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A sociolog ia do corpo co nstitu i um capítu lo da

sociolog ia especialmente dedicado à compreensão da


corporeid ad e humana como fe nômeno social e cu ltural ,
motivo simbólico , objeto de representações e imagi-
D E
nário s . Sugere que as ações que tecem a trama da vi-
da quotidiana - das mais fúteis ou menos concretas até
aq uelas q ue ocorrem na cena pú bli ca - e nvo lvem a me-
diação da corporeidade.
De que fo rma essa sociolo g ia d o e n ra izamento
fí si co d o ator e m seu m e io propõe uma eluci d ação das
lóg ica s socia is e cu ltu ra is?
No final dos anos 1960, a
crise de leg itim idade das
modalidades f ísicas da
relação do ser humano
entre si e com o mundo
A sociologia
amplia-se
consideravelmente com o
femi nismo, a "revolução
sexual", a expressão
corporal , o body-art, a
do corpo
crítica do esporte , a
emergência de novas
terapias , proclamando be m
alto a ambição de associa r-
se somente ao corpo, etc.
Um novo imaginário do
corpo, luxuriante, invade a
sociedade; nenhuma área
da prática social sa i ilesa
das reivindicações que se
desenvolvem na crítica da
condição corporal dos
atores.
O corpo, lugar do contato
privilegiado com o mundo ,
está sob a luz dos
holofotes. Problemática
coerente e até inevitável
numa sociedade de tipo
ind ivi dualista que entra
numa zona turbulenta , de
confusão e de
obscurecimento das
referências incontestáveis e
conhece, em consequência,
um reto rn o maior à
ind ividualidade .
~Jro~
David Le Breton
l lJJj\
A sociologia
do corpo
Tradução de Sonia MS. Fuhrmann

D ados I n tem acion ais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira d o Livro, SP, Brasil)

Le Breton, David, 1953-


A sociologia do corpo / David Le Breton ;
tradução de Sonia M .S. Fuhrmann. 4. ed. - Petrópolis,
RJ : Vozes, 2010.

ISBN 978 -85 -326-3327-9

T ítulo original: La sociologie du corps


Bibliografia.

1. Corpo humano - Aspectos sociais I. Título.

06-2611 CD D -306.4

Ín d ic es para catálogo sistemático:


/li ED ITO RA
Y VOZ ES
1. Corpo : Aspectos sociais : Sociologia 306 .4
2. Sociologia do corpo 306.4 Petrópol is
© Presses Universitaires de France, 1992
6, avenue Reille, 75014 Paris
Sumário

Título original francês: La sociologie du corps


Introdução, 7
Direitos de publicação em língua portuguesa: I - A condição corporal, 7
2006, Editora Vozes Ltda. II - A preocupação social com o corpo, 9
Rua Frei Luís, 100 IH - Sociologia do corpo, 11
25689-900 Petrópolis, RJ IV - Desenvolvimento, 13
Internet: http://www.vozes.com.br
Brasil
I - Corpo e so ciologia: etap as, 15
I - Uma sociologia implícita, 15
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra II - Uma sociologia em pontilhado, 18
poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma
e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo 11- Sobre algumas ambiguidades, 24
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou 1- Ambiguidades do referente "corpo", 24
banco de dados sem permissão escrita da Editora. II - Elementos h istóricos, 25
IH - Elementos etnológicos, 27
Editoração: Fernando Sergio Olivetti da Rocha IV - Corpo, elemento do imaginário social, 30
Projeto gráfico: Carlos Drummond
Capa : Bruno Machado e Bruno Margiotta IH - Dados epistemológicos, 32
I - A tarefa, 32
II - Ambiguidades a esclarecer, 35
III - Uma sociologia do corpo?, 35
IV - Os riscos, 36
ISBN 978-85-326-3327-9 (edição brasileira)
ISBN 2-13 -052844-9 (edição francesa)
IV - Campos de pesquisas 1: Lógicas sociais Je culturais do corpo, 39
I - As técnicas do corpo, 39
II - A gestualidade, 44
III - A etiqueta corporal, 47
Editado conforme o novo acordo ortográfico. IV - A expressão dos sentimentos, 51
V - As percepções sensoriais, 55
VI - As técnicas de tratamento, 57
VII - As inscrições corporais, 59
VIII - A má conduta corporal, 60
Este livro .foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.
v - Campos de pesquisas 2: Imagin ário s sociais d o corpo, 62 Introdução
I - "Teorias" d o corpo, 62
II - Abordagens biológicas da corporeidade, 62
IH - Diferença entre os sexos, 65 I - A condição corporal
IV - Corpo, suporte de valores, 69
A sociologia do corpo constitui um capítulo da sociologia es-
V - O corpo imaginoso do racismo, 72
pecialmente dedicado à compreensão da corporeidade humana
VI - O corpo"deficiente", 73 como fenômeno social e cultural, motivo simbólico, objeto de re-
presentações e imaginários. Sugere que as ações que te cem a tra-
VI - C ampos de pesquisas 3: O corpo no espelho do so cial, 77 ma da v id a quotidiana, das m a is fúteis ou d as men os concretas
I - A s aparências, 77 a té aquelas que ocorre m na cena p ública, en v olvem a med iaçã o
H - Controle político da corpo reidade, 79 d a co rpo re id a de; fo s se t ão somen te p e la a ti v idade percep t iva
IH - Classes sociais e relações co m o co rpo, 81 que o homem desenvolve a cada instante e que lhe permite v e r,
ouvir, saborear, sentir, tocar e, assim, colocar significações precisas
IV - M odernidades, 84
n o mundo que o cerca .
V - Risco e aventura, 87
VI - O corpo supranumerário, 89
M oldado pelo contexto social e cultural em que o ato r se in-
sere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação
com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também
V II - Esta tuto da sociologia do corpo, 92 expressão dos sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação, con-
I - O canteiro d e obras, 92 junto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis d a
II - A taref a, 93 sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor,
com o sofrimento, etc. Antes de qualquer co isa, a existência é cor-
Bibliografia, 95 poral. Procurando entender esse lugar q u e constitui o âmago da
relação do homem com o mundo, a sociologia está diante de um
imenso campo de estudo. Aplicada ao corpo, dedica-se ao inven-
tário e à compreensão d as lógicas sociais e cu ltu r a is que envol-
vem a extensão e os movimentos do h o m em .
Os usos físicos do homem dependem Ide um con junto de siste-
mas simbólicos. D o co rpo nascem e se p r op ag am as significações
que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da
relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma
forma através da fisionomia singular d e um ator. Através do cor-
po, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a
para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compar-
tilha com os membros da co m u n id a d e . O ator abraça fisicamen te
o mundo apoderando-se dele, humanizando-o e, sobretudo, trans-
formando-o em universo familiar, compreensível e carregado de
sentidos e de valores que, enquanto experiência, pode ser com-
partilhado pelos atores inseridos, como ele, no mesmo sistema de

