas segundo a dignidade
sagrado com a ressurreição de Cristo e no ontológica própria de cada um desses seres,
qual se realizará, em sentido global, o re- no sentido que já vimos.
pouso eterno. BBIISIsl O próprio conhecimento da Verdade e
da Luz que ilumina a mente é expresso por
Agostinho em termos de amor: “Quem co-
nhece a Verdade conhece tal Luz, e quem
12 jA essência do komem é o conhece essa Luz conhece a eternidade. O
amor é aquilo que conhece”.
amor De resto, o filosofar nessa fé segundo a
qual a criação e a redenção nasceram de um
De Sócrates em diante, os filósofos ato amoroso de doação, devia levar necessa-
gregos sempre disseram que o homem bom é riamente a essa reinterpretação do homem,
aquele que sabe e conhece, e que o bem e a de sua história como indivíduo e de sua his-
virtude são ciência. Já Agostinho diz, ao tória como cidadão, na perspectiva do amor.
contrário, que o homem bom é aquele que Essa frase lapidar resume a mensagem
ama: aquele que ama aquilo que deve amar. agostiniana, à guisa de sinal emblemático:
Quando o amor do homem volta-se para pondus meum, amor meus (“o meu peso está
Deus (amando os homens e as coisas em no meu amor”). A consistência do homem é
função de Deus), é cbaritas; quando, porém, dada pelo peso do seu amor, assim como
volta-se para si mesmo, para o mundo e para pelo seu amor determina-se o seu destino
as coisas do mundo, é cupiditas. Amar a si terreno e ultraterreno. Nessa perspectiva,
mesmo e aos homens não segundo o juízo pode-se compreender muito bem a exortação
dos homens, mas segundo o juízo de Deus, conclusiva de Agostinho: ama, et fac quod vis
significa amar do modo justo. (“ame, e faça o que quiser”).
Capítulo sexto - Santo y\gos+inko eo c\poge.\A da Patrís+ica

AGOSTINHO
A CENTRALIDADE DA TRINDADE DIVINA

Mundo Homem
todas as coisas têm unidade, ordem e o homem é pessoa, isto é, in-
forma estas características são vestígios divíduo irrepetível é imagem
que a Trindade deixou nas coisas graças a das três Pessoas da Trindade
estas podemos remontar do mundo a Deus, e, com efeito, é, conhece e ama
a partir dos graus de perfeição que tem em si uma faculdade da
existem no mundo vontade que é diferente da fa-
culdade da razão a vontade
livre é a que escolhe o bem
superior em vez do inferior,
isto é, vive para Deus o
conjunto dos homens que
vivem para Deus forma a Ci-
dade celeste, o conjunto dos
TRINDADE maus forma a Cidade terrena o
mal não tem estatuto on-
- implica a identidade
tológico, mas nasce da con-
substancial das três
fusão de um bem inferior com
Pessoas - a
um bem superior o homem
diferença é apenas
encontra sobretudo em si
relacionai (o Pai
mesmo a prova da existência
tem o filho, mas não de Deus que se manifesta como
é o filho; o Filho verdade
tem o Pai, mas não
é o Pai etc.)
A Trindade é:

A
SER
AMOR enquanto
enquanto v Sumo amor, Deus
Sumo beneficia
ser, Deus VERDADE
cria enquanto
Suma
verdade,
Deus
Criação ilumina
o mundo é criado segundo a Amor no
razão, isto é, segundo as homem, assim como na
Idéias- paradigma que estão na Iluminação a alma tem Trindade, o amor é
mente de Deus critérios de conhecimento essencial. A virtude,
é ex nihilo sui et subiecti, isto é, imutáveis e necessários que lhe com efeito, reduz-se à
Deus não age sobre uma vêm de Deus a mente de Deus ordo amoris: amar a si
substância preexistente (sua ou tem em si os modelos imutáveis mesmos, os outros e as
externa a si), mas cria do nada e eternos (= Idéias) de todas as coisas conforme sua
Deus não cria a totalidade das coisas Deus, no momento da dignidade ontológica o
coisas como já atuadas, mas criação, participa às coisas a amor perfeito é o
insere no criado as razões se- doador, que tem em
capacidade de manifestar-se
minais das coisas, que pouco a Cristo (o Deus feito
pela verdade, e às mentes a
pouco se desenvolvem homem) o vértice su-
capacidade de colhê-las
premo
102
____ Terceira parte - A Patrística na área cultu ral de língua latir

palavras, João acrescenta: 6 o Verbo era


AGOSTINHO Deus.
C este Verbo é justamente aquele de que
ontem falamos longamente, e que o Senhor nos
tenha concedido, depois de tanto falar como fizemos,
ter conseguido fazer chegar algo até vossos
A terceira navegação corações.
No princípio ero o Verbo.
C sempre o mesmo, é do mesmo modo, é
desde sempre assim como é, nõo pode mudar, é
fí segundo navegação de Platão constitui este: "C.
uma das maiores conquistas do pensamento Cntão, quem poderá compreender, do
ocidental, isto é, o ganho da dimensão supra- momento que se vê que todas os coisas mortais sõo
sensível. Platão compara esto busco do verdade a mutáveis, e do momento que se vê que não apenas
umo jangada sobre a qual devemos enfrentar o os corpos variam pela qualidade, com o nascer, o
risco do travessia do mar da vido. fí razão humano crescer, o declinar e o morrer, mas também as
é openas uma jangada. próprias almas se separam e se dividem, sob a
Conforme Platão, estaríomos mois seguros influência de desejos diferentes, e do momento que
se tivéssemos umo revelação divina, um logos se vê que os homens podem receber a sabedoria se
divino no qual confiarmos; tol revelação seria umo se aproximam da luz, do calor dela, mas podem
nove mais sólida. também perder a própria sabedoria, e afastar-se dela
fígostinho liga-se diretamente o estos por causa de uma influência má?
intuições platônicas, retomando a mesma Portanto, do momento que se vê que todas
linguagem de marinheiro. Neste sentido se falo de estas coisas são mutáveis, o que é aquilo que é, a
"terceiro navegação", a navegação que nos leva a nõo ser aquilo que transcende todas as coisas que
ganhar os horizontes últimos que são dados existem e não são deste modo? Quem, portanto,
openas pela fé cristã, fí tese de fígostinho é o compreenderá isso? Ou quem, de algum modo,
seguinte: alguns filósofos compreenderam que tendo posto em ato as forças de sua mente paro
existe o além, mas a razão humana sozinha não poder compreender como puder aquilo que é, está
podia dar aos homens o meio para chegar oo em grau de chegar àquilo que de algum modo com
além. Entre nós e o olém existe o mor deste sécu- sua mente conseguiu captar?
lo, que devemos atravessar. C então veio Cristo C como se alguém conseguisse ver de longe a
justamente para trazer-nos o meio poro atravessar pátria, mas existe o mar que dela o separa. Cie vê
o mar do vida; e o único meio seguro que nos paro onde deve ir, mas falta-lhe o meio para ir.
permite atravessar este mar é o cruz. Assim acontece para nós, que queremos
alcançar nossa estabilidade, onde aquilo que é é,
porque este apenas é sempre assim como é. Há no
meio o mar deste século, através do qual devemos ir,
mesmo que vejamos para onde devemos ir,
enquanto muitos não vêem para onde devem ir.
Por isso, para que tivéssemos também o meio
paro ir, veio de lá aquele ao qual queríamos ir.
1. A cruz de Cristo é o C o que fez?
lenho que nos faz Preparou o lenho com o qual pudéssemos
atravessar o mar da vida atravessar o mar.
Com efeito, ninguém pode atravessar o mor
O texto prossegue: Houve um homem deste mundo, se não for levado pelo cruz de Cristo.
mandado por Deus, cujo nome era João. A esta cruz poderá se agarrar, por vezes,
Rs coisas que foram ditas antes, irmãos também quem tem os olhos doentes. C quem nõo
caríssimos, foram ditas sobre a inefável divindade consegue ver de longe para onde deve ir, nõo se
de Cristo, e foram ditas de modo quase inefável. separe da cruz, e o cruz o levorá.
Com efeito, quem compreenderá isto: No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de
Deus?
C para que não te parecesse aviltado o termo
Verbo, por causa do uso quotidiano das
103
Capítulo sexto - Santo y\gostinko e o apogeu da Patrística , — ------------------ ---

2. O cristão deve aderir [...]"; e não diz: "Pois não conheceram Deus",
àquilo que Cristo se tornou por nós, mas: "Pois, tendo conhecido a Deus, não o glo-
para poder alcançar aquilo que ele rificaram, nem lhe deram graças como Deus, mas se
sempre é dispersaram em seus raciocínios, e seu coração
insipiente se obscureceu".
Por isso, irmãos, gostaria d® fazer entrar esto De que modo se obscureceu?
verdade em vossos corações: se quiserdes viver de Cie o diz claramente logo depois: “Procla-
modo piedoso e cristão, aderi a Cristo conforme mando-se sábios, se tornaram estultos".
aquilo que ele se tornou por nós, para que Viram onde deveriam ir, mas, ingratos para
pudéssemos alcançá-lo conforme aquilo que é. C ele com aquele que lhes dera aquilo que tinham visto,
veio a nós conforme aquilo que sempre era, para quiseram atribuir a si mesmos aquilo que viram, e,
tornar-se por nós aquilo que não era: uma vez que se tornando-se soberbos, perderam aquilo que viam, e
tornou isso por nós, para oferecer o meio sobre o daí se voltaram para os ídolos, para os simulacros e
qual os enfermos fossem transportados, os cultos dos demônios, até adorar a criatura e
atravessassem o mar do mundo e chegassem à desprezar o Criador.
pátria, onde não haverá mais necessidade de uma Todavia, fizeram estas coisas quando já
nave, porque não haverá mais um mar a atravessar. estavam corrompidos; e chegaram a corromper- se
Portanto, é melhor não ver com a inteligência porque se ensoberbeceram; e justamente por
aquilo que ele é, e todavia não separar-se da cruz de ensoberbecer-se se afirmaram sábios.
Cristo, do que vê-lo com a inteligência, e desprezar o Portanto, aqueles dos quais o Apóstolo disse
cruz de Cristo. que eram "aqueles que conheceram Deus", viram
C algo oinda melhor e bom em sumo grau, se aquilo que diz João, ou seja, que todas as coisas
possível, que se veja onde se deve ir e nos foram feitas por meio do Verbo de Deus. Com efeito,
mantenhamos ligados àquele que leva, para alcançar nos livros dos filósofos encontram-se ditas estas
o termo. coisas, e também que Deus tem um filho unigênito,
Isto puderam fazer as grandes mentes dos por meio do qual todas as coisas existem.
montes, aqueles que chamamos justamente de Cies puderam ver aquilo que existe, mas viram
montanhas, que a luz da justiça ilumina em sumo isso de longe, e não quiseram manter firme a
grau. Puderam fazer isso, e viram aquilo que é. humildade de Cristo, ou seja, aquela nave sobre a
Com efeito, João, vendo-o, dizia: No princípio qual teriam podido alcançar com segurança aquilo
era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o que puderam ver de longe.
Verbo era Deus. Cies viram isso e, para alcançar C a cruz de Cristo foi por eles desprezada.
aquilo que viam de longe, não se afastaram da cruz Tu deves atravessar o mar e desprezas a
de Cristo, e não desprezaram a humildade de Cristo. cruz!
Todavia, também os pequenos, que não estão Ó sabedoria cheia de soberbo!
em grau de compreender isso, mas não se afastaram Caçoas de Cristo crucificado; mas é justa-
da cruz, da paixão e da ressurreição de Cristo, sobre mente ele que viste de longe: No princípio era o
a mesma nave são conduzidos àquilo que não vêem, Verbo, e o Verbo estava junto de Deus.
ou sejo, na mesmo nave sobre o qual realizam a Mas por que foi crucificado?
travessia também aqueles que vêem. Porque para ti era necessário o lenho da sua
humildade.
3. fl soberba dos filósofos e a Com efeito, tu estavas inchado de soberba, e
humildade do lenho da cruz foras lançado para longe daquela pátria; pelas ondas
Na verdade, existiram filósofos deste mundo deste mundo o caminho fora interrompido; e não
que procuraram o Criador por meio do criatura, uma existe um meio com o qual podes realizar a travessia
vez que o Criador pode ser encontrado mediante a para chegar à pátria, se não te deixares levar pelo
criatura, conforme o Apóstolo afirma de modo claro: lenho da cruz.
"Com efeito, as perfei- ções invisíveis de Deus Ingrato que és, caçoas daquele que veio a ti,
podem ser compreendidas pela inteligência, a partir justamente para fazer-te retornar a ele!
da criação do mundo, por meio das coisas que por Cie mesmo se tornou caminho, um caminho
ele foram feitas, assim como a sua potência eterna e através do mar: por isso ele caminhou sobre o mor,
a sua divindade, de modo que não são escusá- veis". para mostror-te que existe um caminho pelo mor.
C continua: "Pois, tendo conhecido a Deus Tu, porém, que não podes caminhar sobre o
mar como ele o fez, deixa-te levar por esta nave,
deixa-te levar pelo lenho da cruz: crê no crucificado,
e poderás chegar.
Terceira parte - y\ Patrística na área cultural de língua latina

Por ti ele se fez crucificar, ou seja, para autoridade da própria verdade já conhecida e
ensinar-te a humildade, e porque, se tivesse vindo evidente. Porém, uma vez que descemos nas
como Deus, não teria vindo para todos aqueles que coisas temporais e por causa delas somos des-
não estavam em grau de ver Deus. viados das coisas eternas, primeiro vem, não por
Com efeito, não é segundo aquilo pelo qual natureza e excelência, mas na ordem do tempo,
ele é Deus, que ele veio ou partiu, porque Deus certo remédio temporal, que chama à salvação não
está presente em tudo e não se acha contido em aqueles que sabem, mas aqueles que crêem.
nenhum lugar. Rgostinho, fí verdadeira religião, 24,
Todavia, de que modo veio? 45.
Veio na veste de homem.
Rgostinho, Rmor absoluto e
“Terceira navegação", sob a
direção de G. Reale.

2. fl fé procura e a inteligência encontra


Fl fé procura, a inteligência encontra; por isso
o Profeta diz: "Se não crerdes, não com-
preendereis". € por outro lado a inteligência procura
ainda aquele que encontrou; porque "Deus observa
2 O círculo hermenêutico os filhos do homem", como se canta no Salmo
entre razão e fé inspirado, "para ver se há quem tem inteligência,
quem procura Deus". Portanto, por isso o homem
deve ser inteligente, para procurar Deus.
Poro Figostinho o fé não tem um caráter a- Rgostinho, Fl Trindad0, XV, 2, 2.
rocional ou metorrocional, e sim um preciso volor
cognoscitivo, no sentido de que represento umo
experiência vivida da verdade. Fntre fé e razão há
umo circularidade, isto é, a fé fornece algumas pré-
compreen- sões que depois podem ser examinadas 3. Se não se crê, não se entende
e criticadas pela razão.
Fsta posição, portanto, afasta-se tanto do Demos graças a Deus se tivermos entendido.
fideísmo quanto do racionalismo. O fideísmo C se alguém entendeu pouco, não peça mais ao
extremado se exprime pela proposição de homem, mas dirija-se àquele do qual pode esperar
Tertuliano credo quia absurdum,- o racionalismo mais. Podemos, como trabalhadores fora de vós,
extremado nego qualquer volor ò fé. plantar e irrigar, mas é Deus que faz crescer. "Minha
Fl posição de Rgostinho é, ao invés, bem doutrina — diz — não é minha, mas daquele que me
expressa pela proposição credo ut intel ligam, mondou". Aquele que diz não ter entendido, ouça um
intelligo ut credam. conselho. No momento de revelar uma verdade tão
importante e profunda, Cristo Senhor se deu conta
de que nem todos a entenderiam, e por isso nas
palavras que seguem dá um conselho. Queres
entender? Crê. Deus, com efeito, por meio do
profeta, disse: "Se não crerdes, não
compreendereis". C isso que o Senhor entende,
1. O crer como remédio temporal quando, continuando, diz: "Se alguém quiser fazer a
para a salvação vontade dele, conhecerá se esta doutrina é de Deus,
Por esta razão, também o remédio da alma, ou se falo por mim mesmo’'. O que significa "se
que é fornecido pela providência divina e pela alguém quiser fazer a vontade dele"? Cu dissera: se
inefável bondade, é belíssimo por graduação e alguém crer; e tinha dado este conselho: se não
ordem. Cie se divide em autoridade e razão. compreen- deste, crê! fl inteligência é fruto da fé.
fl autoridade exige a fé e prepara o homem à Não procures, portanto, entender para crer, mas crê
razão. para entender; porque, se não crerdes, não en-
fl razão leva à inteligência e ao conhecimento. tendereis.
Mesmo que a razão não abandone totalmente Rgostinho,
a autoridade, quando se considera a quem se deve Comentário ao 6vang0Ího de João,
crer, é sem dúvida suprema a 29, 6.
105
Cãpítulo seXtO - Santo .Agostinko e o apogeu da Patrística ---------------------------

4. fl fé torna capazes de entender xamento; tudo é grandeza, elevação, plena


Direi entõo: quem pode, entendo; quem não segurança, eterna estabilidade, sem temor de
pode, creio. Direi com o Senhor: "Vós julgais ataques inimigos ou de limites. C grande aquilo que
segundo o corne; eu não julgo ninguém"; isto é, não começa o partir da fé, embora seja desprezado;
julgo ninguém agora, ou não julgo ninguém segundo assim como em uma construção os inexperientes
a carne. C "mesmo que julgue, meu julgamento é costumam dar pouca importância aos alicerces.
verdadeiro". Porque teu julgamento é verdadeiro? Cavo-se um grande buraco, aí se lançam pedras a
"Porque não estou só esmo, não talhadas nem polidas, e portanto nada de
— responde — mas comigo está o Poi que me belo aparece, como nada de belo aparece na raiz de
mandou". uma árvore. Todavia, tudo aquilo que no árvore te
Cntão, Senhor Jesus, se estivesses sozinho, agrada veio para cimo a partir da raiz. Olhas a raiz e
teu julgamento seria falso; por isso julgas segundo a ela não te agrada, contemplas a árvore e ficas
verdade porque não estás só, mas contigo está o Pai admirado. Cstulto, aquilo que admiras proveio
que te mandou? O que posso eu responder? daquilo que não te ograda. Parece-te coisa sem
Responda ele mesmo; "Meu julgamento é importância a fé dos crentes, porque não tens uma
verdadeiro". Por que é verdadeiro? "Porque não balança para pesá-la. Todavia, escuta para onde ela
estou só, mas comigo está o Poi que me mondou". conduz e sabe- rás medir seu valor. O próprio
Todovia, se o Pai está contigo, como te mandou? Ge Senhor, em outra circunstância, diz: "Se tiverdes fé
te mandou e está contigo, de modo que, mesmo como uma semente de mostarda". O que existe de
mandado, não te afastaste dele e, vindo para o nosso mais humilde e, ao mesmo tempo, de mais podero-
meio, permaneceste o mesmo junto a ele? Como se so? O que existe de mais negligenciável e, ao
pode crer nisso? Como se pode entender? fl estas mesmo tempo, de mais fecundo? Portanto, também
duas perguntas respondo assim; corretamente vós — diz o Senhor — "se permanecerdes na minha
perguntas como se pode entender, mas não palavra", na qual crestes, para onde sereis
corretamente perguntas como se pode crer. Com conduzidos? "Sereis de foto meus discípulos". C qual
efeito, o fato de não entender logo, faz que exercites vantagem teremos? "C conhe- cereis a verdade".
aquilo que propriamente se chama fé; de fato, se te O que ele promete aos crentes, irmãos? "C
fosse dado entender imediatamente, não terias conhecereis a verdade". Mas como? Não a tinham já
necessidade de crer, porque verias com teus olhos. conhecido quando o Senhor falava? Se não a tinham
Justamente porque não entendes, crês; mas, crendo, conhecido, como puderam crer? Cies não creram
tornas-te capaz de entender; com efeito, se não crês, porque tinham conhecido, mas creram para
jamais conseguirás entender, porque te tornarás conhecer. Creiomos também nós para conhecer, não
sempre menos capaz. Deixa que a fé te purifique, a esperemos conhecer para crer. Aquilo que
fim de que te seja concedido alcançar a plena conheceremos não pode ser visto pelos olhos, nem
inteligência. ouvido pelos ouvidos, nem pode ser compreendido
Agostinho, pelo coração do homem. Com efeito, o que é a fé,
Comentário oo Evangelho de João, senão crer naquilo que não vês? fl fé é crer noquilo
36, 7. que não vês; a verdade é ver aquilo que creste.
Agostinho,
Comentário ao Cvangelho de João, 40,
5. fl fé é crer naquilo que não vês e a verdade é 8-9.
ver aquilo que creste
Jesus começou então o dizer aos judeus que
nele tinham crido; "Se permanecerdes na minha
palavra [...]". Cie diz "se permanecerdes", enquanto
já fostes iniciados e já começastes a estar na minha
palavra. "Se permanecerdes", isto é, se
permanecerdes constantes na fé que começou a
estar em vós que credes, onde chegareis? Considera 6. fl fé faz ver de modo mais luminoso
qual é o início e para onde conduz, flmaste o fun-
fl fé ajuda o conhecimento e o amor de Deus,
damento, agora contempla o vértice, e desta baixeza
não no sentido de que no-lo faça conhecer e amar
levanta o olhar para a oituro. fl fé supõe certo
porque antes de fato não o conhecíamos ou não o
abaixamento; na visão, na imortalidade, na
amávamos, mas nos ajuda a conhecê-lo de modo
eternidade não há nenhum abai
mais luminoso e a amá-lo com amor mais firme.
Agostinho, Fl Trindade, VIII, 9, 13.
Terceira parte - yA Pa+rís+ica na área cultural de língua latina

zem prozer. Reconhece, portanto, qual é a perfeita


3 R natureza da Verdade harmonia.
Não vás para fora de ti: retorna a ti mesmo. A
verdade habita no homem interior. C se descobrires
Paro fígostinho o Verdade suprema coincide com que tuo natureza é mutável, transcende também a ti
Deus: para alcançar Deus e encontrar, portanto, a mesmo. Mas, lembra-te, quando transcendes a ti
Verdade, não devemos nos dirigir poro o exterior, mesmo, transcendes a alma racional. Tende,
mas devemos entrar de novo em nós mesmos, e portanto, para onde se acende a própria luz do
procurar em nossa inferioridade: aí habita o razão.
Verdade, em nossa olma, que é um reflexo e uma Aonde chega, com efeito, todo aquele que
imagem de Deus, o próprio luz do razão. bem raciocina, senão à verdade? Isso porque o
verdade não olcança a si mesma com o raciocínio,
mas é aquilo a que tendem aqueles que raciocinam.
Vê aí uma harmonia que não tem igual, e liga-te a
ela. Reconhece que não és aquilo que ela é;
1. Duas passagens tiradas dos Solilóquios justamente porque não procura a si mesma: ao
fígostinho: Gs, orei o Deus. contrário, chegaste a ela procurando-a, não de um
Rozõo: C então, o que queres sober? lugar para outro, mas com o apaixonado movimento
fígostinho: Todos os coisas que pedi no oração. da mente, a fim de que o homem interior se ligue
Rozõo: Faze um breve resumo. fígostinho: àquilo que nele habita com um prazer não ínfimo e
Deus e a alma: eu desejaria conhecer isso. carnal, mas sumo e espiritual.
Rozõo: Nada mais? fígostinho: Absolutamente Agostinho, fí verdadeiro religião, 39, 72.
nado.
Rozõo: (Então, começa o procurar. fígostinho:
Cremos no auxílio de Deus. Rozõo: Cremos nisso de
Fato, admitindo que isso esteja em nosso poder.
fígostinho: Nosso poder é ele mesmo. Rozõo:
Pede, portanto, do modo mais conciso e perfeito que
□ R iluminação
puderes.
fígostinho: Deus, sempre idêntico, possa eu
conhecer a mim mesmo, possa eu conhecer a ti! Pedi fí doutrino do iluminação é verdadeiramente
eu. umo espécie de "lugar clássico" da filosofia de
Rgostinho, Solilóquios, I, 2, 7.
fígostinho, sobre o qual muito se discutiu em todos
os tempos.
Trota-se de uma teorio muito belo e, no
realidade, fácil de entender, caso a despojemos
das complicações trazidos pelas revisões a que
*** muitos intérpretes a submeteram. fí inspiração da
O que, portanto, impede que a alma recorde a doutrina é decisivamente platônica, mesmo que
originária beleza perdida, quando ela pode fazê-lo a fígostinho rejeite o concepção platônico do
partir de seus próprios vícios? Assim, com efeito, a reminiscência. fí passagem à que fígostinho se
sabedoria de Deus se estende com força de um refere, oo contrário, de modo positivo é a
confim ao outro. Assim, por meio dele, o sumo artífice possogem da República sobre o Bem.
ligou ordenadamente suas obras para a direção do O Bem, diz Platão, é comparável ao sol e à
único fim da beleza. Assim a suo bondade, a partir sua luz. físsim como o sol torna as cores dos
das criaturas mais altas até as mais baixos, não coisas e as coisos em geral visíveis 0 os olhos
negou alguma beleza, que apenas dele podio provir, capazes de ver, analogamente o Bem torna os
de modo que ninguém pode se afastar da verdade e realidades ideois inteligíveis 0 o alma racional
não ser tomado por algum sinal dela. inteligente, ou sejo, capaz de conhecer os
Agostinho, Solilóquios, II, 1, 1.
inteligíveis. O Bem, portanto, poro Plotão é causa
da verdade e da capacidade do olma de conhecer
2. Uma passagem emblemática de
a verdade.
fí verdadeira religião
Da mesma formo, para fígostinho, assim
Procura o que fascino no prozer do corpo: como Deus enquanto Ser supremo participa o ser
encontrarás apenas a harmonia. Uma vez que os às coisos que cria, analogamente, enquanto
contrastes produzem dor, os acordes produ Verdade suprema, é causo do Ver ---------
, 107
Cupltulo SCXtO - Santo ;Agostinko e o apogeu da Patrística —* --------------------

lo qual são boas e belas todas as coisas que são


dode objetivo, que é por sua vez causa da boas e belas. Deus luz inteligível, no qual, do qual e
capacidade do mente humano de conhecer a pelo qual resplandece inteligivelmente tudo aquilo
verdade, produzindo nos mentes como que certo que inteligivelmente resplandece.
morca metafísica, não tanto no Formo de Idéias Rgostinho, Solilóquios, 1 , 1 , 3 .
inatos, mas como abertura metafísica da alma para
a verdade. Neste sentido, justamente, Deus nos 2. Contra a doutrina da reminiscêncio
ilumino. De modo significativo e eficaz Rgostinho Se o esquecimento cancelou tudo, sob a guia
assim sintetiza os características divinas oté oqui do ensinamento pode-se novamente alcançar aquilo
descritas: como o sol existe, resplandece e ilumina, que desaparecera completamente e assim será
também Deus existe, é inteligível e comunico reencontrado como era. Por isso, Platão, o célebre
inteligibilidade. filósofo, esforçou-se por persuadir-nos de que as
Citamos os passagens clássicos tirados dos almas viveram aqui antes ainda de unir-se a estes
Solilóquios edef) Trindade, foto última inclui também corpos e por isso se explica que aquilo que se
a crítico à doutrino platônico da reminiscêncio. aprende é reminis- cência daquilo que já se
(Notemos que o doutrino platônica da conhecia, mais do que conhecimento de alguma
reminiscêncio não está indissoluvelmente ligada ao coisa nova. Com efeito, ele conta que um escravo,
que Platão sustento na República. Tudo o que diz interrogado sobre questões de geometria, respondeu
no República ligo-se, oo invés, com tudo o que como um mestre versado naquela disciplina. Interro-
ofirmo no mito do carro alodo e do Hiperurônio, gado gradualmente e com jeito via aquilo que devia
onde os olmos "vêem" os Idéios na "planície do ver ç dizia aquilo que tinha visto. Mas, caso aqui se
verdade"; e, portanto, no luz da verdode). tratasse de uma lembrança de coisas anteriormente
conhecidas, não seria possível a todos ou o quase
todos responder a perguntas de tal gênero. Com
efeito, nem todos foram geômetras em sua vida
anterior, e os geômetras são tão raros entre os
homens que a custo se pode encontrar algum deles.
Rgostinho, fí Trindade, XII, 14,23-15,24.
1 . fl iluminação como fundamento
do conhecimento 3. fl luz incorpórea da iluminação
Deus é inteligível, e inteligíveis são também 6 preciso antes pressupor que a natureza da
os princípios das ciências; todavia, há notável alma intelectiva foi feita de modo que, unida,
diferenço entre as duas coisas. Com efeito, tanto a conforme a ordem natural disposta pelo Criador, às
terra como a luz são visíveis: mas a terra não pode coisas inteligíveis, as percebe em uma luz incorpórea
ser vista se a luz não brilhar. Deve-se, portanto, crer especial, do mesmo modo que o olho carnal percebe
que também os conhecimentos que são aquilo que o circunda, na luz corpórea, pois ele foi
transmitidos nas ciências, e que todo aquele que é criado capaz desta luz e para ela ordenado.
Rgostinho, R Trindade, XII, 14,23-15,24.
capaz de entender admite sem nenhuma dúvida
serem veríssimos, não podem ser compreendidos
se não forem iluminados por outra coisa, como por
um sol deles.
Portanto, como no sol natural podemos
observar três coisas: que existe, que resplandece e
que ilumina, assim, naquele Deus escondido que
queres conhecer existem três outras coisas: que
existe, que é inteligível e que torna inteligíveis todas
os outras coisas.
E eu quero ensinar-te a compreender estas
duas coisas, ou seja, a ti mesmo e a Deus.
Rgostinho, Solilóquios, I, 8, 15. fl natureza do Bem
Deus vida verdadeira e suprema, no qual, do
qual e pelo qual vivem todas as coisas que Conforme Rgostinho, os conotações
verdadeiramente e supremamente vivem. fundamentais do Bem são três: "medida",
Deus felicidade, no qual, do qual e pelo qual "formo" e "ordem". Medido, no sentido de
são felizes todos aqueles que são felizes. Deus
determinação preciso do ente enquanto finito;
bondade e beleza, no qual, do qual e pe
forma, enquanto fundamento numérico último de
distinção; ordem (ou peso) en- ------------------------- ►
Terceira parte - y\ 1\\ f rí s t u‘ r\ r\a área cultural de lírvgua latirva

Deus é espírito imutável.


quanto consistência ontológica 0 posição O espírito mutável é uma natureza criada, mas
axiológico. melhor que o corpo.
Estes conceitos são deduzidos tanto da Com efeito, o corpo não é espírito, com ex-
tradição neopiatônica, que remonta até as ceção do vento, que em certo sentido diferente é
doutrinas não escritas do próprio Platão, como dos chamado de "espírito", porque é invisível para nós, e
textos bíblicos, e em particular do livro da todavia sua força não é sentida como pequena.
Sabedoria. Neste sentido, Deus é a Medida
supremo de todas as coisas, enquanto o mol é 2. Uma natureza antitética a Deus foi
desmedida 0 desordem, isto é, privação de medida erroneamente introduzida pelos
e de ordem. Maniqueus.
Indicação do modo
pelo qual este erro é superado
No que se refere àqueles que, não con-
seguindo compreender que toda natureza, isto é,
1. Deus é Bem supremo acima do
todo espírito e todo corpo, é naturalmente bom, se
qual não há nada e do qual derivam
sentem perturbados pela iniqüidade do espírito e
todos os bens, grandes e pequenos.
pela mortalidade do corpo, e por este motivo
O Bem supremo,
procuram introduzir outra natureza do espírito
acima do qual não há nada, é Deus; e por isso é
maligno e do corpo mortal que Deus não criou: pois
um bem imutável e, portanto, verdadeiramente
bem, nós pensamos que isso que dizemos possa
eterno e verdadeiramente imortal
alcançar sua compreensão.
Todas as outros coisas são apenas obra dele, Cies admitem, com efeito, que todo bem não
mas não existem a partir dele. Com efeito, aquilo que pode existir a não ser por obra do Deus supremo e
existe a partir dele coincide com aquilo que ele verdadeiro.
próprio é; ao contrário, as coisas que foram feitas por C isto é verdadeiro, e é suficiente para corrigi-
obra dele, não são aquilo que ele próprio é. ios, uma vez que queiramos prestar atenção.
Portanto, se apenas ele é imutável, todas as
coisas que fez, enquanto as fez do noda, são
3. De Deus derivam todos os bens criados
mutáveis.
em função da medida,
Com efeito, ele é tão onipotente que está em
da forma e da ordem
grau de produzir também do nado, ou seja, daquilo
Nós, cristãos católicos, veneramos um Deus
que de foto não existe, coisas boas, tanto grandes
por obra do qual existem todos os bens, tanto
como pequenas, celestes e terrestres, espirituais e
grandes como pequenos; por obra do qual existe
corpóreas.
todo medida, tanto grande como pequena; por obra
Uma vez que, verdadeiramente, ele é também
do qual existe toda forma, tanto grande como
justo, não tornou os coisas que fez do nada iguais
pequena; por obra do qual existe todo ordem, tanto
àquilo que gerou a partir de si.
grande como pequena.
Portanto, a partir do momento que todas as
Com efeito, todas as coisas, quanto mais são
coisas boas, tanto grandes como pequenas, em
dotadas de medida, de forma e de ordem, tanto mais
qualquer nível da realidade se encontrem, não
são boas sob todo aspecto; ao contrário, quanto
podem existir a nõo ser por obra de Deus, segue-se
menos são dotadas de medida, de formo e de ordem,
que toda natureza enquanto natureza é um bem, e
tanto menos são boas.
que toda natureza não pode existir a não ser a partir
Portanto, estos três coisas: medida, forma e
do Deus supremo e verdadeiro: com efeito, todos os
ordem, para não falar das inumeráveis outras que
bens também não supremos mas vizinhos ao bem
aparecem ligadas a estas três; estas três coisos,
supremo, e até todos os bens, também os menores
portanto, toda medida, forma e ordem, são como
que existem bem longe do Bem supremo, não podem
bens gerais nas coisas que foram feitas por Deus,
existir a não ser por obro do mesmo Bem supremo.
tanto no espírito como no corpo.
Por isso, todo espírito, também mutável, e
Por este motivo Deus está acima de toda
todo corpo existem por obra de Deus: e tal é toda
forma, acima de toda ordem. C está acima não pela
natureza criada.
distância espacial, mas por uma potência
Com efeito, toda natureza é ou espírito ou
corpo.
, 109
Capítulo seXtO - Santo yKgos+irvko e o apogeu da Pafrís+ica .......................... ....

inefável e singular, do quol derivo todo medido, todo Cu, porém, chamo de hyle certa matéria
formo e todo ordem. completamente informe e sem qualidades, da qual se
Onde estas três coisos são grandes, os bens formam estas qualidades que percebemos.
sõo grandes; onde sõo pequenos, os bens sõo C é por isso que em grego hyle significa lenho,
pequenos; onde de foto nõo existem, não existe porque para aqueles que trabalham ela se apresenta
nenhum bem. não tanto como capaz de elo própria fazer algo, mas
C além disso, onde estas três coisas são como aquilo com que se pode fazer alguma coisa.
grandes, os naturezas são grandes; onde são Portanto, não se deve chamar de mal esto
pequenas, os naturezas são pequenos; onde de fato matéria que não se pode perceber mediante alguma
não existem, não existe nenhuma natureza. formo, mas que dificilmente se pode pensar com todo
tipo de privação de formo.
4. O mal como corrupção da medida, da forma e Com efeito, elo tem capacidade de receber
da ordem formas: de fato, se não pudesse receber o forma
imposta pelo artífice, não poderia absolutamente se
Por isso, quando se pergunta de onde deriva o
chamar de matéria.
mal, primeiro se deve procurar o que é o mal.
Por outro lado, se a forma é determinado bem,
O mal nõo é mais que corrupção ou da medida,
pelo qual oqueles que prevalecem pela forma sõo
ou do forma, ou da ordem natural.
ditos de forma adequado, e pelo beleza são
Por isso se diz natureza má aquela que é
chamados belos, está fora de dúvida de que também
corrompida: com efeito, uma natureza incorrupta é
boa sob todo aspecto. o capacidade de receber formo é igualmente um
Todovia, também o mesma natureza corrupta, bem.
enquanto natureza, é boa; enquanto é corrupta, ao Assim, por exemplo, o partir do momento que
contrário, é má. [...] o sabedoria é um bem, ninguém duvida de que o
capacidade de receber sabedoria seja um bem.
C, umo vez que todo bem existe por obra de
5. Não existe uma natureza má enquanto tal Deus, ninguém deve duvidor de que também esta
Nenhuma natureza, portanto, enquanto é
matéria, se é algo, não pode existira não ser por
natureza, é má; mas para cada natureza não existe
Deus.
mol o não ser o de ser diminuído no bem.
Todavia, se, com a diminuição, o bem se
perdesse até anulor-se, não permaneceria, desse 7. Deus é o ser verdadeiro e imutável do qual
modo, nenhumo natureza; não apenas não apenas o nada é contrário
permaneceria aquele tipo de natureza que os De modo esplêndido e divino nosso Deus
Maniqueus supõem, em que se encontram tontos disse a seu servo: "Cu sou oquele que sou; e aos
bens que demonstram sua cegueira verdadeiramente filhos de Israel dirás; 'flquele que z mandou-me a
extraordinário, mas nem mesmo qualquer tipo de vós".
natureza que alguém pudesse imaginar. Com efeito. Deus existe verdadeiramente,
porque é imutável. De foto, toda mutação faz não
6. Também a matéria é um bem e também ela existir aquilo que existia. Por isso é verdadeiramente
deriva de Deus ser aquele que é imutável.
fls outras coisas que por ele foram feitas,
Não se deve dizer que a matéria que os
receberam o ser dele conforme sua medida.
antigos chamaram hyle seja um mal.
Por isso, a ele que existe em sumo grau nado
Não falo daquela que Mani, com tola vaidade,
pode ser contrário o não ser aquilo que não existe.
chama hyle, formadora dos corpos, não sobendo o
que diz, motivo pelo qual com razão se lhe objeta
introduzir outro Deus, pelo fato de que ninguém pode 8. Deus como Medida suprema e Sumo Bem
formar os corpos a não ser Deus. Não se deve dizer que Deus tem certa medido,
Com efeito, os corpos não são criodos, se com de modo que não se creio que dele se diga gue tem
eles não subsistem medida, formo e ordem, que são um fim.
bens, e que não podem existir a nõo ser por obra de Nem, todovia, é sem medida oquele por obro
Deus, que, creio, os próprios Maniqueus odmitem. do qual foi conferida uma medida para todas as
coisas.
Terceira parte - y-\ Patrística na área cultural de língua latina

