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O QUARTO

EVANGELHO
EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO – QUESTÕES PRELIMINARES
(AUTORIA, DATAÇÃO E LUGAR DE COMPOSIÇÃO)

I. AUTORIA

O Quarto Evangelho não é completamente anônimo (ao contrário dos Sinóticos).


No c. 21, mais precisamente no versículo 24, há a indicação de quem escreveu tal obra
(“Este é o discípulo [predileto1] que dá testemunho dessas coisas e as escreveu; e
consta-nos que seu testemunho é fidedigno 2.”). Contudo, não está revelado o seu nome,
apenas o título de “discípulo predileto”. Indícios no próprio evangelho e a voz da
Tradição da Igreja nos revelam que o “discípulo amado” - por conseguinte, o autor do
Quarto Evangelho - é João, o filho mais novo de Zebedeu e Salomé.

I.1. EVIDÊNCIAS INTERNAS (NO PRÓPRIO EVANGELHO JOANINO)

a) O autor é claramente um judeu, pois conhecia muito bem a geografia da Palestina e as


festas e costumes judaicos. Expressa com clareza os lugares em que aconteceram alguns
fatos narrados: Caná da Galiléia (visto que havia outra cidade com o mesmo nome, mas
que se situava em Coele-Síria); Enom, junto a Salim (3,23); Sicar (4,5); sinagoga de
Cafarnaum (6,59); Efraim (11,54); Cedron e Horto das Oliveiras (18,1); Gábata ou
Litóstrotos (19,13); Betânia da Transjordânia e Betânia de Lazáro (1,28 e 11,18,
respectivamente)3. Quanto às festas: 2,6.13; 4,9; 5,1; 6,4; 7,2; 11,55; 18.284.

b) O autor é testemunha ocular. Esteve com Jesus na Última Ceia (13,23) e na aparição do
Ressuscitado aos apóstolos, junto do lago de Tiberíades (21,1.2.7). Ora, a Santa Ceia foi
reservada somente a Jesus e seus apóstolos. Não houve mais ninguém presente além de
Jesus e os Doze. Podemos concluir que, dada a presença do “discípulo amado” na cena,
ele só pode ser um dos Doze Apóstolos.

c) O adjetivo “predileto” nos diz que ele fazia parte do círculo dos apóstolos mais
próximos de Jesus: Pedro, Tiago e João (cf. Mc 5,37; 9,2; 14,33). Ele com certeza não é
Tiago, visto que este foi martirizado muito cedo (cf. At 12,2) – por volta de 44 d.C. – e
o Quarto Evangelho foi escrito em um período posterior. Também não é Pedro, pois há
evidentes distinções entre os dois personagens (cf. 20,2; 21,20) e, ao que tudo indica, já
estava morto quando o evangelho foi composto (sua morte data de 67 d.C., segundo
Clemente de Roma).

Com tais indícios podemos afirmar que o autor do Quarto Evangelho é João, o
Apóstolo. Vejamos o que nos diz a Tradição Católica sobre a questão da autoria.

1
Entende-se que é o “amado” devido os diversos momentos em que se aparece o título de “discípulo
predileto” no texto, em especial no mesmo c. 21, versículos 7 e 20.
2
Todas as citações deste material foram extraídas da “Bíblia do Peregrino – Novo Testamento”, Paulus,
3ª edição, 2005.
3
Esta disposição encontra-se na apostila “Curso Bíblico – Escola Mater Ecclesiae”, de D. Estêvão
Bettencourt, página 37.
4
Idem;
I.2. EVIDÊNCIAS EXTERNAS (TRADIÇÃO DA IGREJA)