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r e ferên cias culturais. Existir significa em primeiro lugar mo -
v er-se em d e term in a d o espaço e tempo, t ransformar o meio gra- m issão ou resistência que a ela opõe aparecem co mo coo rdenadas
ças à s oma de gestos eficazes, escolher e atribuir significado e cuj a importância é mais e mais consider ada n a socializa çã o .
v al or a o s inúmeros estím ulos do meio g r aça s às ativid a d e s p e r- O corpo existe n a totalidade d os ele m en tos que o co mpõem gra-
ceptivas, comunicar aos outros a palavra, assim como um re - ças ao efeito conjugado da e ducação recebida e d as identificações
pertório de gestos e mímicas, um conjunto de rituais corpo- que levaram o ato r a assimilar os comportamentos de seu círculo
r a is implicando a adesão dos outros . Pela corporeidade, o ho- social. Mas, a aprendizagem das mod alid ad es co rporais, da rela-
mem faz do mundo a extensão de sua experiência; transforma- ção do indivíduo co m o mundo, não está limitada à infância e conti-
o em tramas familiares e coerentes, d isponíveis à ação e permeá- nua durante to d a a vida conforme as modificações sociais e cultu-
v eis à compreensão. Emissor ou receptor, o co rpo produz senti- rais que se impõem ao estilo de vida, a os diferentes papéis que con-
dos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no vém assumir n o curso da existência . Se a ord em social se infiltra
in te r i o r de dado espaço s o ci a l e cultural. pela extensão v iva d as ações do h om e m para assum ir for ça de lei,
Qualquer que seja o lugar e a época do nascimento e as con- esse processo nunca está completamente acabad o .
dições sociais dos pais, a criança está predisposta inicialmen- A expressão co rpo ral é socialmente m odul ável, mesmo sen-
te a interiorizar e a reproduzir os traços fís icos particulares de d o vivid a de acordo com o estilo particular d o indivíduo. Os ou-
qualquer sociedade humana. A história deixa evidente também tros contribuem para m odular os contornos de seu universo e a dar
que parte do registro específico de certos animais lhe é acessí- ao corpo o relevo social que necessita, ofere cem a possibilidade de
v e l, lembrando para tanto da a ventura excepcional de certas con struir -se inteiramente como ator do grupo de pertencimento.
crianças ditas"selvagens". Ao nascer, a criança é constituída No interior d e uma mesma comunidade social, todas as manifesta-
pela somainfinita de disposições antropológicas que só a imer- ções co rporais do ator são v ir tua lm en te significantes aos olhos dos
são no campo simbólico, isto é, a relação com os outros, p oderá parceiros. Elas só têm sentido quando relacionadas ao conjunto de
permitir o desenvolvimento. São necessários à criança alguns anos dados da simbologia própria do grupo social. Não há nada de na-
antes que seu corpo esteja inscrito realmente, em diferentes di- tural no gesto ou na sensação].
mensões, na teia de significações que cerca e estrutura seu gru-
po de pertencimento. 11 - A preocupação social com o corpo
Esse processo de socialização da experiência corporal é uma
No final dos anos 1960, a crise da legitimidade das modalida-
constante da condição social do homem que, entretanto, en-
des fís icas da relação do homem com os outros e com o mundo am-
contra em certos pe ríodos da existência, principalmente na
plia-se consideravelmente com o feminismo, a "revolução sexual",
in fâ n cia e na adolescência, os momentos fortes. A criança a expressão corporal, o body-art, a crítica do esporte, a emergência
cresce num a família cujas características sociais p odem ser v a - de novas terapias, proclamando bem alto a ambição de se associar
riadas e que ocupa uma posição que lhe é própria no jogo das somente ao corpo, etc. Um novo imaginário do corpo, luxuriante,
variações que caracterizam a relação com o mundo da comu- invade a sociedade, nenhuma região da prática social sai ilesa das
n idade social em que está inserida . Os feitos e gestos da crian- reivin d ica ções que se desenvolvem na crítica da condição corporal
ça estão envol vidos pelo padrã o cultural (ethos) que suscita dos atores ".
as formas de sua sensibilidade, a gestualidade, as atividades
perceptivas, e desenha assim o estilo de sua relação com o mun-
.d o . A educação nunca é uma atividade puramente intencio-
nal, os modos de relação, a dinâmica afetiva da estrutura fa - • L E BR ETON , D . A ll t h ropolog ie d u corps et modern i i é , 5 . e d . Pari s : P UF, 20 0l.
miliar, a maneira como a criança se situa nessa trama e a sub- 2
• So?re e ssa eferve scên cia soci a l, cf. M AISONNEUVE, J. Le corps et le corporéism e
a u jo u r cíhuí . R etrue Fran çaise de Sociolog ie, XVII, 1976, p . 551 -571.

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Frequentemente indiscreta, a crítica apodera-se de uma noção d e de "ind ividualização " 3. O lugar e o tempo do li m ite, da separação.
senso comum: " 0 corpo" . Sem discussão prévia, faz d ele símbolo de Como a cri se da leg iti m id a de torna a relação com o mundo incerta,
u nião, cavalo d e batalha contra um sistema de valores considerado o ator procura, tateando suas marcas, empenhar-se por produzir
repressivo, ultrapassado, e que é p reciso transformar para favore- u m sen tim en to de identidade mais favorável. H esita d e certa for-
ma com o encarceramento físico do qual é objeto. Dá atenção redo-
cer o desabrochar individual. As práticas e os discursos que surgem
brada ao corpo lá onde ele se separa dos outros e do mundo. Já que
propõem ou exigem uma transformação radical das antigas repre-
o corpo é lu g a r do rompimento, da diferenciação individual, su-
sentações sociais. Uma literatura abundante e inconscientemente
põe-se que possua a prerrogativa da possível reconciliação. Procu-
surrealista convida à "libertação do corpo", proposta que, quando
ra-se o segredo perdido do corpo. Torná-lo não um lugar da exclu-
muito, é angelical. A imaginação pode perder-se indefinidamente
são, mas o da inclusão, que não seja mais o que interrompe, d istin-
nesse discurso fantástico no qual o corpo se "liberta", sem que saiba- )
guindo o in d iv íd uo e separando-o dos outros, mas o conector que o
mos bem o que acontece com o h o mem (seu mestre?) a qu e m o corpo
une a os outros. Pelo m enos este é um dos imaginários s ociais mais
dá, no entanto, a extensão e a aparência. Nesse discurso o corpo é co-
férteis da modernidade'.
lo ca d o não co m o algo indistinto do homem, mas como uma posse,
um atributo, um ou tro, um alterego. O homem é a fantasia desse dis-
curso, o sujeito suposto. A apologia ao corpo é, sem que tenha cons- IH - Sociologia do corpo
ciência, profundamente dualista, opõe o indivíduo ao corpo e, de Como se sabe, as sociologias nascem em zonas de ruptura, de
maneira abstrata, supõe uma existência para corpo que poderia ser turbulência, de falha das referências, de confusões, de crise das ins-
analisada fora d o homem concreto. Denunciando frequentemente tituições, numa palavra, lá onde são eliminadas as antigas legitimi-
o " p a r olism o" da psicanálise, esse discurso de liberação, pela abun- dades. Lá onde é desenhado o fi o condutor do pensamento aplica-
dância e pelos inúmeros campos de aplicação, alimentou o imagi- do na compreensão e na determinação de conceitos, naquilo que
nário d u al ista da modernidade: essa facilidade de linguagem que escapa temporariamente aos modos habituais de idealização do
lev a a falar do corpo, sem titubear e a t o d o momento, como se fos- mundo. Trata-se de dar significação à desordem aparente, de en-
se outra coisa que o corpo de atores em carne. contrar as ló gica s sociais e culturais. O trabalho, o mundo rural, a
A crise de significação e de valores que abala a modernidade, a vida quotidiana, a família, a juventude, a morte, por exemplo, são
eixos de análise para a sociologia que só conheceram o desenvolvi-
procura tortuosa e incansável por novas legitimidades que ainda
mento integral quando as representações sociais e culturais que os
hoje continuam a se ocultar, a permanência do provisório transfor-
dissolviam, até então, na evidência, começaram a se modificar sus-
mando-se em tempo da vida, são, entre outros fatores, os que con-
citando uma inquietação difusa no seio da comunidade. O mesmo
tribuíram logicamente para comprovar o enraizamento físico da
aconteceu ao corpo. O final dos anos 1960 assistiu, logicamente e de
condição de cada ator. O corpo, lugar do contato privilegiado com
modo mais sistemático, a manifestação de abordagens que leva-
o mundo, está sob a luz dos holofotes. Problemática coerente e até
vam em consideração, sob diversos ângulos, as modalidades físi-
inevitável numa sociedade de tipo individualista que entra numa
cas da relação do ator com o meio social e cultural que o cerca. O
zona turbulenta, de confusão e de obscurecimento das referências corpo faz, assim, sua entrada triunfal na pesquisa em ciências so-
in con tes tá v eis e conhece, em consequência, um retorno maior à in- ciais: J. Baudrillard, M. Foucault, N . Elias, P. Bourdieu, E. Goffman,
d ividualidade .
• DURKH E I M, E. Le sfo r me s élémeta i res de la v ie rélig ieus e. Par is: PUF , 1968,
D e fato, o co rpo quando encarna o homem é a marca do indiv í- p . 3 8 6s s .
d uo, a fronteira, o limite que, d e alguma forma, o d istingue dos ou- 4 • A acen tuação da crise da legitimidade e o crescimento individualis ta dos
tros . Na medida em que se ampliam os laços sociais e a teia simbóli- anos 19 8 0 to rnaram o corpo ainda ma is autônomo a ponto de fazê- lo fre -
quentemente u m parcei ro, um verdadeiro alter ego. Cf. LE BRETON, D.
ca, provedora de significações e valores, o corpo é o traço mais visí- Anthropologie du co rps et moder nité (op . cit.) e L 'tid ie u du corps (Mé ta l i é,
í

vel d o ator. Segundo as palavras de Durkheim, o corpo é um fator 1999) .