Nem, por outro lodo, é oportuno dizer que Deus ou é menos ordenada do que deveria ser, ou não
é medido, como se ele tivesse recebido de olguém é ordenada do modo como deveria ser.
umo medido. Concluindo, onde existe certa medida, certa
Todavia, se dizemos que Deus é a Medida forma e certa ordem, existe também certo bem e
suprema, talvez dizemos algo, se, porém, com aquilo certa natureza. Ao contrário, onde não existe
que chamamos Medida suprema, nós entendemos o nenhuma medida, nenhuma forma e nenhuma
Sem supremo. ordem, não existe nenhum bem e nenhuma
Com efeito, toda medida, enquanto medida, é natureza.
Rgostinho, Natureza do Bem.
um bem.
Por isso todas as coisas que foram medidas,
que têm justa e conveniente medida não podem ser
denominadas sem valor; mesmo que, em outro
significado, entendamos “medida" no sentido de “fim",
para dizer que não existe medida onde não existe um
fim.
6 fls "Idéias" como
Por vezes dizemos isso como elogio, como pensamentos de Deus
quando se diz: ”E o seu reino não terá fim". Neste
caso se poderia também dizer que não terá medida,
desde que se entenda medida no sentido de fim. Com Sobre a teoria das Idéias, umo das maiores
efeito, aquele que reina sem alguma medida, de conquistas do pensamento platônico, Rgostinho
algum modo não reina. expressou claramente sua posição em uma
Quaestio específica.
9. Medida, forma e ordem são sempre boas e Rs Idéias não são, para ele, seres sub-
podem ser consideradas mós apenas sistentes em si e por si, como umo esfera de
relativamente, ou seja, caso se manifestem realidades que subsistem por si.
inferiores ao que deveriam ser Rs Idéias são as formas paradigmáticos, os
modelos das coisos, os rozães ou estruturas
Portanto, dizemos que a medida é má, a forma
estáveis e imutáveis, segundo as quais são feitas
é má, a ordem é má enquanto são inferiores ao que
todas as coisas.
deveriam ser, ou quando não se adaptam às coisas
6 de tal formo Importante o conceito de
às quais devem estar adaptadas.
"Idéia", diz Rgostinho, que todos aqueles que
Tais coisas são, portanto, chamadas de más,
fizeram filosofia de algum modo o tiveram, mesmo
enquanto são estranhas e incongruentes, como se
que não o tenham expresso de modo preciso. Não
disséssemos que alguém não se comportou de modo
é com efeito possível ser filósofo sem este
bom, enquanto agiu de modo inferior de como deveria
conceito.
ter agido, ou enquanto agiu como em tal circunstância
Pois bem, para Rgostinho as Idéias são a
não deveria ter agido, ou fez mais do que deveria, ou
verdadeiro realidade, como queria Platão, mas não
de modo não conveniente. De modo que o que é
subsistentes em si e por si, e sim subsistentes
reprovado, ou seja, o ato feito de modo mau, com
como pensamentos eternos de Deus. Rs Idéias
justa razão não é reprovado por outro motivo a não
estão no mente de Deus, e portanto o Hiperurônio
ser pelo motivo que nele não foi mantida a medida.
platônico é o mente de Deus.
Do mesmo modo, dizemos que uma forma é
Nessa direção o Patrística grega já se
má ou por comparação com uma mais agraciada e
movera de modo cloro, mos também o pen-
mais belo, enquanto esta é uma forma inferior e a
samento greco-pogão, tanto os Platônicos dos
outra é superior, não por grandeza, mas por
primeiros dois séculos da era cristã como Plotino,
elegância; ou então porque ela não convém à coisa à
que pusera justamente no Nous, ou seja, no
qual foi aplicada, de modo que se manifesta estranha
èspírito ou Inteligência, o mundo das Idéias na suo
e inconveniente, como se um homem caminhasse nu
globalidade. Mas para os pensadores cristãos o
em público; coisa que não é de estranhar, caso
ponto de portida fora indubitavelmente Fílon de
aconteça no banho.
Rlexondrio, escritor judeu (que viveu na primeira
Do mesma forma, também a ordem denomina-
metade do séc. I d.C.), que foi o primeiro a
se mó, quando o própria ordem apareça como inferior
apresentar os Idéias platônicas como contidas no
à devido: por isso, neste caso não é a ordem que é
Logos divino, e produzidas por Deus. Todavia,
má, e sim a desordem, enquanto
uma vez que a passagem em que Fílon exprime
este seu pensamento é de importância his-
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, 111
Cãpítulo SeXtO - Santo ^AgostinKo e o apogeu da Patrística --------------------------

tamo-nos da tradução literal, porque rationes


tórico capital, para compreender a evolução do corresponde ao grego logoi, mas quem quiser usar
pensamento antigo e cristão sobre este tema, e este vocábulo (rationes) não trairá o sentido da
portanto também paro compreender a Quaestio expressão. As Idéias são de fato formas
agostiniana, referimos o ponto cardeal da mesma fundamentais, ou razões estáveis e imutáveis das
passagem: "[...] poder- se-io dizer gue o mundo coisas — que por sua vez são formadas e por isso
inteligível não é mais que o Logos divino já são eternas e sempre idênticas — as quais estão
empenhado no ato da criação. Com eFeito, a contidas na inteligência divina. C embora estas não
cidade concebido no pensamento não é mais que o nasçam nem morram, todavia, sobre seu modelo
raciocínio calculado do arquiteto quando está forma-se tudo aquilo que pode nascer e morrer e
projetando Fundar o cidade que tem em mente". tudo aquilo que nasce e morre.
"[...] o mundo inteligível só pode ser Identificado
com o Logos divino". 3. O homem conhece
Fl alma humana capta as Idéios, ou sejo, o as "Idéias” por meio da alma
inteligível, justamente com a inteligência, como que A alma não pode conhecer as Idéias se não for
"iluminada". Fl doutrina das Idéias leva assim à alma racional, com a parte de si que é superior, isto
doutrina da iluminação. é, com o espírito (mens) e com o razão, como que
com sua face ou olho interior e inteligível. C nem toda
e qualquer alma racional é idônea para esto visão,
mas aquela que é santa e pura, ou seja, aquela que
tem olho são, claro e sereno, com o qual pretende
1. O significado do termo "Idéia” ver as Idéias, de modo que seja semelhante às
Afirma-se que Platão foi o primeiro a nomear próprias Idéias.
as Idéias. Todavia, mesmo que este termo não
existisse antes que ele o cunhasse, nem por isso 4. fls "Idéias"
não existiam as realidades que ele chamou de estão na mente do Deus criador
Idéias, ou não existia o conhecimento destas Quem ousaria, seja religioso ou formado na
realidades; mas provavelmente foram chamadas por verdadeira religião, mesmo que ainda não possa
outros com nomes diversos. € lícito com efeito impor intuir as Idéias, negar sua existência? Ao contrário,
qualquer nome a uma realidade conhecida que afirmará que tudo aquilo que existe, isto é, todos as
ainda não tenho um nome usual. Não é verossímil, coisas que foram determinadas em seu gênero por
de fato, ou que não tenha havido nenhum filósofo uma natureza próprio para poder existir, foram
(sapiens) antes de Platão, ou que ninguém tenha criadas por Deus, e por obra sua vive tudo aquilo que
tido conhecimento dessas realidades, de qualquer tem vida, e toda a conservação do universo, e o
forma que sejam concebidas, que Platão chama de própria ordem com a qual as coisas mutáveis seguem
idéias, pois tol é seu valor que, sem delas ter seu curso temporal com determinada medida, tudo
conhecimento, ninguém pode ser chamado de isso está contido e é governado por leis do Altíssimo.
filósofo. C é crível que tenham existido filósofos Ora, estabelecido e concedido isso, quem
também em outros povos, além da Grécia; coisa não ousaria dizer que Deus criou todas as coisas
só atestada por Platão nas viagens realizadas para irracionalmente? C se isso não se pode dizer nem
enriquecer sua sabedoria, mas também afirmada em crer, daí se conclui que cada coisa foi criada
seus escritos. Se, portanto, existiram tais filósofos, conforme a razão. Mas seria obsurdo pensar que o
não se pode afirmar que tenham ignorado as Idéias, homem tivesse sido criado segundo a mesma razão
mesmo que as tenham chamado com outro nome. ou Idéio do cavalo.
Mas agora basta sobre o nome. Vejamos o Toda coisa, portanto, foi criada segundo uma
que são as Idéias, que importa considerar e razão ou Idéia própria. C tais razões ou Idéias onde
conhecer ocima de tudo, deixando ao arbítrio de se deve pensar que estejam a não ser na mente do
cada um chomá-las como quiser, quando as tiver Criador? Com efeito, Deus não podia certamente
conhecido. olhar para algo colocado fora de si pora criar sobre o
modelo disso aquilo que procurava: seria sacrílego
2. fis "Idéias" pensar assim.
como razões imutáveis das coisas Ora, se estas razões de todos as coisas
Podemos chamar as Idéias, em lotim, de criadas ou a serem criadas estão contidas na
formae ou species, se quisermos traduzir lite-
ralmente. Se as chamamos de rationes afas-
112
___ Terceira parte - A PaMstica na ár&a de I íngua ]aiina

mente divina, e na mente divina não pode existir


nada que não seja eterno e imutável, e estas razões dispensável, porque openos a inteligência que
fundamentais das coisos são os que Platão chama existe na alma tem capacidade de numerar.
de Idéias, não apenas existem as Idéias, mas as Portanto, conclui fírístóteles, "é impossível a
Idéias são a verdadeiro realidade, porque sõo existência do tempo sem a da alma
eternos 0 imutáveis e, por participação nelas, tudo Cm Plotino, depois, a função temporali-
aquilo que existe existe, seja qual for o seu modo de zadora da alma torno-se até metafisicamente
ser. determinante.
fígostinho dá à doutrina do tempo uma
5. A inteligência humana conhece as coloração fortemente psicológica, na dimensão da
"Idéias” porque iluminada pela luz interioridode que é uma cifra determinante do seu
inteligível pensamento.
Mas a olmo racional é a coisa mais alta de fílém disso, devemos dizer que as an-
todos as coisos criadas, e é o mais próxima de tecipações dos filósofos que mencionamos teriom
Deus, quando é pura, e enquanto adere o ele com a permanecido pouco incisivos e pouco influentes
caridade, é também inundado por ele de luz sem a revisão de fígostinho, que portanto se impõe
inteligível, e assim, iluminada, percebe estas como determinante.
razões, não com os olhos do corpo, mos com a fí célebre objeção que era feita por muitos:
parte principal de si, ou seja, com o inteligência, e "o que fazia Deus antes de criar o mundo?",
em virtude desta visão torna-se beatíssima. Tais fígostinho, com esto teoria do tempo como tendo
razões, conforme dissemos, podem ser chamadas sido criado com o mundo, dá umo resposta
de formas ou espécies ou razões e o muitos é perfeito: Deus é eterno, e o eterno não é
concedido nomeá-los como querem, mos a poucos mensurável com o tempo; portanto, antes de criar
concede-se ver o que verdadeiramente são. o mundo não existia um "antes" e um "depois",
Agostinho, porque existia justamente openas a eternidade e
De diversis quciestionibus. Quaestio de Ideis.
não o tempo.
O tempo, depois, é um distensão psi-
cológica, ou sejo, uma extensão do olma que
registra o possodo e espera o futuro, no presente,
e dá unidade á pluralidade do tempo em devir.

fl criação do tempo e
1. O que fazia Deus antes de criar o céu e
sua natureza a terra?
l\lão estariam talvez cheios de sua velhice os
fí teorio do tempo de fígostinho tornou- se que nos perguntam: "O que fazio Deus antes de
famosa. Com efeito, ela tem uma espessura teórica fazer o céu e a terra? Se, com efeito, continuam,
verdadeiramente notável e possui tríplice matriz. estava ocioso sem operar, por que também depois
De um lado, inspira-se no Timeu de Platão, não permaneceu sempre no estado primitivo,
ao menos em um ponto, fílém disso, tem um sempre abstendo-se de operar? Se de foto se
precedente conspícuo, em outro ponto, em desenvolveu em Deus um impulso e uma vontade
fírístóteles. Por fim, ligo-se ã problemático do tempo nova de estabelecer uma criaçõo que antes jamais
tratada por Plotino. estabelecera, serio ainda uma eternidade verdadeiro
Platão, no Timeu, dissera que a verdadeira oquelo em que nasce uma vontade antes
dimensão ontológica do mundo inteligível é o da inexistente? fl vontade de Deus não é uma criatura,
eternidade,- o tempo, portanto, é apenas a e sim anterior a todo criatura, porque nada serio
dimensão do cosmo e do ser físico. O tempo foi criado sem o vontade pré- existente de um criador.
criado pelo Demiurgo junto com o mundo 0, Portanto, o vontade de Deus é umo só coisa com a
portanto, antes da criação do mundo não existia sua substância. € se no substância de Deus surgiu
tempo. algo que ontes não existia, tal substância é chamada
fírístóteles, na Física, definira o tempo como erroneamente de eterno. Por outro lodo, se ero
"número do movimento conforme o antes e o vontode eterna de Deus que existisse a criatura,
depois": mos o numeração do antes e do depois como nõo serio eterna também o criatura?"
supõe o alma como condição in ------------ Os que assim falam nõo te compreendem
oindo, ó sabedoria de Deus, luz das mentes.
, 113
Capitulo SCXtO - Santo ;Ac)ostinko e o apogeu da Pa+Ws+ica ---

Não compreendem ainda como nasce aquilo que os séculos? Como teria existido um tempo não
nasce de ti e em ti. Quereriam conhecer o eterno, iniciado por ti? E como teria transcorrido, caso jamais
mas sua mente vago ainda de modo vão no fluxo do tivesse existido? Tu, portanto, és o iniciador de todo
passado e do futuro. tempo, e se houve um tempo antes que criasses o
Quem a deterá e a fixará, a fim de que, estável céu e a terra, não se pode dizer que te obstinhas de
por breve tempo, colha por breve tempo o esplendor operar. Também aquele tempo era obro tua, e não
da eternidade sempre estável, confronte-a com o puderam transcorrer tempos antes que tivesses
tempo jamais estável, e veja como não se pode criado um tempo. Portanto, se antes do céu e da
instituir um confronto, assim como a duração do terra não existia tempo, por que perguntar o que
tempo dura pela passagem de muitos movimentos, fazias então? Não existia um então onde não existia
que não podem desenvolver-se simultaneamente, um tempo.
enquanto no eternidade nada passa, mas é tudo
presente, de modo diferente do tempo, jamais todo 4. O hoje da Divindade é a eternidade
presente; como o passado seja sempre impulsionado
Mas não é no tempo que precedes os tempos.
pelo futuro, e o futuro siga sempre o passado, e pas-
De outro modo não os terias a todos precedido. E tu
sado e futuro nasçam e fluam sempre daquele que é
precedes todos os tempos passados pelo vértice de
o eterno presente? Quem deterá o mente do homem,
tua eternidade sempre presente, superas todos os
a fim de que se estabeleça e veja como o eternidade
futuros, porque ora são futuros, e depois chegados
estável, não futura nem presente, determine futuro e
serão passados. Tu, ao contrário, és sempre o
presente? Seria minha mão capaz de tanto ou a mão
mesmo, e teus anos jamais terminarão. Teus anos
da minha boca produziria com polavros um efeito tão
não vão nem vêm, a fim de que todos possam vir.
grande?
Teus anos estão todos ao mesmo tempo, porque são
estáveis; não se vão, eliminados pelos que vêm,
2. Deus antes de fazer o céu e a terra não porque não passam.
fazia nada Estes, ao invés, os nossos, existirão todos
Eis como respondo o quem pergunta: "O que quando todos não existirem mais.
fazia Deus antes de fazer o céu e a terra? 1'. Não Teus anos são apenas um dia, e teu dia não é
respondo como aquele fulano que, dizem, respondeu todo dia, mas hoje, porque o teu hoje não precede ao
eludindo com umo piada a insídia da pergunta: amanhã, como não sucedeu ao ontem. Teu hoje é a
"Preparava a geena para quem pers- cruta os eternidade. Por isso geras- te coeterno contigo
mistérios profundos". Uma coisa é entender, outro aquele do qual disseste: "Hoje te gerei". Tu criaste
caçoar. Eu não responderei assim. Prefiro responder: todos os tempos, e antes de todos os tempos tu
"Não sei o que não sei", em vez de ridicularizar quem existes, e sem nenhum tempo não havia tempo.
fez uma pergunta profunda, e elogiar quem deu uma
resposta falsa. Digo, ao contrário, que tu. Deus 5. O conceito de tempo
nosso, és o criador de toda coisa criada; e se com o
Não existiu, portanto, um tempo, durante o
nome de céu e terra se entende toda coisa criada,
qual terias feito nada, pois o próprio tempo foi feito
ousadamente digo: "Deus, ontes de fazer o céu e a por ti, e não há um tempo eterno contigo, pois és
terra, não fazia nada". Com efeito, se fazia algo, o
estável, enquanto um tempo que fosse estável não
que fazia, a não ser uma criatura? Oh, se eu sou-
seria tempo. O que é o tempo? Quem saberia
besse o quanto desejo com minha vantagem de explicá-lo de modo claro e breve? Quem saberia dele
saber, do mesmo modo como sei que não existia
formar mesmo que apenas o conceito no mente,
nenhuma criatura antes da primeira criatura!
para depois expressá-
lo em palavras? E ainda, qual palovra mais familiar
3. Não há tempo sem criação e conhecida do tempo ocorre em nossas conversas?
Se algum espírito leviano, vagueando entre as Quando somos nós que falamos, é certo que
imagens do passado, se admira de que tu, Deus que entendemos, e entendemos também quando dele
tudo podes e tudo crias e tudo monténs, autor do céu ouvimos outros falarem. O que é, portanto, o tempo?
e da terra, tenhas te abstido de tanto operar, antes de Se ninguém me interroga, eu sei; se quisesse
tal criação, por inumeráveis séculos, se levante e ob- explicá-lo a quem me interroga, não sei. Isto porém
serve que sua admiração é infundada. Como posso dizer com confiança de saber: sem nada que
poderiam passar inumeráveis séculos, se tu não os passe, não existiria um tempo passado; sem nada
tivesses criado, autor e iniciador de todos que
Terceira parte - y\. Patrística na área cultural de língua latina

venha, não existiria um tempo futuro; sem nado que o pensamento para medir a voz, como se ressoasse
exista, não existiria um tempo presente. Dois, a fim de que possamos referir algo sobre intervalos
portanto, desses tempos, o possado e o futuro, como de silêncio em termos de extensão temporal?
existem, dado que o primeiro não existe mais e o Também sem empregar a voz e os lábios
segundo ainda não existe? £ quanto ao presente, se percorremos com o pensamento poemas e versos e
fosse sempre presente, sem traduzir-se em passado, discursos, referimos todas as dimensões de seu
não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto, se o desenvolvimento e as proporções entre os vários
presente, para ser tempo, deve traduzir-se em espaços de tempo, exatamente como se os
possado, como podemos dizer também dele que recitássemos falando. Quem, desejando emitir um
existe, se a razão pela qual existe é que não existirá? som mais extenso, primeiro determinou sua extensão
Portanto, não podemos falar com verdade da com o pensamento, certamente reproduziu em
existência do tempo, a não ser enquanto tende a não silêncio esse espaço de tempo e, confiondo-o à me-
existir. mória, começa a emitir o som, que se produz até que
seja levado ao termo preestobelecido: ou melhor,
6. Os três tempos: produziu-se e se produzirá, pois a parte já realizada
o presente do passado, o evidentemente se produziu, a que permanece se
presente do presente e o produzirá, flssim se realiza. R tensão presente faz
presente do futuro passar o futuro para o passado, o passado cresce
com a diminuição do futuro, até que com a
Um foto agora está claro: nem o futuro nem o consumação do futuro tudo será apenas passado.
passado existem. £ inexato dizer que os tempos são Mas como diminuiria e se consumaria o
três: passado, presente e futuro. Talvez fosse exato futuro, que ainda não existe, e como cresceria o
dizer que os tempos são três: presente do passado, passado, que não existe mais, senão pela existência
presente do presente, presente do futuro. Cstas três no espírito, autor desta operação, dos três momentos
espécies de tempos existem de algum modo no alma da espera, da atenção e da memória? Dessa forma,
e não vejo em outro lugar: o presente do passado é o o objeto da espera feito objeto da atenção passa à
memória; o presente do presente, a visão; o presente memória. Quem nega que o futuro não existe ainda?
do futuro, a espera. Permitam-me estas expressões e Todavia, existe já no espírito a espera do futuro. £
então vejo e admito três tempos, e três tempos quem nega que o passado não existe mais? Todavia,
existem. Diga-se ainda que os tempos são três: existe ainda no espírito a memória do passado. 6
passodo, presente e futuro, conforme o expressão quem nego que o tempo presente carece de
abusiva que entrou em uso; digo-se também o extensão, sendo um ponto que passa? Todavia,
seguinte: vede, não reparo, não contradigo nem perdura o atenção, diante da qual corre para seu
zombo de ninguém, contanto que se compreenda desaparecimento aquilo que aí aparece. O Futuro
aquilo que se diz: que o futuro agora não existe, nem inexistente, portanto, não é longo, mas um longo
o possado. Raramente nós nos exprimimos com futuro é a espera longa de um futuro; da mesma
exatidão; no mais dos vezes nos exprimimos forma, não é longo o passodo, inexistente, mas um
inexatamente, mas é possível reconhecer o que longo passado é a memória longo de um passodo.
queremos dizer. Agostinho, Confissões.

7. No ânimo está a medida do tempo


6 em ti, espírito meu, que meço o tempo. Não
te precipites contro mim.- é assim; não te precipites
contra ti por causa de tuas impressões, que te
perturbam, C. em ti, repito, que meço o tempo. R
impressão que as coisas produzem em ti em sua
passagem, e que perdura depois de sua passagem, é
tudo o que meço, presente, e não tanto os coisas que
passam, para produzi-la; é tudo o que meço, quando
O "sábado" de
meço o tempo. felicidade eterna na
£ este é, portanto, o tempo, ou não é o tempo Cidade de Deus e o
que meço. Mas quando medimos os silêncios e
dizemos que tol silêncio durou tanto tempo, quanto
"oitavo dia”
durou tal voz, não concentramos
Podemos dizer que os "duos Cidodes", já
concebidos, embora em medido limitada, por Platão,
no final do livro IX do suo Repúbli
, 115
Cãpítulo SeXtO - S<mfo yXcjosiinKo t' o apogeu da Patrística -------------------

guramente mais livre, enquanto liberto do fascínio do


co, levom às extremos conseqüências oquilo que pecado, chegando a sentir o fascínio irremovível do
oindo o próprio Piotõo hovio entrevisto. não querer mais pecar. Com efeito, o livre-arbítrio,
Plotõo dizio, com efeito, que existem dois que primeiro foi dado ao homem, quando
modos de viver: oquele que se fundamento sobre inicialmente foi criado reto, teria podido não pecar,
o "medida“ do homem e aquele que considera ao mas teria podido também pecar; o livre-arbítrio final
invés Deus como "medida de todas as coisas". C ao invés será ainda maior, pois não poderá pecar.
para Rgostinho o Cidade terrena é justamente a Também isto, porém, por dom de Deus e não por
daqueles que vivem segundo o homem, ou seja, uma possibilidade de sua natureza.
tomando o homem como medida suprema, Uma coisa, de fato, é ser Deus, e outra é
enguanto o Cidode celeste é a daqueles que participar de Deus. Deus por natureza não pode
vivem segundo Deus, ou seja, tomando o próprio pecar; ao contrário, quem participa de Deus recebeu
Deus como medido supremo. dele o dom de não poder pecar. Dever- se-ia,
Todavia, bastante além de Platão, Rgos- portanto, respeitar uma seqüência no dom de Deus:
tinho adquire uma visão global das duas Cidades, de início era concedido o livre-arbítrio pelo quol o
em dimensão cósmica e hipercósmica. homem podia não pecar, no fim o livre-arbítrio pelo
Também no céu existem as duas Cidades, qual o homem não podio pecar; aquele para adquirir
o dos anjos rebeldes e a dos que permaneceram um mérito, este para acolher umo recompensa. Mas,
fiéis o Deus. Sobre o terra, ao contrário, surgiram uma vez que esta natureza pecou quando pôde
com Caim e com Rbel a Cidade do amor do pecor, é liberta por uma graça ainda maior, que a
homem terreno, que desemboca no ódio, e a conduz à liberdade na quol não pode pecar. Como a
Cidade do amor verdadeiro de Deus. primeira imortalidade, que Adão perdeu com o
R Cidade terrena, que aqui sobre a terra pecado, residiu no possibilidade de não morrer e a
parece dominante, será eternamente derrotado no última estará na impossibilidade de morrer, também
donoção; ao contrário, a Cidode celeste, que aqui o primeiro livre-arbítrio residiu na possibilidade de
aporece como peregrino, terá paz na eterna não pecar e o último estará na impossibilidade de
salvação. pecar.
Ressuscitado na Cidade celeste, o homem De tal modo, então, a vontade da piedade e da
terá a felicidade á qual não falto nenhum bem: justiça não se poderá perder, também não se poderá
hoverá diferentes graus de amor e de perder a da felicidade. Com o pecado nós,
recompensa: ser sem inveja, a liberdade do não- certamente, não conservamos nem a piedade nem a
poder-pecar (oo invés do do po- der-não-pecar, felicidade, mas não perdemos a vontade de ser
típico desta vida), o esquecimento dos moles felizes, mesmo depois de ter perdido a felicidade.
terrenos nos bens eternos e, por fim, o Dever-se-ia talvez negar que Deus tenha o livre-
possibilidade de ver Deus que será tudo em todos. arbítrio, uma vez que ele não pode pecar?
6 se ver Deus tudo em todos será como o
"sábado" eterno, o "sétimo dia" eterno, o coroação
desse dia será como o "oitavo dia" do vido eterna,
2. O esquecimento dos males
cujo fim será o de não-ter-mais-um-fim, ousejo, o na Cidade eterna
eternidade. Tal Cidade, portanto, terá uma vontade livre,
C este é justamente o sentido do homem. una em todos e inseparável em cada um; liberto de
Quemé, portanto, o homem? O homem é aquele todo mol e repleta de todo bem, gozando
que, peregrino sobre a terro, tem como fim o de indefectivelmente na alegria dos gáu- dios eternos,
chegara um reino gue não tem um fim. esquecida das culpas e das penas, sem esquecer,
Leiamos o belíssimo finol da Cidode de porém, sua libertação e sem ser ingrata para com
Deus. seu libertador. No plano do conhecimento racional
recordará também seus males passados, mas, no
plano da experiência direta, não recordará mais
nada. Também o médico mais valoroso conhece de
fato quase todas os doenços, como elas podem ser
conhecidas por profissão; muitíssimos, ao invés, não
conhece, assim como podem ser experimentadas no
próprio corpo, não as tendo provado.
1. Na Cidade eterna
teremos a liberdade de não-poder-pecar
Não é verdade que os santos não terão o
livre-arbítrio, porque não poderão sentir mais o
fascínio do pecado. Cie será, ao contrário, se
116
_ Terceira purte - ;A Patrís+ica r\a área cultural de língua latma

Como há, portonto, dois conhecimentos dos ele é Deus, do qual estaremos repletos quando Deus
moles, um pelo quol eles nõo fogem do poder do for tudo em todos.
mente, o outro porque tocom o experiência dos Nossas próprios boos obras, quando se
sentidos (umo coiso é conhecer todos os vícios reconhecem como suos ao invés de como nossas,
mediante aquilo que o sabedoria ensino, outra é são-nos atribuídas como mérito pora alcançar este
conhecê-los por meio de uma vida corrupta, sábado; se, ao contrário, as tivermos atribuído a nós,
estultamente), também há dois modos de esquecer serão como obras servis, enquanto do sábado se diz:
os males: quem os conheceu graças às informações "Não fareis nenhuma obra servil". Por isso também
do sua doutrino, es- quec6-ss deles de modo diverso por meio do profeta Czequiel se diz; "Dei a eles
de quem deles fez experiência e os sofreu; poro um é também os meus sábados como sinal entre mim e
como se transcurasse seu estudo, para o outro é eles para que soubessem que sou eu, o Senhor, que
como se fosse subtraído de seu tormento. Cste se- os santifico". Cntão conheceremos isso perfeita-
gundo tipo de esquecimento é oquele pelo qual os mente, quando estivermos perfeitamente livres e
santos esquecerão seus moles passados; serão virmos perfeitamente que ele é Deus.
todos dele subtraídos, de modo a ser cancelados
completamente de sua experiência. Ro invés, no 4. As seis eras da história do homem
plano do capacidade de seu conhecimento, que neles Csta celebração do sábado aparecerá de
será gronde, não apenas não ignorarão seu passado, modo mais evidente se se calcularem, como se
como tombém o eterno infelicidade dos danados. Por fossem dias, também os eras, conforme aqueles
outro lodo, se eles nõo souberem que foram infelizes, períodos que a Cscritura parece nos apresentar, pois
como poderão exclamar, com o Salmo: "Contarei ele será o sétimo dia. R primeira era, como se fosse
sem fim as graças do Senhor1'? C não haverá o primeiro dia, vai de Rdão até o dilúvio, o segunda
seguramente nesta Cidade um canto mois doce do até flbrõo, iguol à primeira não como duração mos
que este pora glorificar a graço de Cristo, em cujo como número de gerações; parece-nos, de fato, que
sangue fomos libertos. Cum- prir-se-ão então os foram dez. R partir daqui, como precisa o evangelista
palavras: "Parai e sabei que eu sou Deus". Mateus, seguem-se três eras até a vindo de Cristo,
coda uma das quais compreende quatorze gerações:
3. No "sétimo dia" veremos a Deus, uma vai de Rbrõo o Davi, outra vai até o exílio na
que será tudo em todos Babilônio, o terceira até a encarnação de Cristo. No
Cste será de fato o sábado supremo, que nõo total são cinco eras. R sexta ainda está em curso e
conhecerá fim, e que o Senhor recomendou às não deve ser medido em termos de gerações, pois
origens do criado, dizendo.- "Cntõo Deus no sétimo está escrito: "Não cabe a vós conhecer os tempos e
dio levou o termo o trabalho feito e descansou no os momentos que o Pai reservou à sua escolha".
sétimo dio de todo o seu trabalho. Deus abençoou o
sétimo dia e o consogrou, porque nele tinha 5. O "oitavo dia" da vida eterna
descansado de todo trabalho que ele, criando, tinha Depois desta era Deus repousará como no
realizado". Justamente nós próprios seremos o sétimo dia, fazendo nele repousor aquele mesmo
sétimo dio quondo estivermos repletos e sétimo dia que seremos nós. Serio demasiado longo
reconstituídos pelo suo bênção e pelo suo neste ponto examinar atentamente cado uma dessas
consagração. Rí estaremos livres para ver que ele é eras; todavia, esta sétima será o nosso sábodo, cujo
Deus, enquanto quisemos ser Deus para nós fim nõo será
mesmos quando caímos longe dele, dando ouvidos o declínio, e sim o dia do Senhor, como que um
às polavras do sedutor: "Tornar-vos-eis como Deus"; oitavo dia do vida eterna, o qual foi consagrado no
assim nos afastamos do verdadeiro Deus, por ressurreição de Cristo, prefigurondo o repouso
intervenção do guol ter-nos-íamos tornado como ele eterno do espírito e do corpo. Rí repousaremos e
por meio de umo participação, em vez de por uma veremos, veremos e amaremos, amaremos e
deserção. Sem ele não fizemos mais que incorrer em louvaremos. Isso será no fim, e não haverá fim! Que
sua cólera. Reconstituídos por ele, ao invés, e outra coisa é nosso fim, senão chegar ao reino que
tornodos perfeitos por umo groça maior, estaremos não tem fim?
livres paro a vida eterna, vendo que Rgostinho, R Cidade de Deus.
GÊNESE DA
ESCOLÁSTICA
■ Primeiras teorizações das relações entre fé e
razão na Idade Média

“A verdadeira filosofia não é mais que a religião, e,


inversamente, a verdadeira religião não é mais que a
verdadeira filosofia. ”
“Ninguém entra no céu, a não ser
por meio da filosofia. ”

Escoto Eriúgena
Capítulo sétimo

A filosofia na Idade Média: a “Escolástica”, as “Escolas”,


as “Universidades” 119

Capítulo oitavo

O surgimento da Escolástica
e seus desenvolvimentos de Boécio a Escoto Eriúgena
129
{Sapí+ulo sétimo

filosofia rva Jdade A^dia: ///^* i


» i • // ///^ i // a c^scolastica , as c-scolas ,
as ^lAmversidades^

Z I. Desenvolvimentos z
do pensamento medieval

• O pensamento protocristão que se desenvolve paralelamente ao pensamento


tardo-pagão antigo pode ser considerado concluído com Agostinho no séc. V, no
que se refere ao Ocidente latino. No Oriente grego, ao contrário, conclui-se com
Máximo o Confessor no séc. VII.
Depois destas datas o pensamento medieval pode assim se articular:
1) o período que se estende do séc. V ao IX (formação dos reinos românico-
bárbaros e consolidação do Sagrado Império Romano), conhecido pelo nome de
"obscurantismo" medieval devido ao estado de depressão em
que se encontra a pesquisa cultural; tem apenas duas figuras
eminentes: Boécio e Escoto Eriúgena; Quadro
2) a segunda fase da Idade Média, que ocupa os sécs. X e cronológic
XI (lutas pelas investiduras e pelas cruzadas) e se caracteriza o da
pelas reformas monásticas; entre as figuras de destaque deste filosofia
período estão: Anselmo de Aosta, Abelardo e os expoentes das medieval
—>§1
Escolas de Chartres e de São Vítor;
3) a terceira fase (séc. XIII), que coincide com a era de ouro da Escolástica, com
santo Tomás, são Boaventura e Duns Escoto;
4) a quarta e última fase, que marca a crise da Igreja e do Império e também da
relação entre fé e razão: é o tempo de Ockham.

1 CD quadro cronológico Ocidente latino vai do fim do séc. V até o séc.


XIV, enquanto no mundo grego pode-se
fazê-la iniciar-se quase dois séculos depois.
O cristianismo, em seu surgimento e De modo particular, na história do pen-
desenvolvimento, muda o paradigma global do samento cristão é preciso distinguir a fase
modo de pensar e de fazer filosofia. Por das origens e dos primeiros desenvolvimen-
conseguinte, já ao ler as obras dos primeiros tos, que coincide cronologicamente com a
pensadores cristãos se tem a impressão de fase última do pensamento pagão antigo, da
passar para um mundo cultural totalmente fase medieval, justamente no modo em que
diferente do pagão antigo. Ele tem, com efei- distinguimos o pensamento cristão nesta
to, fundamentos conspícuos e precisos, a obra.
ponto de muitos estudiosos englobarem o O pensamento protocristão que se de-
pensamento patrístico na ótica medieval, não senvolve paralelamente ao pensamento tar-
tanto como princípio mas pelo menos de fato. dio pagão-antigo, na área cultural de língua
A realidade histórica é, porém, muito latina termina com Agostinho (séc. V). Na
mais complexa. área cultural de língua grega, porém, ele ter-
A era medieval abraça quase um milênio, mina, sob certo aspecto, com Máximo o
e está entre as eras mais complexas. No Confessor (primeira metade do séc. VII), en
Quarta parte - CÃênesa da Escolástica

quanto João Damasceno abre a perspectiva Alem da significativa figura “de pas-
da cultura medieval deslocando o centro do sagem” de Boécio, nesta primeira fase so-
interesse filosófico de Platão para bressai principalmente Escoto Eriúgena.
Aristóteles, como pouco a pouco se fará b) A segunda fase se estende do séc. X
também no Ocidente, conforme veremos. (ou do fim do IX) até o séc. XI, e caracteriza-
De forma que podemos resumir o que se pelas reformas monásticas, pela renovação
precisamos, dizendo que o pensamento pro- política da Igreja, que se manifesta por meio
tocristão da Patrística representa o aspecto das complexas lutas pelas investiduras, e
cristão do pensamento antigo tardio, enquan- pelas grandes cruzadas.
to a Escolástica, na sua gênese e nos seus Entre as figuras de relevo dessa fase
desenvolvimentos, representa toda a era me- devemos indicar Anselmo de Aosta,
dieval. Abelardo, e ainda as significativas Escolas de
Deste período foi proposta uma signi- Chartres e de São Vítor.
ficativa articulação em quatro fases, que é c) A terceira fase marca a era de ouro
particularmente esclarecedora e fecunda, da Escolástica no decorrer do século XIII.
sobretudo do ponto de vista didático. Florescem as Universidades e torna-se
a) A primeira fase se estende por qua- marcante a grande figura de santo Tomás,
tro séculos e vai do fim do séc. V até o fim do além das muito conspícuas figuras de são
séc. IX, ou seja, do surgimento e do desen- Boaventura e de Duns Escoto.
volvimento dos reinos romano-barbáricos até d) A quarta fase da Idade Média coin-
a restauração e a consolidação do Sagrado cide com o séc. XIV e se caracteriza pela
Império Romano por obra dos Carolín- gios. crise da Igreja e do Império e, portanto, pela
Esta é a fase mais problemática da Idade conclusão do mundo espiritual que caracteri-
Média, na qual se encontra o assim chamado zou esta era.
“obscurantismo” medieval, mas com a clara A figura saliente é a de Ockham, com
presença de momentos em que se verifica um o qual se abre o divórcio entre razão e fé.
renascimento cultural, que retoma e Exatamente pela clareza didática desta
desenvolve aspectos do pensamento antigo divisão nós a seguiremos também na dis-
tardio. tribuição do material.

12 345 6 7

l-aixa inferior do afresco “/\ disputa sobre o sacramento", pintado por Raffaello cm I.SOV na
Sala da Assinatura, no Vaticano.
Aí estão representados os protagonistas do debate filosófico e teológico sobre a T.ucaristia, que
terá sua definição apenas no séc. XVI com os decretos do C.oncilio de Trento.
No afresco podemos reconhecer: I. são C,regório, 2. são Jerónimo. santo Ambrósio.
4. santo Agostinho, 5. santo Tomás, 6. são Boaventura, 7. D ante Aligbieri.
Capitulo sétimo - y\ filosofia na JJdade A^édia

n. ^ (z^scolas monacais,
episcopais e palatirvas

• A difusão e a elaboração da cultura até o séc. XIII — Três tipos


tempo em que se formaram as Universidades — estava confia- de Escola
da às Escolas monacais (em geral anexas a uma abadia), epis- -> § 1
copais (anexas a uma catedral) e palatinas (anexas à corte).

• Entre essas escolas assumiu grande importância, a partir do fim do séc. VIII, a
Escola palatina desejada por Carlos Magno, com a intenção de fazer surgir na terra dos
Francos uma nova Atenas.
Instituída e dirigida por Alcuíno de York, esta escola teve no início caráter erudito e
eclético; somente a partir da segun- A £SC0/a pa/aí/na da geração assumiu conotações
originais e criativas. Organi- § 2 zou a instrução em três níveis:
1) a instrução elementar;
2) o estudo das sete artes liberais do trívio (gramática, retórica e dialética) e do
quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música);
3) o estudo aprofundado da Sagrada Escritura.