Um dos mais fortes testemunhos da Tradição Católica é o de SANTO IRINEU DE


LYON († por volta de 202 d.C.). Irineu, que foi Bispo de Lyon, nasceu pelo ano 130 em
Esmirna, na Ásia Menor, e lá conheceu São Policarpo que, segundo Tertuliano, foi constituído
Bispo de Esmirna pelo próprio Apóstolo João. Sua mais importante obra literária foi “Contra as
heresias”. Nela encontramos o que ele diz acerca da autoria joanina: “João, o discípulo do
Senhor, o mesmo que repousou sobre Seu peito, escreveu o evangelho durante sua estadia em
Éfeso.” (Adversus haereses, III, 1,1). Se levarmos em conta que Santo Irineu é considerado o
maior dos teólogos do século II 5, que foi o primeiro a declarar explicitamente João, o Apóstolo,
como o autor do livro, e que se relacionou com Policarpo, discípulo do próprio João, podemos
aceitar sem dificuldades a autoria já declarada. Contudo, existem outros testemunhos que
corroboram o de Irineu e que nos garantem o Apóstolo João como o escritor mencionado no
livro.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA († 215 d.C.) também escreveu sobre a autoria do
Quarto Evangelho. Eis o que disse: “Quanto a João, o último [apóstolo], sabendo que o
corpóreo já estava exposto nos Evangelhos, estimulado por seus discípulos e inspirado pelo
sopro divino do Espírito, compôs um Evangelho espiritual.” (Trecho presente na obra História
Eclesiástica, VI, 14,7, da autoria de Eusébio de Cesareia). É importante dizer que São Clemente
de Alexandria foi discípulo de São Panteno († 200 d.C.), sendo este último discípulo de São
João. Mais uma vez temos presente um testemunho baseado em um Padre da Igreja que
conviveu com um discípulo de João, assim como Irineu [com S. Policarpo de Esmirna].
Há também o Cânon de Muratori, escrito em Roma por volta de 180, que tem um
prólogo contra Marcião e os seus seguidores, no qual se diz: “O Evangelho de João foi
comunicado e manifestado às igrejas pelo próprio João, enquanto vivia, segundo diz Pápias de
Hierápolis.”6 Sobre PÁPIAS DE HIERÁPOLIS († por volta de 167 d.C.), nasceu no ano 70 d.C.
e foi bispo de Hierápolis. Assim como Policarpo e Panteno, Pápias também foi discípulo de São
João7.
Há um passo de Pápias que menciona duas vezes o nome de João, dificultando saber de
que João o Bispo de Hierápolis havia declarado como autor do Quarto Evangelho. O fragmento
encontra-se na mesma obra de Eusébio, já citada: “Se vinha alguém que tinha escutado os
presbíteros, eu averiguava que era o que os presbíteros afirmavam ter ouvido dizer a André, ou a
Pedro, ou a Filipe, ou a Tomé, ou a Tiago, ou a João, ou a Mateus, ou a qualquer outro dos
discípulos do Senhor, e que dizem Aristião e João o presbítero, discípulo do Senhor.” (III,
39,48). Ora, não se trata de dois Joões, mas sim do mesmo João: o Apóstolo (o “primeiro” João
citado), por ter vivido mais do que os outros discípulos do Senhor, assume também a figura de
Ancião (o Presbítero, o “segundo” João citado), pois alcançou a velhice e - o que representa de
fato seu sentido - gozava de tamanha autoridade sobre as igrejas de seu tempo.
Magnífico também é o testemunho de ORÍGENES († por volta de 254 d.C.). Orígenes
escreveu uma obra intitulada “Comentário sobre o Evangelho de João”, em que logo de início
atesta de forma muito poética a questão da autoria joanina: “Seja-nos, portanto, permitido
afirmar que a flor de toda a Sagrada Escritura é o evangelho, e a flor do evangelho é o
evangelho transmitido por João, cujo sentido profundo e recôndito ninguém pode colher, senão
aquele que pousara a cabeça sobre o peito de Jesus, ou de Jesus recebera Maria, e ela assim se
tornou sua mãe.”9 (1).

5
BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, IV – Os Evangelhos. Editora Vozes, Petrópolis, 1972.
Página 297.
6
SANTOS EVANGELHOS, Bíblia Sagrada. Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra. Edição
portuguesa, 1985. Página 1071;
7
Idem.
8
Idem. Página 1072.
9
BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, IV – Os Evangelhos. Editora Vozes, Petrópolis, 1972.
Página 295.
Para encerrar a questão da autoria, ficamos com o que nos disse SANTO AGOSTINHO
DE HIPONA († 430 d.C.):

[João] que pronunciou essas palavras, [também ele] as recebeu, ele que
repousou sobre o peito do Senhor, de onde ele bebia o que nos daria a beber.
Mas o que ele nos ofereceu foram palavras; a compreensão, deves procurá-la
por tua vez na fonte onde o próprio João bebeu... Talvez me objeteis dizendo
que estou mais presente diante de vós do que Deus. De modo algum! É Deus
que está mais presente junto de vós. Sem dúvida, eu apareço aos vossos
olhares, mas ele, Deus, está soberanamente presente (praesidet) à vossa
consciência. A mim vossos ouvidos, a ele o vosso coração: que tudo seja
preenchido!”(Homilias sobre o Evangelho de São João, I, 7)10.