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M . Douglas, R. Birdwhistell, B. Tu rner, E. Hall, p o r exemplo, encon- IV - Desen volv im en to
tram frequentemente, pelos caminhos que trilham, os usos físicos,
a r ep re sen ta çã o e a simbologia de um corpo que faz por merecer Veremos de início, de mod o esquemático, as principais etapas
cada vez m ais a a tenção entusiasmada do domínio social. Nos p ro- d a abordagem d o corpo pelas ciências .so c.i ais (capítulo I). E~ se-
blemas que esse difícil objeto levanta, eles encontram uma via iné- ida nos questionaremos sobre a ambiguidade do referente cor-
dita e fecunda para a compreensão de problemas mais amplos ou, gu"
po , que está longe de ser unanimidade e, à primeira vis ta, sugere
então, para isolar os traços mais evidentes da modernidade. Ou- mente uma relação conjecturaI com o ator que encarna. Dados
tros, para citar alguns exemplos na França, como F. Loux, M . Ber- ~~stóricos e antropológicos m ostram assim a v ariab ili d a d e das de-
nar, r -Mo Berthelot, r -MoBrohm, D . Le Breton ou G . Vigarello, de- finições de "corpo" que sempre dá a im p ressã o de tergiversar (ca-
dicam-se de modo mais sistemático a desvendar as lógicas sociais ítulo lI ). Para empreender uma análise sociológica é conveniente
e culturais que se imbricam na co rporeidade. ~esconstruir a evidência primeira que está ligada à s n ossas repre-
sentações ocidentais d o corpo, p ara melhor elabo r ar a natu r ez a ~o
Essa d e scobert a não é, evidentemente, fruto de súb ita e sperteza objeto sobre o qual o pesquisador pret~nde :xerc~r a com p reensao .
característica dos anos 1960, 1970. Não se deve confundir a emer- Também é importante notar que a sociologia aplicada ao corpo em
gência de u m a nova p reocupação e da proliferação de práticas e nada se distingue, p or seus métodos ou p roced im en tos de raciocí-
discursos com a constituição de p leno direito de uma disciplina e, nio, da sociologia da q ual é um d os tópicos (capítulo III) . Na se-
ainda menos, com a admirável d escoberta de um novo o bjeto de es- quência, t r ataremos das conquistas e das expect.~tiv~sdos ?i.feren-
tudo. Esses anos marcarão mais precisamente a incursão no cen á- tes trabalhos con d u z id os, nesse campo, pelas ciencias SOCIaiS. Por
rio coletivo d e um novo imaginário que as ciências sociais, atentas exemplo, o s trabalhos rela ciona d os com as lógicas sociais e cultu-
a os dados contemporâneos, captariam im ed ia tam en te . D o distan- rais próprias à corporeidade: as técnicas d o corpo, as atividades
ciamento crítico adotado por alguns pesquisadores, passou a exis- perceptivas, a gestualidade, as regras de etiqueta, a expressã~ dos
tir o cuidado redobrado com relação aos condicionantes sociais e sentimentos, as técnicas de manutenção, as marcas corporais, as
culturais que modelam a corporeidade humana. Mas "uma socio- condutas corporais impróprias (nosografias, etc.) (capítulo IV) . Os
logia implícita do corpo" a .-M. Berthelot) já estava presente desde im a gin á r io s sociais d o corpo constituem um outro campo.: "teo-
o início no p ensamento sociológico, principalmente sob o ponto d e rias" do corpo, abordagens biológicas que pretendem explicar os
vista do estudo crítico da "degenerescência" das populações mais comportamentos dos a to re s, interpretação social e cultural das d i-
pobres, aquela da condição operária (Marx, Villerm é, Engels, etc.), ferenças entre os sexos, v a lo re s diferenciais que marcam a corpo-
ou das antropometrias (Quetelet, Niceforo, etc.) . Sociólogos com o reidade, imaginários d o racismo, corpo " d e ficien te" (capítulo V) .
G . Simmel abrem importantes vias (o sensório, a fisionomia, o olhar, Um te rceiro campo de pesquisa refere-se ao corpo no espelho do
etc.). Mais tarde, M. Mauss, M . Halbw a chs, G. Friedmann, M . Cra- social e diz respeito ao uso e à significaçãp do corpo na sociedade
net, M. Leenhardt, no contexto francês; em outros lugares, E. De contemporânea: usos de aparência, controle político da corporei-
Martino, M. Eliade, W . La Barre, C. Kluckhohn, O. Klineberg, E. Sa- dade, classes sociais e relações com o corpo, relações com a moder-
pir, D. Efron, etc., contribuem decisivamente nesse sentido, apesar nidade, entusiasmo pela exp lo r ação física de si através dos riscos
da cesura feita por E. Durkheim que identifica a corporeidade ao ou d a "n ova aventura", v erificação de um imaginário do " cor p o a
orgânico evitando, assim, o interesse das ciências sociais. mais" n a m od ern id a d e (cap ítulo VI). A obra termina com uma re-
A partir do início do século XX até os anos 1960, um esboço de flexão sobre o estatuto da sociologia do corpo (capítulo VII) e fi -
sociologia faz abundantes d escobertas relacionadas ao co rpo. Sem n almen te por uma bibliografia sumária.
somb ra de dúvidas, é somente nos últimos trinta anos que a so-
ciologia aplica d a ao corpo torna-se u m a tar e fa s iste m á tic a e que
alguns p e s q u is a d o r e s consagraram-lhe parte significativa de
sua atenção.

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Capítulo I
Corpo e sociologia: 'etap a s

o caminho histórico da reflexão feita sobre a corporeidade hu-


mana pode ser traçado desde os primeiros passos das ciências so-
ciais, no decorrer do século XIX. Recorrendo a uma simplifica-
\ ção, distinguimos três m omentos fortes que descrevem simulta-
neamente três pontos d e vista, três maneiras de encarar o tema e
que ainda h oje persistem na sociolo gia:
a) Uma sociologia implícita do corpo que, embora não negli-
gencie a profundidade carnal do homem, não se detém ver-
dadeiramente nela. Abo rda a condição do ator n os diferentes
componentes e, sem se esquecer do corpo, d ilui, no entanto, sua
especificidade na análise.
b) Uma sociologia em pontilha d o : proporciona sólidos elemen-
tos de análise relativos ao corpo, mas não sistematiza a reu-
nião dos mesmos.
c) Uma sociologia do corpo: inclina-se mais diretamente sobre
o corpo, estabelece as lógicas sociais e culturais que nele se pro-
pagam. Faremos referência mais adiante ao campo que desen-
volve e suas conquistas.

I - Uma sociologia implícita


Essa formulação emprestada de J.-M.jBerthelot caracteriza so-
bretudo o início das ciências sociais, principalmente durante o sé-
culo XIX5. Nelas, a corporeidade humana é vista através de ângu-
los de análise mutuamente contraditórios.

1. Incidências sociais sobre o corpo


A primeira via de análise, através da situação social dos atores, de-
duz que não podem escapar à condição física. N essa concepção o ho-

• P ara a história do pens amento sobre o corpo nas ciências sociais, cf.
BERTHE LOT,J. -M. ; DRULHE, M., CLÉMENT,S. ; FORNÉ,J. &M'BODGG .,
L es sociologies et le corps . Curren t Sociology , v o l. 5 3, n. 2, 19 85 .