1 A Escolástica estava fadada a inexorável declínio. A aber-


e os vários tipos de escola da tura de novas escolas ou a absorção das an-
tigas em novas instituições educativas, pela
«Udade A^édia Igreja, marca o início da formação e or-
ganização, lenta e laboriosa, de uma nova
cultura.
Mais do que um conjunto de doutrinas, Até o século XIII, quando começa a
entendemos por Escolástica a filosofia e a formação das Universidades, as escolas são:
teologia que eram ensinadas nas escolas 1) monacais ou abaciais (anexas á uma
medievais. Essa é uma caracterização de abadia) e, no mais, conduzidas por monges;
certa forma extrínseca mas significativa e 2) episcopais (anexas a uma catedral);
útil: útil, porque nos liberta da tarefa de 3) palatinas (anexas à corte: palatium).
precisar logo o corpo doutrinário que se pode No período das invasões bárbaras, as
chamar “escolástico” (teremos, ao invés, a escolas abaciais ou monacais representaram
possibilidade de vê-lo em seus desen- o refúgio privilegiado da cultura, tanto por
volvimentos articulados e nas suas linhas meio da transcrição como da conservação dos
dominantes nos capítulos seguintes); sig- clássicos.
nificativa, porque nos transporta para o As escolas episcopais se tornaram pre-
ambiente em que tais doutrinas foram ela- dominantemente local da instrução elementar,
boradas, pensadas e aprofundadas a partir da necessária para o acesso ao sacerdócio ou
primeira reorganização medieval das escolas, para assumir funções de utilidade pública e
promovida e sustentada por Carlos Magno. de administração.
O fechamento das últimas escolas pa- A escola que mais do que qualquer ou-
gãs, no início do século VI (precisamente pelo tra destinou-se a incidir sobre a cultura me-
edito de 529), por obra do imperador dieval e que contribuiu para o despertar da
Justiniano, além de ato político e adminis- cultura foi a palatina, desejada por Carlos
trativo, marcou também o fim da cultura pagã Magno e confiada em 781 a Alcuíno de York.
que, por outro lado, por si mesma já
Quarta parte - gênese da (íEscolástica

jA escola palatina criada por tras coisas ao contraste entre o entusiasmo


por poetas e pensadores pagãos e a idéia,
jAIcuíno
freqüentemente repetida, mas não adequa-
damente argumentada, de que se devia re-
Formado na escola episcopal de Jarrow, conhecer aos estudos bíblicos a proeminên-
fundada por Beda o Venerável (674-735), a cia absoluta na formação do cristão.
figura de maior destaque do monaquismo Somente a partir da segunda geração
anglo-saxão), Alcuíno (730-804) foi diretor carolíngia é que essa grave incerteza foi su-
da escola palatina e conselheiro do rei para perada, quando, mediante Escoto Eriúgena,
todas as questões inerentes à instrução e ao tentou-se uma reavaliação da dialética e da
culto. filosofia pela inserção das artes liberais no
Ele organizou a instrução em três graus: contexto teológico. Assim, de formas de eru-
1) leitura, escrita, noções elementares dição especiosa, essas artes tornaram-se
de latim vulgar, compreensão sumária da instrumentos de pesquisa, compreensão e
Bíblia e dos textos litúrgicos; elaboração no interior das verdades cristãs. E
2) estudo das sete artes liberais (as ar- foi desse modo que se configurou a “primeira
tes do trívio: gramática, retórica e dialética; e escolástica”, ou seja, o período de pen-
as artes do quadrívio: aritmética, geometria, samento que vai de Escoto Eriúgena a santo
astronomia e música); Anselmo, das escolas de Chartres e de São
3) estudo aprofundado da Sagrada Es- Vítor a Abelardo.
critura.
Uma expressão do espírito e do empe-
nho com que Alcuíno se dedicou a essa obra
de renovação, desejada pelo Imperador e pela
corte de Aquisgrana, é a sua idéia de fazer
surgir na terra dos Francos uma nova Atenas,
mais esplêndida do que a antiga, pois
nobilitada pelo ensinamento de Cristo.
Embora tenha sido incapaz de expres-
sar uma cultura profunda, que fosse além da
justaposição ou contaminação de modelos
literários e filosóficos do mundo clássico e de
modelos teológicos do mundo patrís- tico,
Alcuíno teve o mérito de elaborar manuais
para cada uma das sete artes liberais, por
meio dos quais canalizou e disciplinou o
ensino e o estudo.
O caráter pouco orgânico e heterogêneo
dos manuais — para a gramática, a retórica e
a dialética, ele utiliza Isidoro de Se- vilha
(570-636), Cassiodoro (480/490-570), Beda,
santo Agostinho e Boécio, como também
Prisciano, Donato e Cícero —, bem como o
caráter compilatório dos seus escritos
teológico-filosóficos — como o De fide
sanctae et individuae Trinitatis e a carta a
Eulália De animae ratione, extraídos em sua
maior parte dos escritos de santo Agostinho,
mas sem autêntica base doutrinária —, pro- Alcuíno (730-804) dirigiu a Escola palatina
vocaram certo mal-estar, devido entre ou efo, conselheiro de Carlos Magno
para as questões referentes à instrução e ao culto.
Capítulo sétimo - ;A filosofia na Jdade Média

III. jA LAmve rs idade

• Nos sécs. XII-XIII nascem em Bolonha e em Paris as primeiras Universidades, sob


a forma de associação corporativa de mestres e estudantes.
As conseqüências foram notáveis:
- primeiramente contribuíram para formar uma classe de intelectuais (studium) que
se escorava nos poderes tradicionais do regnum e do sacer- dotium ;
- em segundo lugar ajudaram a superar as diferenças de As Drjmejras classe
social, em novo tipo de nobreza (gentileza) dependente unj versidades da cultura
adquirida. § 7.2

• Se definimos com o nome de Escolástica o pensamento elaborado nas scholae e


na universitas, podemos encontrar o eixo básico dessa cultura na relação fé- razão, e
mais precisamente no uso da filosofia como instrumento de interpretação da Sagrada
Escritura, e de clarificação A re/aÇã0
e defesa da fé em vista da construção de uma doutrina siste- entre ^ e razão mática. -> §
3

• Os programas de estudo que, a partir da Escola palatina, distinguiam as artes


liberais das teológicas, se realizaram em duas diferentes Faculdades: uma, assim
chamada das Artes, que recolhia as artes do trívio e do quadrívio, e que por sua própria
natureza desenvolveu de modo mais livre e autônomo a razão e a pesquisa; a outra, a
Faculdade Teológica, racu/c/acJe procurou dar corpo aos conteúdos de fé, por meio da
exegese das artes bíblica e da exposição sistemática da doutrina cristã. A diversi- e
F acuida de ficação, e também as tentativas de síntese entre os resultados de teologia
das pesquisas das duas faculdades, é expressão da tensão en- § 4 tre fé e
razão e do esforço de mediação entre elas.

Em Bolonha, prevaleceu a universitas


scholarium, isto é, a corporação estudantil, à
de Bolonka e Paris
qual Frederico I Barbarroxa concedeu par-
ticulares privilégios em 1158.
A partir dos séculos XII-XIII, a escola
Em Paris (a 1200 remonta o primeiro
se configura como universidade, que é pro-
decreto régio que a reconhece implicitamente
duto típico da Idade Média. O modelo das
studium generale) prevaleceu a universitas
escolas era constituído pelas escolas da an-
magistrorum et scholarium, espécie de cor-
tiguidade, das quais se tentou a renovação e a
poração unitária de mestres e estudantes. Em
continuação, mas para a universidade não
Paris, buscou-se a ampliação da escola da
havia modelo algum.
catedral de Notre-Dame, que por várias cir-
O termo “universidade”, originalmente,
cunstâncias adquirira ao longo do século XII
não indicava um centro de estudos, e sim
muito mais uma associação corporativa ou, uma proeminência sobre todos os outros
como diríamos hoje, um “sindicato”, que centros de estudo, atraindo estudantes de
tutelava os interesses de uma categoria de todas as partes da Europa. Ademais, embora
pessoas. Bolonha e Paris representam os dois as escolas episcopais e monásticas, bem
modelos de organização em que se inspira- como as palatinas, fossem instituições
ram, mais ou menos, todas as outras uni- eclesiásticas de caráter local, logo a
versidades. universidade de Paris tornou-se objeto de
atenção da Cúria romana, que favoreceu seu
desenvolvimento e,
Quarta parte ~ gênese da íEscolástica

sobretudo, suas tendências autonomistas,


subtraindo-a à tutela direta do rei, do bispo e
de seu chanceler. Assim, fato verdadeira-
mente significativo, as aspirações à liberdade
de ensino, contra a resistência e a oposição
dos poderes locais, encontraram um primeiro
sustentáculo na proteção papal. O caráter
“clerical” da universidade nos permite
compreender por que as autoridades ecle-
siásticas — primeiramente os representantes
diretos do papa — redigiam os estatutos,
proibiam a leitura de certos textos e
intervinham para compor dissídios e con-
trovérsias.

2 é^fei+os explosivos
da Universidade Brasão da Universidade de Bolonha.
O Estúdio de Bolonha nasceu no séc. XI corno livre e
espontânea associação de estudantes e mestres que
Dois são os efeitos mais relevantes de- fundaram uma escola especializada na exegese do
vidos à instituição e à consolidação da uni- direito romano.
versidade.
a) O primeiro constitui-se pelo surgi-
mento de um sodalício de mestres, sacerdotes Ao lado dos poderes tradicionais, como
e leigos, ao qual a Igreja confiava a tarefa de o sacerdotium e o regnum, acrescentava-se
ensinar a doutrina revelada. Trata-se de
um terceiro poder, o studium ou a classe dos
fenômeno de grande alcance histórico,
intelectuais, cuja ação exerceu peso
porque até então a doutrina oficial da Igreja
relevante sobre a vida social da época.
era (e sempre tinha sido) confiada á hie-
b) O segundo efeito ou dado caracte-
rarquia eclesiástica.
rístico foi a abertura da universidade pari
Capitulo sétimo - filosofia na Cidade A^dia

siense a mestres e estudantes provenientes


de qualquer camada social.
Embora posteriormente a universidade
se tornasse aristocrática, na Idade Média ela
era “popular”, no sentido de que também
recebia estudantes pobres, filhos de campo-
neses e artesãos, que, por meio de alguns
privilégios, como a isenção de taxas, bolsas
de estudo e alojamento gratuito, conseguiam
completar os rigorosos cursos de estudo.
Depois do ingresso na universidade,
desapareciam as diferenças sociais entre os
estudantes: os goliardos e os clérigos cons-
tituíam mundo ã parte, cuja “nobreza” não era
mais representada pelo segmento de origem,
mas pela cultura adquirida.
Esse era o novo conceito de “nobreza”,
ou, como se dizia então, de “gentileza”.
A cultura medieval floresceu juntamente
com essas instituições, primeiro as scbolae e
depois a universitas (devemos notar a difusão
destes centros de estudo: Oxford, 1167/ 68;
Pádua, 1222; Nápoles, 1224; Cambrid- ge,
1230/40 etc.). Por Escolástica entendemos
precisamente aquele corpo doutrinário que, Brasão da Universidade de Oxford,
inicialmente de forma bastante inorgânica e fundada em 1167-1168.
depois de modo sempre mais sistemático, foi
elaborado nesses centros de estudo, nos
quais encontramos, dedicados a escrever e a
ensinar, homens criativos, freqüentemente so em sua estrutura lógico-gramatical, na
dotados de grande capacidade de crítica e de realidade trata-se do aperfeiçoamento dos
agudeza lógica. instrumentos lógicos para melhor compreen-
são dos textos bíblicos e dos ensinamentos
dos Padres da Igreja.
A razão é posta predominantemente em
função da fé, ou seja, a filosofia serve à teo-
3 Razão e fé logia, para a interpretação da Escritura
(exegese) ou para a construção doutrinária
sistemática (dogmática).
Com esse binômio “razão” e “fé” que- A pesquisa racional “autônoma” deve
remos indicar o “programa de pesquisa” ser vista no quadro do problema religioso da
fundamental da Escolástica, que vai do uso conversão dos infiéis, para quem é necessário
acrítico da razão e da conseqüente aceitação propor a doutrina cristã com argumentação
da doutrina cristã com base na “autoridade”, racional.
às primeiras tentativas de penetração racional Não basta crer: é preciso também com-
da Revelação e às construções sistemáticas, preender (intelligere) a fé. E isso não se ob-
que lêem e interpretam as verdades cristãs tém somente interpretando os textos sacros
de forma argumentada. ou mostrando suas possíveis implicações
Ligada profundamente às instituições para a vida individual e comunitária dos
eclesiásticas, a cultura medieval revela marca homens, mas também demonstrando com
profundamente cristã, pelo fato de se orientar base na razão as verdades aceitas pela fé ou,
no sentido da compreensão da doutrina pelo menos, a sua logicidade ou a sua não-
revelada, por ter amadurecido no interior de contraditoriedade com os princípios funda-
suas verdades ou talvez por se contrapor a mentais da razão.
elas. Trata-se, portanto, de exercício da
Embora em certos momentos históricos razão que foi se desenvolvendo e refinando,
esse esforço se detenha em torno de ele- tendo em vista a extensão da área dos
mentos gramaticais-literários ou no discur- crentes.
Quarta parte - Gênese d a íSsoolás+ica

A utilização dos princípios racionais,


primeiro platônicos e depois aristotélicos, era
feita para demonstrar que as verdades da fé
cristã não são disformes ou contrárias às
exigências da razão humana, que, ao con-
trário, encontra nessas verdades a sua com-
pleta realização.
A influência do platonismo e do neo-
platonismo, mediante Agostinho, e a influên-
cia do aristotelismo, primeiro através de Avi-
cena e Averróis e depois pelo conhecimento
direto das obras do Estagirita, devem ser in-
terpretadas nesse contexto, isto é, como de-
monstração de que o pensamento filosófico
clássico pode ser precioso subsídio para me-
lhor compreensão da doutrina cristã.

sAm Faculdade das artes


e Faculdade de teologia O antigo brasão da Universidade de Cambridge,
dividido em quatro setores e decorado com lírios e
leões rampantes.
Para entender melhor o diálogo e as
tensões entre razão e fé, é oportuno recordar
que a universidade medieval dividia- se em:
1) Faculdade das artes liberais (trívio e O magister artium, portanto, era pro-
quadrívio), cujo curso durava seis anos; fessor que se inspirava unicamente na razão,
2) Faculdade de teologia, cujo curso sem preocupação teológica direta; pode-se
durava pelo menos oito anos. dizer que era professor de filosofia. Enquanto
as escolas monásticas, episcopais e palatinas
limitavam-se quase exclusivamente ao
1) A Faculdade das artes, em si, era estudo da lógica (ou dialética), como in-
propedêutica à segunda, porque as artes li- trodução à filosofia, a Faculdade das artes
berais eram consideradas como a base de examinava a nova produção científico-filo-
toda a instrução, com particular destaque para sófica, que provinha predominantemente do
a gramática e a lógica, a matemática, a física, mundo árabe. Por isso, tal Faculdade tornou-
a metafísica e a ética. se bastião das novas idéias, de índole

Um curso universitário na Idade Média,


em um baixo-relevo de Celino de Nese,
arquiteto e escultor do séc. XIV. O
ensino universitário medieval, por meio
da alternância da lcctio e da disputatio,
permitia a troca permanente de idéias
entre mestres e estudantes (particular
da tumba de Cino de Pistóia, Catedral
de Pistóia).
Capítulo sétimo - A filosofia na Jdade Média

fundamentalmente aristotélica, que iam sendo 5 7^ "(Sidade de Dews ;/


descobertas e debatidas. de y\0os+inKo
2) A Faculdade de teologia, ao invés,
tinha por objetivo o estudo acurado da Bíblia,
através da exegese e da exposição siste- Para entender mais completamente o
mática da doutrina cristã, do que as Sum- clima geral no qual se desenvolvia o debate
mae são a expressão mais completa. Para se entre razão e fé, é oportuno recordar a inter-
entender a vivacidade dessa faculdade, deve- pretação dominante acerca da história, que
se lembrar que quase todos os mestres de representa o horizonte no qual se vivia e se
teologia haviam passado antes pela faculdade pensava na época. A teoria que predomina
das artes, não sendo portanto estranhos aos incontrastavelmente na Idade Média, até o
interesses e problemas que lá eram ano 1000, é a teoria das duas cidades de
debatidos. Agostinho, a cidade celeste, “vivendo por fé
As orientações distintas e por vezes e em peregrinação neste mundo”, e a cidade
contrapostas dessas duas faculdades talvez terrena, identificada por Agostinho com as
nos ajudem a entender as tensões entre razão forças que semeavam morte e saques.
e fé, bem como os esforços para sua O pessimismo agostiniano em relação à
conciliação ou o clima no qual eram ela- cidade terrena encontrava sustentação na
boradas e defendidas perspectivas às vezes constatação de que o Império, com o qual se
inconciliáveis. A tudo isso, para se entender a identificava a cidade terrena, efetivamente
vivacidade dialógica no interior das marchava para seu fim. Passando dos roma-
respectivas faculdades, deve-se acrescentar nos para os gregos (Bizâncio), depois para os
que os métodos de ensino — a lição (lectio) e francos e, posteriormente, para os lom-
o seminário (disputatio) — permitiam per- bardos e os germânicos, o Império estava
manente troca de idéias entre estudantes e envelhecendo, exaurindo sua carga de uni-
mestres. ficação e renovação.
A disputatio consistia na discussão com Entretanto, com o nascimento do Sacro
os estudantes sobre um tema proposto em Império Romano, a cidade terrena não tinha
forma de pergunta (quaestio), em torno da mais uma entidade com a qual se identificar,
qual falavam primeiro os estudantes e depois porque o Império se apresentava como o
o mestre. corpo material da cidade de Deus, dando
A importância da quaestio, que repre- lugar a uma única cidade, ao mesmo tempo
senta a forma típica do procedimento didático, com aspectos terrenos e celestes, sagrados
nos permite entrever a vivacidade do debate e profanos, com preocupações temporais e
e a tensão constante entre razão e fé a expectativas escatológicas. Ao dualismo
propósito dos temas que iam emergindo, originário segue-se então uma espécie de
conforme os textos examinados ou os pro- monismo, marcado primeiro pelo predomínio
blemas levantados. das forças imperiais e depois das forças
eclesiásticas.
Nesse período, embora com modifica-
ções, às vezes profundas, continua prevale-
cendo a concepção agostiniana da história, à
medida que o sentido da história é estabe-
lecido naquele fio providencial que, sob a
guia da Igreja, conduz os homens para a
Cidade Celeste.
Quarta parte - (^ênese da Escolástica

IV. 3ocxqwm de Pi ore

• O momento de decadência moral em que a Igreja e o Império se encontravam no


séc. XII exigiu o nascimento de nova tensão escatológica, que em Joaquim de Fiore
(1130-1202) encontrou sua melhor exAs três eras pressão.
£ 1 Ele interpretou o desenvolvimento da história na base do
mistério trinitário, levando em conta a relação conflitual entre a
"Cidade de Deus" e a "Cidade do homem" de Agostinho, e distinguindo com efeito três
eras: a do Pai, a do Filho e a do Espírito.

I È V ^ concepção trinitória da religiosos. Com efeito, o século XII foi um


dos mais tempestuosos: as sanguinolentas
História lutas das Comunas contra o Império; o
dissídio entre o Papado e Frederico Barbar-
roxa, com duros conflitos que levaram à elei-
Depois da visão agostiniana, a concep- ção de três antipapas (Vítor IV, Pascoal III e
ção de história de maior destaque na Idade Calisto II, opostos a Alexandre III); a queda
Média foi a do abade calabrês Joaquim de de Jerusalém em 1187, jogando por terra o
Fiore (1130-1202). Como se sabe, à desa- grande sonho medieval do qual nasceram as
gregação da unidade política realizada por Cruzadas; crueldade e repressão contra a
Carlos Magno, seguiu-se o regime feudal, feudalidade eclesiástica e leiga, fiel à tradição
com a fragmentação do poder central para normanda, por parte de Henrique VI de
possibilitar a defesa das populações e dos Suévia. E a isso acrescentem-se as inúmeras
territórios contra a nova onda de invasões desordens morais que afligiam a Igreja,
bárbaras. Com o regime feudal, as instituições feudalizada e mundanizada, contra as quais
eclesiásticas sofreram profunda transfor- são Bernardo erguia em vão sua voz de
mação, porque estavam confiadas a homens advertência.
mais fiéis ao poder leigo que ao religioso. O Pois bem, nesse contexto,
clero começou a se mundanizar. A essa de- reconsiderando o mistério trinitário, Joaquim
cadência de costumes logo se opôs um mo- de Fiore propõe uma mensagem reformista-
vimento de reforma que começou a dar os esca- tológica, uma espécie de renovatio
primeiros sinais no século X, com o mona- moral e religiosa, alimentando a expectativa
quismo de Cluny, difundindo-se depois no de uma iminente “terceira idade”, que é a do
século seguinte. Esse movimento encontrou Espírito. À “idade do Pai” e à “idade do
sua expressão doutrinária mais completa em Filho” deveria seguir a “idade do Espírito”,
Gregório VII, do qual tomou o nome de marcada por uma palingenesia total e que não
“reforma gregoriana”, que inaugurou nova tardaria a se realizar, libertando os homens
fase histórica, já que a idéia tradicional de das contradições em que haviam caído.
“fuga do mundo” foi substituída pelo ideal da Entendida como a suprema e definitiva
conquista cristã do mundo. E a época das mahifestação do divino na realidade da
Cruzadas. história, essa “terceira idade” representava e
Essa reforma da Igreja, que levou à expressava o desejo difuso de renovação
concentração de todo o poder, religioso e radical existente, no sentido da libertação do
secular, nas mãos do Pontífice romano, peso das instituições e problemas de ordem
provocou mundanização diferente da Igreja, terrena.
implicada em acontecimentos políticos e, Como vemos, trata-se de uma concep-
portanto, envolvida em lutas e rixas que ção da história não mais cristocêntrica, mas
afastavam sua atenção dos problemas trinitária.
propriamente
(Sapítulo oitavo

O surgimento da Êscolastica e seus


desenvolvimentos de B oecio a Êscoto
Êriugena

I. A obra e o pervsamervto de
5everÍKvo Soecio

• Severino Boécio (480-524) é considerado o último dos


Uma grande
romanos e o primeiro dos escolásticos, e, portanto, uma figura figura
chave no surgimento da Idade Média. Seu fim era o de tornar no surgimento
conhecida aos latinos a cultura grega, por meio de um projeto da Idade
vastíssimo (mas apenas em parte realizado) de traduções e de Média ^§1
comentários, entre os quais marcaram época os comentários às
obras de lógica, de Aristóteles.
• No comentário ao Isagoge de Porfírio, Boécio chocou-se
também com uma das questões fundamentais da Idade Média, A questão dos
a questão dos universais (ou seja, o problema da natureza universais
ontológica dos universais), que ele resolveu no sentido de um ^§2
realismo moderado: o universal, enquanto tal, nasce por abs-
tração do conhecimento dos indivíduos.
• O nome de Boécio, porém, está, ligado sobretudo ao De consolatione
philosophiae, do qual podemos salientar os pontos seguintes:
1) a filosofia está em grau de mostrar ao homem a verda-
deira felicidade (o próprio Deus ou o sumo Bem) e de afastá-lo O De
dos bens fictícios e aleatórios (bens materiais); consolation
2) a filosofia ensina a crer na Providência divina, apesar da e
presença do mal, porque ensina a ver a orientação universal da philosophia
realidade para o bem. e ->S3

• Uma vez admitida a Providência, como se pode salvar a


liberdade humana? Deus, segundo Boécio, conhece e dispõe Providênci
também as coisas futuras sobre a base da natureza que cada ae
uma delas terá: como eventos necessários, se houver eventos liberdade
humana,
necessários, e como eventos livres, se houver livres. Ele é um
razão e fé -
"filósofo cristão".
>§4-5

1 Boécio: co. Foi nomeado cônsul em 510. Em 522,


seus dois jovens filhos foram elevados à dig-
"o último dos romanos e o nidade do cargo consular, ocasião em que ele
primeiro dos escolásticos // pronunciou o panegírico de Teodorico. Ainda
por volta de 522-523 exerceu o cargo de
Anísio Mânlio Severino Boécio nasceu magister officiorum (direção geral dos
em Roma por volta de 480. Muito jovem serviços da corte e do Estado, algumas fun-
ainda, casou com Rusticiana, filha de Síma- ções de política externa, comando dos guar
QliUTtU parte - CÂênese- da íEscolás+ica

das adidos ao palácio real). Atacado e acu- a tradução e o comentário de todas as obras
sado pelo referendarius Cipriano, expoente de Platão, para depois mostrar a concordân-
do partido filogótico, foi preso e julgado sem cia substancial entre os dois filósofos.
ao menos ser ouvido. Foi justiçado no inverno Devido também à morte prematura,
de 524 no Ager Calventianus, ao norte de Boécio não conseguiu levar a termo o seu
Pavia. As principais acusações foram a de ter vasto e ambicioso projeto. De todo modo,
impedido o trabalho dos delatores em relação escreveu um comentário ao Isagoge de Por-
ao Senado e de ter tramado a restauração da fírio, tomando por base a tradução de Mário
autoridade do Imperador em prejuízo de Vitorino. Entretanto, insatisfeito com tal
Teodorico. tradução, realizou pessoalmente outra, mais
Os estudiosos definiram Boécio como “o correta e literal, desenvolvendo então um
último dos romanos e o primeiro dos comentário muito mais vasto. Traduziu e co-
escolásticos” e, portanto, como um dos fun- mentou as Categorias, de Aristóteles. Apron-
dadores da Idade Média. Na realidade, a ele tou a versão do De interpretatione, também
remontam as linhas essenciais que a cultura de Aristóteles, escrevendo dois comentários
da Idade Média seguirá. sobre essa obra: um, elementar, em dois li-
Em uma carta a Símaco, Boécio ex- vros, e outro, mais articulado e vasto, em
pressa a intenção de levar em conta todas as seis livros. Comentou os Tópicos, de Cícero.
ciências que conduzem à filosofia: aritmética, Ainda do Organon de Aristóteles, traduziu os
música, geometria e astronomia. E a Analíticos primeiros e segundos, os Elencos
consideração dessas ciências deveria estar sofísticos e os Tópicos.
em função da filosofia. Com tal propósito, Foi através desses textos que a Idade
Boécio projetou a tradução para o latim, com Média conheceu Aristóteles até o século XII.
comentários, de todas as obras de lógica,
moral e física de Aristóteles, bem como

2 Boécio e a lógica

Ao que tudo indica, Cousin considerou,


de modo excessivo, que o problema dos
universais é o problema da Escolástica. E
esse problema passou para a Escolástica
precisamente através de Boécio. Com efeito,
comentando o Isagoge de Porfírio, Boécio
encontrou três questões fundamentais pro-
postas por ele:
a) se existem ou não os universais —
ou seja, os gêneros e as espécies: animal,
homem etc.;
b) se eles são ou não corpóreos;
c) supondo que sejam incorpóreos, se
estão ou não unidos às coisas sensíveis.
Ora, Porfírio se propusera essas ques-
tões, mas não havia proposto soluções para
elas. Já Boécio, nas pegadas de Alexandre de
Afrodísia, formulou respostas que podem ser
qualificadas e resumidas na concepção que,
em seguida, como veremos, viria a ser cha-
mada de realismo moderado. O universal
(animal, homem etc.) só existe enquanto uni-
versal no intelecto e, por isso, os universais
Boécio (480-524) foi o mais ilustre mediador são incorpóreos. Não existe o homem
entre a antiguidade e a Idade Média. universal na realidade, só homens singulares.
Aqui reproduzimos a miniatura que abre um E abstraindo dos homens singulares as suas
códice francês do séc. XV, contendo o De características comuns — típicas da espécie
consolatione philosophiae (Viena, Biblioteca ou do gênero — que se obtêm os universais.
Nacional).
Cãpítulo oitavo - O surgimento da Éscolástica e seus desenvolvimentos

3 O consolatione
philosophiae:
Deus é a própria felicidade

A obra mais famosa de Boécio é o De


consolatione philosophiae. Em prosa e verso,
ela foi escrita na prisão e exerceu consi-
derável influência sobre o pensamento e a
espiritualidade da Idade Média.
Sigamos as linhas essenciais desta obra.
Enquanto Boécio se encontra na prisão
e se lamenta, aparece-lhe “uma mulher de
aspecto venerando, com olhos fulgurantes e
penetrantes, além da capacidade comum dos
homens”. Ela expulsa as musas que estavam
em torno de Boécio, musas que são “mere-
trizes de teatro, que não apenas não podem
oferecer qualquer remédio para as suas do-
res, como ainda as alimentam, com seus do-
ces venenos”. Boécio fixa o olhar na mulher
que apareceu e logo reconhece a sua “nu-
triz”, em cuja casa estivera desde a juventu-
de: a Filosofia.
Então a Filosofia lhe faz compreender
que ele esqueceu a si mesmo e esqueceu
que, uma vez que o governo do mundo não
está entregue “à cegueira do acaso, mas à
divina razão” nada se deve temer. Assim
começa o primeiro dos cinco livros do De
consolatione.
No segundo livro a Filosofia exorta seu
discípulo a conformar-se com as vicissitu-
des da Fortuna, que é o destino que domina a
vida humana. E, quanto mais ela parece
favorável aos homens, tanto mais lhes é con-
trária, pois os impede de ver em que consiste
Boécio, ministro do rei Teodorico e por ele a verdadeira felicidade. A partir dessas
preso porque suspeito de traição, escreveu no
idéias, típicas do bom senso, a Filosofia co-
cárcere sua obra mais famosa: De consolatione
meça uma terapia mais eficaz dos males que
philosophiae.
A ilustração alegórica mostra Boécio na afligem Boécio. Aborda o problema do bem,
prisão e a 1'ilosofia. que não se encontra nas honras, na glória,
nas riquezas, nos prazeres, no poder. Se al-
guém procurar a felicidade por esse caminho,
só encontrará soluções aberrantes: trata-se
Além de tradutor e comentador dos es-
de caminhos que “não estão em condições de
critos lógicos que mencionamos, Boécio tam-
levar ninguém àquela meta a que prometem
bém foi autor de tratados lógicos: Introductio
conduzi-lo”. Com efeito, diz a Filosofia:
ad categoricos syllogismos, De syllogismo “Tratarás de acumular dinheiro? Mas terás
categorico, De syllogismo hypothetico, De de subtraí-lo de quem o possui. Gostarias de
divisione e De differentiis topicis.
ostentar belos cargos? Terás de te rebaixar
A lógica de Boécio não é muito original,
a suplicá-los a quem pode dá-los a ti. E
mas bastante refinada. Aristóteles permanece
precisamente tu, que anseias superar todos
a sua matriz de base, mesmo que se possam
os outros em honras, te desonrarás,
localizar algumas influências da lógica
rebaixando-te servilmente a esmolá-los. As-
estóica. Ele, todavia, tem enorme impor-
piras ao poder? Expor-te-ás às traições de
tância, à medida que a lógica antiga passa
quem te estiver submetido e te submeterás
para a Idade Média justamente por meio dele.
aos perigos. Visas à glória? Mas, dispersan
Quarta parte - C\ên&se da Escolástica

do-te entre dificuldades de todo tipo, perdes tudo aquilo que se move, de alguma forma
a tua serenidade. Gostarias de transcorrer a derivam as suas causas, a sua ordem, as
vida entre prazeres? Mas quem não sentiria suas formas distintivas da imutabilidade da
desprezo e repugnância por alguém que se mente divina”. E a realização efetiva dos
faz escravo de uma coisa tão vil e frágil acontecimentos no tempo e no espaço é
como o corpo?”. Portanto, não é nessas aquilo “que foi chamado destino pelos
coisas terrenas que se deve buscar a antigos”. A providência, portanto, é “a própria
felicidade. Por outro lado, é impossível negar razão divina, que repousa estavelmente no
que existe a bem-aventurança, pois os bens supremo ser, senhor de todas as coisas, que
imperfeitos só o são à medida que participam a todas governa; já o destino é a disposição
do perfeito. Diz então a Filosofia: “Assim, é inerente às coisas mutáveis, pela qual a pro-
preciso reconhecer que Deus é a própria vidência mantém cada coisa estreitamente
felicidade (...), tanto a felicidade como Deus ligada à sua ordem”.
são o sumo bem”. E Boécio responde: E a Filosofia prossegue: os homens,
“Nenhuma conclusão (...) poderia ser mais porém, são incapazes de se dar conta de tal
verdadeira do que essa em substância, mais ordem, de modo que “tudo parece confuso e
sólida na estrutura lógica, mais digna diante subvertido”, quando, na realidade, “todas as
de Deus”. JT] coisas estão ordenadamente dispostas
segundo uma norma a elas apropriada, que as
orienta para o bem. Com efeito, não há nada
que seja feito visando ao mal, nem mesmo
4 O problema do mal por parte dos próprios maus; na realidade,
estes (...) procuram o bem, mas dele são
e a questão da liberdade
desviados por um despercebido erro de
avaliação”. Ademais, admitindo-se que al-
Estamos diante de teses de natureza guém esteja em condições de distinguir os
neoplatônica, que Boécio explicita ainda bons dos maus, “será que poderá olhar tam-
melhor no fim do terceiro livro, quando afir- bém dentro da alma, para ver como é feita a
ma que o Uno, o Bem e Deus são a mesma sua constituição íntima (...)?”
coisa. Ora, se as coisas são assim, se é a pro-
Entretanto, se “o mundo é governado vidência que governa o mundo, como é que
por Deus”, uma questão emerge como esse fato se concilia com a liberdade do
ineludível: como então existe o mal e por que homem?
os maus permanecem impunes? Esse é o Pois bem, a resposta que encontramos
problema que Boécio enfrenta no quarto livro. no quinto livro do De consolatione para tal
A Filosofia observa que todos os que se interrogação é que o conhecimento divino é
afastam da honestidade são pessoas con- conhecimento simultâneo de todos os
denadas, embrutecidas, infelizes. acontecimentos, tanto dos passados como
Este, portanto, é o resultado para quem dos futuros. Assim, “se tu quisesses avaliar
abandona a honestidade: deixa de ser homem exatamente a pré-visão com que ele reco-
e se transforma em animal. Será que a nhece todas as coisas, deverias justamente
felicidade está nisso? Ora, apesar disso, considerar que não se trata de presciência de
Boécio se surpreende com o fato de que “as coisas projetadas no futuro, mas de co-
coisas andem ao contrário: os bons sofrem as nhecimento de um presente que nunca passa.
penas devidas ao delito, ao passo que os Daí não chamar-se previdência, mas pro-
maus se apropriam da recompensa que cabe vidência (...). Por que, então, pretendes que
à virtude”. se tornem necessárias as coisas que são in-
Qual é, portanto, “a razão de tão injusta vestidas pelo lume divino quando nem mes-
confusão de valores”? A Filosofia, no mo os homens tornam necessárias as coisas
entanto, lembra a Boécio que ele não deve se que vêem? Será que, na realidade, o teu olhar
surpreender com tais coisas, desde que acrescenta alguma necessidade às coisas que
compreenda os princípios que regulam a vês como presentes?”. Em suma: em Deus,
atividade daquelas coisas que, aparentemen- estão presentes os acontecimentos futuros e
te, acontecem por acaso. E esse princípio é a estão presentes no modo como acontecem,
providência: “A origem de todo o criado, toda razão pela qual aqueles que dependem do
evolução das naturezas mutáveis e de livre-arbítrio estão presentes em sua contin-
gência.
Cãpítulo OÍtãVO - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos

5 Razão e fé em Boécio ficamente se consideram como autênticos


quatro dos cinco tratados teológicos de
Boécio. São eles:
O De consolatione pareceu para alguns a) De Trinitate;
uma obra essencialmente leiga, privada de b) Utrum Pater et Filius et Spiritus
conotações cristãs, sem referências aos mis- Sanctus de divinitate substantialiter praedi-
térios do cristianismo. Usa principalmente centur;
argumentos de inspiração platônica e neo- c) Quomodo substantiae in eo quod sint,
platônica. bonae sint;
Isso, porém, não nos deve enganar. Com d) Liber contra Eutychen et Nestorium.
efeito, os opúsculos teológicos de Boécio, As únicas reservas são as manifestadas
que talvez tenham exercido sobre o pen- sobre a autenticidade do De fide catbolica.
samento medieval influência ainda maior do Doravante está fora de discussão, por-
que o De consolatione, foram considerados tanto, que Boécio tenha sido um filósofo
apócrifos por aqueles que viram no De cristão.
consolatione apenas uma obra pagã.
Entretanto, as coisas mudaram a partir de
1875, quando Alfred Holder descobriu um 6 Outros autores
fragmento (Anecdoton Holderi) que
remontava a 522, atribuído a Cassiodoro, no do século Wao sécu lo vrn
qual, entre outras coisas, afirma-se que
Boécio “compôs um tratado sobre a Santa Magno Aurélio Cassiodoro, também
Trindade, alguns escritos sobre questões ministro de Teodorico, nasceu na Calábria
dogmáticas e uma obra contra Nestório”. entre 480 e 490, para aí se retirou após dei
Atualmente, paci

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Miniatura que representa Boécio na prisão.
Quarta parte - Gênese- da Éscolástica

xar a vida pública, fundando o mosteiro de Etymologiae, na qual resume o saber do seu
Vivarium, no qual reuniu vasta biblioteca e tempo, seguindo o fio da origem das palavras
escreveu suas obras: De anima e Institutio- (suas hipóteses são freqüentemente ar-
nes, a História dos Godos, as epístolas bitrárias, mas são ocasião para divagar nos
Variae. Seu mosteiro foi um dos primeiros mais diversos campos e nos oferecem pre-
exemplos de centro de espiritualidade e de ciosas informações sobre a cultura depois da
cultura onde devia refugiar-se o estudo do queda do Império).
passado com a aproximação dos tempos Outra obra enciclopédica foi escrita
obscuros dos “séculos de ferro”. Cassiodoro mais tarde pelo “venerável” Beda (673-735)
confirma o plano dos estudos liberais que com o monumental De rerum natura, ao lado
devem ser seguidos pelos clérigos, compre- de escritos gramaticais e retóricos; ele é
endendo, conforme o esquema traçado em mestre de Ecberto, primeiro bispo de York e
torno de 430 por Marciano Capella no De por sua vez mestre de Alcuíno. Com estas
nuptiis Mercurii et Philologiae, as artes do figuras a longínqua Britânia participa da
trivium (gramática, dialética, retórica) e do conservação do patrimônio de cultura amea-
quadrivium (aritmética, geometria, astrono- çado pelos Bárbaros.
mia, música). Mas a figura mais significativa no res-
Isidoro nasce no mesmo ano da morte surgimento e na difusão da cultura nesta fase
de Cassiodoro (570), em outro reino roma- da história da Idade Média é a de Alcuíno de
no-barbárico, o visigótico da Espanha. Além York (730-804), como fundador da Escola
de escritos teológicos e de uma História dos palatina desejada por Carlos Magno (781), da
Godos e dos Vândalos, dedicou-se a uma qual já explicamos acima as características
vasta enciclopédia em vinte livros, intitulada de grande importância.

CAffilOBO « . M N A T o h

Miniatura do séc. XII


que representa Cassiodoro.
Cãpltulo OÍtãVO - CD surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos

II. 3 oão Escoto Eri wgena

• A filosofia de Escoto Eriúgena (séc. IX) inspira-se no Teo/ ia positiva pensamento


neoplatônico, absorvido por meio da leitura do e teologia negativa Pseudo-Dionísio
Areopagita. O conhecimento de Deus começa § 7.2
com a via positiva, isto é, com a atribuição a Deus de todas as perfeições das criaturas e
termina com a via negativa, que consiste em negar como insuficientes todas as
perfeições: em tal sentido, a via negativa corresponde a uma via "superafirmativa" (Deus
é supra-substância, suprabondade etc.)