Nos últimos dois séculos (XIX e XX) houve grandes críticas quanto à autoria do livro.
Hoje, mesmo com opiniões contrárias, a autoria do Quarto Evangelho fica sendo atribuída -
assim como nos garantiram os Santos Padres e o próprio escrito joanino - a João, o
discípulo predileto de Nosso Senhor Jesus Cristo. A questão da autoria não interfere na
canonicidade do Evangelho de São João. Quem quer que seja o verdadeiro autor, o livro
continuará sendo canônico, isto é, reconhecido pela Igreja como inspirado por Deus.

II. DATA DE COMPOSIÇÃO

“Por muito tempo a crítica não-católica foi inclinada a fixar a composição do quarto
evangelho pela metade do século II ou ainda mais tarde.” (BALLARINI, Teodorico. Introdução
à Bíblia, IV – Os Evangelhos, p. 302). Ora, esta datação sugerida por tal crítica é inviável, em
razão de alguns dados importantes que nos esclarecem o período em que o Quarto Evangelho
foi escrito:

a) A descoberta do papiro egípcio P52, o mais antigo papiro neotestamentário,


publicado por C.H. Roberts em 1935. No fragmento publicado por Roberts há um
pequeno trecho do evangelho joanino, a saber: 18,31-33.37-38. O papiro
proveniente da Biblioteca Rylands, de Manchester, data de um período anterior a
150 d.C., – muito provavelmente entre 120-125 d.C. – visto que por volta de 130
d.C. o evangelho já estava em circulação no Egito.

b) Os papiros P66 (contém 1-5; extrato do cap. 6; 7-13; extratos dos caps. 14.15.16; 17-
19; extratos dos caps. 20-21) e P75 (contém 1-12; extratos dos caps. 13;14;15), que
datam respectivamente da metade do século II e do início do século III 11.

c) Os evangelhos gnósticos “Evangelho da Verdade” e “Evangelho de Filipe”


conhecem o livro de São João, segundo Heracleon. Os dois evangelhos datam do
século II (o primeiro = 140-150 d.C.; o segundo = 180-200 d.C.).

d) SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA († 107 d.C.) - que foi discípulo de São João -
quando escreveu suas cartas, fez alusão a diversos temas joaninos contidos no
Quarto Evangelho. Ora, Inácio aprendeu muito com São João e, com certeza,
difundiu em seus ensinamentos aquilo que aprendera com seu mestre. Levando em
consideração o que foi apresentado, podemos aceitar a datação entre 96-100 d.C.,
ou seja, final do século I.

10
LEÓN-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João, I. Edições Loyola, 1996. Página 37.
11
MARGUERAT, Daniel (org.). Novo Testamento – História, escritura e teologia. Edições Loyola, 2015.
Página 442.
III. LUGAR DE COMPOSIÇÃO

Segundo IRINEU DE LYON, São João teria composto seu evangelho em Éfeso, na Ásia
Menor (o testemunho deste Padre da Igreja já foi divulgado anteriormente, na questão da autoria
do livro). “JERÔNIMO e EPIFÂNIO apresentam, porém, somente a designação genérica da
Ásia Menor.” (BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, IV – Os Evangelhos, p. 302). A
Tradição reconhece que, tendo João saído da prisão de Patmos pelo ano de 96 d.C., após a morte
do imperador Domiciano, regressou para Éfeso, onde morava com a Santíssima Virgem.
Apesar de encontrarmos opiniões que afirmam que o lugar de composição foi Antioquia
(lugar propício para o crescimento do gnosticismo; cidade de Inácio, podendo ter sido palco
para o aprendizado do Antioqueno e da elaboração do livro), é aceitável propor Éfeso como
lugar de composição.

IV. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BALLARINI, T. (ed.). Introdução à Bíblia, IV. Petrópolis, Vozes, 1972;


MARGUERAT, D. (org.). Novo Testamento – História, Escritura e Teologia. Loyola, 2015;
BETTENCOURT, E.T. Escola Mater Ecclesiae. Curso bíblico. Rio de Janeiro;
LÉON-DUFOUR, X. Leitura do Evangelho segundo João. Vol. 1. São Paulo, Loyola, 1996;
NAVARRA, U. Bíblia Sagrada – Os Santos Evangelhos. Edição portuguesa, 1985;
HAHN, Scott. MITCH, Curtis. O Evangelho de São João. Ecclesiae. 2015.

AUTOR: GABRIEL BIUZO – PROIBIDO RETIRAR OS CRÉDITOS; ANO: MMXVII

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