15
mem é visto como u ma emanação do meio social e cultural. Numero- b. O homem, " produto" do corp o
sas são as pesquisas sociais que apontam a miséria física e moral das
Outra orientação do p en sam ento efe ti v amente con trá ria à a n-
classes trabalhadoras, a insalubridade e a exiguidade das moradias,
terior condu z à leg itimaçã o do estado social tal como se apresenta
a vulnerabilidade às d oen ças, o recurso ao álcool, a p ros tituição fre-
à observação. A ssim , dete rmin a que as características biológicas
quentemente inevitável das mulheres, o aspecto miserável dos tra-
do h om em façam com que sua p osição, n o conjunto, seja aquela
balhadores duramente explorados, a terrível condição das crianças
que lhe é justamente devida. Ao invés d e faze r da corporeidade
ob rigad as a trabalhar desde a mais tenra idade. Sobretudo os estudos
um efeito d a condição social d o homem, essa corrente d o pensa-
de Villermé (Quadro explicativo do estado físico e moral dos operários em-
mento faz da con d ição social o p rodu to d ireto do corpo. Trata-se
pregados nas manufaturas de algodão, de lã e de seda, 1840) e de Buret (Da
de submeter à primazia d o biológico (mais ainda, de um imagi-
medida das class es laboriosas na Inglaterra e na França , 1840) marcam
nário biológico) as diferenças s o cia is e culturais, de naturalizar as
os espíritos e alimentam aspirações revolucionárias ou reformado-
diferenças d e con dição justifi cando-as por observações " científi-
ras. En gels traça, d e forma análoga, um quadro da classe trabalha-
cas": o peso do cérebr o, o ângulo facial, a fisiognomonia, a fren o-
dora (A situação da classe laboriosa na Inglaterra, 1845) . Em O capital
logia. o índice cefálico, etc . O corpo é atormentado por essa imagi-
(1867), Marx faz uma análise clássica da condição corporal do homem
nação abundante. Procura-se por meio de numerosas medidas as
no trabalho. Seus estudos têm objetivos mais urgentes que o de en-
provas irrefutáveis d o pertencimento a uma "raça": os sinais ma-
contrar ferramentas suscetíveis de pensar o corpo de maneira me-
nifestos, inscritos na pele, da "degen erescência" ou da criminali-
tódica, no entanto contém a primeira condição para a abordagem so-
dade. De imediato, o destino do homem se inscreve na conforma-
ciológica do corpo. Corpo que, de fato, não é pensado somente do
ção morfológica; a "inferioridade" d as populações destinadas à
ponto de vista biológico, mas como uma forma moldada pela in-
colonização ou já colonizadas por " r a ças" mais " ev ol u íd as"; jus-
teração social.
tifica- se o destino das populações trabalhadoras por alguma
Para Villerrn é, Marx ou Engels, é mais importante revelar a con- forma de debilidade. Finalmente, a ordem do mundo obedece
dição miserável da classe trabalhadora no contexto da Revolução In- à ordem biológica cujas provas são encontradas nas aparências
dustrial. A corporeidade não é objeto de estudo à parte, ela é subsu- corporais. Mede-se, pesa-se, corta-se, fazem-se autópsias, classi-
mida nos indicadores ligados aos problemas de saúde pública ou de ficam-se incontáveis sinais transformados em índices a fim de de-
relações específicas ao trabalho. A relação física do operário com o compor o indivíduo sob os auspícios da raça ou da categoria mo-
mundo que o cerca, sua aparência, saúde, alimentação, moradia, se- ral. A corporeidade entra na era da suspeição e toma-se facilmen-
xualidade, sua procura pelo álcool, a educação das crianças, são al- te uma peça de convicção. As qualidades do homem são deduzidas
ternadamente consideradas para fazer um levantamento sem com- da feição do rosto ou das fo rmas do corpo . Ele é percebido como a
paixão d as condições de existência das camadas trabalhadoras. A evidente emanação moral da aparência física. O corpo torna-se
constatação implícita do caráter social da corporeidade resulta no descrição da pessoa, testem u nha de defesa usual daquele que en-
apelo às reformas e, mais radicalmente, no engajamento revolucio- carna. O homem não tem poder de ação contra essa " n a tu r ez a "
nário. Existe uma real conscientização de que as condições d e tra- que o revela; sua subjetividade só pode acrescentar pormenores
balho e de vida mais favoráveis dariam a es ses homens uma saúde sem reflexos sobre o conjunto.
melhor e maior vitalidade. Para Villerm é, Buret, Marx e Engels, por
exemplo, o corpo é implicitamente um fato de cultura. A condição ope- 3. Posicionamento dos sociólogos
rária que transparece em seus estudos é uma crítica cruel do modo E. Durkheim e seus colaboradores contestarão a fascinação pelo
de funcionamento social que exige modificação. N ão existe ainda modelo biológico na explicação do fato social. Mas, a consequência
a vontade sistemática de conceituar este ou aquele aspecto da ex- do esforço de vigilância será o aprisionamento da corporeidade no
periência corporal. E com razão. domínio da organicidade, com a n otável exceção de Robert Hertz

16 17
e M arcel M au ss . P a ra Durkheim , a dimensão co rporal d o h omem dades d o corpo na interação com os o u tr os e n a imersão n o campo
dep en d e da organicidade, mesmo que seja marcada pelas cond i- simbólico . A co rpo reid ade é socialmente construída. Na p assagem
ções d e vida. Nesse sentido, a corporeidade é muito mais da com- do século XIX para o século XX, um esboço da sociologia d o corpo
petên cia d a m e d icin a ou da b iologia que da sociologia . O corpo surg e aos poucos com os trabalhos de Simmel sobre o sensoria l;
permanece implícito na obra de Durkheim. N a Alemanha, a SOCIO- as trocas de olhares (1908) ou a fis ionomia (1901). "Proponho-me a
logia de Max Weber desconsidera o corpo, a despeito dos apelos d e analisar os diferentes fatos o ri u n dos da constituição sensorial do
Nietzsche ou das análises daquele franco-atirador que abre nume- homem, os modos d e apercepção mútua e suas influências recípro-
r osas portas: Georg Simmel. cas na significação para a vida coletiva d os homens e suas relações
uns com os outros, uns para os outros e uns contra os outros. Se nos
4. A psicanálise misturamos em reciprocidades de ação, isso ocorr e antes d e tudo
N o início d o século XX, à m e d id a que se desenvolvia, a psicaná- porque reagimos uns sobre os outros atrav és d os sentidos" , escre-
lise acabava por romper o vínculo que man tinha o corpo sob a égi- ve Sim m el". Voltaremos a esse ponto.
de d o organicismo. Freud revela a maleabilidade do corpo, o jogo Num memorável artigo de 1909 Robert H ertz aborda a questão
sutil do inconsciente na pele do homem; faz do corpo uma lin- da "preeminência da mão direita" nas sociedades humanas. No
guagem na qual; de modo secreto, são expressas as relações indivi- texto é vigorosamente discutido o p onto d e vista anatômico que as-
duais e sociais, os protestos e os desejos. Freud edifica uma ruptura socia a preponderância da mão direita a o desenvolvimento maior,
i epistemológica que liberta a corporeidade humana da língua de no homem, do hemisfério cerebral esquerdo que fi siologicamen-
I',
pau dos positivistas do século XIX. Muito embora não sendo soció- te transmite atividade aos m úsculos do lado oposto. Robert Hertz
logo, torna a corporeidade compreensível como matéria modela- observa que o número de destros é estatisticamente infinitamente
da, até certo ponto, pelas relações sociais e as inflexões da história maior que o de canhotos. Em cada cem homens, dois seriam canho-
pessoal do sujeito. A partir de 1895, nos Estudos sobre a histeria que tos irredutíveis. Um pequeno número seria de destros contrários a
escreve com Breuer, surge uma sociologia do corpo subjacente que qualquer tentativa de mudança de orientação. "Entre os dois extre-
,I torna possível um olhar diferente sobre a natureza da presença d o mos existe uma massa de homens que, abandonados a si mesmos,
homem no mundo. Freud introduz o relacional na corporeidade, o poderia servir-se de forma aproximativamente igual de qualquer
il que a torna imediatamente estrutura simbólica. No entanto, nem uma das mãos, em geral com ligeira preferência pela direita. Assim,
sempre encontra seguidores entre os sociólogos que continuam fre- não se deve negar a existência de tendências orgânicas à assime-
quentemente ligados à representação organicista do corpo, aban- tria; mas, ex ceto casos excepcionais, a vaga predisposição à destre-
donando efetivamente qualquer estudo sério relativo ao corpo, man- za, aparentemente disseminada na espécie humana, não é suficien-
tendo-o afastado do campo de legitimidade da sociologia. te para determinar a preponderância absoluta da mão direita, a
menos que influências estrangeiras viessem fixá-la e reforç á-la?".
11 - U m a sociologia em p ontilh ado R. Hertz chama a atenção então para o fato de que a educação da mão
esquerda, quando feita para o exercício de certas profissões (pia-
1. Contribuições sociológicas no, violino, cirurgia, etc.), multiplica o campo de ação do homem.
A ambidestria é, n esse sentido, uma vantagem social e cultural. "Nada
A passagem progressiva da questionável antropologia fís ic a,
se opõe, escreve, a que a mão esquerda receba educação artística
que deduz do aspecto morfológico as qualidades do homem, par a
a consciência de que o homem constrói socialmente se u corpo, não
• SIMMEL, G. Essai sur la sociolog i e d u se n s o Soci olo gi e et épistém ol ogi e . Paris:
sendo de modo algum a emanação existencial de propriedades o r- PUF , 1981 , p . 225 [t rad . fr .] .
gânicas, estabelece o primeiro marco milenar da sociologia do co r-
7 • Ibid. La préérnin en s e de la rn ain d roite - Étud e s u r l apolarit é r eligieuse.
p o: o homem não é o produto do corpo, produz ele mesmo as quali- Socio log ie religi eu se et f ol klo re . Pari s : PUF , 19 70 , p . 86 .