• No tratado De divisione naturae o filósofo distingue a realidade em quatro partes:


1) a natureza que não é criada e que cria, isto é, Deus;
2) a natureza que é criada e que cria, isto é, o Logos, o qual contém os modelos
ideais de todas as coisas; estes modelos, porém, não são apenas causas exemplares —
como queria Platão —, mas tornam-se também causas
eficientes por efeito do Espírito Santo, que faz derivar dos exem- 0 De divisione piares
eternos as realidades individuais; naturae
3) a natureza que é criada e não cria, isto é, o cosmo; o e sua estrutura cosmo é uma
manifestação de Deus (theophania) e o homem -> § 3
tem a tarefa específica de reconduzi-lo a Deus;
4) a natureza que não é criada e não cria, e esta é ainda Deus, entendido como fim
da História.
Neste ponto, o mundo e o homem são recapitulados em Deus: mas o homem não
perde sua individualidade, como o ar não perde sua individualidade quando é
atravessado pela luz.

• Escoto Eriúgena forneceu também uma interpretação


realista dos universais, considerando a dialética não somente "Ninguém
como regra do pensamento, mas também como a própria es- entra no céu
trutura da realidade, como a arte fundada pelo Criador no ato a não ser
da criação. Em tal sentido, não existe diferença entre religião e por meio da
filosofia enquanto ambas fazem referência a Deus; nosso filó- filosofia " -
sofo, portanto, pode afirmar que ninguém entra no céu a não +§4
ser por meio da filosofia.

1 y\ figura e a obra de do por volta de 847 na corte de Carlos, o


Calvo, chamado da Irlanda, onde nascera por
Escoto Eri úg&na volta de 810, para dirigir a escola palatina.
Quando já era um apreciado mestre na corte
Se Alcuíno foi o maior artífice do da França, foi convidado pelos bispos de
renascimento cultural carolíngio, por seu Reims e de Laon a refutar a tese da dupla
espírito organizador e pela criação de suas predestinação, de Gotescalco, para quem
primeiras obras doutrinárias, também é certo alguns estavam infalivelmente predestinados
que João Escoto Eriúgena foi a figura mais ao inferno e outros ao paraíso. Escreveu en-
representativa e prestigiosa dessa fase. Pela tão, em 851, o De praedestinatione, no qual,
poderosa síntese filosófico-teológica e pela porém, parece ter superado os limites, já que
obscuridade estrutural dos seus escritos mais chegou a falar da transitoriedade do inferno.
originais, ele foi ao mesmo tempo o gigante e Só a proteção de Carlos, o Calvo, salvou- o
a esfinge do seu século. da condenação.
Proveniente da grande forja dos escotos A pedido do próprio Imperador, traduziu
ou irlandeses (a Irlanda era chamada “Scotia o corpus dos escritos do Pseudo-Dionísio (a
maior”), Escoto Eriúgena pode ser encontra Hierarquia celeste, a Hierarquia ecle-
QudftCl parte - Gè-nese da é^scolás+ica

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Frontispício da edição
do De divisione naturae,
a obra maior de Escoto (i v a \ i t
Eriúgena, publicada em ;>iSi.i
Oxford em 1681. Í \ Ml
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siástica e a Teologia mística), que tanta di- Depois da morte de Carlos, o Calvo,
fusão tiveram na Idade Média, bem como os ocorrida em 877, não se tem mais notícias de
Ambigua, de Máximo, o Confessor (explicação Escoto Eriúgena, que, ao que parece, morreu
de passagens difíceis das obras de Gregório alguns anos depois na França.
Nazianzeno e do Pseudo-Dionísio Areopagita)
e o De opificio hominis (a criação do homem),
de Gregório de Nissa.
Mas, além de tradutor, ele também foi . 2 é-scoto éiriúg&na
,

pensador original, seja com comentários a e o Pseud o- V ionísi o


algumas obras do Pseudo-Dionísio, abrindo a
série dos comentadores medievais desse
O autor grego que mais influiu sobre
difundido corpus, seja, particularmente, com a
Escoto Eriúgena foi certamente o Pseudo-
sua obra maior De divisione naturae, em cinco
Dionísio, assim chamado porque se acredi-
livros, realizada antes de 865 sob a forma de
tava que fosse o juiz do Areópago encontrado
diálogo entre mestre e discípulo.
por são Paulo, quando, na verdade, depois se
Dentre os escritos menores, pode-se
saberia que suas obras foram elaboradas
recordar as Glosas aos opúsculos teológicos
bem mais tarde, sendo o autor de evidente
de Boécio e as Annotationes in Marcia- num
formação neoplatônica.
Capellam, que é comentário escolás- tico a Como já dissemos, no centro das refle-
um texto pagão do século V, o De nuptiis xões do Pseudo-Dionísio está Deus, cujo
Mercurii et Philologiae, de Marciano Capella. conhecimento começa com a via positiva e
Capítulo oitavo - O su^cjimento da ^Escolástica e seus desenvolvimentos

termina com a via negativa. A primeira con- de todos os predicados, limitados e finitos,
siste em atribuir-lhe as perfeições simples que estamos inclinados a atribuir a Deus. Só
das criaturas (via positiva), ao passo que a impropriamente se pode chamar de criatura
segunda consiste em negá-las (via negativa). sua primeira manifestação, porque se
Tais negações não devem ser entendi- identifica com o Logos ou Filho de Deus, não
das em sentido de privação, mas sim de produzido no espaço e no tempo, mas, se-
transcendência. Por esse motivo, a teologia gundo o prólogo do Evangelho de são João,
negativa denomina-se também teologia su- coeterno ao Pai e coessencial a ele: Deus não
per-afirmativa. Para além de todo conceito ou seria Deus se não fosse desde a eternidade o
conhecimento humano, Deus é supra-ser, gerador do próprio Logos ou sabedoria.
supra-substância, supra-bondade, supra- b) Natureza que é criada e cria. E o
vida e supra-espírito. Logos ou sabedoria de Deus, no qual estão
Embora a inspiração seja neoplatônica, a contidas as causas primordiais ou arquétipos
substância do pensamento de Escoto Eriú- de todas as coisas. Trata-se de idéias,
gena é cristã, porque ele não é monista: a modelos, espécies e formas que expressam o
unidade do todo em sentido panteísta lhe é pensamento e a vontade de Deus, chamados
estranha, como a emanação. Com efeito, entre também de “predestinações” ou “vontades
o Pseudo-Dionísio e o Neoplatonismo existe divinas”, por imitação às quais as coisas se
a barreira do Deus criador, pessoal, distinto formarão. Vista sob essa ótica, toda a criação
das criaturas. é eterna: “Tudo aquilo que está nele
Por isso, não há nada de fatal em Escoto permanece sempre e é vida eterna”. As coi-
Eriúgena, já que o retorno do homem a Deus sas, situadas no espaço e no tempo, são infe-
leva a marca de sua liberdade. riores, menos perfeitas e menos verdadeiras
A essa tese fundamental é preciso do que o modelo ou arquétipo, por causa de
acrescentar ainda a tese do processo gradual, sua mutabilidade e caducidade. E óbvio que
segundo a qual o universo está disposto do esses modelos são diversos e múltiplos para
mínimo ao máximo. Trata-se de uma nós, não para Deus, assim como a criação
hierarquia respeitada no céu e na terra, comporta mudanças para nós, não para Deus.
celeste e terrena, sobre a qual é preciso Ademais, tais modelos, ao contrário das
refletir e na qual deve- se inspirar a vida idéias perfeitas e imóveis de Platão, são
individual e social. causas eficientes e não apenas exemplares.
Pois bem, essa síntese, que influiria so- Quem transforma esses exemplares em cau-
bre pensadores como Hugo de São Vítor, sas eficientes é o Espírito Santo, que faz sair
Alberto Magno, são Boaventura e santo To- dos exemplares eternos as coisas e os
más de Aquino, influenciou poderosamente indivíduos, o que, portanto, é a “causa da
Escoto Eriúgena, que a acolheu e repensou divisão, multiplicação e distribuição de todas
em sua obra maior, o De divisione naturae. as causas em efeitos, gerais, especiais e
próprios, segundo a natureza e segundo a
graça”. Não se trata, portanto, de criação,
3 O divisione naturae mas da substância dialética da qual as coisas
são expressão e retorno. Trata-se de uma
substância da qual as coisas são feitas e que
Essa obra de Escoto Eriúgena, em cinco é, ao mesmo tempo, natural e sobrenatural,
livros e em forma de diálogo, pode ser para além de qualquer distinção das duas
resumida em quatro etapas ou divisões: ordens, que, ao contrário, se interpenetram e
a) natureza que não é criada e cria; se fundem.
b) natureza que é criada e cria; c) Natureza que é criada e não cria. E o
c) natureza que é criada e não cria; mundo criado no espaço e no tempo, que, por
d) natureza que não é criada e não cria. seu turno, não produz e não cria outras
coisas. O mundo é o que Deus quis e quer
a) Natureza que não é criada e cria. E que seja, é a sua manifestação ou theopha-
Deus, incriado e criador de todas as coisas. nía. Ele é criado do nada e não é, como que-
Sendo perfeitíssimo, Deus não é cognoscível, riam os “filósofos seculares”, uma matéria
estando acima de todos os atributos (supra- informe e eterna. Se o aspecto sensível e
substância, supra-bondade, supra-potência, múltiplo das coisas é expressão do pecado
supra-vida etc.): trata-se precisamente da original — o que se coaduna com o
via negativa do Pseudo-Dionísio, que supera neoplatonismo —, o significado último do
a teologia afirmativa porque leva à negação mundo é o homem, chamado a reassumi-lo e
reconduzi-lo
Quarta parte - Gênese da Escolástica

a Deus. Nele, oficina do universo, tudo está ra autoridade não se opõe à reta razão, nem
abarcado, é partícipe do mundo sensível e do esta à verdadeira autoridade, porque ambas
mundo inteligível, sendo portanto resumo do derivam de única fonte, isto é, da sabedoria
cosmo. A substância do homem está na alma, divina”.
de que o corpo é instrumento: “O corpo é Estabelecendo estreita correspondência
nosso, mas não é nós”. Com o pecado, o entre o pensamento e a realidade, Escoto
corpo tornou-se corruptível; originalmente Eriúgena contribuiu de modo relevante para a
imortal, voltará a sê-lo com a ressurreição. reavaliação da investigação lógico-filo- sófica
d) Natureza que não é criada e não cria. É em um contexto claramente teológico. Já no
Deus como termo final de tudo. O quarto e o De praedestinatione, escrito para refutar as
quinto livros do De divisione naturae teses de Gotescalco, evidenciava o papel
descrevem a epopéia do retorno. O tempo insubstituível da ratio, já que, à coletânea de
intermediário entre a origem e o retorno é passagens dos Padres da Igreja em uso na
ocupado pelo esforço do homem para re- sua época, ele opôs a necessidade de
conduzir tudo a Deus, na imitação do Filho de recorrer à razão para explicar e esclarecer
Deus, que, encarnando-se, recapitulou em si trechos controversos e teses contrapostas.
o universo e mostrou o caminho do retorno. Escoto Eriúgena superou a concepção
Por isso, a encarnação de Deus é um fato da lógica como simples técnica de linguagem,
capital, ao mesmo tempo natural e sobrena- que remontava às escolas de retórica e de
tural, filosófico e teológico. O retorno se dá direito do Baixo Império, desenvolvendo uma
em fases: a dissolução do corpo nos quatro interpretação realista dos universais em um
elementos; a ressurreição do corpo glorioso; contexto claramente teológico. Com efeito, no
a dissolução do homem corpóreo no espírito e seu De divisione naturae, a dialética é
nos arquétipos primordiais; por fim, a na- entendida como a própria estrutura da
tureza humana e suas causas, que se movem realidade no seu realizar-se: em suas duas
em Deus como o ar na luz. Então, Deus será fases, ascendente e descendente (a divisio,
tudo em cada coisa; aliás, não haverá nada do uno ao múltiplo, e a reductio, do múltiplo
mais além de Deus. Não se trata de dissolução ao uno), constitui o ritmo interno da natureza
da individualidade, mas na sua conservação e da história do mundo. A dialética é antes de
da mais elevada forma: como o ar não perde tudo uma arte divina, fundada na própria obra
sua natureza quando penetrado pela luz, e o do Criador. E é por isso que os homens
ferro não se anula quando se funde ao fogo, descobrem e não criam a dialética, como
da mesma forma toda natureza se assimilará instrumento de compreensão do real e de
em Deus sem perder sua individualidade, elevação a Deus. Desse modo, Escoto Eriú-
ontologicamente transfigurada e não anulada. gena abole toda distinção entre religião e
[T] filosofia: “A verdadeira filosofia outra coisa
não é do que religião e, inversamente, a
verdadeira religião outra coisa não é do que
verdadeira filosofia”. E, nesse contexto re-
ligioso, ele chega a dizer que ninguém pode
:4 ;A razão em função da fé entrar no céu a não ser passando pela filo-
sofia {Nemo intrat in caelum nisi per pbi-
losophiam).
Nenhuma autoridade — diz Escoto
Eriúgena — deve te afastar das coisas que
são ensinadas pela reta razão. “A verdadei
139
Capítulo oitavo - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos ____________________

Quando ela viu as Musas da poesia que


BOÉCIO estavam ao lado de meu leito e ditavam palavras aos
meus prantos, um pouco perturbada e acesa nos
olhos severos, disse: "Quem permitiu que estas
mulherzinhas de teatro se aproximassem do doente,
a elas que não só não suavizariam suas dores com
algum remédio, mas, ao contrário, as fomentariam
D fl consolação da filosofia com doces venenos? São justamente estas, na
verdade, que sufocam, com os estéreis espinhos dos
afetos, o colheita da razão fecunda de frutos, e acos-
Boécio vive encarcerado injustamente e tumam a mente dos homens ao mal, em vez de
Fechado em uma torre à espera de um processo libertá-los deste. G mesmo que vossos lisonjas,
que jamais se realizará. Está consciente de suo como em geral acontece, desviassem algum profano,
inocência e de ser vítima de uma conjuração, e julgaria poder suportá-lo com menor aflição: nele não
seu ânimo está prostrado e abatido: neste ponto provocariam certamente nenhum dano à nossa obra.
intervém a FilosoFia, personiFicada em uma Gste, porém, cresceu nos estudos eleáticos e
mulher majestosa que acadêmicos; retirai-vos, portanto, sereias doces que
o visita no cárcere. Ela represento a voz da reta levam à morte, e deixai-o para que minhas musas o
razão que traz o equilíbrio e a serenidade por meio curem e o recuperem!'1
de argumentações sobre os valores da vida, sobre fl tais reprovações o coro inclinou melan-
a Felicidade, a liberdade e a verdade suprema que colicamente a face para a terra, e, revelando no rubor
é Deus. a vergonha, transpôs confuso a soleira da porta. G
eu, que tinha a visão obscureci- da pelas lágrimas e
nem podia distinguir quem fosse esta mulher de
autoridade tão imperiosa, permaneci estupefato, e
1. fl aparição da Filosofia
dirigindo os olhos para o chão me dispus a esperar
Gnquanto silenciosamente eu considerava estas em silêncio aquilo que deveria ser feito em seguida.
coisas, e punha por escrito minha lamentação cheia Gntão ela, vindo mais perto, sentou-se na extremida-
de lágrimas, pareceu-me que se curvasse sobre de de meu cotre, e olhando fixamente minha face
minha cabeça uma mulher de rosto como que grave por causa da dor profunda e dirigida para o
venerando, de olhos fulgurantes e penetrantes para chão por causa da aflição, lamentou-se por causa da
além da capacidade humana, com a face encarnada e perturbação de minha mente [...].
inesgotável vigor — embora fosse tão sobrecarregada
de anos que não se podia crer de nossa época —, de
estatura difícil de avaliar. Com efeito, ora se reduzia à 2. fl felicidade está dentro, e
medida normal dos homens, ora parecia tocar o céu não fora de nós
com a parte superior da cabeça; depois, quando a Gntão eu disse: "G verdade tudo o que me
levantava ainda mais para o alto, penetrava também o trazes à mente, ó nutriz de todas as virtudes, nem
próprio céu e desaparecia aos olhos daqueles que a posso desmentir a época, embora rapidíssima, de
observavam. Suas vestes eram tecidas, com refinada minha prosperidade. Mas é isso que
destreza, de sutilíssimos fios de matéria indestrutível, verdadeiramente mais me atormenta, quando penso
e elo própria (como depois soube por sua boca) as na questão: uma vez em toda adversidade da sorte,
tecera com as próprios mãos; um véu, por assim o ter sido feliz é o tipo mais doloroso de infortúnio".
dizer, de descuidado antiguidade obscurecia seu Gla respondeu: "Tu, porém, não podes
esplendor, como acontece nas pinturas expostas à razoavelmente atribuíra culpa às próprias coisas pela
fumaça. Na orla inferior lio-se, recamodo, um n grego, pena que suportas por ter nutrido uma falsa opinião.
na superior um © (a letra theto); entre uma e outra Na verdade, se te perturba este nome vazio de uma
apareciam desenhados a modo de escada alguns felicidade sujeito ao acaso, consideremos juntos
degraus mediante os quais se podio ascender da mais quão grandes e numerosos são os bens dos quais
baixa à mais alta. Mesmo assim as mãos de alguns usufruis. Se por graça divino te é conservado íntegro
violentos haviam lacerado a veste, e dela retiraram e intacto aquilo que possuías de mais precioso em
todos os fragmentos que podiam. G sua direita segu- todo o patrimônio da tua fortuna, poderás
rava alguns pequenos livros, a esquerda um cetro. razoavelmente lamentar-te da má sorte, embora
mantendo todos os teus melho
Quarta parte - C\&ne.se da Êscolás+ica

res bens? feto ainda vigoroso e incólume aquele tem nenhuma experiência disso, e dó medo a quem
preciosíssimo orgulho do gênero humano que é o teve. Acrescenta depois que quanto mais uma
Símaco, teu sogro, e — coisa que resgatarás pessoa é afortunada, mais delicada é sua
voluntariamente com o preço da vida — tal homem, sensibilidade, e que, se tudo não está exatamente a
todo sabedoria e virtude, se lamenta pelas ofensas a seu gosto, não sendo avessa a qualquer
ti dirigidas, sem cuidar-se das que podem atingi-lo. adversidade, abate-se diante da menor delas:
Está viva tua esposa, mulher de índole reservada, de infinitas são as coisas que privam os mais
singular modéstia e honestidade e, para resumir afortunados da felicidade perfeita. Tens idéia de
brevemente todos os dotes dela, semelhante ao pai; quantos se julgariam quase no céu se tivessem
vive, eu te digo, e, chegando a odiar esta vida, anima- como sorte uma parte ainda que mínima daquilo que
se apenas por ti, e se consome em lágrimas e dor resta de tua fortuna? Este mesmo lugar, que chamas
com tua falta (único motivo pelo qual também eu de exílio, é a pátria para aqueles que aí habitam. De
julgaria que perdeste parte de tua felicidade). Que modo que é verdade que a miséria está na opinião
direi depois a respeito de teus filhos já cônsules, de que dela se tem, e que ao contrário feliz é a sorte,
cuja índole, herdada tanto do avô quanto do pai, já seja ela qual for, daquele que a tolera com espírito
aparece um claro ensaio, como é possível em jovens sereno. Quem é tão feliz a ponto de não desejar
daquela idade? Portanto, uma vez que a principal mudar o próprio estado, quando se deixa tomar pela
preocupação dos mortais é a de conservar a vida, impaciência? De quantas amarguras é coberta a
feliz de ti, se conhecesses teus bens, dado que doçura do felicidade humana! Mesmo que ela possa
também agora tens em abundância aquelas coisas parecer agradável a quem dela goza, todavia não se
que ninguém duvida ser mais preciosas na vida. Por lhe pode impedir de ir embora quando quiser, é pois
isso, enxuga as lágrimas; a fortuna ainda não passou evidente o quão miserável é a felicidade derivada
a odiar a todos até o último, nem se desencadeou das coisas mortais, que não dura para sempre nem
sobre ti uma tempestade demasiado veemente, uma mesmo naqueles que não se deixam por elas se-
vez que permanecem firmes âncoras que não duzir, nem satisfaz completamente aqueles que a
permitirão que te falte o conforto do presente e a procuram com afã".
esperança do futuro". "Portanto, por que, ó mortais, procurais fora de
Respondi: "Peço que elas estejam firmes; vós a felicidade que está dentro de vós? O erro e a
enquanto permanecerem, com efeito, seja como ignorância vos confundem. Agora te mostrarei
forem as coisas, eu serei salvo. Mas vês que grande brevemente o fulcro sobre o qual se apóia a mais alta
parte de nossas distinções foi-se embora". Ela disse: felicidade. Existe algo mais precioso para ti do que tu
"Teremos feito certo progresso, caso de modo mesmo? Não, res- ponderás; e, portanto, se fores
nenhum te lamentes de tua sorte. Mas não posso senhor de ti mesmo, possuirás aquilo que jamais
suportar a volúpia com a qual com tanto pranto e desejo- rias perder, nem a fortuna te poderia
ansiedade lamentas que falte alguma coisa à tua arrebatar. E para que reconheças que a felicidade
felicidade. Com efeito, quem possui uma felicidade não pode consistir nestes bens fortuitos, raciocina
tão privada de nuvens que não contraste em algo assim. Se a felicidade é o sumo bem da natureza
com a natureza de seu estado? fl condição dos bens dotada de razão, e se não é sumo aquele bem que
humanos é na verdade coisa gue produz angústia, e de algum modo pode ser tirado, pois lhe é superior
tal que ou não se realiza nunca plenamente ou jamais aquele bem que não pode ser tirado, torna-se claro
dura para sempre. Cste está repleto de riquezas, mas que o instabilidade da fortuna não pode aspirar a
enrubesce por causa de sua obscura ascendência; possuir a felicidade. Além disso, aquele que é
aquele é famoso pelo nobreza das origens, mas se dominado por esta felicidade caduca, ou sabe que
debate em restrições econômicas tais que preferiria ela é mutável ou não sabe. Se não sabe, pode ser
ser desconhecido. Aquele que é abundantemente feliz a sorte de quem vive na cegueira da ignorância?
provido de ambos os bens chora seu celibato; aquele Se sabe, necessariamente teme perder aquilo que
que é afortunado no matrimônio, mas privado de certamente poderá perder; e por isso o contínuo
filhos, acumula riquezas para um herdeiro estranho; temor não lhe permite ser feliz. Ou talvez, se o tiver
aquele, por fim, que se alegra com os filhos derrama perdido, pensa que seja coisa sem importância? Mas
lágrimas amargas pelos erros do filho ou da filha". também então é bastante insignificante aquele bem
"Ninguém, portanto, se encontra facilmente em cuja perda pode ser suportada serenamente. Sei que
sintonia com o própria sorte; em cada um há sempre estás persuadido e firmemente convicto, por
algo que é ignorado por quem não muitíssimas demonstrações, que as mentes dos
homens não
Capítulo oitavo - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos

sõo de modo olgum mortais, e é evidente que a efeito, é ser incluído ao longo do arco de uma vida
felicidade dada pelo acaso termina com a morte do sem termo — coisa que Platão atribui ao mundo —,
corpo. Não hó dúvida, portanto, de que, se esta outra é acolher em si a presença total e simultânea
felicidade pode trazer a bem- aventurança, todo o de uma vido sem fim, o que evidentemente é próprio
gênero humano caio na infelicidade no momento final da mente divina. Nem Deus deve parecer mais antigo
da morte". que as coisas criadas por quantidade de tempo, mas
sim por prerrogativa de suo simples natureza, o movi-
3. fl eternidade de Deus e a mento infinito dos coisos temporais imita justamente
liberdade do homem o estado presencial da imóvel vido divina, e, nõo
podendo reproduzi-lo ou igualá-lo, da imobilidade
"Uma vez que, portanto, como pouco antes
decai para o movimento, da simplicidade do presença
ficou demonstrado, tudo aquilo que se conhece é
se reduz à infinito extensão do futuro e do passado.
conhecido não em virtude da própria natureza, mas
Cmbora nõo estando em grau de possuir
da natureza daqueles que o compreendem, vejamos
contemporaneamente o plenitude total da próprio
agora, conforme nos é permitido, qual é a condição
vida, apesar de tudo isso, pelo próprio foto de que de
da essência divina, de modo o poder também
algum modo jamais cessa de ser, parece querer
reconhecer qual é a sua ciência, C juízo comum de
emular em certa medida aquilo que não pode igualar
todos os seres providos de razão que Deus é eterno.
e exprimir plenamente, estreitando-se àquele tipo de
Consideremos portanto o que seja a eternidade; esta,
presença que é própria deste breve e fugaz
com efeito, nos desvelará ao mesmo tempo a
momento. Uma vez que tal presença traz em si, por
natureza e a ciência divina, fl eternidade, pois, é a
assim dizer, uma imagem daquela impere- cível,
posse simultânea e perfeita da vida sem fim, coisa
fornece uma aparência de existência àqueles seres
que aparecerá mais clara a partir de um confronto
aos quais tocou como sorte; todavia, uma vez que
com as realidades temporais. Tudo aquilo que vive no
não pôde permanecer imóvel, tornou-se senhora de
tempo procede no presente do passado para o futuro,
um infinito itinerário de tempo, prolongando deste
e não há nada, daquilo que é colocado no tempo, que
modo, no devir, a vida que não pôde abraçar em sua
possa abraçar conjuntamente todo o espaço da
plenitude permanecendo imóvel. Portanto, se
própria vida; enquanto não consegue ainda agarrar
quiséssemos dor às coisas seu justo nome, diríamos,
aquilo que acontecerá amanhã, já perdeu aquilo que
seguindo Platão, que Deus é eterno, o mundo, ao in-
foi ontem; e também na vida do hoje viveis apenas no
vés, é perpétuo".
átimo móvel e fugidio. Portanto, tudo aquilo que é
"Uma vez que, portanto, toda faculdade de
condicionado pelo tempo, mesmo que, como afirma
julgamento compreende, segundo a própria natureza,
Aristóteles a propósito do mundo, nõo tenho jamais
as coisas por ela subsumidas, e Deus se encontro
começado a ser e jamais termine, e a duração de sua
sempre em um estado de eterna presença; também
vida coincida com a infinidade do tempo, todovia não
sua ciência, ultrapassando toda mutação temporal,
é ainda tal de modo a poder ser corretamente julgado
permanece no simplicidade da própria presença, e
eterno. Cie, com efeito, nõo compreende em si e nõo
abraçando todos os espaços infinitos do passado e
abraça em sua totalidade simultaneamente o espaço
do futuro os contempla no próprio e simples oto de
de uma vida mesmo que infinita, enquanto não possui
conhecimento, como se acontecessem justamente
ainda as realidades futuras, e não possui mais as já
naquele momento. De formo que, se quise- res julgar
transcorridos. Aquele ser, portanto, que encerra e
bem a previdência, com o qual ele discerne todas as
possui em si simultaneamente a plenitude total de
coisas, afirmarás de modo mais justo que seja nõo
uma vida sem fim, e ao qual nõo falta nada do futuro
pré-ciência, por assim dizer, do futuro, mas ciência
e nada do passado tenha escapado, apenas este
de uma presença que jamais falta; razão pelo qual é
com razão é julgado ser eterno, e é necessário que,
melhor chamado de providência do que previdência,
plenamente senhor de si, esteja sempre presente e
porque, posta bem longe dos seres mais baixos, vê
por assim dizer ao lado de si mesmo, e tenha
dionte de si o universo inteiro como do vértice mais
presente a si o infinito transcorrer do tempo".
excelso dos coisas. Por que pretendes então que se
"Crram portanto aqueles que, tendo co-
tornem necessárias as coisas que sõo investidas pela
nhecimento do opinião de Platão, de que este mundo
luz divina, quando sequer os homens tornam
nõo teve um início de tempo e não terá fim, afirmam
necessárias as que vêem? Talvez teu olhor
por isso que o mundo criado se torna coeterno a seu
acrescenta uma necessidade qualquer às coisas que
Criador. Uma coiso, com
vês presentes a ti? De
Quarta parte - Gênese da Ê-scolás+ica

modo nenhum! Todavia, se é lícito um confronto entre tecimentos futuros que provêm da liberdade de
o presente divino e o humano, como vedes algumas decisão; os quais, portanto, quando referidos à
coisas neste vosso presente temporal, da mesma intuição divina, tornom-se necessários para a
forma ele as penetra todas em seu presente eterno, fl condição do conhecimento divino; considerados ao
pré-ciência divina, portanto, não muda a natureza e invés em si mesmos, não perdem a absoluta
as propriedades das coisas, e as vê presentes diante liberdade da própria natureza. Acontecerão portanto
de si do modo como acontecerão um dia no tempo. £ sem nenhuma dúvida todas os coisas que Deus
não confunde os juízos feitos sobre as coisas, mas conhece antecipadamente que sucederão, mas
com um só intuito da sua mente conhece até o fundo algumas delas brotam do livre-ar- bítrio, e, embora se
tanto aquilo que acontecerá necessariamente, como realizem, não por isso perdem a própria natureza, em
aquilo que acontecerá não necessariamente, como virtude da qual, antes que se realizassem, teriam
vós, quando vedes contemporaneamente um homem podido também não realizar-se".
que caminha sobre a terra e o sol que surge no céu, "Mas o que importa — me dirós — que não
distinguis uma coisa da outra, mesmo que as vejais sejam necessárias, a partir do momento que, por
juntas, e julgais voluntária a primeira e necessária a causa da condição da ciência divina, disso resultará
segunda. Da mesma forma, portanto, ocorre com o em todo caso uma necessidade equivalente? Isto
intuito divino, discernindo cada coisa não ultrapassa importa, isto é, que dos fatos há pouco citados, o sol
em nada a qualidade das coisas que a ele estão que surge e o homem que caminha (dois eventos
presentes, enquanto em relação à condição do tempo que, enquanto acontecem, não podem não
sejam futuras. Por conseguinte, quando Deus acontecer), um, ainda antes que acontecesse, devia
conhece que sucederá alguma coisa que ele sabe necessariamente existir, o outro não; assim também,
privada da necessidade de existir, esta não é uma aquelas realidades que Deus tem presentes a si sem
opinião, mas um conhecimento fundado sobre a nenhuma dúvida existem, mas delas algumas brotam
verdade. da necessidade natural, outras da vontade daqueles
"€ se a este ponto dissesses que aquilo que que os realizam. Não erradamente, portanto,
Deus vê no futuro não pode não acontecer, e que dizemos que estas coisas, caso as consideremos em
aquilo que não pode não acontecer acontece por sua relação ao conhecimento divino, são
necessidade, e me pusesses em apuro sobre este necessárias, mas, se as considerarmos em si
tema da necessidade, eu te mostrarei uma realidade mesmas são livres dos vínculos da necessidade,
absolutamente verdadeira, mas tal que dificilmente assim como tudo aquilo que os sentidos percebem é
poderia atingir quem não esteja enfronhado na universal se o referimos à razão, particular se o
contemplação de Deus. £u te responderia que o referimos a si mesmo".
próprio futuro, se o considerarmos em relação ao "Todavia, se está em meu poder — dirós
conhecimento que Deus dele tem, é necessário, mas, — mudar de propósito, tornarei vã a providência,
quando o examinamos em sua própria natureza é quando por acaso mudar minhas intenções, que ela
absolutamente livre e privado de vínculos. Há, com conhece com precedência. Gla responderá que
efeito, duas espécies de necessidade; uma simples, podes mudar o teu propósito, mas não podes te
como, por exemplo, que necessariamente todos os subtrairá pré-ciência divina, pois a presente verdade
homens são mortais, a outra condicional, como da providência vê que podes fazê-lo, e tombém se o
quando se tu sabes que tal pessoa caminha, é fazes, e para qual coisa te diriges, assim como não
necessário que ela caminhe. Aquilo que alguém poderias fugir ao olhar de um olho que te
conhece não pode ser diversamente de como é supervisiona, por mais que com livre vontade tu te
conhecido; esta necessidade condicional, porém, não dirijas às mais variadas ações. Mas então,
traz consigo a necessidade simples. Não dá origem à perguntarás, o ciência divina mudará conforme a
necessidade condicional a natureza própria de uma minha disposição, de modo que, quando eu quiser
coisa, mas a acresce de uma condição; nenhuma isto ou aquilo, também elo parecerá alternar o modo
necessidade obriga com efeito a caminhar aquele de conhecer? De modo nenhum, fl intuição divina
que caminha voluntariamente, por mais necessário corre adiante de todo evento futuro, e o traz e chama
seja que, enquanto caminho, ele caminhe. Do mesmo de novo à presença do próprio conhecimento; e não
modo, portanto, se a providência vê alguma coisa se alterna, como crês, ao prever ora isto ora aquilo,
como presente, é necessário que ela exista, embora mas em um único olhar simples, permanecendo
não tenho nenhuma necessidade de natureza. Pois imóvel, prevê e abraça tuas mudanças. € este poder
bem, Deus vê como junto a si presentes os acon de compreender e de ver todas as coisas. Deus não
o tem do êxito das realidades futuras, mas a partir da
própria
, 1411
Capitulo oitavo - O surgimento da Escolástica e seus desenvolvimentos ------------------------

simplicidade. Desse modo fica resolvida também a de nosso espírito, que é a divisão em coisas que
questão posta há pouco, isto é, que seria coisa existem e coisas que não existem, foi-me oferecido
indigna dizer que nossas ações futuras sejam causa um termo geral para exprimir umas e outras, a
da ciência divina, fl força da ciência divina, com palavra grega physis, que corresponde à latino
efeito, abraçando todas as coisas com seu noturo. Ou talvez não te pareça que as coisas sejam
conhecimento presencial, fixou para toda coisa o assim?
próprio limite, e nada deve às que acontecerão em DISCÍPULO - Ao contrário, estou de acordo; pois
seguida". também eu, quando começo a raciocinar, vejo que é
"Posto isso, permanece intacta para os exatamente assim.
homens a liberdade de escolha, e não injustamente MCSTRC - Natureza é, portanto, o nome geral de
as leis estabelecem penas e prêmios, pois as todas as coisas que existem e que não existem.
vontades deles são livres de qualquer necessidade; DISCIPULO - Sim; nada, com efeito, pode se
e permanece que Deus tudo conhece apresentar a nosso pensamento a que nõo se possa
antecipadamente, olhando do alto. fl eternidade aplicar tal palavra.
sempre presente de sua visão converge com a MCSTRC - Portanto, uma vez que estamos de
qualidade futura de nossas ações, dispensando acordo sobre este termo geral, gostaria que me
prêmios aos bons, castigos aos maus. Não é vão dissesses como a natureza se divide em diferentes
repor em Deus esperanças e preces, que, quando espécies. Ou, se crês, primeiro experimentarei dividir,
são retas, não podem não ter eficácia. Afastai-vos, e julgarás se a divisão é bem-feita.
portanto, dos vícios, praticai as virtudes, elevai o DISCÍPULO - Começa então; estou impaciente de
espírito a esperanças justas, dirigi ao céu preces ouvir de ti o verdadeiro modo de dividi-la.
humildes. Cabe a vós, caso não queirais fingir não MCSTRC - Parece-me que a natureza se divide,
sabê- por quatro diferenças, em quatro espécies: a primeira
lo, uma grande necessidade de ser retos, pois é aquela que cria e não é criada, a segunda é criada
vossas ações se realizam diante dos olhos de um e cria, a terceira é criada e não cria, a quarta nõo cria
juiz que vê todas as coisas". nem é criada. Cs- tas quatro se opõem duas o duas,
Boécio, Fl consolação do filosofia. pois a terceira se opõe à primeira e a quarta à
segundo; mas a quarta parece impossível porque sua
diferença específica é o fato de não poder ser.
Parece-te justa esta divisão ou não?
DISCÍPULO - Justa; mas eu desejaria que tu a
repetisses para que me ficasse mais clara a oposição
ESCOTO ERIÚGENA das formas que mencionaste.
MCSTRC - Parece-me que devas ver a oposição
entre a primeira e a terceira, pois a primeira cria e
não é criada, e se lhe opõe aquela que é criada e
não cria. fl segunda depois se opõe à quarta, pois a
segunda é criada e cria, enquanto a quarta nem cria
2 fl quadrúplice divisão nem é criada.
da natureza DISCÍPULO - Vejo claramente. Mas me perturba
muito a quarta espécie que acrescentas- te; sobre as
outras, com efeito, não tenho hesitações, pois com a
Fortemente influenciado pelo neoplatonismo primeira entendemos, parece-me, a causa de tudo
cristão do Pseudo-Dionísio fíreopa- gita, €scoto aquilo que existe, e daquilo que não existe; com a
propõe uma subdivisão hierárquica da natureza em segunda, as causas primordiais; com a terceira,
quatro partes: aquilo que se gera e existe no tempo e no espaço.
1) Deus (natureza não crioda que crio); Por isso, parece-me necessário discutir mais parti-
2) Logos (natureza criada que cria); cularmente sobre cada uma delas. [...]
3) mundo (natureza criado que não cria); MCSTRC - Recolhamos então em unidade,
4) Deus como fim último (natureza não criada procedendo analiticamente, as quatro formas
que não cria). anteriormente mencionadas que coincidem entre si. fl
primeira e a quarta são uma só realidade, pois se
aplicam apenas a Deus: Deus é, com efeito, o
princípio de todas as coisas cria
MCSTRC - Tendo freqüentemente pensado e
estudado atentamente, o quanto me permitiam as
forças, à primeira divisão das coisas perceptíveis e
das que superam a capacidade
Quarta parte - C\'èn ese dct (~SÍ ; i

das, 0 é o fim ao qual todas tendem para repousar dade. Vês então que duas das quotro formas acima
nele 0t0rnam0nt0 0 Ímutav0lm0nt0. Di- z0mos, com mencionadas, a primeira e a quarta, se reduz0m ao
efeito, que a causa de toda coisa cria, porqu© dela, Criador, 0 as outras duas, a segunda 0 a terceiro, se
com admirável 0 divina multiplicação, proc0d0 o reduz0m à criatura?
conjunto das coisas qu0 d©la e d©pois d©la foram DISCIPUIO - Vejo, 0 admiro o complexidade das
criadas, 0m gên0ros, ©spécies, números, dif0r0nças, coisas. D0 fato, as duas primeiras formas não se
0 tudo aquilo qu0 s© consid0ra existente em distinguem em Deus, mas em nossa contemplação, 0
naturoza. Mas, uma vez qu© tudo isso qu0 delo não são formas de Deus, mas de nossa razão, pelo
procede voltará à mesma causa, quando chegar QO dupla noção de princípio e de fim; nem se reduzem à
fim, por isso a causa primeira se diz fim de toda unidade em Deus, mas em nosso teoria que,
coisa, e enquanto tal não crio nem é criada. Com efei- enquanto considera o princípio e o fim, crio em si
to, quando tudo tiver voltado o ela, nada procederá mesma duas formas de contemplação e as reúne
mais dela por geração, lugar 0 t0mpo, 0m gêneros e depois em uma, quando extraídos da simplicidade
espécies, pois tudo será quieto, imutável, e divina. Princípio e fim, de fato, não são nomes pró-
indivisivelmente um [...]. Vê, portanto, que a primeiro prios da natureza divina, mas de sua relação com as
e a quarta forma da natureza se reduzem a uma só coisas criadas. Dela com 0feito extraem sua origem,
realidade? e por isso ela se chama princípio, 0 uma vez qu© a
Discípulo - Vejo e entendo. Com efeito, em Deus a ela so dirigem, para nela terminar, elo recebe o nome
primeiro forma não se distingue do quarto: em Deus, de de fim. As outras duas formas, ao invés, digo a
fato, nõo existem duas realidades, mas apenas uma; segunda e a terceira, surgem não só em nosso
todavia, uma vez que de Deus temos uma noção quando o contemplação, mas se encontram na própria
consideramos como princípio, 0 outro quando o conside- natureza das coisos criados, na qual as causas sõo
ramos como fim, em nossa teoria 0los apar0C0m como separadas dos efeitos, e os efeitos se unem às
duas formas, constituídos na simplicidade da natureza causas, umo vez que são uma só coisa em seu
divina pelo duplo olhar de nossa contemplação. gênero, ou seja, no foto de serem criaturas.
MCSTRC - Vês de forma correta. C então? MCSTRC - De quatro, portanto, se tornam
Devemos reduzir a uma só realidade também a duas.
segunda e o terceira forma? Com efeito, creio que DISCÍPULO - Não me oponho.
não te escopo que, assim como a primeira 0 a quarto MCSTRC - O que dirias de unir a criatura ao
se consideram no Criador, do mesma formo a Criador, de modo a não conceber nele senão aquele
segunda e o terceiro se consideram na criatura, fl que única e verdadeiramente é? Com efeito, nada
segunda, de fato, como dissemos, é criada e cria, e que está foro dele dizemos verdadeiramente ser, pois
por ©Ia entendemos as causas primordiais dos coisas tudo aquilo que dele procede não é outra coisa,
criadas; a terceira forma é criada e não cria, 0 50 enquanto existe, senão uma participação daquele
encontra nos efeitos dos causas primordiais, fl que apenas subsiste por si e para si. Negarás,
segunda e a terceira, portanto, estão contidos em um portanto, que
mesmo gênero, o do natureza criada, e nisso são o Criador 0 a criatura sõo um único sor?
uma só realidade: as formas, com efeito, consi- DISCÍPULO - Nõo o negaria facilmente, pois
deradas em seu gênero, são umo única reali parece-me ridículo opor-me a esta reunião.
€scoto Criúgena, De
divisione noturoe.
A ESCOLASTICA NOS
SÉCULOS DÉCIMO
PRIMEIRO E DÉCIMO
SEGUNDO
■ A consolidação das relações entre razão e fé

“Eu não tento, Senhor, mergulhar em teus mistérios,


porque minha inteligência não é adequada; desejo,
porém, entender um pouco da tua verdade, que o meu
coração já crê e ama. Não procuro compreender-te
para crer, mas creio para poder te compreender. ”

Anselmo de Aosta
Capítulo nono

Anselmo de Aosta 147

Capítulo décimo

Abelardo e a grande controvérsia sobre os universais 161

Capítulo décimo primeiro

Centros promotores de cultura do século décimo segundo. As


escolas de Chartres e de São Vítor,
Pedro Lombardo e João de Salisbury
177
(Sapí+ulo kAcmo

T^nselmo de ^osta

• Anselmo nasceu em Aosta em 1033, de nobre famí- vjd


lia. Entrou no mosteiro beneditino de Santa Maria de Bec na de Anse / mo
Normandia, do qual se tornou prior e depois abade, em de Aosta
1078. Passou os últimos anos em Canterbury, onde morreu _> 7
em 1109.

