Você está na página 1de 185
Parte 1 Fundamentos da politica e da sociedade brasileiras i | j i 1 Capitulo 1 Fundamentos da politica e da sociedade brasi ‘as JOSE MURILO DE CARVALHO © problema politico central do Brasil € construir um pais que combine trés coisas: liberdade, participacao e justiga social. Te- mos liberdade, alguma participacao muita desigualdade. A liberdade ¢ a participacao, para sobreviverem, precisam gerar igualda- de, Perseguindo esse tema central, 0 texto se divide em duas partes. A primeira aponta as principais caracteristicas da formacdo social brasileira desde a colonizacio portuguesa até 1930, quando o pais comeca a passar por mudangas aceleradas. Nesse longo perfodo de 430 anos houve grande continuidade na economia, na composico das classes e gru- ‘pos sociais ¢ nas relagées sociais (como exem- plo de mudanca importante, pode-se citar apenas a aboli¢go da escravidio em 1888). ‘A segunda parte resume as grandes mudan- ‘gas posteriores a 1930 e aponta os proble- mas ndo resolvidos em nossa trajetéria para uma sociedade democratica, 1, Os Fundamentos, 1500-1930 1.1 A colonizagéo portuguesa Qs conquistadores portugueses, como todos os outros do fim do século XV e i cio do XVI, além de difundir a fé, estavam interessados em encontrar riquezas naturais € mercadorias vendaveis na Europa. A co- Vonia americana apresentava poucas alter nativas além do pau-brasil ¢ de animais exéticos. Os nativos no produziam mer- cadorias aproveitveis. A nova colénia nao podia competir com as riquezas comerciais das Indias Orientais. A necessidade, porém, de defender a conquista dos ataques de ou- tros europeus, sobretudo franceses e espa- nhiis, forgou a Coroa portuguesa a dar i cio 8 colonizagio, trinta anos apds a chega- da da esquadra de Cabral, Colonizacéo sig- nificava “produzir para o mercado enro- peu”. O produto que naquele momento se re- velou mais adaptavel a regido foi o acicar. Para sua producdo eram necessarios terra, capital e mao-de-obra. A terra, abundante e facilmente arrancada dos nativos, foi dis- tribuida em vastas sesmarias, O capital veio de portugueses enriquecidos no comércio com as Indias de capitalistas judeus. A méo-de-obra foi buscada inicialmente na escravizacao da populacio indigena. Entre- tanto, como esta dificilmente suportava 0 trabalho nos engenhos ¢ era rapidamente dizimada por guerras ¢ epidemias, recor- reuse, jé a partir da segunda metade do século XVI, A importagio de escravos da costa ocidental da Africa, Desenvolveu-se, entio, um vasto e duradouro tréfico de es- eravos que durou trés séculos, Calcula-se que cerca de trés milhdes de escravos afri- canos tenham sido transportados para a América portuguesa até 1822 e mais um a e da sociedade bras! 2 milhao para o Brasil, até 1850. Vieram es- cravos de varias etnias e de diferentes tradi- ‘G6es culturais, safdos de regides que iam da bafa de Benin, na costa ocidental da Africa, onde hoje fica a Nigéria, em direcéo ao sul, até Mocambique, ja na parte oriental daquele continente. Grande propriedade, escravidao ¢ pro- dugio para o mercado externo foram tracos definidores da colonizacao portuguesa na América. 1.2 Populagao Portugal a época da conquista tinha uma pequna populacio de cerca de um millido de habitantes. Tendo criado um vasto impé- rio no século XVI, que se estendia da Amé- rica a Africa e & Asia, nao contava com gente suficiente para colonizar as novas terras da América. Faltavam, sobretudo, mulheres brancas para a formacio de familias regula- res, Tirando vantagem de sua superioridade tecnolégica, a minoria portuguesa impés-se 8 populacio nativa, calculada em cerca de quatro milhdes, boa parte da qual foi dizi- mada por doencas e guerras, & semelhanca do que se passava na parte espanhola da América, Como solugio para a escassez de mao-de-obra, os portugueses recorreram entio a importagao maciga de escravos afti- canos. Dada a escassez de mulheres brancas, o colonizador miscigenava-se com mulheres indigenas e africanas, processo em que estu- pro e consentimento se misturavam de ma- neira indistinguivel. ‘Tr@s séculos depois da conquista, 8 época da independéncia da col6nia, a populagio do novo pais foi calculada em torno de quatro milhécs de habitantes, niimero semelhante a0 de 1500. Desses quatro milhées, 800 mil eram indigenas € um milho eram escravos aftica- nos, Tinham desaparecido cerca de trés mi- Ihdes de indigenas ¢ entrado nimero seme- Ihante de africanos escravizados. Embora nao haja estatisticas a respeito, é certo que boa patte da populacio livre era composta de ‘mesticos de todos os tipos, sobretdo de bran- cos € negros (mulatos) e de brancos e indios (caboclos). Independentemente das razBes que evaram & mesticagem, ela passou a caracteri- zar a populagio da colonia e do futuro pats. Essa composicao demogratica foi altera- dda apenas a segunda metade do século XIX, quando a abolicao do trafico de eseravos (1850) ¢ a da escravidao (1888) forcaram a busca de mao-de-obra, agora livre, em pai- ses europeus, sobretudo na Itilia. A novaiimi sracéo, incentivada ou voluntiia, a que se acrescentou no século XX substancial com- ponente japonés, mudou a cara do pafs, so- bretudo no sul. © censo de 2000 registra a presenca de 52% de populacao branca, con- centrada no sul e sudeste, 9% de populacio negra (nordeste e sudeste) ¢ 39% de popula- cio parda ou mestica (nordeste ¢ norte). Pela maneira como se formou a popula- do nacional, nao se pode falar em coope- ragdo de trés racas, ou de trés culturas. Pri- meito, porque houve um processo inicial violento de submissio, pela escravizagio, de nativos € africanos, levado a cabo pelos conquistadores. Segundo, porque tanto o.con- tingente europeu quanto o nativo ¢ o africa- xno inclufam diferentes grupos étnicos ¢ cul- turais. A primeira razo ajuda a explicar os preconceitos c as desigualdades sociais basca dos na cor das pessoas. A segunda revela maior riqueza cultural do que a pretendida pelo mito das trés ragas. Nao h4 entre nés uma cultura branca européia, mas varias, as- sim como hé vérias culturas africanas. Além disso, a geografia também responde pot boa parte de diversidade cultural.

Você também pode gostar