18 19
e técnica semelhante àquela cuja supremacia, até o p resente, per- análise. Nos grupos estudado s, o sociólo go encontra-s e, n o entan-
tenceu à mão direita". to/ diante de ações rituais o u a usos qu e tomam n ecessária a descri-
R. Hertz observa que as razões fisiológicas são secundárias em ção das operações d o corpo.
relação ao obstáculo cultural constituído pelas representações: sem- Em A civilização dos costumes (Über den Prozess der Z ioilisation)',
pre negativas quando associadas à esquerda e sempre positivas quan- cuj a primeira versão data de 1939/ na Alemanha, Norbert Elias ofe-
do se trata da direita. A oposição não é somente física, mas também re ce um ensaio clássico de sociologia hist órica que atualiza a gene-
moral: a esquerda implica a falta de jeito, a deformação, a traição, al ogi a das atitudes externas do corpo, relembrando assim o caráter
o ridículo; a direita reivindica a destreza, a co rreçã o, a coragem, social e cultural de vários comportamentos desde os mais banais
etc. A polaridade religiosa entre o sagrado e o profano aparece com até os mais íntimos da vida quotidiana. Uma sociologia que não irá
toda a evidência: se a direita é uma qualidade do transcendente, a além da obra de Goffman, mas que lhe daria a matéria-prima ne-
esquerda traz em si o risco da mácula. O privilégio concedido à cessária para desv endar o âmag o d a m oral e do conteúdo dos ritos
mão direita depende antes de tudo do uso dessa estrutura antropo- de interação. A sociedade da corte é o lab o rató rio onde nascem e a
lógica fundamental que, em várias sociedades, concede predileção partir da qual se difundem as regras de civilidade que hoje ado-
à direita sobre a esquerda, mesmo em se tratando do corpo huma- tamos em matéria de convenções de estilo, de educação dos senti-
no. O fisiológico está aqui subordinado à simbólica social. R. Hertz, mentos/ de colocação d o corpo, de linguagem e, sobretudo, no que
n o entanto, não dirige seus argumentos contra a teoria darwiniana diz respeito ao exiernum corporis decorum . A civilidade pueril (1530 )/
que parece desconhecer, mas, com notável intuição, propõe em seu de Erasmo, obra dedicada ao jovem príncipe Henrique de Borgo-
texto uma série de constatações próprias a minimizar considera- nha e destinada ao ensino do saooir-oiore às crianças, cristaliza para
velmente as pretensões da abordagem biológica. diversas sociedades europeias da época a noção fundadora de "ci-
Marcel Mauss traz con trib u içõe s importantes em textos como vilidade" . As regras de civilidade vão, de fato, impor-se para as ca-
"A expressão obrigatória dos sentimentos" (1921)/ "O efeito físico madas sociais dominantes. Como se comportar em sociedade para
da ideia de morte" (1926)/ "As té cn ica s do corpo" (1936) . Esses tex- não ser, ou parecer, um bruto. Pouco a pouco o corpo se apaga e a
tos marcam avanços significativos e são precursores de pesquisas civilidade, em seguida a civilização dos costumes, passa a regular
que levarão anos para serem efetuadas antes de realmente desa- os movimentos mais íntimos e os mais ínfimos da corporeidade (a s
brocharem. Falaremos d eles mais adiante. A Escola de Chicago maneiras à mesa, a satisfação das necessidades naturais, a flatulên-
está atenta à co rp o reidade: as monografias de N. Anderson (The cia / a escarrada, as relações sexuais, o pudor, as manifestações d e
Hobo, 1923)/ C. Shaw (The Jake-Roler, 1931; Brothers in crime, 1938)/ violência, etc.). As sensibilidades modificam-se. É conveniente não
de Whyte (Street corner society, 1943)/ L. Wirth (The Guetto, 1928)/ ofender os outros por causa de um comportamento demasiado re-
por exemplo, são estudos de ter ren o nos quais a relação física dos laxado. As manifestações corporais são mais ou menos afastadas
atores considerados com o mundo não é evitada, mas, ao contrá- da cena pública, muitas delas desde então ocorrendo nos bastido-
rio/ possibilita anotações minuciosas. G .-H. Mead, em compensa- res; tomam-se privadas. Obrigado a exilar-se na Inglaterra, Nor-
ção/ só faz alusão ao corpo em Mind, selfand society (1934) . Quando bert Elias só retomará mais tarde as pesquisas.
aborda os ritos de interação e, sobretudo, a d imensão simbólica da Em 1941/ David Efron publica Gesture, race and culture', Esse tra-
condição humana, transforma o corpo em organismo e quando tra- balho marcará data nas pesquisas sobre os movimentos corpo-
ta da gestualidade, não o faz em termos sistemáticos como o fará rais nas in tera çõ es. Para fazer oposição às teorias nazistas que en-
David Efron, mas para lembrar que, paralelamente à palavra, os clausuravam o comportamento humano na fatalidade do perten-
movimentos do corpo contribuem para a transmissão social do
sentido. Frequentemente, em seus trabalhos, trata-se de uma so- • ELI AS , N . La ci viltea r íon de s mceu r s . Paris: Ca lmann- L év y, 1 9 7 3 ( t ra d . fr .).
ciologia da oportunidade: o corpo não é diretamente visado pela • EFRON, D . Gestu re, race an d cul ture . The H ague /P a ris : Mou to n, 1972.