• A Anselmo de Aosta interessa sobretudo o problema de Deus, a respeito do


qual ele distingue a questão da existência da questão da natureza. No Monologion
Anselmo formula quatro provas da existência de Deus, chamadas a posteriori por-
que partem da natureza das coisas:
1) a primeira parte da existência de coisas boas para re-
montar à Bondade absoluta; As quatro
2) a segunda parte da variedade das grandezas para che- provas a
gar a uma suma grandeza, da qual as outras participam; posteriori da
existência de
3) a terceira baseia-se sobre o conceito de causa: tudo o que
Deus ->2-3
é existe por causa de alguma coisa; é preciso, portanto, admitir
um Ser supremo em virtude do qual existem todas as coisas;
4) a quarta se baseia sobre os graus de perfeição que remetem a uma perfei-
ção suma.
Estas provas subentendem uma concepção realista dos universais, que faz aos
conceitos das realidades existentes corresponder Idéias universais e arquetípicas
subjacentes na mente de Deus, e usadas como modelos da criação.

• No Proslogion Anselmo introduz uma prova ulterior da existência de Deus a


priori (ou seja, que não depende da natureza das coisas) a qual é conhecida como
"argumento ontológico". Deus é a realidade da qual nada se
pode pensar de maior. Assim sendo, quando quiséssemos ne-
gar a existência de Deus, tomado justamente na acepção defi- O
nida, cairíamos em uma autocontradição, enquanto chegaría- argumento
mos a admitir a existência mental de Deus (porque de outro ontológico
modo não seria pensado e, portanto, também não negado), (a priorij -
mas não sua existência real. Todavia, deste modo, privamos Deus >4-5
da perfeição da existência e isso contradiz a própria noção do Deus no qual pensa-
mos, ou seja, "o ente do qual nada se pode pensar de maior" (em resumo: o Deus
apenas pensado é inferior ao Deus também existente).
Este argumento — chamado também a simultâneo, enquanto passa diretamente da
idéia à existência — naturalmente sofreu muitas críticas (por exemplo, as de seu
discípulo Gaunilon, de santo Tomás e, em época moderna, de Kant) e também
confirmações significativas (são Boaventura, Duns Escoto, Descartes, Leibniz).

• O conhecimento humano se baseia sobre o conceito, e o conceito é mais


ou menos verdadeiro conforme sua maior ou verdade menor adequação em
relação às coisas. O pensamento reto é, e liberdade portanto, aquele que exprime a
realidade assim como ela é. 6 Para Anselmo existe também uma retidão da
vontade e da li-
Quinta pürte - y\ Escolástica nos séculos décimo primeiro e décimo secjundo

berdade; a liberdade é a capacidade de agir conforme o bem, e não a possibilidade de


pecar, porque de outro modo Deus não seria livre.

• Mas como se concilia a liberdade humana com a onipo-


Liberdadehumana tência/onisciência divina? Concilia-se admitindo que Deus pre- e
onisciência vê as coisas no modo (da necessidade, da possibilidade, da li- divina
berdade) como acontecerão, e isto se torna possível pelo fato
-> 7 de que a previsão divina tem lugar na eternidade, enquanto a
realização tem lugar no tempo.

• Complexivamente, a especulação de Anselmo se realiza na relação de razão/fé e


se propõe esclarecer com a razão aquilo que se possui com a fé: em suma, a razão se
move ao longo do traçado da fé para explicitar sua "Credo ut verdade. Compreende-
se, portanto, o sentido de sua célebre
intelligam" afirmação credo ut intelligam; nela está implícito um uso
7 confirmativo da fé em confronto com a razão, onde a fé é vista
como a garantia da verdade da razão.

1 A vida e as obras Nascido em Aosta em 1033, de família


de ;Arvselmo nobre, Anselmo deixou a casa paterna com a
morte prematura da mãe, passando a pere-
grinar por vários mosteiros na França. Por
Enquanto Escoto Eriúgena é o pensador fim, ingressou no mosteiro beneditino de
de maior destaque do século IX, Anselmo de Bec, na Normandia, onde transcorreria seus
Aosta ocupa esse lugar no século XI. melhores e mais fecundos anos, primeiro co-
Entre os séculos IX e X, o caráter fluido mo monge e depois como prior e abade.
das condições políticas e das estruturas Nesse período, entre 1076 e 1077, ele
econômico-sociais explica, de certa forma, a escreveu suas obras mais famosas: o Mono-
estagnação da cultura e sua extrema logion (ou seja, “Solilóquio”) e o Proslogion
fragmentação. E um período de transição (“Colóquio”).
geral. No século XI, porém, temos um Depois de sua eleição para abade
reflorescimento de vida em vários níveis. (1078), ele escreveu o De grammatico (“O
Antes enfeudada ao Império, a Igreja
gramático”), o De veritate (“A verdade”), o
começa a se mover e, por volta de meados do
De libertate arbitrii (“O livre-arbítrio”), o De
século, dá vida a uma reforma radical de suas
casu diaboli (“A queda do diabo”), o Liber de
instituições. O combate às investiduras, que é
fide Trinitatis e o De incarnatione Verbi.
uma luta contra o Império, e as Cruzadas
Nomeado depois arcebispo de Canter-
constituem duas expressões significativas
bury, na Inglaterra, envolveu-se longamente
desse redespertar, que tem seu ponto de
com Guilherme II, o Ruivo, e seu sucessor
partida na abadia de Cluny e na velha ordem
Henrique sobre a questão das investiduras
beneditina, à qual se juntam novas ordens,
como a dos cistercienses e a dos cartuxos. eclesiásticas. Foi aí que iniciou a elaboração
Pois bem, o filho mais ilustre da família do Cur Deus homo (“Por que Deus se fez
beneditina, que compreendeu mais do que homem”), que concluiria na Itália, onde
ninguém a necessidade de viver e apresentar permaneceu de 1097 a 1100, exilado por
a fé em um novo e mais articulado contexto Guilherme.
de vida, foi precisamente Anselmo de Aosta, Nesse período, estimulado pelo Concilio
com o qual nasceu a teologia centrada no de Bari de 1098, do qual participara,
instrumento da razão, a ponto de ter sido escreveu o De processione Spiritus Sancti.
chamado de “o primeiro escolás- tico Viveu seus últimos anos em Canterbury,
autêntico”. onde escreveu o De concordia praescientiae
et praedestinationis et gratiae Dei cum libero
arbitrio (“A concordância da presciên- cia, da
predestinação e da graça de Deus com o
livre-arbítrio”).
Capítulo nono - .Anselmo de Aosta

Morreu em 21 de abril de 1109, num


momento em que se dedicava a meditar sobre
3 T^S provas a posteriori da
a origem da alma. existência de Deus

São quatro as provas com as quais


Anselmo mostra como, a partir do mundo, se
2 (Sentralidade do problema de chega a Deus.
I^eus em y\r\selmo A primeira deriva da consideração de
que cada qual tende a se apoderar das coisas
que julga boas. Mas os bens são múltiplos.
Todo o pensamento de santo Anselmo é Então, como será o seu princípio: múltiplo ou
dominado pela idéia de Deus. Essa é a questão único? A bondade em virtude da qual as
que baseia e unifica suas investigações. coisas são boas só pode ser uma. Assim, se
E, a esse propósito, eis uma primeira as coisas são boas, existe a Bondade
distinção: uma coisa é falar da existência de absoluta.
Deus, outra é falar de sua natureza. Trata-se A segunda deriva da idéia de grandeza,
de duas posições diferentes: uma coisa é per- não espacial, mas qualitativa. A variedade
guntar se algo existe, outra é perguntar o que dessa grandeza, por nós constatada, exige a
é esse algo. suma grandeza, da qual todas as outras são
Tal distinção torna-se clara no Monolo- participação gradual.
gion, onde formula as provas a posteriori A terceira não deriva de um aspecto
(dos efeitos para a causa) da existência de particular da realidade (bondade ou gran-
Deus, sendo deixada de lado no Proslogion, deza), mas do ser simplesmente. Eis a for-
onde ele formula o argumento ontológico. mulação de Anselmo: “Tudo aquilo que
Com efeito, santo Anselmo demonstra a existe, existe em virtude de alguma coisa ou
existência de Deus tanto a posteriori como a em virtude de nada. Mas nada existe em vir
priori.
Quinta parte - y\ Êscolós+ica nos séculos décimo primeiro e décimo segundo

tude de nada, isto é, do nada não provém


nada. Assim, ou se admite a existência do ser
em virtude do qual as coisas existem ou nada
existe. Mas, como existe algo, existe o ser ■ Argumento ontológico. Trata-se
supremo”. de uma prova a priori da existência
A quarta deriva da constatação dos de Deus, obtida a partir da própria
graus de perfeição, apóia-se sobre a hierar- idéia de Deus.
quia dos seres e exige que exista uma per- Esta prova se baseia no
feição primeira e absoluta. pressuposto de que a existência
Entretanto, ao término do seu trabalho, real é uma perfeição; se Deus é o
Anselmo percebeu que as quatro provas do Ser que por definição possui todas
as perfeições, deve
Monologion, elaboradas de forma um tanto necessariamente possuir também a
complexa e tortuosa, submeteriam a dura existência.
prova a mente dos leitores. Con- Em outras palavras: não se pode
seqüentemente, procurou outro caminho, que, pensar Deus como não-existente,
quase como a luz vivida de um relâmpago, porque de outro modo não
permitisse à mente abranger a priori a pensaríamos Deus, mas um Ser
afirmação da existência de Deus. Anselmo era inferior.
teólogo que não pensava pelo gosto de
pensar: tinha bem vivo dentro de si o sen-
timento da responsabilidade e do dever de
difundir a verdade, a verdade de Deus. Daí a
necessidade de um argumento simples, per-
suasivo e auto-suficiente, destinado a gerar nega que Deus seja o ser do qual nada pode
a imediata e invencível convicção da exis- ser maior.
tência de Deus. E foi justamente no Pros- Em outros termos: se Deus é o ser em
logion que ele expôs esse argumento. relação ao qual nada pode ser maior, não é
possível considerá-lo como existente no
pensamento, mas não na realidade, porque,
nesse caso, ele não seria o maior. Santo
Anselmo estava persuadido de que os
4 prova a priori
homens tinham forte sentimento de Deus: a
da existência de Deus ou sociedade estava plena desse sentimento,
"argumento orvtológico // que era o alimento secreto da vida e das
reformas eclesiásticas em curso. O que ele
fez foi uma tentativa de dar estrutura lógica a
Os termos essenciais em que podemos
um núcleo fundamental do “fato religioso”,
resumir o célebre “argumento ontológico” são
considerando poder traduzir em conclusões
estes: Deus é “aquilo do qual nada de maior
racionais a aceitação difusa da fé cristã.
se pode pensar” (id quo maius cogitari
Esse argumento, ao qual nem mesmo
nequit). E isso é pensado até pelo ateu e pelo os ateus poderiam resistir, é chamado
tolo de que fala o Salmo, que, no seu coração,
ontológico porque, a partir da análise da idéia
diz: “Deus não existe”. Para negar a Deus,
de Deus, que está na mente, se deduz a sua
ele sabe que está falando de um ser do qual
existência fora da mente; também é chamado
não é possível pensar nada de maior. Portan-
a simultâneo, porque sustenta que na idéia de
to, se o ateu pensa Deus, Deus está em seu
Deus está incluída, ao mesmo tempo, a
intelecto, do contrário não pensaria nem ne-
existência. Pensar Deus e considerá-lo
garia sua existência. Mas, ao negar que Deus
realmente existente é, simultaneamente,
existe, o ateu quer dizer que Deus não existe
unum et idem. [T]
fora do seu intelecto, isto é, na realidade.
E aí reside a contradição: se ele pensa
que Deus é o ser do qual nada de maior se
pode pensar e, ao mesmo tempo, nega que Oríticas e consensos ao
Deus exista fora do seu pensamento, então é
argumento ontológico
induzido a admitir que é possível algo maior
do que Deus, algo que, além de existir no
pensamento, exista também na realidade. O O argumento de Anselmo encontrou
que é contraditório, pois afirma e críticas e consensos. O primeiro a pôr em
dúvida sua validade foi seu discípulo, o
monge
Capítulo nono - .Anselmo de Aos+a

Gaunilon, que escreveu o Liber pro insipiente, 6 De ws e o kornem


no qual observa que, a propósito do termo
“Deus”, é bem difícil ter dele um co-
nhecimento substancial, isto é, que vá além do E este o binômio no qual se baseiam as
puro significado verbal. Por outro lado, reflexões de santo Anselmo: Deus e o
recorda Gaunilon, não é suficiente ter uma homem.
idéia dele para que se possa afirmar sua re- Acenando a alguns temas ligados a ele,
alidade objetiva. Se assim fosse, então bas- parece-nos interessante abordar a relação
taria pensar uma coisa, como, por exemplo, entre conhecimento e palavra. Distinguindo a
uma ilha cheia de delícias e, portanto, a mais palavra como sinal físico, externo a nós,
perfeita, para que estivéssemos autorizados a como puramente pensada e, portanto, em
admitir sua existência. Assim, Gaunilon nosso interior, e, por fim, como expressão
refutou a licitude da passagem do mundo interior, isto é, como intelecção da realidade
ideal para o mundo real. Anselmo replicou por meio do nosso intelecto, santo Anselmo
com o Liber apologeticus, notando que o se detém nesta última acepção, pregando
exemplo da ilha perfeita não é adequado, originariamente sua veracidade ou falsidade.
porque não representa o ser do qual não se Essa palavra mental ou conceito é mais ou
pode pensar nada de maior, pois esse argu- menos verdadeira, dependendo do seu maior
mento vale apenas para ele. A ilha pode ser a ou menor grau de semelhança com a coisa. O
maior, mas somente em relação às outras conhecimento humano, portanto, é medido
ilhas (dotada, portanto, de uma grandeza pelas coisas. Diferentemente da palavra
relativa), mas não a realidade maior em ab- humana, porém, a palavra divina é medida das
soluto, como é o caso de Deus. coisas, porque é o seu modelo. Daí as
Santo Tomás retomaria e aprofundaria a considerações sobre a verdade humana como
objeção de Gaunilon. Na Suma contra os retidão e capacidade de dizer como são as
gentios lemos: “Mesmo entre aqueles que coisas: "significat esse quod est”, escreve
admitem a existência de Deus, nem todos Anselmo no De veritate.
sabem que ele seja ‘aquele do qual nada de Além do intelecto, a retidão também diz
maior se pode pensar’. Porém, mesmo ad- respeito à vontade: no primeiro caso, é
mitindo isso, não se seguiria que, de fato, verdade; no segundo, é justiça e bem. Aliás, a
deva existir na natureza, porque, para tanto, é própria liberdade, conotação essencial da
necessário que tanto a coisa como o seu vontade, é definida como retidão ou capa-
conceito (ratio) sejam admitidos do mesmo cidade de fazer o bem. Com efeito, ao con-
modo. Por isso, quando se concebe trário do que muitos consideravam, a liber-
o que se encerra sob o nome de Deus, daí dade não consiste em “poder pecar”, caso no
não deriva que ele exista, a não ser no inte- qual Deus e os anjos não seriam livres. A
lecto. A existência real, ao contrário, é de- liberdade é capacidade de agir retamente,
monstrada perfeitamente por meio dos efei- identificando-se, portanto, com a vontade do
tos, isto é, a posteriori”. bem e, desse modo, com a boa vontade. Nós
Diferentemente de santo Tomás, Boa- somos livres com o objetivo de conservar “a
ventura e Duns Escoto compartilharam o retidão da vontade por amor à própria
argumento de santo Anselmo. Na filosofia retidão”. Trata-se, portanto, de uma retidão
moderna, Descartes e Leibniz também aco- que deve ser amada e buscada por si mesma,
lheram tal argumento, embora com algumas não por outros fins. Ela é o bem maior, sem o
variações relevantes. Leibniz o reformulou qual não é possível alcançar os outros
mais ou menos assim: “O ser necessário, se é valores. Retidão da vontade e retidão do
possível, existe; mas é possível, logo existe”. intelecto, ou seja, justiça e verdade, se
Kant, porém, o rejeitou decididamente, encontram e se fundem. E claro que a
em nome da distinção radical que é necessário vontade pode se transviar, perdendo tal re-
admitir entre a existência pensada e a tidão e tornando-se escrava dos vícios. Mas,
existência real. Entretanto, nem mesmo a ainda nesse caso, a vontade conserva a sua
força crítica de Kant foi suficiente para liberdade, ou seja, o instinto de retidão no
sepultar o argumento ontológico. Assim, o qual consiste a liberdade e que, pela graça de
argumento ontológico continuou sendo con- Deus e, portanto, com a sua ajuda, nos
tínua preocupação não apenas dos filósofos e permite libertar-nos do pecado e retomar o
teólogos, mas, hoje, também dos lógicos e caminho do bem.
dos filósofos da linguagem. mm
Quinta parte - y\ Escoláslica nos séculos décimo primeiro t? dét imo segundo

Mas como se harmonizam liberdade assim como Deus prevê. Portanto, é neces-
humana e presciência divina, predestinação e sário que algo seja sem necessidade”.
livre-arbítrio, graça e mérito? Como é pos- Aparentemente formal, essa resposta se
sível falar de liberdade e de responsabilidade enriquece com outros elementos quando
humana no contexto de um Deus onipotente, Anselmo explicita que é possível a previsão
onisciente e predestinante? Esses são alguns da necessidade da verificação de um
temas do ensaio De concordia. Anselmo acontecimento futuro livre, porque tal pre-
assim formula a resposta a essas inter- visão divina se dá na eternidade, onde não há
rogações: “Se um acontecimento se cumprirá mutação, ao passo que o acontecimento livre
sem necessidade, Deus, que prevê todo acon- ocorre no tempo. Trata-se de dois planos
tecimento futuro, deve prever também isso. distintos, o da eternidade e o do tempo.
Mas o que Deus prevê será necessariamente

Um ângulo da
catedral de
Canterbury, que
constitui uma díís
maiores expressões
arquitetônicas do
gótico inglês.
Depois de eleito
abade do mosteiro
de Bec na
Norntandia (107,V.
Anselmo foi
nomeado arcebispo
de Canterbury
(109.]).

•sr - w ~ “ -•-
Capítulo nono - Anselmo de Aosta

No que se refere à nossa responsabili- Trata-se, portanto, da fé que procura a


dade e aos méritos que acumulamos com a inteligência (fides quaerens intellectum) e,
nossa vida, Anselmo recorda o que escla- conseqüentemente, de contínua e sutil me-
receu com mais amplitude em outras obras, ditação racional sobre as razões da fé. Tanto
isto é, que a liberdade se identifica com a quando Anselmo coloca entre parênteses as
vontade e, portanto, com a retidão. Ora, Deus verdades que aceita pela fé para alcançá- las
não pode retirar ou conceder tal retidão ou com a razão como quando reflete sobre as
eliminar a liberdade sem, com isso, suprimir a verdades de fé, tanto em um como no outro
própria vontade. Se isso ocorresse, Deus caso a razão move-se constantemente ao
abandonaria a razão pela qual criou o homem longo do traçado da fé, pela explicitação de
livre e, portanto, responsável por suas ações, suas verdades. Aí estão o programa e o âm-
o que, em última análise, constitui a sua bito nos quais amadurece a “razão” ansel-
superioridade em relação às outras criaturas miana. Nesse contexto é que se podem com-
e, portanto, estaria em contradição consigo preender suas duas afirmações sintéticas,
mesmo. tornadas famosíssimas: fides quaerens in-
Afirmar isso não significa dizer que o tellectum (onde justamente se exprime a ne-
homem é auto-suficiente e que, portanto, não cessidade de que a fé procure suas con-
tem necessidade da ajuda de Deus para firmações no âmbito da razão) e credo ut
alcançar sua meta final. Esta permanece um intelligam (onde se afirma a prioridade da fé
dom. Mas a fidelidade a esse dom e às suas em relação à razão), a fé se ilumina com a
implicações depende direta e exclusivamente inteligência.
de nossa liberdade de adesão. Daí a As verdades de fé estão pressupostas
necessidade da concordância, e não do con- (fides quae creditur) nos seus conteúdos, que
traste, entre a graça de Deus e a nossa liber- não são fruto da investigação racional, mas a
dade. ela são oferecidos pela própria fé, que per-
manece como o ponto de partida, espécie de
pilastra irrevogável de toda a construção
racional. A razão serve para desarticular as
7 A razão verdades da fé ou para iluminá-las por meio
dentro do traçado da fé de argumentações dialéticas. Desse conjunto
surte perfeita concordância entre fé e razão,
com a condição de que esta seja utilizada
No prólogo do Proslogion, Anselmo in- conforme normas precisas e método
voca Deus com estas palavras emblemáticas: coerente, e parta de um pressuposto indu-
“Eu não tento, Senhor, mergulhar em teus bitável.
mistérios, porque minha inteligência não é Todavia, qual é, precisamente, esse
adequada; desejo, porém, entender um pouco pressuposto fundamental sobre o qual o edi-
da tua verdade, que o meu coração já crê e fício da razão deve se apoiar?
ama. Não procuro compreender-te para crer,
mas creio para poder te compreender”.
Este foi, com efeito, o programa de
Anselmo: esclarecer com a razão aquilo que já
se possui com a fé. De resto esse, justamente, 8 (Saracterísticas
fora o pedido que os monges lhe haviam do Vealismo” de y\nselmo
feito: que aquilo que é revelado não fosse
apenas imposto com a autoridade da
A primeira característica, que condi-
Escritura, mas também resplandecesse com a
luminosidade do raciocínio. Daí as provas da ciona todas as outras, é representada pela
unidade e perfeita correspondência entre lin-
existência de Deus, a tentativa de
guagem, pensamento e realidade, ou mútua
compreender por que o Verbo de Deus se
encarnou, por que Deus é uno e trino e como remitência entre lógica e mundo ou entre res
e voces. A realidade corresponde aos
são “co-possíveis” a predestinação e a li-
conceitos, e a remitência dos conceitos à
berdade humana. Anselmo tem grande con-
fiança na razão humana, que, em sua opinião, é realidade é fruto de um movimento objetivo.
Anselmo defende uma concepção realista dos
capaz de lançar luz sobre os mistérios da fé
cristã e demonstrar sua coerência, sua
universais (assunto de que trataremos no
conveniência e sua necessidade. capítulo seguinte). Aos conceitos de bon-
dade, sabedoria, ser e natureza corresponde
Quinta parte - y\ Êscolás+ica nos séculos décimo pWmei^o e décimo segundo

uma realidade ontológico-teológica, da qual


depende toda a atividade cognoscitiva do
intelecto relativamente às coisas que, preci-
samente, participam daquela bondade, da-
1; ■ Universais. O termo "universal" de-s
riva da expressão unum in diversis: in-
quele ser e daquela natureza. As coisas boas, dica, portanto, aquilo que unifica uma ;
grandes, existentes etc., não seriam conce- diversidade, ou seja, as propriedades
bíveis se não houvesse o pressuposto da comuns de uma multiplicidade de in-
bondade, do ser etc., que são idéias univer- divíduos.
sais e arquetípicas, situadas na mente divina Na tradição platônica os universais são
e sobre as quais se moldou o criado. as Idéias, o ser no mais alto grau, isto é,
A esse realismo de ascendência platô- as essências transcendentes das quais
participam as realidades concretas. Na
nica é preciso acrescentar o realismo teoló-
tradição aristotélica, o universal é, ao
gico, que justifica a investigação racional contrário, o conceito, que se obtém da
relativa aos mistérios da fé cristã. Ou seja, a mente por abstração, f O problema
posse das verdades reveladas por meio da fé medieval consiste em estabelecer qual
faz com que a razão seja constantemente seja o estatuto onto- lógico dos
vinculada ao seu conteúdo e sua investigação universais: se são Idéias '
siga o movimento lógico que parte da fé para transcendentes, pensamentos de í Deus
explicitar seu conteúdo e iluminar suas etc., ou se são apenas concei- ; tos
relações. mentais, ou até mesmo apenas palavras
insignificantes, ou se existe ] uma
Justamente porque é a fé que socorre o solução que medeia as várias
;
movimento lógico da razão e de seus con- posições.
ceitos, não a experiência pura e simples, é
que se pode entender a força da objeção do
monge Gaunilon, que observava — e, depois
dele, também santo Tomás — que, quando
pronunciamos o nome “Deus”, nem sempre
vamos além do som físico da palavra,
çava seu mestre a se pôr a descoberto, isto é,
sobretudo no caso dos ateus e incrédulos.
a reconhecer que punha a fé como funda-
Por isso, não é possível sustentar que se
mento. Era por essa razão, portanto, que
pode deduzir a existência de Deus a partir do
Anselmo se dirigia somente a quem, pela fé,
conceito de Deus. No fundo, sucintamente,
Gaunilon lançava à discussão a concepção já possuía as verdades que procurava de-
realista dos conceitos de Anselmo e for- monstrar com a razão, mas não ao tolo de que
fala a Bíblia ou ao ateu.
Capítulo nono - Anselmo de Aosta

ANSELMO
DEUS E O HOMEM

Provas A POSTERIORI Provas A PRIORI


DA EXISTÊNCIA DE ÜEUS DA EXISTÊNCIA DE ÜEUS

se as coisas são boas, existe uma - Deus é aquilo a respeito do


bondade absoluta (= Deus) das qual nada se pode pensar de mais
grandezas qualitativas que existem se perfeito
remonta a uma suma grandeza (= - mas entre as perfeições existe
Deus) também a da existência
tudo o que existe existe em virtude de - portanto, não se pode pensar
algo; deve, portanto, haver um Ser Deus-suma perfeição sem o atri-
supremo, causa das coisas (= Deus) os buto da existência
diversos graus de perfeição que
existem remetem a uma suma per-
feição (= Deus)

DEUS

uma coisa é o problema


da existência de Deus,
outra coisa é o problema
da natureza de Deus.
Deus é bondade absoluta,
suma grandeza e
perfeição,
\ causa das coisas

a liberdade humana
HOMEM coincide com a vontade do
bem

o conhecimento
humano mede-se
pelas coisas, o
divino as mede

A LIBERDADE HUMANA não Concepção realista DOS UNIVERSAIS FÉ e razão


está em contraste com a As coisas boas, grandes etc., esclarecer com
presciência divina. Deus não seriam concebíveis se a razão aquilo
pensa na eternidade os não existissem as Idéias que se possui
eventos que se correspondentes na mente com a fé credo
desenvolverão no tempo no divina, como modelos da ut intelligam
modo em que se criação
desenvolverão: segundo a
necessidade quando são
necessários e segundo a
liberdade quando são livres
Quifltã parte - ;A Escolás+ica nos séculos décimo pHmeiro e. décimo se-gunclo

se pode pensar o maior. Mos, evidentemente, isso


ANSELMO DE AOSTA nõo pode existir. Portonto, aquilo do qual nõo se
pode pensar o maior existe, sem dúvida, tonto no
intelecto como na realidade.

2. Não se pode pensar que Deus não existe

D O argumento ontológico Tudo isso é de tal forma verdadeiro que nõo se


pode sequer pensar que Deus nõo existe. Com
efeito, pode-se pensar que existo algo do qual nõo se
possa pensar que nõo existe; e isso é moior do que
OProslogion opresento-se como um co- lóquio
aquilo do qual se pode pensar como não existente.
do autor com Deus, com a própria alma e com o
Portonto, se aquilo do qual não se pode pensar o
leitor, no tentativo de agarrar algo sobre o Ser
moior pode ser pensado como nõo existente, aquilo
supremo, através de um longo itinerário que, partindo
mesmo do qual nõo se pode pensar o maior não é
da fé, tende à visão contemplativo de Deus. O
aquilo do qual não se pode pensar o maior; mas isso
coração da obra é o argumento ontológico, segundo
é contraditório. Portanto, oquilo do qual não se pode
o qual Deus é aquilo do qual nado se pode pensar de
pensar o maior existe tão verdadeiramente que não
maior e, portanto, deve existir necessariamente.
se pode sequer pensor como não existente.
6 este és tu, Senhor nosso Deus. Portonto, tu
existes tão verdadeiramente, Senhor meu Deus, que
nõo podes sequer ser pensodo como nõo existente.
C justamente. Com efeito, se umo mente qualquer
1. Deus verdadeiramente existe pudesse pensar olgo melhor do que tu, a criatura se
Portonto, ó Senhor, tu que dós o inteligência à elevaria acima do Criador e seria juiz do Criador; o
fé, concede-me compreender, noquilo que sobes que que serio grandemente absurdo. Na verdade, de tudo
posso me ojudor, que tu existes como cremos e que oquilo que existe, com o único exceção de ti, pode-se
és oquilo que cremos. pensar que não existo, flpenos tu, portanto, tens o
C de foto cremos que sejas olgo do qual nada ser do modo mais verdadeiro, e por isso máximo, em
se possa pensar de moior. Ou talvez nõo existe tal relação a todas as coisas, porque qualquer outra
natureza, porque "disse o insipiente em seu coração: coisa existe de modo assim verdadeiro e, portonto,
Deus nõo existe"? Todovia, certamente aquele tem um ser menor. Por que, portanto, "o insipiente
mesmo insipiente, quando ouve o que digo, isto é, disse em seu coração: Deus não existe", quando é
"olgo do quol nada se pode pensar de moior", tõo evidente para a mente racional que tu és mais do
compreende oquilo que ouve; e isso que que todas as coisos? Por qual motivo, a não ser
compreende está no seu intelecto, mesmo que ele porque é estulto e insipiente?
nõo entenda que tal coisa exista: umo coisa, com
efeito, é que algo esteja no intelecto, e outro é 3. De que modo o insipiente
entender que tal coisa exista. Quando o pintor, de disse em seu coração
fato, antes penso noquilo que está para fazer, tem aquilo que não se pode pensar
certamente no intelecto aquilo que ainda nõo fez,
Mas de que modo o insipiente disse em seu
mas nõo entende ainda que isso exista. Quando, ao
coração oquilo que não pôde pensar, ou de que
invés, já o pintou, não só tem no intelecto aquilo que
modo não pôde pensar aquilo que disse em seu
já fez, mos entende também que ele existe. Também
coração, dado que é o mesma coisa dizer no coração
o insipiente, portanto, deve convir que, ao menos no
e pensor? Se verdadeiramente, ou melhor, umo vez
intelecto, hoja algo do qual nõo se pode pensar nada
que verdadeiramente existo, ele o pensou porque o
de moior, porque quando ouve esto expressão ele a
disse em seu coração, ou seja, não o disse em seu
entende, e tudo oquilo que se entende está no
coração porque não podia pensá-lo, não apenos de
intelecto.
um modo se diz no coroção ou se penso algo: em um
Todavia, certamente aquilo do qual nada se
modo, com efeito, umo coisa é pensada quando se
pode pensar de moior nõo pode estar apenas no
pensa a palavra que a significa; de outro modo,
intelecto. Se, com efeito, está apenas no intelecto,
quando se compreende oquilo que
pode-se pensar que exista também na realidade, o
que é maior. Se, portanto, oquilo do qual nado se
pode pensar o moior está apenos no intelecto, aquilo
mesmo do qual não se pode pensar o maior é oquilo
do qual
157
Capitulo nono - .Anselmo de Aosta
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o coisa é. No primeiro modo, portanto, pode- se lecto, não esteja apenas no intelecto, mas também
pensar que Deus nõo exista, mas no segundo na realidade, porque diversamente não poderia ser o
absolutamente não: por isso ninguém, que ente maior de todos. Mas talvez possamos
compreenda aquilo que Deus é, pode pensar que responder do seguinte modo.
Deus nõo existe, embora digo em seu coração estas
palavras, não lhes dando nenhum significado ou 2. € preciso distinguir
dando-lhes um significado estranho. Deus, de fato, é entre "pensar" e "entender"
aquilo do qual não se pode pensar o maior. Quem Se afirmamos que este ente já está em meu
compreende bem isto, compreende certamente que intelecto apenas pelo fato de que eu compreendo
ele existe em modo tal que nem sequer no aquilo que se diz, não poderia dizer de modo
pensamento pode não existir. Quem, portanto, semelhante ter no intelecto também todas as coisas
compreende que Deus é assim, não pode pensar que falsas e sem dúvida de nenhum modo existentes em
ele não existe. si mesmas, porque se alguém as dissesse eu
Eu te agradeço, bom Senhor, te agradeço compreenderia tudo aquilo que diria? fl menos que
porque aquilo que antes acreditei graças a um dom por acaso não resulte que este ente seja tal que não
teu, agora pela tua iluminação o compreendo de possa estar no pensamento do mesmo modo em que
modo tal que, se não quisesse crer que tu existes, estão tombém as coisas falsas ou dúbias, e então eu
não poderia nõo compreendê-lo. não seja obrigado a dizer que penso ou tenho no
Anselmo, Proslogion.
pensamento aquilo que ouvi, mas que o compreendo
e que o tenho no intelecto; ou seja, digamos que não
o posso pensar a não ser entendendo-o, isto é,
compreendendo com ciência, que ele existe na
própria realidade.
2 fl disputei com Gaunilon Todavia, se assim for, em primeiro lugar ter tal
ente no intelecto não será mais coisa diversa e
precedente no tempo, em relação ao compreender
em um tempo sucessivo que o ente existe, como
Gaunilon respondeu o fínselmo, negando o valor do
ocorre com uma pintura, que antes está na mente do
argumento ontológico: nõo se pode deduzir a
pintor e depois na obra produzido. Além disso, bem
existência real de Deus apenas da idéia da
dificilmente poderá ser crível que, quando se tiver
perfeição de Deus.
dito ou ouvido isto, não se possa pensar que isso
Fl resposta de fínselmo (citada no trecho que
não exista, assim como ao invés se pode pensar que
segue) confirmo novamente o validez de sua prova.
Deus não existe. Com efeito, se não se pode, porque
toda essa disputa é assumida contra quem nega ou
duvida que exista uma tal natureza? Por fim, que tal
ente seja tal de modo a não poder ser percebido, que
1. Síntese do argumento de Anselmo apenas é pensado, sem a segura compreensão de
sua indubitável existência, deve ser-me provado com
fl quem duvida ou nega que exista tal natureza,
algum argumento que nõo se preste à dúvida, e não
da quol não se possa pensar nada de maior, dizemos
com este; pois, quando compreendo aquilo que ouvi,
aqui que sua existência é provada, em primeiro lugar,
isso já está em meu intelecto. Com este argumento,
pelo fato de que aquele mesmo que a nega ou dela
afirmo ainda que podem existir, da mesmo forma,
duvida já a possui no intelecto, quando, ouvindo falar
todos as outras afirmações incertas ou também
disso, compreende aquilo que é dito; em segundo lu-
falsas ditos por alguém do qual compreendo as
gar, porque aquilo que ele compreende é necessário
palavras; e existiriam também mais se eu, que ainda
que não esteja apenas no intelecto, mas também no
não creio neste argumento, nelas cresse, enganado,
realidade. C esta última passagem é provada assim:
como acontece freqüentemente.
uma vez que existir também na realidade é maior do
que existir apenas no intelecto, se aquilo que ele
compreende existe apenas no intelecto, maior do que 3. O exemplo do pintor não é válido
isso será tudo aquilo que existir também na re- Portanto, nem mesmo o exemplo do pintor,
alidade, e assim o ente maior de todos será menor que já possui no intelecto a pintura que está paro
do que algum outro ente e não será o maior de todos, fazer, pode concordar bem com este
o que certamente é contraditório. Portanto, é
necessário que o ente maior de todos, do qual já se
provou que está no inte
Quifltã parte - ;A (Sscolás+ica nos séculos dé-ctmo pHmeifo e décimo segundo

argumento. Com efeito, a pintura, ainda antes de ser pensado conforme uma realidade perfeitamente
pintada, encontra-se na própria arte do pintor, e tal verdadeira: não a realidade que seria aquele homem
realidade na arte do artífice não é mais que parte de individual, mas o realidade que é o homem em geral.
sua inteligência, pois, como diz santo Agostinho, Todavia, quando então ouço dizer "Deus" ou "o
"quando um artesão está para construir um armário, ente maior de todos”, não posso tê-lo no pensamento
antes ele o tem na mente; o armário fabricado não é ou no intelecto assim como teria aquela coisa falsa
vida, porque vive a alma do artífice, na qual existem no pensamento ou no intelecto, porque enquanto
todas estas coisas antes de serem produzidas". Com posso pensar aquela coisa em conformidade com
efeito, como estas coisas na alma viven- te do artífice uma realidade verdadeira e por mim conhecida,
são vida, a não ser porque não são mais que a Deus, ao contrário, não o posso absolutamente pen-
ciência ou inteligência de sua alma? sar a não ser apenas conforme as palavras. Mas
Ao contrário, de tudo aquilo que o intelecto apenas com as palavras se pode bem pouco, ou
percebe como verdadeiro, tendo-o ouvido ou nunca se pode, pensar algo de verdadeiro, porque
pensado, com exceção das coisas que são quando se pensa deste modo não se pensa tanto na
conhecidas como pertencentes à própria natureza da própria palavra, isto é, no som das letras ou das
mente, uma coisa é sem dúvida o conteúdo sílabas, que é uma realidade certamente verdadeira,
verdadeiro e outra o próprio intelecto com que é e sim no significado da palavra ouvida. Mas este não
captado. Portanto, mesmo que fosse verdadeiro que é pensado como quem sabe o que aquela palavra
existe o ente do qual nada pode ser pensado maior, normalmente significa, isto é, como quem a pensa
este ser, todavia, ouvido e compreendido, não é conforme uma realidade verdadeira ao menos
como a pintura ainda não executada e presente no apenas no pensamento, e sim como quem não
intelecto do pintor. conhece aquele significado e o pensa apenas
conforme o movimento do espírito provocado pela
escuta de tal palavra, na tentativa de construir para si
4. Pode-se pensar que Deus não exista,
o significado da palavra percebida. Seria
seguindo o argumento de Rnselmo
verdadeiramente admirável, se pudesse fazê-lo
A isso acrescentemos aquilo que observamos, colhendo a verdade da coisa.
isto é, que não posso, pelo fato de tê-lo ouvido, Assim, portanto, e com certeza não diver-
pensar ou ter no intelecto aquele ente maior do que samente, me consta ter até agora em meu intelecto
todas as coisas que se podem pensar, do qual se diz aquele ente, quando ouço e compreendo quem diz
que não pode ser outra coisa a não ser o próprio que existe um ente maior do que todas as coisas que
Deus, como não posso pensar ou ter no intelecto podem ser pensadas. Que isto seja dito a respeito
aquele ente em base o uma coisa por mim conhecida daquela afirmação segundo a qual aquela sumo
tanto pela suo espécie como pelo seu gênero, natureza já está em meu intelecto.
também não posso pensar ou ter no intelecto, da
mesma forma, nem sequer o próprio Deus;
justamente por este motivo, portanto, posso também 5. Se Deus é pensado
pensar que Deus não existe. apenas "secundum vocem",
Com efeito, não conheço a própria coisa, nem não se pode deduzir sua existência real
posso conjeturá-la o partir de outra coisa que lhe seja Que o suma natureza exista necessariamente
semelhante, pois tu mesmo afirmas que ela é uma também na realidade, isso me é demonstrado
realidade de tal modo feita, que nenhuma coisa pode dizendo que, se não fosse assim, tudo aquilo que
ser-lhe semelhante. De fato, se eu ouvisse falar de existe na realidade seria maior do que ela; portanto,
um homem que me é completamente desconhecido, elo não seria aquele ente maior do que todos, do
do qual ignorasse também a existência, poderia toda- qual já se provou que seguramente já está no
via pensá-lo segundo a própria realidade que é o intelecto. A esta argumentação respondo: se é
homem, por meio da noção específica ou genérica preciso dizer, daquilo que não 'pode sequer ser
em virtude da qual sei o que seja um homem ou o pensodo segundo a verdade de uma coisa qualquer,
que sejam os homens. Todavia, poderia ocorrer, se que está no intelecto, eu não nego que deste modo
quem me fala disso mentisse, que aquele homem ele estejo também em meu intelecto. Mas uma vez
pensado por mim não existisse, embora eu o tenho que disso não se pode de foto deduzir que ele existo
em todo caso também na realidade, não lhe concedo
Capitulo nono - y\^sel mo de y\os+a

absolutamente a existência real, até que não me seja mais duvidar da verdadeira existência daquela ilha,
provada com um argumento indu- bitável. ou eu creria que deseja brincar ou não saberia a
Quem diz que este ente existe, porque quem considerar mais estulto, se lhe concedesse ter
diversamente aquilo que é maior do que todos não razão, e ele, se cresse ter estabelecido com alguma
seria maior do que todos, não presta suficiente certeza a existência daquela ilha, sem ter-me antes
atenção a quem está falando. Eu, com efeito, não demonstrado que o sua perfeição se encontra em
digo ainda, ao contrário, nego ou duvido, que este meu intelecto como uma coisa verdadeiramente e
ente seja maior do que alguma coisa verdadeira, nem indubitavelmente existente, e não como algo falso ou
lhe concedo outro ser senão aquele, admitido que se incerto.
deve chamá-lo "ser", de uma coisa completamente
ignota que a mente se esforça para imaginar apenas 7. Crítica final do argumento
segundo a palavra ouvida. Portanto, de que modo me Cstas coisas, no entanto, responderia aquele
é demonstrado que este ser maior existe na verdade insipiente às objeções. Quando se lhe diz que aquele
da coisa, enquanto consta que é maior do que todas ente maior do que todos é tal de modo a não poder
as coisas, quando até agora eu nego ou coloco em ser sequer pensado como não existente, e isto de
dúvida justamente este constar, não admitindo que tal novo não é demonstrado de outro modo, a não ser
ente maior do que todos exista em meu intelecto ou dizendo que de outra forma não seria o ente moior do
em meu pensamento, nem mesmo naquele modo que todos, o insipiente poderia repetir a mesma
com o qual existem também muitas coisas dúbias e resposta e dizer: quando foi que eu disse que na
incertas? 6 primeiro necessário, com efeito, que me realidade verdadeira existe tal ente, ou seja, o “maior
seja certo que tal ser maior existe em uma realidade do que todos", de forma que disso se me deva provar
verdadeira em algum lugar; então apenas, pelo fato que ele existe também na própria realidade, de modo
de que é maior do que todas as coisas, não será a não poder ser sequer pensado como não
mais incerto que subsiste também em si mesmo. existente? Em primeiro lugar deve-se por isso provar,
com algum argumento certíssimo, que há alguma
6. O exemplo da Ilha Perdida natureza superior, isto é, maior e melhor do que
todas as que existem, de modo que disso possamos
Tomemos um exemplo. Alguém diz que em
depois demonstrar todas as outras qualidades, das
alguma parte do oceano há uma ilha que, por causa
quais não pode necessariamente faltar o ente que é
da dificuldade, ou melhor, da impossibilidade de
maior e melhor do que todos.
encontrar aquilo que não existe, alguns chamam
Quando depois se diz que esta suma realidade
"Perdida". Eles fabulam que, muito mais do que se
não pode ser pensado como não existente, dir-se-ia
diz dos Ilhas Afortunadas, esta ilha é opulento pela
talvez melhor que suo não existência, ou também a
sua inestimável abundância de todo tipo de riqueza e
possibilidade de sua não existência, não pode ser
de toda delícia; e que, sem possuidor ou habitante
entendido. Com efeito, conforme o significado desta
qualquer, seja superior pela superabundância de
palavra, não se podem compreender as coisas
bens a todas as outras terras habitadas em todo lugar
falsas; que certamente podem ser pensadas, da
pelos homens. Que alguém me diga tudo isso, e eu
mesma formo com que o insipiente pensou que Deus
compreenderei facilmente este dizer, no qual não há
não existe. Também eu sei com absoluta certeza que
nenhuma dificuldade.
existo, mas sei ainda que poderia também não
Todavia, se depois acrescentasse, como se
existir. Ao invés disso, compreendo de modo
fosse uma conseqüência: não podes duvidar que esta
indubitável que aquele ser que é sumo, isto é, Deus,
ilha melhor do que todas as terras existe
existe e não pode não existir.
verdadeiramente em algum lugar no realidade, mais
Depois não sei se posso pensar que não
do que o fato de não duvida- res que existe em teu
existo, enquanto sei com absoluta certeza que existo.
intelecto; e uma vez que é melhor existir não só no
Mas se posso, por que não valeria o mesmo também
intelecto, mas também na realidade, porque se não
para todas as outras coisas que conheço com o
existisse na realidade qualquer outra terra existente
mesma certeza? Se ao invés não posso, tal
na realidade seria melhor do que ela, e assim a ilha
impossibilidade não se referirá apenas a Deus.
já por ti entendida como superior não serio superior. Anselmo, Prosiogion
Se este, digo, quisesse convencer-me com tais
argumentos que não se deve
Quititd patte -JK Escolástica nos séculos décimo pnmei^o e décimo segundo

vez tu mesmo, que dizes que segundo o


Em Anselmo responde às significado próprio desto palavra não se podem
compreender os coisas falsas, objetorios que nada
objeções de Gaunilon daquilo que existe pode ser compreendido como
nõo existente. C falso, com efeito, que aquilo que
1. O exemplo da Ilha Perdida não é válido. existe não existo. Por isso nõo serio próprio de Deus
Apenas aquilo do qual não se pode pensar o não poder ser compreendido como não existente.
o maior não pode
ser pensado não existente
C se alguma das coisos que certissimamente
existem pode ser compreendida como nõo
Mas é como se, obj0tcis, alguém disses- s® existente, também as outros coisos certas podem
qu© não S0 podo duvidar do quo verdadeiramente da mesma forma ser compreendidas como não
exista na realidade uma ilha do oceano, superior existentes.
pela suo fertilidade a todas os terros, que pelo Mas tudo isso não se pode certamente
dificuldade e até impossibilidade de encontrar objetar, se considerarmos bem, o propósito do
oquilo que não existe é chomada "Perdida", porque Pensamento. Com efeito, também se nenhuma das
alguém a entende facilmente, logo que lhe é coisas que existem pode ser compreendido como
descrita com palavras. Digo com toda segurança não existente, todavia todos podem ser pensodos
que se alguém me encontrar uma coisa existente ou como não existentes, com exceção do ente que
no própria realidade ou apenas no pensamento, existe sumamente. Podem com efeito ser pensados
além "daquilo do qual não se pode pensar o moior", como não existentes todas e apenas aquelas coisas
à qual se posso aplicar o concotenoção desta que têm início ou fim ou uma conjunção de portes
minha argumentação, encontrarei e lhe darei o ilha e, como jó disse, tudo aquilo que nõo é como tudo
Perdida, que não mais se perderá. em algum lugar ou em algum tempo. Ao contrário,
Mas já se vê claramente que "aquilo do qual não pode ser pensado como não existente openas
não se pode pensor o maior", que existe segundo aquele ente no qual nenhum pensamento encontro
uma razão de verdade tão certo, não pode ser nem início, nem fim, nem conjunção de partes, e
pensado como não existente. De outra forma, com que é todo sempre e em todo lugar.
efeito, não existiria de algum modo. Cm sumo, se Saibas, portonto, que podes pensar que não
alguém diz pensar que ele não existe, eu lhe rebato existes, enquanto sabes certissimamente que
que, quando pensa isso, ou penso algo do qual não existes; eu me maravilho de que tenhas dito nõo
se possa pensar o moior, ou não o pensa. Se não o saber se podes pensá-lo. Com efeito, nós
pensa, não pode pensar que oquilo que não penso pensamos a não-existência de muitas coisas que
não existo. Se, ao invés, o pensa, certamente pensa sabemos que existem, e o existência de muitos
algo que não pode sequer ser pensado como não coisas que sabemos que não existem: não
existente. Com efeito, se pudesse ser pensado julgando, mos fingindo que seja assim como
como não existente, poder-se-ia pensar que tivesse pensamos. Certamente podemos pensar que uma
um princípio e um fim. Mas isso não pode ser. coisa não existe, enquanto sabemos que existe,
Quem portanto o pensa, pensa algo que não pode porque ao mesmo tempo podemos aquilo e
sequer ser pensado como nõo existente. Mas quem sabemos isto. C não podemos pensar que a coisa
pensa este algo, não pensa que ele não exista. Do não exista, enquanto sabemos que existe, porque
contrário pensa aquilo que nõo pode ser pensado. não podemos pensar que ela ao mesmo tempo
Nõo se pode, portonto, pensar que "aquilo do qual exista e não exista. Se alguém, portonto, distingue
não se pode pensar o maior" não existo. de tal modo os dois significados desto expressão,
compreenderá que de nada, enquanto se sabe que
diferença entre "pensar" e existe, se pode pensar que nõo exista, e que de
2. A "compreender" a
toda coisa, com exceção daquilo do qual não se
impossibilidade de que Deus não existo pode pensar o moior, também quando se sobe que
Podes objetar que quando se diz que nõo se existe, se pode pensor que nõo exista. Assim, por-
pode pensor que esto suma realidade nõo exista, tanto, é próprio de Deus o nõo poder ser pensado
melhor se diria talvez que nõo se pode como não existente e, todovia, não se pode pensor
compreender que ela não existe ou também possa que os coisas múltiplas não existam, enquanto
não existir. Ao contrário, era preciso dizer existem. De que modo se pode todavia dizer a
justamente que não se pode pensor. Com efeito, se respeito de pensor que Deus não existe, considero
eu tivesse dito que não se pode com- preenderque tê-lo explicado suficientemente no meu opúsculo.
aquela realidade nõo existe, tal Anselmo, Prosiogion.
íSapítwlo décimo

^Abel a rd o e. a grcmde corvfroversia sob^e


os universais

I. 1~^ed y\bel a^do

• Abelardo (1079-1142) reconhece a função positiva da dúvida em relação à


pesquisa, também teológica, enquanto fornece seu ponto de partida.
Para superar a fase da dúvida é, no entanto, necessário impor-se regras,
A
como a análise lingüístico-terminológica do dúvida texto, a verificação de sua
me
autenticidade, suas relações com o tóaica
contexto, a pesquisa da maior
objetividade possível na exe- ' gese.

• A partir destas regras podemos entender o papel preponderante que Abelardo


reserva àratio critica também nas questões que se referem a Deus. Todavia, nosso
filósofo tinha bem claro o conceito da inatin- gibilidade da natureza divina e, portanto,
propunha como ob- "intelligere" e jetivo não tanto a verdade, e sim a verossimilhança, ou
seja, "comprehendere" uma cognição acessível à razão humana e não contrária à Sa- -> §3
grada Escritura.
Introduz-se assim uma distinção entre intelligere comprehendere: ratio
e a eafides
permitem o intelligere,mas o comprehendereé dom exclusivo de Deus.

• Na moral Abelardo traz à luz o papel da consciência


como fonte da intentio
ou consensus animi.
A alma humana O "consensus
seria teatro de impulsos que são involuntários e instintivos e, animi"
portanto, pré-morais; a moralidade surge no momento em como fundamento
que a consciência dá seu consenso. Os atos morais, portanto, da moral ->§4
são qualificados a partir do interno, pela intenção de quem
opera.

• O caráter intencional da consciência moral faz com que


os instintos e as inclinações não sejam maus porque, exatamente O corpo não é mau
enquanto tais, precedem a esfera da moralidade. Mas, se estes
nem fonte de mal -
+§4
não são maus, com maior razão também não o serão a corpo-
reidade à qual se referem. Cai desse modo a prejudicial dua-
lidade e anticorporeidade na concepção do homem.

• Nessa visão, a ratio


(lógica, dialética) goza de autonomia própria, e tem regras
específicas. Ela, todavia, se devidamente cultivada, leva à fé: daqui a expressão intelligo
ut credam. A razão, porém, em nenhum caso
— e, portanto, também no dos Padres e dos grandes teólogos "intelligo
ut
— chega a verdades definitivas, de modo que o saber humano credam" se
conclui de todo modo na forma de verossimilhança. §5
Quinta pãYte - ;A Escolástica nos séculos décimo pHmei^o e décimo segundo

1 ;A vida e as obras tão do Ocidente, moderno Aristóteles, êmu-


lo ou maior dos dialéticos de todos os tem-
pos; príncipe dos estudos, famoso no mundo;
gênio multiforme, penetrante e agudo; tudo
Enquanto Anselmo de Aosta foi a figura superava com o poder da razão e a arte da
mais representativa do século XI, Abelardo palavra — esse era Abelardo”.
foi a figura mais prestigiosa do século XII. E E quando, vinte anos depois, Heloísa
preciso referir-se aos seus escritos para morreu, por sua vontade foi sepultada na
compreender a gênese dos métodos das mesma tumba do seu venerado Abelardo.
grandes escolas universitárias do Duzentos. Podem-se catalogar os escritos do in-
À luz de sua vida atormentada e quieto filósofo em quatro setores: lógico,
inquieta e à luz de suas obras, ricas de teológico, ético, autobiográfico.
fermentos críticos e de novas indicações 1) No que se refere à lógica: Glosas
metodológicas, Abelardo aparece como figura literais (ao De interpretatione, ao De divisione
estimulante e anteci- padora de muitos de Boécio, a Porfírio e às Categoriae), publi-
problemas da Idade Média. cadas pelos modernos com o título Intro-
Com a Historia calamitatum (“História ductiones parvulorum (para os estudantes
das minhas desditas”), Abelardo nos deixou iniciantes) ou Introductiones dialecticae;
uma autobiografia interessante, viva, humana Logica nostrorum; Logica ingredientibus (das
e, do ponto de vista histórico, crível. Nascido primeiras palavras do texto); Dialectica.
em Le Pallet, perto de Nantes, em 1079, filho 2) No que se refere à teologia: a
de um militar que amava as letras, foi discí- Theolo- gia christiana ou também Theologia
pulo de Roscelino em Loches, de Guilherme summi boni; Theologia ou também Introductio
de Champeaux em Paris e de Anselmo de ad theologiam ou Theologia scholarium
Laon. (deve- se notar que Abelardo foi o primeiro
Todavia, mais do que humilde discípulo, a usar o termo Theologia como síntese da
mostrou-se sempre insatisfeito e crítico em doutrina cristã; antes dele, em santo
relação às doutrinas professadas por seus Agostinho e no começo da Idade Média,
mestres, sobretudo em relação à natureza dos Theologia designava a especulação pagã ou
universais e ao uso da dialética. puramente filosófica sobre a divindade). Além
Depois de algumas tentativas de ter disso, Com- mentaria in epistulam Pauli ad
uma escola própria, primeiro em Melun e em Romanos e Expositio in hexaemeron. No que
seguida em Corbeil, conseguiu abrir uma na se refere ao método, é importante o Sic et
colina de Santa Genoveva, em Paris, a qual non (Sim e não), que representa uma boa
logo se encheu de estudantes e admiradores. coletânea de sentenças extraídas dos Padres
O período mais brilhante de seu ma- e das Escrituras sobre 158 problemas
gistério coincide com os anos 1114-1118, teológicos, onde as sentenças são
quando ocupou a cátedra da escola de No- contrapostas.
tre-Dame, que foi o primeiro núcleo de uma 3) No que se refere à ética: Ethica seu
universidade livre na França. Scito te ipsum (“Conhece-te a ti mesmo”) e,
Remonta a esse período sua célebre e incompleto, o seu último escrito, Dialogus
dramática aventura com a jovem literata He- inter judaeum, philosophum et christianum.
loísa, ao fim da qual ela entrou para o con- 4) Por fim, de caráter autobiográfico, a
vento e ele se tornou monge. mencionada Historia calamitatum, o Epis-
No Concilio de Soissons, em 1121, al- tolarium, a correspondência com Heloísa, e
gumas de suas teses sobre o mistério da as Poesias, que fazem dele um dos maiores
Santíssima Trindade foram condenadas. No escritores do seu século. |~j~|
Concilio de Sens, em 1140, foram rejeitadas
como “desvios” outras teses suas, relativas à
lógica e ao papel confiado à ratio na
investigação das verdades cristãs. Apelando 2 ;A "dúvida"
ao papa por uma avaliação mais justa, no e as Vegras da pesquisa”
curso da viagem, cansado e prostrado, se
detém em Cluny, onde é recebido benevo-
lamente por Pedro, o Venerável. Foi aí que, Na segunda glosa da Logica ingre-
recolhido e em oração, morreu em 1142. dientibus, Abelardo enuncia o princípio se-
Pedro, o Venerável, ditou o seguinte gundo o qual é sob o estímulo da dúvida que
epitáfio para o túmulo de Abelardo, que se se empreende a pesquisa e é por meio
celebrizou: “Sócrates da França, sumo Pla
Cãpltíilo décimo - ;Abelardo e a g^cmde cotA+^ové^sia sobi*É? os umve^saib

da pesquisa que se chega ao conhecimento da normas da lógica que se concretiza a própria


verdade. ratio, revelando assim o seu efetivo poder
É uma fórmula geral que esclarece o especulativo, sem condenações fáceis ou
caráter “problemático” do pensamento, tanto exageros pretensiosos. Substancialmente, ao
filosófico como teológico. E a premissa de cultivar a dialética, Abelardo pretendia
qualquer investigação crítica. A dúvida, cultivar a ratio. Esta, portanto, é uma espécie
porém, é apenas o ponto de partida. Não é de instrumento, ou melhor, a sede da
absolutizada, sendo muito mais caminho para consciência crítica de teses ou afirmações,
a pesquisa. Trata-se de uma “dúvida não acolhidas somente com base na autori-
metódica”. dade do proponente, mas também com base
Todavia, como vencer a dúvida ou su- na tomada de consciência do seu conteúdo e
perar o impasse de posições contrastantes, e dos argumentos apresentados em sua sus-
aproximar-se da realidade? tentação.
Pois bem, para tal fim, a primeira regra A razão dialética, portanto, é razão crí-
impõe a análise do significado dos termos de tica, razão que se interroga continuamente ou
um texto, com todas as suas implicações razão como pesquisa. Claro, sua extensão e
histórico-lingüísticas. Uma análise lingüística aplicação a todos os campos (incluindo as
que se impõe, porque nem sempre nos auctoritates dos Padres ou da Escritura) apa-
atemos à proprietas sermonis. receram aos olhos dos contemporâneos co-
A segunda regra impõe a comprovação mo uma espécie de dessacralização das ver-
da autenticidade do escrito, tanto no que se dades cristãs, suscitando ásperas polêmicas
refere ao autor como no que diz respeito às por colocar a ratio critica entre o pensamento
eventuais corruptelas e interpolações. humano e o Logos divino.
A terceira exige que o exame crítico de Compartilhando sua posição, Heloísa
textos dúbios seja feito tendo como referên- chegou a escrever a Abelardo dizendo que,
cia os textos autênticos, levando-se em conta sem essa ratio critica, a Bíblia seria como um
eventuais retratações e correções. O que sig- espelho colocado diante de um cego. E, com
nifica que um texto deve ser interpretado no efeito, era a isso que Abelardo visava: tornar
quadro de todo o corpus da obra de um autor. mais compreensível o mistério cristão, não
Por fim, não se deve confundir as opiniões profaná-lo nem degradá-lo. Tanto que,
citadas com a opinião pessoal do autor e, so- falando a propósito de sua exposição sobre o
bretudo, não interpretar como solução aquilo dogma da Trindade, ele declara: “Nós não
que o autor apresenta como problema. prometemos ensinar a verdade, que, como é
Trata-se de normas crítico-exegéticas sabido, nem nós nem nenhum outro mortal
de caráter geral, embora formuladas para pode alcançar desse modo, mas apenas
resolver o problema dos dieta dos Padres ou propor algo de verossímil que seja acessível
para esclarecer trechos controversos ou à razão humana e não contrário à Sagrada
obscuros da Escritura. Abelardo decidiu Escritura”.
aplicar essas normas para dar caráter O refinamento da ratio, portanto, orien-
científico à investigação, mas, ao mesmo ta-se para o “verossímil” no discurso de di-
tempo, tinha a convicção de que nem sempre vinis, do qual pretende apresentar um co-
essas regras permitem a superação dos nhecimento aproximativo-analógico, sem
contrastes ou penetrar o significado dos nenhuma pretensão de exaurir o seu con-
textos bíblicos. Mesmo conclamando a não se teúdo. Pois bem, mesmo tendo consciência
renunciar jamais à pesquisa crítica, ele não dos limites da razão, Abelardo considera
hesita em destacar o limite de nossa mente necessária a investigação crítico-racional
para entender plenamente os ensinamentos para subtrair os enunciados cristãos a qual-
dos Padres ou da Bíblia. quer acusação de absurdo e, o que é mais
importante, torná-los de alguma forma aces-
síveis à inteligência humana. Trata-se de um
esforço programático em que o discurso fi-
3 .7^ Vatio / ; losófico não revoga o discurso teológico, mas
e seu papel na teologia sim o facilita e o torna acessível e, portanto,
a razão não elimina a fé, mas a corrobora.
Nesse contexto, Abelardo distingue o
Abelardo exalta a dialética, centrada na intelligere do comprehendere, afirmando
questão das relações entre voces e res (das
quais falaremos), porque é na fidelidade às
164 Quinta parte -A Esc olástica nos séculos décimo pnmei^o e décimo segundo

que a ratio é indispensável para a inteligi- b) O segundo objetivo perseguido por


bilidade, não para a compreensão das ver- Abelardo com a doutrina da intentio cons-
dades cristãs. titui-se pela convicção de que nosso corpo
O intelligere é obra conjunta da ratio e não é poluído estruturalmente pela concu-
da fides, ao passo que o comprehendere é piscência nem está tomado pela presença
dom exclusivo de Deus, que concede aos inevitável do mal, do qual deva libertar-se
homens dóceis à sua graça o dom de penetrar por meio do contemptus mundi ou desprezo
no cerne de seus mistérios. pela vida terrena. As estruturas corpóreas,
A razão é necessária para que a fé não as inclinações ou paixões humanas, em si
se reduza a uma vazia e mecânica prolatio mesmas, não são pecaminosas senão em
verborum ou à aceitação acrítica e passiva de conseqüência da adesão voluntária às suas
um corpus de fórmulas sacrais: a graça ou solicitações. Acentuando a importância da in-
donum Dei é necessária para que nos tentio, portanto, Abelardo pretende propor à
deixemos permear e invadir por aquelas ver- discussão a concepção antropológica im-
dades. [T] perante de tipo dualista, tendencialmente
pessimista, e recuperar a iniciativa do sujei-
to, dando novamente ao homem a respon-
sabilidade por suas ações.
4 Princípios fundamentais c) O terceiro objetivo é o de
contestar
da ética
o estilo tão difundido, tanto ontem como
hoje, de julgar fácil e peremptoriamente a
Abelardo dedicou ao problema da vida vida do próximo sem procurar conhecer os
moral um tratado conspícuo, de claro sabor seus fins e objetivos. “Os homens julgam
socrático, a Etbica seu Scito te ipsum. — escreve Abelardo — aquilo que lhes apa-
Na ética, Abelardo evidencia a rece, não tanto aquilo que lhes está oculto,
consciência como centro de irradiação da vida sem levar em conta tanto a punibilidade da
moral, fonte da intentio ou consensus animi. culpa como o efeito da ação. Somente Deus,
Esse é o fator primário e o motivo básico da que não olha para as ações que fazemos, mas
vida moral ou, ainda, aquilo que qualifica sim para o espírito com que as fazemos,
como boas ou más as ações: “Não se pode avalia com base na verdade as razões de
chamar de ‘pecado’ a própria vontade ou o nossa intenção e examina a culpa com juízo
desejo de fazer aquilo que não é lícito, mas perfeito”.
sim o consentimento à vontade ou ao desejo”.
Abelardo, portanto, distingue clara-
mente o plano da instintividade do plano 5 MTntelligo ut credam”
propriamente consciente e racional. O pri-
meiro, constituído pelas inclinações, os im-
pulsos e os desejos naturais, é pré-moral, ao
passo que o segundo, constituído pela Se a expressão que resume o pensa-
iniciativa do sujeito e, portanto, por suas mento de santo Anselmo é credo ut
intenções e propósitos, é verdadeiramente intelligam, a expressão que pode sintetizar o
moral. esforço teórico de Abelardo é intelligo ut
A acentuação do elemento intencional credam. A lógica, ou melhor, a dialética, é
como fator determinante da vida moral tem ciência autônoma e, portanto, uma filosofia
objetivo tríplice em Abelardo. racional, mas “o fim do itinerário filosófico é
a) O primeiro é representado pela Deus”. Em Abelardo, a ratio não é imedia-
necessidade de interiorizar a vida moral, que, tamente serva da teologia, porque é cultivada
em sua opinião, reside na alma, em cujo em si mesma, para possuir seus instrumentos
interior se cumpre o bem ou o mal antes de e adestrar-se no seu uso. Mas tal esforço e
se exte- riorizar em atos específicos. E isso tal obra estão conclusivamente em função da
em aberta polêmica com o legalismo ético, melhor compreensão das verdades da fé.
bastante difundido no século XII e Assim como para Anselmo, também
freqüentemente codificado nos chamados para Abelardo é a revelação divina que ofe-
Libri poenitentia- les ou casuística, nos quais rece os conteúdos que, depois, é preciso es-
classificavam-se pecados e penas. clarecer e explicitar com analogias e
similitu- des. Mas, diferentemente de
Anselmo e de
1
Cãpítulo décimo - .Abelardo e. a qi'< wwlt • con+^ové^sia sob^t os umví? k-sais

seus contemporâneos, ele não crê que a ra- sivas. Daí seus conflitos com as autoridades
zão possa dar explicações definitivas. e com a tradição. Mas o esforço de Abelardo
Todas as explicações dos filósofos, bem para aprofundar com a razão os problemas
como dos Padres e dos teólogos, são máximos da teologia foi apenas contrastado,
opiniões, mais ou menos abalizadas, mas e não bloqueado, por esses conflitos.
nunca conclu

t ciíif mminit» fiuiic pufe


<r tncíanmtbiai
1
aztiuft
pjiirr

Abelardo (1079-1142) e o
pensador mais prestigioso
do séc. XII. Por sua vida
atormentada e inquieta, por
suas obras ricas de
jermentos e ile novas
indicações uietodoh jgicas,
foi definido como "a outra
vertente ila Idade Média”.
iâm (na ifcíêtmmmúc
Aqui Abelardo é ^ uptmdtt om (n /òmw com
representado ao lado de
Heloísa, com a qual teve a
Mfçimimttme
conhecida aventura nfliííjimiapiíttíiitttw ^ nammwiammmm
amorosa, no fim da qual s
uma e outro entraram para ^ iwamtTmtt fiíictt tctirc -* tlncu ntmm
o mosteiro. Heloísa, ao iltíctt atmr
morrer, quis ser sepultada
na mesma tumba de ^ wpiiiiciw «ii d|ginfr
Abelardo. Miniatura do séc.
XIV (de I e roman de Ia Rose,
Museu C.ondé, ('.bantilh).
Jt--.
Quiflta parte - ;A Escolástica nos séculos décimo primeiro e décimo segundo

II. y\ grande controvérsia sobre os universais

• Abelardo, todavia, passou para a história também pela posição que assu-
miu na secular questão dos universais. As soluções oferecidas a tal problema a
partir da especulação medieval eram as seguintes:

O realismo « 1 ) 0 realismo extremo de Escoto Eriúgena, Guilherme de


exagerado Champeaux e, em parte, de Anselmo de Aosta, que afirma que
§ 3.2 os universais existem em si, como Idéias platônicas, ou seja, ante
rem,
antes das coisas.
Assim como as Idéias arquetípicas são o modelo da realidade, o conhecimen-
to delas é indiretamente o conhecimento da realidade.

• 2) O nominalismo — posição assumida sobretudo por


Ros-
celino — segundo o qual o universal seria puro nome que desig-
o-+§3.3
nominalismo na uma multiplicidade de indivíduos. Em tal sentido o conhecimen-
c3
' ’ to só pode ter resultados céticos, porque não existe
nenhuma
• 3) A estas posições ligação substancial
acrescenta-se a de entre as palavras/conceitos
Abelardo, que se pode echamar
as coisas.
de
conceitualismo. Os universais, observa Abelardo, não existem na natureza e sim
em nossa mente (posf rem)
como conceitos; estes se formam .
quando a mente, no processo cognoscitivo-abstrativo, distin-
C C mo
$ 34 3 5 gue e separa os diversos elementos que estão compactados na ' " '
realidade dos seres concretos. Nos conceitos universais o inte
lecto separa de mais entes semelhantes um modo de ser comum, e
este é o conceito universal para aquele grupo de indivíduos. Desse modo, porém, não é
captada a essência das coisas, mas seu status communis
; por conseguinte, não
podemos conhecer a realidade em si — esta é conhecida somente por Deus —, mas
propriamente nossos conceitos, que exprimem apenas parte da realidade: exatamente a
certa condição de natureza da qual mais objetos participam.

• O realismo moderado — típico sobretudo de santo Tomás — segundo o qual os


universais subsistem: ante rem
como Idéias-arquétipos na mente de Deus;
in re
como formas das coisas (no modo de Aristóteles); e o post
realismo rem,
na mente do homem, como conceitos.
moderado36
Notemos que neste caso a colocação post rem
depende
§ da colocação in re
que, por sua vez, depende da ante rem.

1 Os estudos “gramaticais" vez. Por essa razão, João de Salisbury, discí-


pulo de Bernardo de Chartres, afirmava que
“a gramática é o berço de toda filosofia”.
A lenta passagem da auctoritas para a
Os estudos “gramaticais” foram parti- ratio, a que conduziam os estudos “grama-
cularmente cultivados nos séculos IX-XII. ticais”, explica a reação difundida dos tra-
Permitindo ingressar progressivamente no dicionalistas, para os quais a palavra dos
mundo dos sinais lingüísticos, o Padres e da Bíblia devia ser meditada e as-
desenvolvimento desses estudos, que tiveram sumida como norma de vida e não profanada
impulso notável na escola de Chartres, ou laicizada através do uso e das distinções
resultou em madura consciência da relação dos instrumentos “gramaticais”. São Pedro
entre voces e res, que era preciso estudar e Damião (1007-1072), que represen
explicitar de quando em
Cãpltulo décimo - .Abelardo e a grande controvérsia sobre os universais

Roma, Igreja de Santa Maria sobre Minerva: “A disputa de santo Tomás de Aquino com os heréticos"
(Filippino Lippi).

ta tão bem essa reação, no tratado Sobre a A íntima ligação entre os estudos gra-
perfeição monástica chega a considerar que o maticais e a dialética foi evidenciada sobre-
iniciador desses estudos foi o diabo: “Não tudo por Abelardo.
disse ele ‘vós sereis como deuses’? Os nos- Identificada com a lógica e, portanto,
sos progenitores aprenderam com o tentador com a ratio in exercitio, a dialética impõe o
a declinar Deus e a falar dele no plural”. rigor na investigação, que se concretiza na
análise dos termos do discurso, através de
um exame crítico do processo de
“imposição” das voces ou termos às res
2 ;A questão da ^dialética” designadas e pela identificação do papel que
tais voces desempenham na estrutura e no
contexto do discurso.
Relacionada com os estudos gramaticais
e seu posterior desenvolvimento, a dialética
levou ainda à maior exaltação da ratio.
A propósito disso, escreve Berengário
3 O problema dos universais
de Tours (falecido em 1088): “E próprio de
um grande coração recorrer à dialética para
cada coisa, pois recorrer a ela é recorrer à
tn A questão da relação dos nomes e dos
razão, de modo que aquele que a ela não
conceitos mentais com a realidade
recorre, sendo feito à imagem de Deus se-
gundo a razão, despreza a própria dignidade e A relação entre voces e res, entre
não pode renovar-se dia-a-dia à imagem de linguagem e realidade, que está no centro
Deus”. dos estudos gramaticais e da dialética,
constitui o elemen
Quinta parte - A £ scolás+ica nos séculos décimo primeiro ■ ’ décimo bfgundo

to essencial da questão dos universais, viva-


mente debatida no século XII por suas im-
plicações lingüísticas, gnosiológicas e teoló- I
gicas. f ■ Realismo exagerado. Trata-se da
f posição platônica levada às extremas
O problema dos universais, com efeito,
| conseqüências. Os universais seriam
diz respeito à determinação do fundamento e I entes reais, subsistentes em si, Idéias
do valor dos conceitos e termos universais — | eternas e transcendentes que têm
por exemplo, “animal”, “homem” — | função de arquétipo e paradigma em
aplicáveis a uma multiplicidade de indivíduos. | relação aos indivíduos concretos.
Mais em geral, trata-se de um problema Í.■-..
que diz respeito à determinação da relação
entre as idéias ou categorias mentais,
expressas com termos lingüísticos, e as rea-
lidades extramentais; ou, em última análise, é
o problema da relação entre as voces e as infundada. Essencialmente, era uma concep-
res, entre as palavras e as coisas, entre o ção metafísica rigidamente tradicionalista. Se
pensamento e o ser. os universais são reais em si mesmos e estão
O problema envolve, portanto, o fun- também essencialmente presentes em cada
damento e a validade do conhecimento e, em um dos indivíduos, então estes em nada
geral, do saber humano. Podemos ainda diferem entre si pela essência, mas somente
reformular a questão do seguinte modo: os pela variedade dos acidentes.
universalia são ante rem, in re ou post rem? As razões gerais que levaram Abelardo
a rejeitar a tese de seu mestre Guilherme são
B 3 A solução do realismo exagtf.rado as seguintes: a primeira é extraída do De in-
terpretatione de Aristóteles, segundo o qual o
O realismo exagerado é a tese segundo universal é aquilo que é predicável de vários
a qual os termos universais são res ou enti- entes. Se isso é verdade, o universal não
dades metafísicas subsistentes. pode ser uma res, um ente objetivo que, en-
O mais conhecido defensor dessa teoria quanto tal, não pode funcionar como pre-
realista dos universais foi Guilherme de dicado de outro ente, segundo o princípio res
Champeaux, que nasceu em 1070 e morreu de re non praedicatur. A segunda é a
em 1121. Em sua opinião, há perfeita ade- desvalorização do indivíduo, que só existe na
quação ou correspondência entre os conceitos realidade. Com efeito, a teoria da identidade
universais e a realidade. Trata-se de uma ou solução realista, ao atribuir uma
linha teórica cuja inspiração de fundo é de substância numericamente idêntica a todos os
clara ascendência platônica. seres classificados com o mesmo conceito
Originalmente, essa tese teve grande universal, torna puramente acidental a sua
significado, pois mostrava que a gramática, a distinção, baseada somente em formas ou
retórica e a lógica não tinham valor simples- propriedades acidentais. Em um período de
mente lingüístico-formal. Já se disse que, exaltação da ratio e, portanto, do indivíduo no
quando João Escoto Eriúgena apresentou sua plano filosófico, além do nível social, essa
interpretação realista dos universais, “pro- tese só poderia parecer reacionária ou
vocou grande estupor”. Com efeito, naquele falsamente tradicionalista.
dado momento histórico, tal concepção, es-
tabelecendo estreita correspondência entre o BI solução K\omÍKialista
pensamento e a realidade, representou a
revalorização da investigação lógico-filosó- A tese que se contrapõe ao realismo
fica. O estudo da linguagem, portanto, era o exagerado de Guilherme é o nominalismo de
estudo da realidade, e, sendo esta uma teofa- Ros- celino de Compiègne, que nasceu por
nia, era o estudo da própria manifestação de volta de 1050 e morreu pouco depois de
Deus, daquele Deus sobre cujas idéias uni- 1120.
versais e eternas as coisas eram modeladas. Em sua opinião, os universais ou con-
Todavia, com o desenvolvimento dos ceitos universais não têm nenhum valor, nem
estudos gramaticais, ao ser retomada e re- semântico nem predicativo, não podendo se
proposta por Guilherme de Champeaux, essa referir a nenhuma res, dado que todas as
teoria já pareceu reacionária, além de coisas existentes são singulares ou
separadas (discretae), e nada existe além da
individualidade (nihil est praeter individuum).
1
Capítulo décimo - y\bel a^do t a c\rmwk' controvérsia sobre os univ ersais

lares ou universais são os sermones (...). Di-


gamos, portanto, que os sermones é que são
■ Nominalismo. Trata-se de uma po- universais, já que desde a origem, isto é, des-
sição ceticizante que rejeita completa- de a instituição dos homens, receberam a
mente toda forma de platonismo. O propriedade de serem predicados de muitos”.
universal seria simples nome que indi- Na realidade, para Abelardo, tudo é in-
ca uma multiplicidade de indivíduos e
dividual, é unidade compacta ou singular de
nada mais. Não apenas não tem um
status ontológico, mas também não tem matéria e forma. Apesar disso, pelo pen-
um status lógico fundativo da palavra. samento, a ratio humana tem o poder de dis-
tinguir e separar os diversos elementos que
subsistem unidos na realidade. Analisando e
comparando os diversos seres singulares no
processo cognoscitivo-abstrativo, a ratio
está em condições de captar entre os indiví-
Trata-se de uma teoria que, negando duos da mesma espécie um aspecto peculiar
qualquer valor aos universais, revela-se fun- que eles compartilham.
damentalmente cética, porque anula alguns E nessa similitudo ou status commu- nis,
instrumentos do conhecimento humano, o captado pelo intelecto, se baseiam os
qual se torna simples atividade analítica de conceitos universais, que, diferentemente
fatos concretos e individuais, incapaz de as- dos conceitos singulares, não nos dão a
cender a níveis de caráter geral. forma própria e determinada dos indivíduos,
A maior fonte de dados sobre o nomi- mas somente a imagem comum de uma
nalismo de Roscelino é constituída pelo De pluralidade de indivíduos.
incarnatione Verbi, de Anselmo de Aosta, ao
qual remonta a definição segundo a qual os
universais seriam para Roscelino meros flatus
voeis ou simples emissões de vocábulos, sem
que os termos universais remetam a algo de
objetivo. Anselmo explica tal nominalismo ■ Conceitualismo. Trata-se de uma
com o fato de que a razão está tão envolvida forma de aristotelismo reelaborado
“nas imaginações corpóreas” a ponto de não sobretudo por Abelardo: o universal,
poder mais se libertar, incapaz de se elevar embora não sendo um arquétipo ideal,
acima das realidades individuais e materiais, é um conceito significativo obtido por
incapaz de distinguir a intelecção universal da abstração.
razão dos dados particulares da fantasia e
dos sentidos.