20 21
cimen to à " r aça", D. Efron constrói um dispositiv o experimental t r uma correlação; um mesm o fio emocional os atravessa." U ma
que v isa comparar entre si a gestualidade de interação de duas po- f~rma d e tomar isso tudo evide~te com fidelidade: " A p resen ta r
pulações, uma de "judeus tradicionais" e outra de "italianos tradi- tais situações com p al a v ras, contmuam M . Mead e G . Ba teson, re-
cionais" . Lista as varia ções de com p o r ta m en to s: as gestualida- quer que se re co rra a exped ie n tes inevitavelmente literários ou qu e
des diferenciadas. Compara em seguida as duas populações de se proceda à dissecação de ce n a s viv a s .. . Graças à fotogr afia, a
" segun d a geração" das duas comunidades, educadas nos Estados totalidade dos elementos das con d u tas pode ser p reservada, en-
Unidos. Facilmente ficam demonstradas as diferenças sensíveis quanto que as co rrelações desejad as podem ser postas em evidên-
en tre as gestualidades das primeiras gerações de imigrantes e as de cia quando as fotos são colocad as n uma mesma p ágina par a com-
seus filhos que, mais " a m eri can izad os" , aproximam-se considera- paração". Cada figura im pres sa é in tr o d u zid a por curta anota-
velmen te dos amer icanos. Trataremos mais lon g am en te deste as- ção que situa os m om en to s selecionados n a trama cultural d a v id a
sunto no capítulo sobre a gestualidade. quotid iana b alinesa . A imagem acompanha com sucesso o comen-
tário, alcançan d o o essen cial de G . Bateson. Uma longa introdução
2. Contribuições etnológicas de M. Mead esboç a u m a etnologia da v ida balin esa que contribui
para restituir as pulsações d a existê n cia coletiv a . Fisionom ias, ges-
Pa r alelam en te, os etnólogos são confrontados, em ou tr as socie-
tos, rituais, situações d a vida da família ou d o v ila rejo desfilam a
d ades, aos usos do corpo que chamam a atenção e provocam a críti-
cada página dando à obra exc epcional valor científico e humano:
ca em relação às maneiras corporais características das sociedades
aprendizado das técnicas d o corpo, desenvolvimento d o transe, re-
ocidentais e que até então não haviam sido pesquisadas pelas ciên-
lações pais-filhos, desen v olvimento da criança, jogos tradicionais,
cias sociais: Maurice Leenhar d t, F. Boas, B. Malinowski, G. Roheim,
relações com os orifícios co rpo rais (comer, beber, elim inar, urinar,
E. Sapir, E. De Martino, R. Bastide, F. Huxley, G. Bateson, C. Lévi-
Strauss, etc., descrevem os ritualismos e os imaginários sociais que defecar, purificar-se, e tc.) .
contribuem para colocar a corporeidade em condições mais fa- Propusemos alguns marcos da reflexão sociológica aplicada ao
v o r áv eis dentro do pensamento sociológico. Dessa forma, Balin e- corpo evocando dois níveis da pesquisa: u m a sociologia implícita na
se Character é lançado em Nova York em 1942 10• Reunindo os da- qual o corpo, mesmo não sendo esquecido, continua secundário na
dos coletados por Margaret Mead e Gregory Bateson em Bali, de análise; em seguida, uma sociologia em pontilhado que coloca em
1928 a 1936, o livro mistura a análise etnográfica do povo balinês evidência uma certa quantidade de dados importantes e faz o inven-
com centenas de fotografias de homens e mulheres em movimen- tário dos usos sociais do corpo. Nos próximos capítulos nos empe-
tos e interações que marcam o compasso da vida quotidiana. M . nharemos numa te rceira etapa: a da sociologia do corpo, em vias de
Mead e G. Bateson conhecem bem os riscos de projeções culturais se constituir, forte em certas aquisições, dialogando com sua história
inerentes ao uso de noções emprestadas da língua inglesa cujos va- e prevendo uma inteligibilidade crescente da corporeidade em suas
lores e modos de vida são radicalmente diferentes daqueles obser- dimensões sociais e culturais. Antes disso, importa determinar qual
vados no vilarejo de Bajoeng Gede, lugar do estudo. " Nesta mono- é o objeto"corpo" que n os interessa e, em seguida, quais são os pro-
grafia, escrevem, tentamos utilizar um novo método de apresenta- cedimentos epistemológicos que convém apreender.
ção das relações entre diferentes tipos de conduta culturalmen-
te padronizados, colocando lado a lado uma série de fotografias
mutuamente significativas. Elementos de condutas oriundas de con-
textos e lugares diferentes - um dançarino em transe numa pos-
sessão, um homem levantando o olhar para um avião, um se rviçal
saldando o mestre, a representação pictural de um sonho - podem
10 • BA TESON , G . & ME AD , M . Bal ines e Charact er: a ph ot og ra ph ic an alysis . N e w
York : New Yo rk Academy of Scierice, 19 42 .

I;
!
22 23
Capítulo 11 I1- Elementos históricos
Inúmeras representações visam de fato dar carne ao homem
ou dar um corpo ao homem. A lterna tiva que não é sem consequên-
Sobre algumas ambiguidades cias e cujas armadilhas o pesquisador deve evitar:
• Dar um corpo ao homem: assim, a anatomofisiologia e o co-
1- Ambiguidades do referente "corpo" nhecimento médico no sentido amplo, separando o homem de
seu corpo, encaram este como um em si. Parece que a maior par-
As pesquisas sociológicas privilegiaram, sobretudo, as ações te dos sociólogos da atualidade, preocupados em compreender
do corpo. Mas o próprio referente"corpo" é pouco questionado. os usos sociais e culturais do corpo, aderem sem críticas à teori-
Uma expressão ambígua, dualista, designa algumas vezes essas zação biomédica e vêem nela sua realidade objetiva.
abord agens: sociologia do corpo. Mas, d e qu e "corpo" se trata? Esqu e-
• Ao contrário, dar carne ao homem: esses saberes não distin-
cemos com frequência o quão absurdo é nomear o corpo c?mo s.e
guem o homem e o corpo, as medicinas populares ainda hoje
fo sse um fetiche, isto é, omitindo o homem que o encarna. E preCI-
dão o exemplo em nossas sociedades. Medicina dos traços dis-
so ressaltar a ambiguidade que consiste evocar a noção de um cor-
tintivos, na qual um elemento vegetal ou mineral pode supos-
po que só mantém relações implícitas, supostas, c~m o ator com
rarnente ajudar a curar um mal, pois possui na forma, na cor,
quem faz indissoluvelmente corpo. Qualquer qu.estlOname~tos~­
no funcionamento ou na substância, uma analogia com o órgão
bre o corpo requer antes a construção de seu objeto, a eltlcl.daçao
afetado ou as aparências da doença. Pela imposição das mãos o
daquilo que subentende. O próprio corpo não estaria envolvido no
magnetizador transmite uma energia que regenera as zonas
véu das representações? O corpo não é uma natureza. Ele nem se-
doentes e coloca o homem em harmonia com as emanações do
quer existe. Nunca se viu um corpo: o que se vê são homen~ e mu-
meio ambiente. O radiestesista interroga o pêndulo e o faz per-
lheres. Não se vê corpos. Nessas condições o corpo corre o nsco de
correr a superfície do corpo para fazer o diagnóstico e identifi-
nem mesmo ser um universal. E a sociologia não pode tomar um
car as plantas que indicará ao visitante para curá-lo. O benze-
termo como se apresenta na doxa para fa zer dele um princípio de
dor, pela prece que murmura, acompanhada de gestos precisos,
análise sem antes apreender sua genealogia, sem elucidar os ima-
cristaliza as forças benéficas que aliviam o mal. Da mesma for-
ginários sociais que lh e dão nome e agem sobre ele, e is.s,o não :m S? ma o curador, cujo poder consiste em eliminar a queimação da
suas conotações (a coleta dos fatos analisados pelos soci ólogos e nca
machucadura e curá-la sem deixar cicatrizes na pele. A lista po-
nesse domínio), mas também na denotação raramente qu es ti on a-
deria ser ampliada pela evocação d a s fontes, das pedras, das ár-
da. O corpo não é uma natureza incontestável objetivada im u tav el-
vores, etc., que supõem dar aos que as solicitam uma energia
mente pelo conjunto das comunidades humanas, dada imediata-
propícia à cura dos males. Numerosas são ainda hoje em dia
mente ao observador que pode fazê-la funcionar como num exer-
as concepções sociais que vinculam o homem ao cosmo.
cício de sociólogo. O "atalho antropológico" (G. Balandier) nos
faz lembrar a existência efêmera desse objeto, aparentemente Yvonne Verdier observou, em recente estudo sobre as tradições
tão real, tão acessível à descrição''. de um vilarejo da Borgonha, a fisiologia simbólica da mulher e suas
relações com o meio ambiente. Durante o período menstrual, por
exemplo, a mulher não desce na adega onde estão colocadas as re-
servas familiares: carnes salgadas, pepinos em conserva, barrica s
de vinho, canecas para vinho, etc. Se ela o fizesse, correria o risco de
11 • Michel Bernard, em trabalho que marcou época, mostrou uma outra faceta
cujo ob jeto era "o" corpo: as di ferentes ciê ncias humanas propõem aSSIm, estragar irremediavelmente os alimentos tocados. Pelos mesmos
olhares irredutíve is en tre si. Cf. BERNARD, M . Le corps. Pa r i s: De large, motivos, o porco nunca é m o rto na fazenda durante esse período.
1976.