Ü1 A solução modelada de
y\L>e!a rdo: o universal como
líl implicações lc>0Ícas e metafísicas cia
ex+raído da Va+io^ sob^e a base do
posição ^conceitualista” de .At -^l^rclo
^status communis” dos indivíduos

Enquanto os realistas propunham o pro- Deve-se precisar que o status communis


blema dos universais no campo estritamente não denota realidade substancial ou essência
metafísico, ontologizando os universais, isto comum. Ele indica apenas um modo de ser,
é, sustentando que eles são res ou entidades uma condição de natureza comum aos
metafísicas, os nominalistas, em oposição ra- indivíduos da mesma espécie. O homem como
dical, puseram em crise o valor significante essência não existe, mas o ser-um-ho- mem
dos termos universais. Mas tanto uma como a é condição real e concreta, que é comum a
outra teoria tiveram de suportar severas crí- todos os homens concretos.
ticas. Se o universal não é res nem apenas O que é então o universal? Do ponto de
vox ou flatus voeis, então o que é? vista genético e semântico, é um sermo, “que
Abelardo, o mais empenhado nesse de- é gerado pelo intelecto e gera o intelecto”. E
bate, escreve: “Há outra teoria acerca dos um conceito ou discurso mental que brota de
universais que é mais conforme com a razão: processo de abstração mas com bases
é a que não atribui a universalidade nem à res objetivas, ou seja, é expressão do ser sobre
nem às voces, sustentando que singu bases lógicas e lingüísticas.
Quinta parte - y\ £sc olástica nos séculos décimo primeiro e décimo segundo

Em base ao que dissemos, é claro que a y\ posição do Vealismo moderado”


posição de Abelardo aparece de certo modo que será assumida por sar \fo Tomás e se imporá
como intermediária entre os dois extremos como clássica
opostos. Ela oferece traços que têm certo sa-
bor de realismo moderado, enquanto admite Para sermos mais exatos, portanto, de-
que o universal tem como fundamento o vemos dizer que Abelardo, à medida que
status communis, ou seja, o modo de ser dos afirma que o universal para nós existe so-
indivíduos da mesma espécie; mas ele nega, bretudo post rem, isto é, que é um conceito
como dissemos, que isso denote uma mental abstraído da realidade individual, é um
realidade substancial in re subsistente por si “conceitualista”, embora com certo traço de
(as realidades subsistentes por si são os realismo moderado.
indivíduos). O realismo moderado por excelência
Por outro lado, Abelardo inclina-se a ad- será sobretudo o de santo Tomás, que sus-
mitir que existem Idéias substanciais das coi- tentará que o universal existe:
sas, mas apenas na mente de Deus como a) tanto ante rem na mente de Deus
“arquétipos” ou modelos (ante rem, em como arquétipo (como queria Platão, mas
sentido platônico); mas, como tais, nós não as repensado em ótica criacionista);
conhecemos. b) como in re, isto é, nas coisas, como
forma que estrutura ontologicamente os in-
divíduos (como queria Aristóteles, embora
repensada em ótica criacionista);
c) como também post rem, como con-
■ Realismo moderado. Trata-se de ceito mental (como pensava Aristóteles).
uma posição mediana entre a
concepção platônica e a aristotélica. Esta problemática do universal dará lu-
Os universais têm tríplice valência: gar a riquíssimo florescimento de estudos
1) se considerados como sobre a linguagem e sobre a lógica nos sécu-
transcendentes e anteriores às los seguintes, como veremos.
coisas (na mente de Deus)
correspondem às Idéias platônicas;
2) se considerados como imanentes lil <2 uadro sinófico geral do
e presentes nas coisas (nos corpos prob\e-ma dos universais e das suas
individuais) correspondem às soluções
formas aristo- télicas;
3) se considerados como abstratos Para concluir este ponto, traçamos um
e quadro sinótico, que resume sinteticamente

Í posteriores às coisas (na mente hu-


mana) correspondem aos conceitos
lógicos.
as coisas ditas sobre as soluções do proble-
ma dos universais e antecipa algumas coisas
de que pouco a pouco trataremos. m
Cãpltulo decimo - .Abelardo e a grande controvérsia sobre os universais

DISPUTA SOBRE OS UNIVERSAIS

Os
universais
podem ser

in re / ou seja, í nas
coisas sensíveis, j
ante rem / isto como suas como puros
postrem ou conotações
é, antes , das coisas seja, \ na I nomes \ |
sensíveis, j ou seja, ontológicas / sem uma relação j \
mente
\ existem em . . estrutural j com as
si e por si I coisas /
\ como conceitos /
abstratos

REALISMO EXAGERADO Foi a tese


NOMINALISMO
Foi a tese de Guilherme de propugnada por
Champeaux e em parte de Roscelino e também por
Anselmo. Retoma posições Ockham.
platônicas O universal é puramente
um nome que se refere
a mais indivíduos

T
CONCEITUALISMO Foi a tese WT
propugnada sobretudo por
REALISMO MODERADO
Abelardo que, porém,
Foi a tese de Tomás: os
admitia certa relação com a
universais existem ante rem na
realidade das coisas no que
mente de Deus, in re como
se refere ao status forma das coisas, e post rem
communis como conceito mental
Quinta parte - A Escolástica nos séculos décimo primeiro e décimo segundo

rigi aonde eu ouvia dizer que se estudava esta arte,


ABELARDO enfrentando qualquer tipo de discussão. Cheguei
finalmente a Paris, onde já há tempo os estudos de
dialética haviam alcançado desenvolvimentos
excepcionais, e freqüentei a escola de Guilherme
de Champeaux, que considero o mais importante
D Confissões autobiográficas de meus mestres, pelo sua preparação e fama,
neste campo. Cm um primeiro tempo trabalhei muito
a um amigo bem com ele, mas depois nossas relações se
desgastaram, porque eu começara a criticar
algumas de suas idéias e não temia demonstrar-lhe
Em uma carta intitulada Abaelardi ad que freqüentemente era ele que errava, tanto que
amicum suum consolatoria, nosso Filósofo relata na maioria das vezes quem saía vencedor de nos-
em primeiro pessoa uma versão subs- sas disputas era eu. Por outro lado, minha se-
tancialmente aceitável de sua vida. gurança e minha bravura suscitavam também o
Suo intenção não era a de consolar um desdém e a inveja dos outros discípulos que
amigo inFeliz, mos o de desaFogar os próprios estudavam comigo, sobretudo porque eu era o mais
sentimentos em um momento particularmente jovem e o último que hovio chegado.
delicado de sua vido. Aqui tiveram início minhas desgraças, que
perduram ainda hoje: quanto mais minha fama
crescia, mais aumentava a inveja de todos em
relação a mim. No fim, supervalorizando talvez,
Nasci em uma aldeia chamado Ralais, que dada a idade, minhas reais capacidades, aspirei,
está às portas da Bretanha Menor, cerca de oito apesar de ser pouco mais que um jovem, dirigir
milhas a oriente de Nantes. Minha terra de origem uma escola. Procurei logo o lugar onde poderia
ou o sangue que corre em minhas veias deram-me empreender esta atividade e pareceu- me tê-lo
nõo só certa agudez intelectual, mas também o descoberto em Melun, uma cidadezi- nha então
gosto pelos estudos literários. Também meu pai, de famosa e, além disso, residência real. Mas meu
resto, antes de abraçar a vida de soldado, tinha mestre intuiu minhas intenções e recorreu a todos
certa cultura literária; tinha também tal paixão pelos os meios e a todos os subterfúgios à sua disposição
livros que quis dor a todos os filhos uma boa para relegar a mim e a minha escola o mais distante
cultura antes de encaminhá- los ao serviço das possível de Paris: procurava, no realidade, antes
armas. Fez o mesmo também comigo. €u era o filho ainda que eu deixasse sua escola, impedir-me de
primogênito; conseqüentemente, era-lhe o mais fundar uma escola própria, e fazia de tudo para
caro, e com maior cuidado atendeu à minha tirar-me o lugar que eu escolhera. Por sorte, porém,
instrução. Para mim, estudar era muito fácil e ele tinha a hostilidade de diversos dos senhores
agradável; dediquei-me às letras com tanta paixão daquela cidadezinha, e eu, graças também ao
e tal foi o fascínio que elas exerceram sobre mim, apoio deles, consegui coroar meu sonho; aliás, seu
que logo me decidi a renunciar à carreira militar, à próprio comportamento abertamente hostil ajudou-
herança e a meus direitos de primogênito em favor me a granjear um grande número de simpatias.
de meus irmãos: em outras palavras, abandonei Por outro lado, depois deste meu exórdio no
definitivamente a corte de Marte para ser educado ensino, minha fama no campo da dialética se
no seio de Minerva. C, uma vez que entre todas as difundiu enormemente e pouco a pouco obscu-
disciplinas1 filosóficas eu preferia as armas da receu nõo só a de meus velhos companheiros de
dialética, por causa de seus raciocínios argutos, estudo mas também a do próprio Guilherme
posso dizer que troquei as armas da guerra por Bem depressa os bons resultados obtidos me
estas armas e preferi aos triunfos militares as induziram, talvez supervalorizando novamente
vitórias nas disputas filosóficas. minhas reais capacidades, a transferir minha escola
Desse modo, pus-me a percorrer as várias para Corbeil, cidadezinha próxima de Paris,
províncias como um peripatético,2 e me di- também porque assim eu podia fazer ouvir melhor
minha voz nas diversas disputas. Todavia, nõo
muito tempo depois, fiquei doente por causo do
trabalho excessivo a que me submeti e fui forçado a
voltar para minha aldeia natal. Permaneci alguns
'Como dialético entende-se aqui a arte do raciocínio, a anos lá, como em exílio, longe da frança,
parte da lógica que ensina a argumentar
9
Com este termo Rbelardo quer indicar sua condição de
clencus vagans, enquanto se deslocava de escola em escola.
Capitulo dédfHO - ;Abelardo e a grande controvérsia sobre os universais

enquanto aqui todos aqueles que queriam aprender cola de dialética é quase impossível. Lívido de bílis
a dialética me esperavam ansiosamente. e vermelho de raiva, não conseguia suportar tal
Rlguns anos depois, estando já há tempo situação, e com astúcia procurou afastar- me mais
curado, fiquei sabendo que meu antigo mestre, uma vez. Todavia, como não tinha elementos
Guilherme, que era arquidiácono de Paris, trocara o suficientes para atingir-me diretamente, mandou
antigo hábito para entrar na Ordem dos Cônegos destituir do cargo, atribuindo-lhe culpas infamantes,
Regulares, pois, pelo que se dizia, esperava assim oquele que me deixara seu lugar e o substituiu por
ter mais fácil acesso aos cargos mais elevados com outro discípulo, notoriamente contrário a mim. Voltei
este gesto de zelo religioso, como de fato aconteceu então para Melun e reabri minha escola; a fama de
quando foi nomeado bispo de Châlons. Mas nem que eu gozava era proporcional à hostilidade
mesmo depois desta espécie de conversão ele invejosa da qual Guilherme não fazia mistério,
deixou Paris ou abandonou seus estudos de porque é verdade aquilo que diz o poeta Ovídio:
filosofia, e no próprio mosteiro, para o qual se fí invejo é como o vento, que Fustigo mois
transferira depois de ter entrado na Ordem, abriu os cimos mois oitos.
uma escola pública. Cntão voltei para junto dele Pouco tempo depois, Guilherme, percebendo
paro estudar retórica e, para recordar apenas uma que quase todas as pessoas de bom senso,
de nossas tantas disputas, refutei justamente duvidando da sinceridade de sua fé e ironizando de
naqueles dias, ou melhor, demoli, fazendo até com sua conversão pelo fato de que continuara a viver
que mudasse de opinião, sua velha doutrina sobre em Paris, transferiu-se com seu pequeno grupo de
os universais. fl propósito da existência comum dos irmãos e com toda sua escola para um vilarejo
universais, com efeito, Guilherme sustentava que em distante de Paris. Depressa, de Melun voltei para
todos os indivíduos está presente essencialmente a Paris, na esperança de que me teria deixado em
mesma realidade, de modo que não há nenhuma paz, mas, como encontrei a cátedra ocupada por
diferença em essência, mas apenas certa variedade aquele rival que Guilherme nomeara seu sucessor,
como conseqüência da multiplicidade dos fui instalar-me com minha escola um pouco fora da
acidentes. Depois de nossa disputa, porém, ele cidade, sobre a colina de Sainte Geneviève, como
que para assediar aquele que havia ocupado meu
modificou sua teoria e chegou a sustentar que a lugar.
própria realidade está presente nos indivíduos Guando soube disso. Guilherme, deixando de
singulares, não essencialmente mas lado qualquer escrúpulo, não hesitou em voltar a
indiferentemente. Todavia, como se sabe, o Paris e o recolocar no antigo mosteiro seus
problema dos universais em nosso campo é um coirmãos e os poucos alunos que conseguira reunir.
problema fundamental (não por nada também Seu escopo, por assim dizer, era o de liberar,
Porfírio, no Isagoge, tratando dos universais, não depois de tê-lo abandonado, seu fiel de meu
ousa proceder a uma verdadeira e própria definição assédio, mas, apesar de tudo, isso mais o
da questão e se limita a dizer que "a coisa não é das prejudicou do que ajudou. Com efeito, esse infeliz
mais simples"), e por isso quando Guilherme tinha ainda um minguado grupo de discípulos,
corrigiu, ou melhor, foi forçado a modificar graças sobretudo a seus comentários sobre
completamente seu pensamento a respeito, suas Prisciano, questão em que era considerado muito
aulas caíram em tal descrédito que com muito favor hábil, mas depois da chegada de seu mestre
lhe foi concedido tratar os outras partes da dialética, perdeu quase todos aqueles poucos alunos e foi
e com razão, pois na realidade o ponto mais forçado a abandonar a direção da escola; aliás, não
importante de nossos estudos é justamente o que se muito depois, desistindo de poder conseguir algum
refere oo problema dos universais. sucesso nesse campo, também ele entrou na vida
Cm todo caso, a partir daquele momento, monástica.
tornei-me neste campo tal autoridade que também Quais foram as disputas que meus alunos
aqueles que antes eram os mais apaixonados tiveram com Guilherme e com seus discípulos de-
seguidores daquele grande mestre e meus mais pois de sua volta, quais êxitos nesses desencontros
ferrenhos adversários, se precipitam em massa em a sorte reservou a meus alunos e também a mim por
minhas aulas; mais ainda, o próprio sucessor de meio deles, é coisa conhecida de todos e também
Guilherme na escola de Paris veio oferecer-me seu tu o sabes. €u, como fljax na ilíodo, poderio limitar-
lugar, para poder assistir junto com todos os outros me a dizer, com um pouco de modéstia talvez, mas
minhas aulas, justamente onde pouco tempo antes com o mesmo tom:
havia triunfado seu e meu mestre. Queres sober o resultado da batalha?
Dizer quanta dor e quanta inveja provou Saiba que meu inimigo não me derrotou.
Guilherme nos poucos dias em que dirigi a es Abelardo e Heloísa,
Cartas de amor.
Quinta parte - y\ Escolástica nos séculos décimo primeiro e clé-c.\n\0 segundo

judicar, quanto mais estivesse certo de realizar


2 fl lógica a serviço da aquilo que quer por meio de seu poder e de sua
teologia habilidade. Além disso, quem não é movido pelo
sentimento da bondade não predispõe os outros o
esperar por seus benefícios. Cstas três
Uma das características de Flbelardo é o características, portanto, se unem para fazer com
uso dos instrumentos lógicos (particularmente que ele possa realizar aquilo que quer, e enquanto
aristotélicos) para o exame dos pontos bom queira aquilo que é bom e não exorbite por
fundamentais da fé cristã. Por meio de um insipiência os limites da razão. Cie é sem dúvida
cerrado e rigoroso confronto com as opiniões dos bom e perfeito em tudo. Csta diferenciação dentro
adversários, ele individua na linguagem o espaço da Trindade não só permite descrever a perfeição
em que o trabalho do teólogo pode ser exercido do sumo bem, mas é também muito útil para
com a mais completa autonomia. convencer os homens ao culto de Deus. Por este
motivo o própria sabedoria de Deus encarnada se
referiu a ela de modo particular em sua pregação.
Duas coisas fazem com que nos submetamos com-
pletamente a Deus: o temor e o amor. O poder e a
sabedoria suscitam em nós o máximo grau de
1. O que significa a distinção das Pessoas temor, pois sabemos que Deus pode punir os erros
Cristo, o própria sabedoria d® Deus en- e nada lhe escapa. A bondade, ao contrário, está
carnada, descrevendo a perfeição do sumo bem, ligada ao amor, pois amamos de modo especial
que é Deus, a distinguiu acuradamente por meio de oquilo que consideramos sumamente bom. Disso
três nomes, quando chamou, por três razões, a deriva com certeza que Deus quer punir a
substância divina única e singular, absolutamente impiedade; de fato, quanto mais aprecia a
individual e simples, Pai, Filho e Cspírito Santo. eqüidade, tanto mais despreza a iniqüidade,
conforme está escrito: "Amaste a justiça e odiaste a
iniqüidade" (SI 44,8).
2. O que significam os nomes das Pessoas
O nome Pai, conforme dissemos, designa o
fl substância divina é chamada Pai por causa poder; o nome Filho, a sabedoria; o nome Cspírito
do único poder de suo majestade, que é a Santo, o sentimento de bondade para com as
onipotência, por meio da qual pode fazer aquilo criaturas. Determinaremos a seguir o fundamento
que quer, enquanto nado lhe pode resistir. C desses nomes, mostrando como, para indicar estas
chamado Filho por causa da própria sabedoria, por diferenças em Deus, eles são usados de modo
meio da qual pode distinguir e separar conforme a translato em relação a seu significado costumeiro.
verdade todas as coisos, de modo que nada pode Antes de tudo, porém, mostremos que a distinção
fugir-lhe ou enganá-la. C chamada Cspírito Santo dentro da Trindade nõo se originou de Cristo, mos
por causa da graça da sua bondade, pela qual foi ensinada por ele com maior clareza e precisão, fl
Deus nõo urde males, mas está disposto a salvara inspiração divina se dignou revelá-la aos Hebreus
todos, distribui a nós os dons de sua graça sem por meio dos profetas, e aos pagãos por meio dos
olhar o que nós ganhamos com nosso depravação, filósofos, para impelir, por meio do conhecimento da
e salva com a misericórdia aqueles que não pode perfeição do sumo bem, um e outro povo ao culto
salvar por meio da justiço. Afirmar que Deus é três do único Deus, "do qual, por meio do qual" e no qual
pessoas, isto é, o Poi, o Filho e o Cspírito Santo, é "existem todas as coisas" (1 Cor 8,6), e para que a
como dizer que a substância é poderosa, sábia e fé na Trindade, enquanto transmitida pelos antigos
boa, ou melhor, que é o próprio poder, sabedoria e doutores, fosse acolhida com maior facilidade por
bondade, fl completa perfeição do bem consiste ambos os povos no tempo da graça. [...]
nestas três determinações: poder, sabedoria e
bondade, e cada uma delas pouco vale sem as 3. Por que a sabedoria é chamada Verbo
outras duas. Com efeito, quem é poderoso, mas fl sabedoria é chamada Verbo porque, por
nõo sobe dirigir segundo a razão aquilo que lhe é meio das palavras, alguém manifesta o próprio
possível, possui um poder fatal e prejudicial. Quem conhecimento e a profundidade de sua ciência. Por
é sóbio e age com retidão, carece de eficácia caso isso, Moisés, conforme já recordamos, faz preceder
não posso fazer nada. Quem fosse poderoso e a narração da criação das diversas coisas pela
sábio, mas de modo nenhum bom, seria mais expressão "Deus disse" (Gn 1,3ss),
inclinado a pre
Capítulo décimo - y\bel ardo e a grande controvérsia sobre os universais

0 Faz seguir o resultado pelas palavras "e assim foi filho, hoje te gerei. Pede e eu te darei as nações
feito” (Gn l,7ss). Ge mostra que Deus criou todas as como herança" (SI 2,7ss). Quando afirma: "hoje te
coisas em seu Verbo, isto é, em sua sabedoria, gerei", é como se dissesse: tu és eternamente de
portanto racionalmente, fl este respeito em outro minha própria substancia. Com efeito, na
lugar o salmista afirma: “Cie disse e as coisas foram eternidade não há passado nem futuro, mas tudo
feitas" (51 32,9), isto é, ele criou e ordenou todas as está simplesmente presente, por isso o advérbio
coisos por meio da razão. Cm outro lugar, que indica o tempo presente é utilizado para
mostrando claramente que este Verbo não é uma significar a eternidade, diz portanto "hoje" para dizer
palavra passageira que se ouve, mas permanente e "eternamente". Corretamente acrescenta ao
inteligível, afirma: "Ge criou os céus com sabedoria" advérbio "hoje" o verbo "gerei", um passado unido
(51 135,5). Csta palavra intelectual de Deus, isto é, oo presente, paro indicar, mediante o termo "hoje",
a eterna disposição de sua sabedoria, é descrita que esta geração está sempre presente, e com o
deste modo por Agostinho: “A palavra divina é a termo "gerei", que elo está sempre realizada e com-
própria disposição de Deus, que não tem um som pleta, e por isso ele usou o passado como para
estridente e passageiro, mas uma força que indicar a perfeição, para mostrar que o Filho
permanece eternamente". A respeito dela no VIII sempre foi gerado e sempre foi gerado pelo Pai.
livro do De Trinitateafirma: "Ge chamou Filho seu Cm outro lugar ele proclama mais claramente a
Verbo para mostrar que é gerado por ele". eternidade do Filho, dizendo: "Permanecerá com o
sol e antes do lua de geração em geração" (51
4. Por que a bondade de Deus é 71,5). Ainda: "Contigo está o princípio, no dia de tua
chamada €spírito Santo virtude, no esplendor dos santos eu te gerei de meu
seio antes da aurora" (51 109,3).
O nome Cspírito Santo exprime o sentimento Abelardo, Teologia do
de bondade e de caridade, como o espírito, isto é, o Sumo Bem.
sopro que sai de nossa boca, manifesta sobretudo
os sentimentos do coração, tanto quando
suspiramos por amor, como quando nos
lamentamos de angústia pela fadiga ou pela dor.
Por este motivo o Cspírito Santo é entendido como
sentimento bom nesto passagem do livro da
Sabedoria: "8om é o espírito de sabedoria, não
sairão blasfêmias de seus lábios" (Sb 1,6). Aqui o PORFÍRIO
nome Cspírito Santo indica exclusivamente uma
pessoa, todavia tomado em outro significado ele é
comum às três pessoas, pelo fato de que a
substância divina é espiritual e não corpórea, e
também santa. Sucede freqüentemente que um
nome comum a muitas coisas se refira a uma delas
como seu nome próprio. C uma vez que as outras
D fl questão dos universais
coisas têm nomes próprios por meio dos quais se
distinguem mutuamente, enquanto esta não tem um fl passagem seguinte, tirado do Isagoge de
nome que indique sua diferença, o que antes era Porfírio, deu origem à célebre disputa sobre os
comum a todas as outras torna-se nome próprio universais. Porfírio se pergunta se os universais
desta. Como quando falamos de clérigos para tinham um estatuto ontológico, e de que
salientara diferença com os monges, embora natureza, ou se tinham uma existência apenas
também os monges sejam clérigos, ou ainda mentol, como puros conceitos. Porém, nesse
quando falamos de fiéis para salientar a diferença escrito, deixa a questão em suspenso, afirmando
com os mártires, embora sobretudo os mártires de- que se trata de um tema demosiado complexo
vam ser chamados de fiéis. para ser examinado em um breve tratado.
Há também muitas outras passagens dos
profetas nas quais está claramente mostrada a
distinção dentro da Trindade. O próprio Davi
ensinou claramente a eterna geração do Filho a
partir do Pai, fazendo a pessoa do Filho falar deste Caro Crisaório, dado que para compreender
modo: "O Senhor me disse: tu és meu a doutrina das categorias de Aristóteles é
necessário saber o que sejam o gênero, a di-
ferença, a espécie, o próprio e o ocidente, e dado
que esta análise é basilar para a formulação das
definições, e, em todo caso, para tudo aqui-
Quitltã pãrte - Escolástica nos séculos décimo pWmeieo e décimo segundo

Io que se refere à divisão e à demonstração, farei para nalmente, se são separados ou se se encontram nas
ti uma breve exposição em poucos palavras, na forma, coisas sensíveis, inerentes a elas; este é, com efeito,
por assim dizer, de uma isagoge, daquilo que nos foi um tema muito complexo, que tem necessidade de
transmitido pelos antigos, deixando as questões mais outro tipo de pesquisa, muito mais aprofundado.
complexas e tratando em igual medida as mais Disponho-me, ao contrário, a explicar- te de
simples. um ponto de visto lógico aquilo que sustentaram
Previno-te logo que não enfrentarei o problema sobre estas duas questões e sobre outras, sobretudo os
dos gêneros e das espécies, isto é, se são subsistentes Peripatéticos.
por si ou se são simples conceitos mentais; e, no caso
que sejam subsistentes, se são corpóreos ou Porfírio, Isagoge.
incorpóreos; e, fi
íSapítulo ÁécÀyrxo primeiro

(Serv+ros promotores de cultura do seculo


décimo se0urvdo. y\s escolas de {Skartres e de
São Vítor, Pedro Lomba rd o e 3°ão de Salisbury
--- I. ;As Escolas de Ekartres — ,..ZZI e de 5ão
Vítor

• A Escola de Chartres (Bernardo e Teodorico de Chartres, Guilherme de


Conches, Gilberto Porretano) foi o mais importante centro cultural do séc. XII,
conhecido pela leitura e interpretação dos clássicos, e particu-
larmente Platão. A Escola
Especial importância tinha o estudo das artes do trívio, de
sobretudo a gramática, porque ela, ligando-se a uma concep- Chartres
ção platônico-realista dos universais, exprimia também certa eo
capacidade cognoscitiva do mundo: com efeito, se o nome estudo
exprime as Idéias e as Idéias são arquétipos das coisas, o estu-
dos
clássicos
do das relações entre os nomes exprime em alguma medida a reiaçao -» § 1-3 entre as
coisas.
Teodorico de Chartres procurou mediar o Timeu platônico com o Gênesis,
identificando os princípios do mundo com Deus, entendido como o princípio da unidade,
e com a matéria, entendida como o princípio da multiplicidade.

• Se a Escola de Chartres acentua os aspectos filosóficos, a Escola de São Vítor,


que deve grande parte da sua fama a Hugo de São Vítor, acentua os místicos.
Hugo procurou fixar um razoável cânon para a exegese dos textos bíblicos, para que
se mantivesse uma distância justa do excessivo alegorismo e do literalismo. Introduziu
também no curriculum
escolástico as artes mecânicas, levando em conta as exigências
que a vida das comunas andava exprimindo. O caráter típico da Escola de São Vítor está,
em todo caso, na perspectiva mística entendida como o ápice do conhecimento. o
misticismo
Ricardo de São Vítor traduzirá esta perspectiva na fórmu- da Escola Ia da
de São vítor
c ogitatio, meditatio, contemplatio,
que são as etapas da ascensão mística
5 4-5
que leva à identificação com Deus.

1 Tradição e inovação 1028. Posteriormente, no século XII, os mes-


tres mais conhecidos, que deram brilho à
escola catedral de Chartres, foram os irmãos
Ao falar da escola de Chartres, falamos Bernardo e Teodorico de Chartres e
do principal centro cultural do século XII, com Guilherme de Conches, que se destacaram
mestres de grande prestígio e com um núcleo pela leitura direta dos clássicos, pela
doutrinai unitário e, em muitos aspectos, predileção pelos autores antigos,
inovador. particularmente por Platão, e, portanto, pela
A fama dessa escola já remontava aos importância que davam às humanae litterae.
tempos do bispo Fulberto, que morreu em Trata-se de um humanismo feito de
gramática e retórica,
Qtlifltã parte - j\ Escolástica nos sécul 5 décimo primeiro e décimo segundo

pella, As núpcias de Mercúrio e da Filologia,


que celebra a relação entre as letras e as
ciências. Ademais, também o Planisfério, o
Cânon e as Tábuas de Ptolomeu, que dizem
respeito à aritmética, à geometria e à astro-
nomia.
No que se refere à dialética, além do
corpus da logica vetus, há também o resto do
Organon de Aristóteles (Analíticos, Tópicos e
Elencos).
O estudo dessas obras era motivado
pela convicção de que, para filosofar, o in-
telecto precisa ser iluminado pelo quadrívio e
possuir os instrumentos de interpretação
constituídos pelo trívio.
O estudo da herança do mundo clássico
era justificado pelo fundador da escola,
Bernardo, que foi um platônico e que tornou
famosa a célebre imagem “dos anões e dos
gigantes”. Os anões são os modernos, os
gigantes são os antigos, com os primeiros
sentados no ombro dos segundos. Os
gigantes são constitucionalmente mais ro-
bustos e desenvolvidos, mas os segundos
gozam do privilégio de olhar mais longe e ver
mais coisas, com a condição, porém, de não
descerem de sua posição privilegiada.
Nós, portanto, devemos ser como
A excelência do modelo antigo e a confiança no anões, sentados no ombro dos gigantes,
progresso histórico do conhecimento são estudando suas obras e desenvolvendo seus
expressas por Bernardo na célebre imagem "dos estímulos e indicações.
anões e dos gigantes”. A imagem destaca a excelência do
Este vitral da catedral de Chartres, representando modelo antigo e, ao mesmo tempo, a con-
os quatro evangelistas sobre as costas dos quatro
fiança no progresso histórico do conheci-
profetas maiores do Antigo Testamento com a
Virgem no centro, traduz em iconografia sacra a
mento.
expressão de Bernardo.

2 ;As artes do trívio


bem como de todas as artes do quadrívio, em perspectiva religiosa
particularmente das ciências naturais (ma-
temática e astronomia), onde foram buscar
estímulos e solicitações para refletir sobre as O culto das artes do trívio, sua aplica-
verdades cristãs. ção prática na atividade escolar e sua utili-
Da escola de Chartres também saiu zação em termos religiosos são atestados por
Gilberto Porretano, falecido em 1154. A João de Salisbury na obra Metalogicon, onde,
influência de Bernardo sobre a formação de falando das aulas de Bernardo, escreve que
Gilberto foi determinante. No século XII, ele usava as artes do trívio em função da fé e
Abelardo predominou no terreno da lógica; da moral.
Gilberto o superou na esfera da metafísica: No que se refere ao aspecto mais es-
foi inteligência altamente especulativa pecificamente gramatical, é útil acenar para a
Os textos em que a escola de Chartres interpretação realista do Platonismo, segundo
se baseava, por si sós, são bastante o qual o nome expressa a natureza mesma da
significativos quanto à sua orientação coisa designada. Com efeito, se há perfeita
doutrinai. Antes de mais nada, a obra de analogia entre o universo das coisas e o
Marciano Ca- universo dos nomes, porque am
Capitulo décimo ptitueivo - íSentros promotores de cultura do século décimo segundo

bos derivam do mundo das “idéias”, então as 3 O ~Cim&u de Platão


diferentes formulações gramaticais ex- interpretado à luz do Gê rvesis
pressam, com as flexões dos casos, dos gê-
neros etc., o grau diverso de participação das
A orientação doutrinai da escola foi
coisas mencionadas na perfeição originária.
substancialmente platônica, e a obra mais lida
Por exemplo: na passagem do subs-
e comentada foi o Timeu, de Platão. Trata-se
tantivo abstrato “brancura” para o verbo
da filosofia da natureza elaborada pelo
“branquear” e para o adjetivo “branco”,
filósofo mais próximo da revelação cristã e,
Bernardo via a idéia se transmitindo até cor-
portanto, um subsídio válido para a melhor
romper-se no “branco”. Ou seja, à medida
compreensão do Gênesis, a narrativa bíblica
que desce em direção ao sensível, a idéia se
da criação do mundo. Ademais, trata-se de
empobrece e obscurece. Trata-se, portanto,
uma primeira tentativa de relacionar a física
de uma perspectiva gramatical e retórica de
com a teologia, encaminhando o
tipo realista, na qual eram relidos alguns
desenvolvimento das ciências do qua- drívio.
momentos propriamente metafísicos de
O maior expoente da escola foi Teodo-
Platão.
rico de Chartres, irmão de Bernardo, que
Essas pistas serão retomadas por Gui-
morreu por volta de 1155. Seus escritos mais
lherme de Conches (1080-1154), convencido
significativos são o Heptateucon, que é o
de que a ignorância gramatical ou lingüística
programa das sete artes liberais, o De
leva à ignorância filosófica.
septem

/A catedral de Chartres, da qual recelic o nome a Escola homônima, o maior centro de cultura do séc. XII.
Quinta parte - y\ Escolástica nos sáculos décimo primeiro e décimo segundo

diebus, que é um comentário ao Gênesis, e os terpretação. Ele rejeita, particularmente, as


comentários ao De bebdomadibus e ao De incongruentes e genéricas interpretações
Trinitate, de Boécio. alegóricas, mas também as interpretações
Fundindo as indicações do Gênesis e do opostas que se reduzem exclusivamente à
Timeu, Teodorico afirma que dois são os litera- lidade. A letra mata, o espírito
princípios das coisas: Deus, princípio da vivifica: “e digo essas coisas não para
unidade, e a matéria, princípio da multi- oferecer a quem quer que seja a
plicidade. Em sua opinião, Platão não en- oportunidade de interpretar a Escritura ao
tendeu a matéria como um princípio coeter- seu bel-prazer, mas para demonstrar que
no a Deus, mas, ao modo pitagórico, pôs a aquele que segue apenas o sentido literal não
matéria como derivada ou descida da unidade. pode ir muito longe sem se enganar (...)”.
Trata-se de uma aproximação que parecia Além disso, um elemento que também se
mais adequada para uma cautelosa tentativa deve salientar é o espaço que Hugo concedia
de cristianização do neoplatonismo. às “artes mecânicas”, que corajosamente
Teodorico teve grande interesse pelas alinhava junto com as artes do trívio e do
ciências naturais, embora em acordo com um quadrívio. Elas expressam a atenção que dava
desígnio teológico superior. Isso se encontra à nova vida citadina. Com efeito, trata-se das
igualmente em outro mestre de Chartres, artes têxteis, da fabricação de armas, da
Guilherme de Conches. navegação, da agricultura, da caça, do teatro,
das técnicas de conservação dos alimentos.
Estamos diante de disciplinas de certo modo
novas, que refletem as atividades da nova
economia burguesa e que são teorizadas por
Hugo, que as coloca no amplo quadro de um
4 CD IDidascalicon
discurso filosófico concreto.
de -H ugo de São Vítor
Seu apreço por essas disciplinas não-
liberais era motivado pela convicção de que
Fundada por Guilherme de Cham- seu estudo poderia contribuir “para a ele-
peaux, a escola da abadia de São Vítor, dos vação da atual condição humana”. Assim
cônegos agostinianos de Paris, foi um centro como a ética ajuda a agir retamente e a física
de viva atividade cultural, entendida como fornece os instrumentos para um conhe-
prólogo necessário para uma autêntica vida cimento mais eficaz do mundo, essas artes
mística. vêm ao encontro de nossas necessidades
A exemplo da escola de Chartres, ela cotidianas. [T]
também acentua os aspectos filosóficos e
científicos da cultura; mas, diferentemente
dela, a escola de São Vítor insiste na oração e
na contemplação de Deus, ao qual tudo é
funcional. Misticismo e cultura são progra-
maticamente fundidos numa unidade, como
5 A mística
não é difícil observar no representante mais e Ricardo de São Vítor
ilustre dessa escola, ou seja, Hugo de São
Vítor. Apesar da distinção clara entre ciências
Dentre os escritos de Hugo (nascido na profanas e ciência sagrada, e embora as pri-
Saxônia em 1096 e falecido em 1141), como meiras tenham sido cultivadas segundo mé-
o De sacramentis christianae fidei, o Epitome todos próprios a cada uma delas, todavia,
in philosophiam e o Commentum à Hierarquia elas permanecem subordinadas à teologia e,
celeste do Pseudo-Dionísio, o Didasca- licon portanto, à mística. Para tal fim é oportuno
(em sete livros) é a obra mais completa e acenar à forma ascendente dos graus do real,
sistemática, dispondo e ordenando inteli- progressivamente domináveis com a razão e
gentemente o saber da época. com a fé. Há coisas essencialmente racionais,
Pela estrutura e o rigor metódico, essa cognoscíveis portanto apenas com a razão,
obra foi um modelo para as Suntmae que como as verdades da matemática, os princí-
serão escritas posteriormente. pios da lógica e da dialética. Há depois coisas
Certa importância tem a concepção de secundum rationem, isto é, verdades
Hugo sobre a exegese: conforme Hugo, as prováveis, como as históricas, para cuja
Escrituras não podem suportar qualquer in compreensão a razão deve ser ajudada pela
fé.
Capítulo décimo primeiro - Cenffos promotores de cultura do século décimo segundo

Finalmente, há coisas supra rationem, isto é, si mesmas a sua razão. Esta reside, porém,
superiores à razão e objeto específico e único no ser infinito, incriado e eterno que é Deus.
da fé. Do conjunto resulta um pleno acordo Portanto, para Ricardo, a ascensão mística
entre razão e fé, mas sobretudo a superiori- parte da cogitatio e, através da meditatio,
dade desta como realização de todos os es- chega à contemplatio.
forços humanos, constituída pela contempla- Esta, que é preparada pelo exercício
ção e pela posse de Deus. das virtudes, conduz ao mergulho abissal em
Quem aprofundou a vida mística foi o Deus. À medida que ascende por meio dos
escocês Ricardo (morto em 1173) que suce- graus da contemplação, a alma se dilata, se
deu a Hugo como mestre e prior da Escola de eleva sobre si mesma e, no momento supre-
São Vítor. mo, se aliena completamente de si mesma
Fundamentalmente neoplatônico e pro- para transfigurar-se em Deus.
fundamente místico, Ricardo evidenciou a A Escola de São Vítor, portanto, culti-
ligação entre razão e fé. vou com grande empenho as ciências, a fi-
A fé nos diz que existe um só Deus; que losofia e a teologia, compenetradas entre si
Deus é eterno e incriado; que Deus é uno e por um espírito contemplativo dos mistérios
trino. Pois bem, a razão procura justamente divinos, ao qual tudo pode e deve conduzir,
as rationes necessariae da fé. As coisas como ao momento mais alto e significativo da
mudam e perecem, não encontram em vida intelectual e moral.