I' 24 25
Bo los, cremes, maioneses n ã o são preparados. " Durante sua mens- dievais, as primeiras dissecações anatômicas distinguindo o ho-
truação, escreve Yvonne Verdier, não sendo férteis , as mulheres mem do corpo, sendo ele próprio objeto de investigação que revela
estancariam qualquer processo de transformação que lembre a fe- a carne na indiferença do homem cujo semblante, no entanto, ela
cundação: pensemos nos ovos nevados, nos cremes, nas emulsões, m olda. Foi necessário tamb ém o encontro com a filosofia mecanis-
nos molhos, no bacon, em tudo o que deve "ligar". Sua presença po- ta, que encontra em Descartes seu mais sutil porta-voz, estabele-
deria abortar todas essas lentas gestações que representam o touci- cendo o corpo como outra forma mecânica. Uma nova sensibilida-
nho n o sal, o vinho na cuba, o mel na colmeia, etc."12O corpo é simi- de individualista nascente foi necessária para que o corpo fosse
lar a um campo de fo rça em ressonância com os p r ocessos de vida visto como algo separado do mundo que o a colhe e dá significação
que o cercam. e sep ar a d o também do homem ao qual dá forma . Na maior parte
Nas tr adiçõe s populares, o corpo permanece sob a influência d as investigações, a concepção moderna do co rpo é a que serviu de
d o universo que lhe dá energia. Ele é um condensado do cosmo. marco inicial para a sociologia, nascida na passagem do século XV I
Conhecemos nesse sentido as análises d e Leenhardt em Do Kamo para o século XVII. Essa concepção implica que o homem esteja
separado do cosmo (não é mais o macrocosmo que explica a carne,
que evidenciam, na cultura tradicional canaque, a similaridade de
mas uma anatomia e uma fisiologia que só existe no corpo), separa-
substância entre o homem e o vegetal. Várias sociedades identifi-
do dos outros (passagem da so cie d a d e de tipo comunitária para a
cam o homem e, ao mesmo tempo, sua carne. Ela o engloba igual-
sociedade de tipo individualista onde o corpo encontra-se na fron-
mente numa totalidade na qual o invisível se mistura ao visível d a
teira da pessoa) e, finalmente, separado de si mesmo (o corpo é en-
natureza, e assim não concebem o corpo como um anexo. Não raras
tendido como diferente do homem)",
vezes, há ambiguidade na aplicação da noção de corpo ocidental
aos grupos sociais cujas referências culturais não dão nenhum es-
paço ao "corpo" . In - Elementos etnológicos
As representações do corpo são representações da pessoa. Quan- Em outras sociedades o corpo não é isolado do homem e está in-
do mostramos o que faz o homem, os limites, a relação com a natu- serido numa rede complexa de correspondências entre a condição
reza ou co m os outros, revelamos o que faz a carne. As representa- humana e a natureza ou cosmo que o cerca. Um estudo exemplar
ções da pessoa e aquelas, corolários, do corpo estão sempre inseri- de M. Leenhardt aponta que, por exemplo, para os Canaques, no
das nas visões do mundo das diferentes comunidades humanas. O interior da sociedade comunitária, nenhum termo específico é uti-
corpo parece explicar-se a si mesmo, mas nada é mais engano- liz ad o para referir-se aos órgãos ou ao próprio corpo. O conjunto
so. O corpo é so cialm en te construído, tanto nas suas ações sob re a d os componentes do que chamamos"corpo" é emprestado à v e ge-
cena coletiva quanto nas teorias que explicam seu funcionamento tação. Os órgãos ou os ossos, tal qual nos parece, levam nomes de
ou nas relações que mantém com o homem que encarna. A carac- frutas, árvores, etc. Não existe ruptura entre a carne d o mundo e a
terização do co rpo, longe de ser unanimidade nas sociedades hu- carne do homem. O vegetal e o orgânico se encontram em tamanha
manas, revela-se surpreendentemente difícil e suscita várias ques- correspondência que alimenta inúmeros traços da so ci e d a d e ca -
tões epistemológicas. O corpo é uma falsa evidência, não é um dado naque. O próprio nome de " corpo" (karo) só designa uma e stru-
inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cu ltu r al. tura, uma base que se aplica indiferentemente a outros objetos. E
A visão moderna do corpo nas sociedades ocidentais, que de al - Leenhardt conta o "causo" ostentoso pelos questionamentos que
guma forma oficial é representada pelo conhecimento biomédico, proporciona: desejando medir o impacto dos valores ocidentais na
pela anatomofisiologia, repousa sobre uma concepção particu- sociedade melanésia através da visão de um autóctone, Leenhardt
lar de pessoa. Foi necessário o desmantelamento dos valores me-
12 • VERD IER, Y . Fu ç o n s de dire Jaçol1s d e f a i re . Paris : Ga llimard, 1979, p . 13 • Para uma análise detalhada desse processo, cf . LE BRETON, D. An t h ro-
20. pologie d u corps et m od er n it Op . cito
é •

26 27

-
~
..