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A Filosofia com a Dialética e a Geometria. Pavimento em mosaico de 1105 (Ivrea, Seminário).


Quinta parte - ;A Escolástica nos séculos décimo primeiro e <^éc\yno segundo

II. Ped ro .Lombardo e


3oão de -Salisbury

• A fama de Pedro Lombardo está ligada sobretudo aos livros

/As Sentenças
das Sentenças que, embora não particularmente profundos no
campo filosófico, recolhem com diligência e com equilíbrio crítico os
de Pedro maiores contributos das correntes de pensamento anteriores, com a
Lombardo -
>§7 intenção de apresentar um compêndio da doutrina cristã.

• João de Salisbury, discípulo de Abelardo, sustenta uma


posição filosófica não dogmática de derivação acadêmico-
ciceroniana, que o levou a preferir os termos de um conhecimento
João
de Salisbury:
provável em vez da presunçosa segurança de quem pretende captar
a humildade a verdade. A humildade da razão se coaduna bem com a fé cristã,
da razão -^§2 que considera que apenas Deus é verdadeiramente sábio.

Os I ivros das Sentenças de


Pedro Lombardo

“O século XII também foi o século em


que se chegou à sistematização da teologia,
entendendo por sistematização certa unidade
na exposição das verdades de fé (...). Sente-
se a necessidade de reunir a doutrina católica
em uma exposição ordenada” (S. Vanni
Rovighi).
As verdades da fé estão contidas na Sa-
grada Escritura, mas nem sempre havia con-
cordância sobre vários trechos, inclusive im-
portantes, da Escritura. Desse modo, tomou
corpo a exigência de reunir e divulgar, junta-
mente com os trechos da Escritura que
expressam as verdades da fé, também as
interpretações que dessas verdades deram os
Padres.
Foi assim que nasceram as Summae ou
Sententiae, que, devido à dificuldade de
acesso aos manuscritos, passaram a
funcionar como verdadeiras enciclopédias da
doutrina cristã. Durante toda a Idade Média,
foram instrumentos essenciais, tanto para o
estudo como para o ensino.
Entre os vários livros de Sentenças, os
Libri quattuor sententiarum de Pedro Lom-
bardo tiveram importância central para toda a Pedro Lombardo numa pintura de 'Taddet ( ulddi
Idade Média.
(1290/1300-1366).
Cdpltulo decimO primeiro - (Sentros promotores de cultura do século décimo segundo

Pedro Lombardo nasceu perto de No- boca”. Depois de ter passado alguns anos na
vara. Realizou seus estudos inicialmente em corte pontifícia, João voltou para a Inglaterra,
Bolonha e depois na Escola de São Vítor, em tornando-se secretário do arcebispo de
Paris. Aqui, a partir de 1140, ensinou na Canterbury, Thomas Becket, a quem dedicou
escola catedral. Tornou-se bispo de Paris em o Metalogicon e o Policraticus. A luta entre
1159, morreu em 1160. Thomas Becket e Henrique II teve como
Autor de um Comentário às cartas de epílogo o “assassínio na catedral”, do
são Paulo e de outro Comentário aos salmos, arcebispo. E João voltou à França, onde se
Pedro Lombardo escreveu os seus Libri tornou bispo de Chartres em 1176 e morreu
quattuor sententiarum — que seriam comen- em 1180.
tados por todos os grandes escolásticos — no João apreciava a cultura humanista e a
período de tempo que vai de 1150 a 1152. lógica. Não era cético. E, no entanto, en-
Trata-se de uma obra que se apresenta como tregava-se ao critério do conhecimento pro-
compêndio da doutrina cristã, extraída da vável de que falava Cícero. Era esse critério
Escritura e da autoridade dos Padres, e que lhe permitia fugir da verbosidade, por um
também estão presentes a Escola de são Vítor lado, e do dogmatismo, por outro. “Prefiro
e Abelardo. duvidar sobre as coisas em particular, junto
A obra de Pedro Lombardo não é, cer- com os acadêmicos, do que definir
tamente, obra original; é muito mais uma obra temerariamente, mediante danosa simulação,
de compilação na qual “desembocam todas as o que ainda permanece desconhecido e
correntes anteriores”. Entretanto, o oculto”, escrevia João.
comentário de Pedro se impõe por seu grande Em suma, ele se sentia próximo da
equilíbrio. Com efeito, ele reconhece os modéstia dos acadêmicos, uma atitude que
direitos da razão, mas somente até um ponto também estaria em consonância com os es-
em que submete a razão à fé. E esse seu tudiosos cristãos, se pensarmos que somente
equilíbrio foi certamente um dos motivos do Deus conhece completamente a verdadeira
sucesso de suas Sentenças. fifgflTl realidade do universo.
Claro, há verdades que o homem pode
alcançar, por meio dos sentidos, da razão e
da fé; mas também é preciso admitir com
muita franqueza que existem problemas
diante dos quais a razão faria muito bem em
os limi+es da razão e a suspender seus juízos e se deter. Eis, por
autoridade da lei exemplo, alguns problemas que obrigam a
razão a admitir seus próprios limites: a ques-
tão da origem da alma; os problemas da
Uma personagem característica do fim
providência, do acaso e do livre-arbítrio; a
do século XII foi João de Salisbury. Nascido
questão da infinidade dos números e da
na Inglaterra, precisamente em Salisbury, por
divisibilidade infinita das grandezas; o pro-
volta de 1110, João estudou na França, onde
blema dos universais etc. João não pretende
freqüentou a escola de Chartres, tendo sido
que não se discuta sobre essas questões,
aluno de Abelardo, como recorda o próprio mas exige que não se tenha como soluções
João: “A seus pés recebi os primeiros definitivas e absolutas as que que são apenas
rudimentos da arte lógica e absorvi com tentativas.
apaixonada avidez tudo o que vinha de sua
184
. .. Quifltã parte - ;A Escolástica nos séculos décimo primeiro e décimo segunde

soas desse tipo, que, privados ainda dos rudi-


HUGO DE SÃO VÍTOR mentos da culturo, julgavam apenos coisa digna
deles ocupar-se de altíssimos problemas:
acreditavam poder tornar-se grandes, apenas
lendo os livros ou ouvindo as palavras de autores
célebres e sábios.
^1 O valor dos clássicos "Nós — diziam — os vimos, ouvimos suas
palestras, freqüentemente eles costumavam
conversar conosco, fomos conhecidos por homens
excelentes e famosos!". Cu, porém, vos digo:
Os clássicos do pensamento helênico sõo "Quisesse o céu que ninguém no mundo me
instrumentos indispensáveis poro quem quer conhecesse, mas que eu pudesse conhecer o que
oleonçor o sobedorio. é humanamente cognoscível".
Fl culturo da Escola de Sõo Vítor pode ser Vós vos vangloriais de ter visto, mas não
expressa pelo célebre metáfora dos "anões dizeis que entendestes Platão: neste ponto creio
sentados sobre os ombros dos gigantes" que nõo seja para vós ocasião de prestígio vir ouvir
(cunhada por Bernardo de Chartres): Platão é um minhas aulas. Cu não sou Platão, nem tive a sorte
gigante da cultura, mas um onão sentado sobre de encontrá-lo. Bebestes na fonte da filosofia, mas
seus ombros pode ver mais. seria de grande bem se ainda tivésseis sede! Até
um rei, que tenha bebido em cálices de ouro, bebe
também de um copo de barro, se tiver sede. Por
que deveríeis retirar-vos? Ouvistes Platão, escutoi
Um sábio, interrogado sobre as melhores agora também Crisipo. Tornou-se proverbial o dito:
disposições paro aprender, respondeu: espírito "Talvez aquilo que não saibas, Ofélio o saiba".
humilde, empenho no pesquisa, vida tranqüila, Não há nenhumo pessoa a quem tenha sido
investigação silenciosa, pobreza, terra estrangeira: dado saber tudo, também nõo há nenhuma que nõo
tais circunstâncias tornam mais rápida a superação tenha recebido da natureza algum dom especial: os
das dificuldades que se encontram durante os estudantes, portanto, devem ouvir de bom grado a
estudos. todos, devem se esforçar pora ler tudo e não devem
Cie conhecia, penso, aquele dito: O bom desprezar nenhum escrito, nenhum autor, nenhum
comportamento moral enriquece a cultura, e por tal ensinamento: sem preconceitos devem procurar
motivo acrescentou advertências sobre o modo de aprender de qualquer pessoa oquilo que não
viver segundo as normas que se referem ao estudo, sabem; não devem pensor em tudo o que já
para que o aluno pudesse chegar a conhecer nõo conhecem, mas em tudo o que ainda ignoram.
só o método de seu trabalho, mas também o estilo Neste sentido se diz que Plotão, um tempo,
de sua vida. preferiu aprender com humildade, em vez de
Não merece aplauso a ciência de uma pes- ensinar com presunção. Por que deverias te
soa desonesta: por isso é de máxima importância envergonhar de aprender, e nõo tens pudor de ser
que aquele que se dedico à pesquisa do saber não ignorante? Isso é muito mais desonroso. Por que
deixe de lado as regras de uma vida correta. aspiras a coisas tão grandes, quando és tão
fl humildade é a condição preliminar de um pequeno? Considera realmente até onde podem
comportamento disciplinado; desta virtude existem chegar tuas forças.
muitos testemunhos: os seguintes se referem Procede de modo melhor oquele que ca-
especialmente aos estudantes. Antes de tudo eles minha com passo regular. Alguns quiseram dar um
não devem desvalorizar nenhuma ciência e nenhum grande salto pora frente e depois caíram em um
livro, em segundo lugar; nõo devem envergonhar-se despenhadeiro. Portonto, não tenhas muita pressa:
de aceitar um ensinamento de qualquer pessoa e, somente assim alconçarás primeiro a sabedoria.
finalmente, se conseguirem adquirir cultura, nõo Aprende de bom grado de todos aquilo que
deverão jamais desprezar ninguém. . nõo sabes, porque o humildade pode levar-te a
Muitos se enganam, pois querem parecer participar da posse daquele bem especial que a
sábios antes do tempo — abandonam-se assim à natureza reservou a cada ser humano particular.
vaidade do orgulho, começam o fingir ser aquilo Será mais sábio de todos aquele que tiver querido
que não são e a envergonhar-se daquilo que são: oprender algo de todos: quem recebe algo de
tanto mais se afastam da sabedoria, quanto mais todos, acabo por se tornar mais rico do que todos.
anseiam por ser considerados sábios e não por sê-
lo. Conheci diversos pes
................................ 185
Cãpítulo décimo primeiro - Centros promotores de cultura do século décimo segundo - ......................

Nõo subestimes portanto nenhuma forma de O estudante de valor deve ser humilde e
saber, porque toda ciência tem valor. Caso tenhas dócil, absolutamente alheio às ocupações mun-
tempo, não te eximas de ler os livros que se te danos e aos engodos das paixões, diligente e
apresentam: mesmo que deles não tires particular zeloso, disposto a aprender de bom grado algo de
utilidade, todavia deles nõo terás também nenhum todos; jamais deve ser presunçoso da própria
dano, porque, a meu parecer, nõo existe um escrito cultura, deve fugir como de comida envenenada
que não proponha algo de interessante, quando dos escritos que contêm doutrinas falsas, deve
examinado no tempo e no lugar devidos: pode tratar a fundo umo questão antes de formular seu
conter alguma notícia especial, que o leitor julgamento; deve preocupar-se de ser, nõo de
precavido poderá apreciar com maior prazer, parecer culto. Deverá preferir as palavras dos
quanto mais singular e preciosa for a informação. sábios e tê-las sempre presentes na mente, como
Não é um bem, todavia, aquilo que impede o modelo o ser imitado: se por vezes não conseguir
melhor: se não te é possível ler todos os livros, lê perceber uma passogem obscura, talvez pela
aqueles que são mais úteis para ti. Mesmo que profundidade dos conceitos, não prorromperá em
pudesses ler tudo, não deve- rias jornais colocar em invectivas, quase acreditando que nõo há nada de
todas as leituras o mesmo empenho: há alguns válido, a nõo ser aquilo que ele próprio está em
livros que é preciso ler, o fim de que não nos sejam grau de compreender.
totalmente desconhecidos, enquanto de outros Csta é a humildade que caracteriza os es-
devemos formar-nos ao menos um juízo, porque tudantes disciplinados.
freqüentemente arriscamo-nos o supervalorizar Hugo de São
justamente aquilo que ignoramos, e julgamos melhor Vítor,
quando temos algum conhecimento dos assuntos. Didascalicon.
Rgoro podes perceber por que a humildade
te é indispensável: não deixes de lodo nenhuma
ciência, mas esforça-te para aprender de bom
grado algo de todos,- depois, quando tiveres
alcançado certo grau de instrução, não desprezarás
ninguém; convém que adotes este comportamento. PEDRO LOMBARDO
Nestes últimos tempos, justamente por não ter
seguido estes princípios, algumas pessoas se
inflaram de orgulho: exaltavam com excessivo
complacência sua ciência e, crendo com absoluta
certeza serem grandes, pensavam que os outros
(também todos aqueles que jamais haviam
2 Sentenças sobre filosofia
conhecido) não fossem comparáveis a eles, nem e sobre teologia
teriam podido jamais se tornar iguais a eles. Desta
atitude derivou também o fato desconcertante que
certos tagarelas presunçosos tacharam de ingênuos Pedro Lombardo, em seu compêndio de
os antigos professores: pareciam convencidos de sentenças tiradas da tradição patrística, sustenta
que a sabedoria tivesse nascido com eles e que a utilidade da Filosofia apenas quando submetida
morreria com eles. Andavam dizendo que a à teologia: é esta atitude que se pode exprimir
linguagem dos textos divinos é de tal forma simples, com o célebre dito philo- sophia ancilla
que nõo preciso da explicação de nenhum professor theologiae.
poro ser compreendida: pode bastar a cada
estudonte a força de sua própria habilidade poro
explicar também as verdades mais profundas. Agostinho ensina: primeiro, que é necessário
Torciam o nariz e retorciam a boca, aludindo aos demonstrar segundo a autoridade das Sagradas
docentes de teologia; não percebiam que ofendiam Cscrituras que a fé seja assim; segundo, que contra
a Deus, enquonto andavam dizendo elegantemente os tagarelas raciocinadores, mais soberbos do que
que suas palavras são "simples", mas insinuando capazes, é preciso servir-se de razões católicas e
com malícia que são "insípidas". Não vos aconselho de comparações congruentes para a defesa e a
de modo algum a imitar tais indivíduos! afirmação do fé (.ISent., 2, 3).
Os doutos poderosos, que julgam sobre os
costumes, como Platão, Aristóteles, Pitágo- ras, são
anulados em comparação com Cristo, e nada
sabem; jazem mortos; sua sabedoria é estultícia
(Psalmum 140,7).
186 •
'' Quifltã parte - A Escolástica nos séculos décimo primeiro e clé.c.'imo segundo

De fato, tois argúcias e coisos semelhantes não se pode nem se pôde ter por meio da con-
têm lugar nas criaturas, mas o mistério da fé está templação das criaturas um suficiente conheci-
livre de argumentos filosóficos (III Sent., dist. 22). mento da Trindade sem a revelação da doutrina
Acrescentai a caridade à ciência e a ciência ou da inspiração interior. Daí que aqueles antigos
s©rá útil. Sozinha, com efeito, a ciência é inútil, filósofos quase na sombra e de longe viram a
com o caridade é útil; sozinha, porém, infla de verdade, faltando-lhes o intuito da Trindade
soberba, como para os demônios, que com termo (/Sent., 3, ó).
grego são denominados pela ciência; neles está a Por isso dizemos que esta distinção da
ciência sem a caridade (Epist. I od Corinthios, 8). suma Trindade, que a fé católica proclama, os
Por meio do céu e da terra e das outras antigos não a tiveram de nenhum modo 0 não a
criaturas, que eles compreenderam ser imensas e puderam ter sem a revelação da doutrina ou da
perpétuos, conheceram o próprio Criador inspiração interior. A revelação ocorre, com
incomparável, imenso, eterno ( €pist. od Romanos, efeito, de três modos; por meio das obras, por
I, 20, 23). meio da doutrina, por meio da inspiração. Deus
Não pode ser crido aquilo que pode ser lhes revelou a verdade por meio das obras, 0 não
percebido [...]. O qu0 é, com efeito, a fé senão por meio da doutrina ou da inspiração. CI0S,
crer aquilo que não vês? (III Sent., 22, 7). portanto, viram a V0rdade de longe, mas não se
C necessário qu©, conhecendo o Criador aproximaram dela por meio da humildade (€pist.
mediante seus efeitos, conheçamos a Trindade, od Romanos, I, 20-23).
cujo vestígio aparece nas criaturas (Çpist. ad Pedro Lombardo, em Gronde
Romonos, XI, 33-36). Antologia FHosofíco, vol. V,
foi demonstrado que nas criaturas se en- organizado por G. Di Napoli,
contra certa imagem da Trindade; com efeito, Marzorati.
A ESCOLÁSTICA NO
SÉCULO DÉCIMO
TERCEIRO
■ As grandes sistematizações da relação entre
razão e fé

“[...] como se alguém cai em um precipício e aí


permanece se outro alguém não o ajuda a levantar-se,
também nossa alma não teria podido levantar-se das
coisas sensíveis até a contemplação de si mesma e da
verdade eterna nela refletida, se a própria verdade,
assumindo a forma humana em Cristo, não se tivesse
tornado escada de reparação pela queda da primeira
escada de Adão. Por isso, ninguém, por mais que
possa ser iluminado pelos dons da natureza e da
ciência adquirida, pode reentrar em si mesmo para aí
gozar Deus, a não ser pela mediação de Cristo, que
disse: Eu sou a porta; quem passar por mim se
salvará, entrará e encontrará pastagens eternas.”

Boaventura
Capítulo décimo segundo

A filosofia árabe e a hebraica, a penetração de Aristóteles no


Ocidente e a mediação entre aristotelismo e cristianismo
189
Capítulo décimo terceiro

A grande síntese de Tomás de Aquino

Capítulo décimo quarto 21


O movimento franciscano e Boaventura de Bagnoregio

Capítulo décimo quinto 1


Averroísmo latino, neo-agostinismo e filosofia experimental no
século décimo terceiro
25
Capítulo décimo sexto

João Duns Escoto


3
277

26
9
(Sapítulo décimo segundo

A f i \ osofia arabe e a kebraica, a pervetração de


^Aristóteles rvo Ocidervte e a mediação ervtre
aHstotelismo e cristianismo

I. A situação política e cultural KVO


século XIII

• O séc. XIII assiste à instituição das ordens mendicantes (Franciscanos e


Dominicanos), das universidades (sobretudo Bolonha e Paris) e, em filosofia, à difusão
do pensamento aristotélico.
Este último é particularmente significativo porque propõe A difusão pela primeira
vez na Idade Média uma explicação racional do do aristotelismo mundo e uma visão do
§
homem totalmente independente das -> 2 verdades cristãs e da revelação.

1 Situaçõo político-social tatis). Do ponto de vista religioso, o Ocidente


e instituições eclesiásticas professa a fé católica, que penetra em todas
as classes sociais. O primado do catolicismo
explica o lugar central ocupado pelo papado,
O séc. XIII representa o período áureo que obriga todos a reconhecerem a função
da teologia e da filosofia. Esse fato é decor- mediadora e de guia da Igreja. E é o período
rente de muitos fatores: a criação das uni- da crise do mundo bizantino, crise que tem
versidades, a instituição das ordens mendi- um de seus momentos centrais na tomada de
cantes (franciscanos e dominicanos) e o Constantinopla pelos cruzados (1204), a
contato do ambiente ocidental com obras partir da qual se realiza um intercâmbio
filosóficas até então desconhecidas. As cultural mais intenso.
universidades tornam-se centros de intenso b) Do ponto de vista das instituições
ensino e pesquisa; as ordens mendicantes eclesiásticas, é o período das duas ordens
passam a fornecer número relevante e religiosas mais prestigiosas, a dos domi-
qualificado de mestres; a nova literatura nicanos e a dos franciscanos. Diferentemente
centra-se predominantemente em torno dos das ordens monásticas aparecidas nos sécu-
escritos metafísicos e físicos de Aristóteles, los anteriores, cujos adeptos viviam nos de-
que, conhecidos por intermédio da mediação sertos ou no campo e que eram ligadas à
dos árabes, são agora redescobertos em sua economia feudal, os franciscanos e os do-
redação original. minicanos escolheram as cidades como cen-
a) Do ponto de vista político-social, tro de sua atividade, pois elas se haviam tor-
esse período é marcado pelo amadurecimento nado locais de intensa vida econômica,
das comunas e pelo forte desenvolvimento cultural e religiosa, freqüentemente con-
das camadas burguesas. E o período da denadas pelos ascetas, que, com entonação
tentativa falida de restauração imperial por apocalíptica, conclamavam as pessoas a des-
Frederico II, em virtude da forte tendência prezar o mundo e viver vida austera. Basta
autonomista dos países. E o período da recordar os “flagelantes”, os “humilhados” e
teocracia papal, que, com Inocêncio III, pre- vários outros movimentos afins, logo con
tende a plenitude do poder (plenitudo potes-
Sexta patte - Escolástica no seculo décimo terceiro

denados pela Igreja oficial. Empenhadas na b) Do ponto de vista mais propriamente


pregação, essas novas ordens religiosas logo cultural, o acontecimento filosófico de maior
perceberam a importância da universidade, relevo no século XIII é constituído pelo
instrumento idôneo para o aprofundamento conhecimento e a lenta difusão do
doutrinário e para obra eficaz de evangeli- pensamento de Aristóteles, tanto no que diz
zação. Com efeito, o centro intelectual da respeito à física como à metafísica. A
cidade era a universidade, onde a emanci- exemplo dos escritos lógicos, que há tempo
pação intelectual andava de braço dado com a eram conhecidos e utilizados, os escritos de
emancipação social. As cátedras, que as duas cosmologia e metafísica tornam-se pela
ordens religiosas logo conquistaram, primeira vez objeto de estudo e debate. A
tornaram-se os centros mais abalizados, pela novidade dessas obras consiste no fato de
seriedade do ensino e pela profundidade que oferecem “explicação racional” do
doutrinária. Pode-se dizer que o século XIII é mundo e visão filosófica do homem
o século de Alberto Magno e Tomás de Aqui- completamente independentes das verdades
no (dominicanos), de Alexandre de Hales, cristãs. Até então, por parte dos pensadores
Boaventura de Bagnoregio e de João Duns mais destacados, de Escoto Eriúgena a
Escoto (franciscanos). Abelardo, de Anselmo aos representantes
das escolas de Chartres e São Vítor, embora
elaboradas com instrumentos racionais
autônomos, as concepções da realidade eram
yA situação cultural substancialmente concepções teológicas,
derivadas da Revelação, repensadas e
esclarecidas pela razão. A filosofia era cons-
tituída pela lógica e por intuições platônicas e
a) Do ponto de vista das instituições
neoplatônicas, facilmente utilizáveis e
escolásticas, estamos no período do nasci-
harmonizáveis com o dado revelado.
mento e da organização das universidades. A
Com a descoberta das obras de física e
primeira universidade foi a de Bolonha,
metafísica de Aristóteles, não somente pas-
interessada mais no direito do que na teolo-
sou-se a ter instrumentos formais autôno-
gia, e independente da autoridade eclesiás-
mos, mas também conteúdos próprios e
tica. Já o primeiro e mais importante centro
perspectivas novas, elementos que levam a
universitário de filosofia e teologia foi o de
filosofia a pretender autonomia própria e
Paris. Graças sobretudo a Inocêncio III,
distinção clara em relação à teologia. Embora
transformou-se no verdadeiro cérebro da
a fé tenha necessidade da razão, esta, porém,
“república cristã”, uma forja na qual foi ela-
possui âmbito independente, com conteúdos
borada uma cultura teológica mais sólida.
Antecedida pelas escolas de Chartres e de
próprios.
Podemos dizer que o século XIII foi o
São Vítor, essa universidade nasceu em 1200,
século da aceitação ou da rejeição de Aris-
ano em que Filipe Augusto subtraiu os
tóteles, do repensamento de sua doutrina no
mestres e estudantes à jurisdição ordinária e
contexto das verdades cristãs ou de sua
os submeteu à jurisdição do bispo de Paris,
“cris- tianização”. Em suma, trata-se da
que exercia sua autoridade por meio do
questão da relação sistemática entre fé e
chanceler da universidade. Assim, o ano de
razão, entre filosofia e teologia. As
1200 marcou o ato de nascimento dessa
modalidades de concordância ou as relações
universidade, ao passo que o ano de 1215
recíprocas entre uma e outra assumirão
marcou a sua primeira organização em termos
tonalidades diversas, mas o certo é que o
de disciplinas de ensino (faculdade das artes
objetivo desse intenso debate, que se
e faculdade de teologia), de duração dos
prolongará por todo o século, será o da
cursos e de natureza dos títulos, graças aos
submissão definitiva da razão à fé, da filosofia
estatutos redigidos pelo legado pontifício e
à teologia, da ciência à sabedoria.
antigo mestre de Paris, Roberto de Courçon.
Todavia, para compreender isso de
Essa universidade serviu de modelo para as
modo adequado é preciso traçar um quadro
de Oxford e Cambridge e, mais tarde, para as
geral que ilustre o modo em que o pen-
numerosas universidades que surgiriam por
samento de Aristóteles permaneceu no
toda parte na Europa.
Oriente e como se difundiu e foi recebido no
Ocidente.
Capítulo décimo segundo - y-\ filosofia árabe e a Kebraica e o aristotelismo no Ocidente

II. o aristotelismo de y\vicena

• O aristotelismo chegou ao Ocidente por meio dos ára- .


A djstjn nÇa
bes, particularmente de Avicena e Averróis. entre °
Avicena (980-1037) distingue claramente entre ente (con- ente e ess nê cia
ereto) e essência (abstrata): os entes existem de fato (por exem- §2
pio, os homens), enquanto a essência (por exemplo, a humani-
dade) prescinde da existência, porque representa o "o que é" de um ente, que
poderia existir ou não existir.
• O ente se distingue:
- em possível (o que existe, mas poderia também não exis- Fnfe possível e
tir, porque não tem em si sua própria razão de ser); ente necessário -
- e em necessário (que não pode não ser porque tem em si ^§2
sua própria razão de ser).
Possível é o mundo, necessário é apenas Deus. Todavia, a possibilidade do mundo
não é absoluta, dado que é acompanhada por certa necessidade. O mundo deriva de
Deus, de modo que não possui em si a existência, e portanto é possível. Todavia, Deus
não pode deixar de criar o mundo, enquanto produz necessariamente a primeira
Inteligência (motriz do primeiro céu) e depois pouco a pouco as outras até a décima, que
irradia as formas sobre nosso mundo. O mundo, portanto, é produzido necessariamente
por Deus e em tal sentido é também necessário.
• A décima inteligência é responsável pela atualização do A íeona intelecto possível
(humano e individual), por meio da atuali- dos intelectos zação dos princípios primeiros
(com isso temos o intelecto ha- § 3 bitual) e dos conceitos universais (e temos assim o
intelecto
em ato) e a elevação de nosso intelecto individual ao supremo intelecto agente (intelecto
santo).

1 A fig ura e a obra


>" é XlL HtiiUd
1
(rflmwttn flmt-
A primeira forma sistemática pela qual o
qt)nud:.t|niMnv 'XTo
aristotelismo se apresentou aos pensadores tsi
attttAivmcrhu ‘
medievais foi mediada pelo filósofo persa Tã
Avicena, de cultura enciclopédica, que cul- iftttfií
tivou preferencialmente a medicina e a filo- -
ííWtf
sofia. l cti*
Nascido em 980 nas proximidades de
Bukara, na Pérsia, e morto nas proximidades
de Hamadan em 1037, ele escreveu muitas
obras, que foram traduzidas e divulgadas na
segunda metade do século XII.
O primeiro grupo de traduções, extraí-
das de sua obra maior O livro da cura, em 18
volumes (abrangendo a Lógica, a Retó-

Avicena i k >S0-1 í > ! ~l. hil como c


representado cm um berhario
ilo sec. XIV (mimuscrito palatmo conservado na
liibhotecii Nactoihil dc hlorcnciil.
Sexta parte - y\ Ê-scolós+ica no século décimo fev*cei^o

2 ser possível
e o ser necessário

Da imensa produção do filósofo persa


(que perfaz mais de 250 obras), que vai da
medicina à lógica, da física à música e às
doutrinas esotéricas da religião, abordaremos
somente as teses que foram acolhidas e
repensadas no século XIII desde Tomás de
Aquino até João Duns Escoto, passando a
integrar o movimento que ficou conhecido
como Avicenismo latino.
Em relação à sua produção extrafilo-
sófica é preciso lembrar o Cânon de medicina,
destinado a tornar-se — graças à tradução
latina de Gherardo de Cremona — um ponto
de referência da medicina medieval. Trata-se
de uma obra em cinco livros que reúne de
modo ordenado e claro, segundo um método
compilatório — e, portanto, pouco original —,
não só os fundamentos da medicina, mas
também os da farmacologia.
No que se refere ao pensamento filosó-
fico de Avicena, devemos destacar a distin-
ção entre ente e essência, o primeiro concre-
to e a segunda abstrata. Os homens, por
exemplo, constituem o ente, ao passo que a
Frontispício de uma edição do humanidade constitui a essência. Os primei-
Quinhentos das obras de Avicena ros existem de fato, mas a segunda
traduzidas para o latim. prescinde da existência, pois representa a
definição ou o quid est, que em si mesma não
denota a existência nem a não-existência, a
rica, a Poética, a Física — em oito seções, das necessidade ou a contingência. Equinitas est
quais a sexta é o De anima — e a Metafísica), tantum equinitas, ou seja, a “cavalidade” é tal
completou-se por volta de 1180 em Toledo, e isso basta, escrevia Avicena. Portanto, uma
graças a Domingos Gundissalvi. coisa é a essência e outra a existência. E a
A obra de Avicena constitui a primeira primeira, em si mesma, não denota a
grande síntese especulativa que tem raízes segunda.
na cultura clássica e que constituiu um ponto Ademais, no que se refere ao ente real,
de referência essencial para a cultura oci- é preciso distinguir entre o ser necessário e
dental e a orientou de modo decisivo. o ser possível. O que existe de fato, mas que,
A filosofia de Avicena é profundamente em si mesmo, poderia também não existir é
permeada de Neoplatonismo e de elementos chamado por Avicena ente possível: trata- se
extraídos da religião islâmica que completaram do ser que não tem em si mesmo a razão de
suas perspectivas aristotélicas (sobretudo no sua própria existência, encontrando-a em
que se refere à teologia e à cosmo- logia), o uma causa que o fez ser. Diferente do ser
que permitiu entusiástica acolhida por muitos possível é o ser que existe de fato e de direi-
pensadores cristãos. to ou ser necessário, isto é, o ser que não
O Neoplatonismo era um velho co- pode deixar de ser, porque possui em si
nhecido dos latinos e já assimilado pelo mesmo a razão do seu existir. Essa distinção
pensamento cristão desde a época patrística; é fundamental, porque separa o mundo de
a religião islâmica apresentava não poucas Deus: um é apenas possível, pois sua exis-
verdades em comum com o cristianismo. E, tência atual é contingente, não postulada por
desse modo, muitas teses aristotélicas, fil- sua essência, ao passo que o outro é neces-
tradas através de elementos neoplatônicos e sário; o primeiro é dependente, o segundo é
islâmicos, não encontraram dificuldades para independente.
se impor no ambiente medieval.
Capítulo décimo segundo - A filosofia árabe e a hebraica e o aristotelismo no Ocidente

matéria corruptível, ao contrário da matéria


incorruptível dos céus, é princípio de mutação
■ Ente e essência. Com estes termos e multiplicidade e, portanto, de indivi-
í se distinguem a realidade concreta e , dualidade. Como se vê claramente, estamos
' existente (por exemplo, o homem in- diante da concepção hilemórfica de Aristó-
É dividual) e o universal abstrato (por
? teles, mas repensada conforme as categorias
exemplo, a idéia de humanidade). O
í ente existe de fato (de modo neces- ? neoplatônicas. Com efeito, as formas se ir-
| sário caso se trate de Deus, de modo radiam da décima Inteligência, que é “doa-
{ contingente caso se trate das criatu- dora de formas”, no sentido de que é ela que
| ras), enquanto a essência exprime o irradia as formas na matéria-prima do mundo
I "o que é" de cada coisa singular, isto sublunar. E entre essas formas estão também
; é, o conjunto de suas determinações. as almas incorruptíveis e imortais infundidas
nos corpos.
No plano gnosiológico a décima Inte-
ligência opera a passagem da potência ao ato
do intelecto possível ou passivo, ou seja, do
intelecto humano e individual. E isso por
3 ;A “lógica da ge.raç.ão" e a influêíncia meio da irradiação tanto dos princípios pri-
meiros (com o que temos o intelecto habitual)
de j\v'\ce.na
como dos conceitos universais que
apreendemos por meio da abstração (com
Mas qual é a relação entre o mundo e o que temos o intelecto em ato), e mediante a
Deus? Trata-se de relação de necessidade ou elevação do nosso intelecto individual ao
de liberdade, de emanação ou de criação? supremo intelecto agente (empresa difícil e
Avicena responde a essas questões, reservada a poucos, apenas dos quais se po-
fundamentais para os pensadores medievais, de falar de intelecto santo). Em todas essas
fundindo Aristóteles e o neoplatonismo. Com formas de contato com o intelecto agente
efeito, em sua opinião, o mundo é ao mesmo único, permanecem intactas a individualidade
tempo contingente e necessário: é contingente e a personalidade singular do homem.
enquanto a existência atual não lhe cabe em Essas são algumas teses do filósofo
virtude de sua essência, sendo então apenas persa, que terão grande influência sobre
possível; no entanto, é necessário enquanto Tomás de Aquino (a distinção real entre
Deus, de quem recebe a existência, não pode essência e existência, ou melhor, entre
deixar de agir segundo sua natureza. essência e ser), sobre Boaventura (a
Concebido aristotelicamente como pluralidade das formas no indivíduo: forma
pensamento do pensamento, Deus produz espiritual e formas sensitivas e vegetativas),
necessariamente a primeira Inteligência e sobre Duns Escoto (a doutrina das essências)
esta a segunda, dando início a um processo e, sobre todos, a distinção entre esfera
descendente necessário e não livre, de índole celeste e esfera terrena, além de muitos
claramente neoplatônica. A partir da primeira, outros elementos de gno- siologia e de
cada Inteligência cria a imediatamente astronomia. Porém, mais do que as teses em
inferior, até a décima, ao mesmo tempo que particular, o que determinou a sorte do seu
cria os céus respectivos, dos quais são forças pensamento foi a tentativa de harmonizar a
motrizes. filosofia aristotélica com a religião islâmica e,
Diferentemente das outras, a décima portanto, para os cristãos, com algumas teses
Inteligência não gera nova realidade, mas fundamentais do cristianismo, coisa que,
atua diretamente sobre o mundo terreno, aprioristicamente, não parecia possível. Com
posto sob o nono céu, o da lua, tanto no plano efeito, era essa a medida de avaliação de
ontológico como no plano gnosio- lógico. No qualquer proposta filosófica e também o
primeiro plano, estruturando o mundo terreno objetivo de muitos repensamentos e
em matéria e forma, onde a retificações subseqüentes. [T]
Sextã pãtte - jA Escolástica no século cié.(z\yr\o te^cei^o

III. o a ri stotel i s mo
de y\veri^óis

• Averróis (1126-1198) comentou


A superioridade Aristóteles com grande
da filosofia liberdade, à luz dos dogmas do Islã. Remetendo-se freqüente-
aristotélica ~>§2
mente em sentido crítico a Avicena, Averróis sustenta que a dou-
trina de Aristóteles coincide com a suprema verdade, e que,
mesmo que teologia e filosofia convirjam para uma verdade
única, todavia, em caso de desacordo, a posição dos filósofos teria maior autorida-
de: a revelação, com efeito, produz símbolos imperfeitos que cabe à razão decifrar.
A eternidade • Averróis sustenta a eternidade do mundo, que deriva da
do mundo - eternidade do Motor imóvel como causa final do próprio mun-
^§2 do (e não causa eficiente, como queria Avicena).

• Ainda típica de Averróis é a tese da


unicidade do intelec-
Unicidade do
intelecto to possível, o único a quem toca a imortalidade: o intelecto
possível e possível conhece os universais e, portanto, nã