questiona um ancião a esse respeito . Este responde imediat a- lógica aristotélica d o ter ceiro e xcl u ído, segun do a qual se a coisa
mente: " O que vocês nos trouxeram é o corpo"u. é comprovada, seu contrário é impossível. Assim, o corpo não é so-
mente uma co leção de órgãos arranjados segundo leis da anatomia
Alia d a à evangelização, a adesão de uma faixa da população ca- e da fisiolog ia. É, em p r im eiro lugar, uma estrutura simbólica, su-
naque aos valores ocidentais conduz aqueles que ultrapassam a perfície de projeção passível de unir as mais v ariad as formas cultu-
barreira, aqueles que aceitam desfazer-se de parte dos valores tra- rais. Em outras palavras, o conhecimento biomédico, conhecimen-
dicionais que outrora construíam a trama de suas vidas, à indivi- to oficial nas sociedades ociden tai s, é uma representação do corpo
dualização que reproduz, de forma atenuada, a que reina nas ~o­ entre outras, eficaz para as práticas que sustenta. Mas tão vivas
ciedades ocidentais. O melanésio conquistado, mesmo de maneira quanto aquelas e por outro s m otivos, são as medicinas ou as disci-
rudimentar, pelos novos valores, liberta-se da rede de correspon- plinas que repousam em outras v isões do homem, do corpo e dos
dências que o ligava à comunidade. Torna-se germe de um indi- sofrimentos. Assim a ioga, em diferentes versões, propõe uma re-
v í d u o, isto é, u m h omem relativamente separado dos outros e em presentação do corpo e das realizaç ões pessoais muito afastadas
I parte separado dos valores que o diluíam no coleti,:,o. Evar:geli - das concepções ocidentais. A med icina chinesa baseada numa cer-
zado, submete a existência aos olhos de Deus e, a partir de então, as ta imagem da energia (o ki) e o magnetismo herdado das medicinas
I fronteiras delimitadas pelo corpo o distinguem dos companheiros.
Ele se sente muito mais indivíduo que membro da comunidade,
populares são exemplos simples e m u ito enraiz a d os nas socieda-
des ocidentais. Esses exemplos poderiam ser seguidos pela enu-
mesmo que nesse coletivo, meio híbrido, a passagem não seja feita meração infinita das representações em uso nas sociedades huma-
de modo radical. A centração sobre o eu, resultado dessa transfor- nas e ainda observáveis ou as que outrora existi r am . Conforme os
mação social e cultural, comprova nos fatos o que Durkheim colo- espaços culturais, o homem pode ser criatur a de carne e osso coman-
cava em evidência para distinguir um indivíduo do outro: "é preci- dado por leis anatomofisiológicas; ou rede entr el a ça d a de formas
so um fator de individualização, é o corpo quem faz esse papel" >. vegetais como na cultura canaque; ou rede d e energia como na me-
dicina chinesa, que une o homem ao universo qu e o cerca como se
Para tornar evidente outras concepções da corporeidade huma-
fosse um microcosmo; ou animal que carrega em si todos os perigos
na, na relação com a natureza, da maneira como é percebida em di-
da selva; ou parcela do cosmo em estreita ligação com os eflúvios do
ferentes sociedades, poderíamos enumerar vários trabalhos etno-
meio ambiente; ou domínio predileto para a estada d os espíritos...
l ógicos". O corpo é uma realidade mutante de uma sociedade para
outra: as imagens que o definem e dão sentido à sua extensão in- Muitas são sociedades, muitas também são as diferentes repre-
visível, os sistemas de conhecimento que procuram elucidar-lhe a sentações e ações que se apoiam sobre seus conhecimentos. Além
natureza, os ritos e símbolos que o colocam socialmente em cena, disso, as próprias sociedades ocidentais são confrontadas a incon-
as proezas que pode realizar, as resistências que oferece ao mundo, táveis modelos do corpo: os utilizados pelas medicinas "parale-
são incrivelmente variados, contraditórios até mesmo para nossa las", ou os utilizados pelas medicinas populares que ressurgem
num contexto social e cultural modificado, introdução confusa
H • Cf. LEENHARDT , M . D o Ka m o - La p e r sonn e e t l e m ythe dans l e de modelos energéticos na medicina, a extraordinária divisão do
m onde mélanési en . Paris : Gallimard , 1 947. campo das psicoterapias que repousam sobre modelos do homem
15 • D URKHElM , E . Lee fo rm es é /é menta i res d e l a vie re l igie u se. P aris: P UF , e do corpo extremamente contraditórias de um extremo ao outro.
1 968, p . 3 8 6ss.
Em nossas sociedades, nenhuma das representações do corpo
16 • Por e xemplo , CALAME-GRIAULE , G .. Et hnolog ie et Ian gag e: la parol e chez les Do-
go n . Paris : Gallimard , 1965 . • Dieterlen, G . L'image du corps et le s composa.n-
faz a unanimidade, nem mesmo o modelo anatomofisiológico.
tes de la p ersonne chez le s Dogon . La noi ion de personn e en Afrique nOlre . Pan s : Diante desse quadro heterogêneo, a tarefa da antropologia ou
CNRS, 19 73 . • THERRIEN, M . Le corp s Lnuit (Qllébec, A rct ique), Paris: Se laf-PUB,
1987. • BUHAN, C. La mystique du cor p s . Pari s: L 'Harmattan, 1986 . • SHIPPE~ , da sociologia é compreender a corporeidade enquanto estrutura
K. Lec o rp s t a o fs t e . Paris: Fa y ard, 19 82 . • LOUX , F. Le co rps d a n s l a soeze - simbólica e, assim, destacar as representações, os imaginários, os
t é t rad í t ion n el le , Paris : Berger-Levrault , 1 979 . • CL ASSEN, C . I n ca co s m o-
l og y an d th e h u m an body. Salt Lake City : University o f Utah Press, 1993.

28 29

-
desempenhos, o s limites que aparecem co m o infinitamente variá- elemento de individuação, como categoria mental qu e p erm ite pen -
veis conforme as sociedades. sar culturalmente a dife rença d e um ator para outro, p orque nin-
guém se distingu e ~o grup ~, ca d a .um representar:do somente a
IV - Corp o, elemen to do imaginário social singularid ad e n a umdade diferencial d o grup o . O Isolamento do
corpo nas socied ades o ciden tai s (ec o longí n q u o das p rimeiras dis-
A designação do corpo, quando é possível, traduz de imediato secações e d o desen v olvimento da filosofia mecanista) comprova a
um fato do imaginário social. De uma sociedade para outra, a ca- existência de uma tr ama so cial na qual o homem é separado do cos-
racterização da relação do homem com o corpo e a definição dos mo, separado dos outr os, separad o d e si m esmo. Em outras pala-
constituintes da carne do indivíduo são dados culturais cuja varia- vras, o corpo d a modernidade, aquele no qual são aplicados os mé-
bilidade é infinita. Um objeto efêmero e inacessível é esboçado, todos da sociologia, é o r esultado do recu o d as tradições p opulares
mas perde a evidência primeira que poderia ter aos olhos do ob- e o advento d o indiv idualis m o ocidental e traduz o aprisio namen-
servador o cid en tal. A "id en tifi cação" do corpo como fr agm en to, de to do homem sobre si m esmo" .
certa forma, autônomo do homem, pressupõe uma distinção estra-
No fundam ento d e qualquer p ráti ca social, como mediador pri-
nha para numerosas sociedades. Nas sociedades tradicionais, de
vilegiado e p ivô da presença humana, o corpo está no cruzamento
dominante comunitária, na qual o estatuto da pessoa subordina-se
de todas as instâncias d a cultura, o p onto de atribuição por excelên-
ao coletivo, misturando-a ao grupo e negando a dimensão indivi-
cia do campo simbólic o . U m observatório de alta fidelidade para
dual que é própria das nossas sociedades, o corpo raramente é ob-
os técnicos d as ciências sociais. Mas, primeiramente é importante
jeto de cisão. O homem e o corpo são indissociáveis e, nas represen-
saber de que corpo se trata. Uma d as p rimeiras preocupações d o
tações coletivas, os componentes da carne são misturados ao cos-
sociólogo co nsis te em identifi car a "natureza" do corpo cujas lógi-
mo, à natureza, aos outros. A imagem do corpo é aqui a imagem em
cas sociais e culturais pretende questionar.
si, alimentada pelas matérias simbólicas que mantêm sua existên-
cia em outros lugares e que cruzam o homem através de uma fina
trama de correspondências. O co rpo não se distingue da persona e
as mesmas matérias-primas entram na co m p osição d o homem e da
natureza que o cerca. Nessas concepções da pessoa, o homem não é
separado do corpo, como normalmente considera o senso com u m
ocidental. Em sociedades que permanecem relativamente tradi-
cionais e comunitárias, o "corpo" é o elemento de ligação da ener-
gia cole tiv a e, através dele, cada homem é incluído no seio do gru-
po. Ao contrário, em sociedades individualistas, o corpo é o elemen-
to que interrompe, o elemento que marca os limites da pessoa, is to
é, lá onde começa e acaba a presença do indivíduo.
O corpo como elemento isolável da pessoa a quem dá fisiono-
mia só é possível em estruturas societárias de tipo individualista,
nas quais os atores estão separados uns dos outros, relativamente
autônomos com relação aos valores e iniciativas p róprias. O corpo
funciona como se fosse uma fronteira viva para delimitar, em rela-
ção aos outros, a soberania da pessoa. Ao contrário, nas socieda-
des tradicionais e comunitárias, onde a existência de cada um flui
na presteza ao grupo, ao cosmo, à natureza, o corpo não existe co m o 17 • Cf. LE BRETON, D . Op. cit., caps. 1 a 3 .

30 31

»
-
Capitulo 111 pa provisoriamente ao co ntrole social. O fato de o corpo constituir
uma construção simb ólica escla re ce, p or outro lad o, os mecanis-
mOSda eficácia simb ólic a , sem n e ce ss a r ia men te recorrer a o dua-
Dados epistemológicos lismOp si qu e- so m a, como fez Lé vi-Strauss em artig o clássico sobre
o assuntol3.
A sociologia, cujas pesquisas t êm no corpo seu fio condutor,
I - A tarefa não deve nunca esquecer da ambigurdade e d a eferneridade de
seu objeto, a qualidade que possui de incentivar questionamentos
1. Definir o corpo que nos interessa
muito mais que de constituir fonte de certezas. Sempre relacionado
A primeira tarefa do sociólogo ou do antropólogo consiste em com o ator para não ceder ao dualismo que invalidaria a análise, o
libertar-se do contencioso que faz do corpo um atributo da pessoa, significante " corpo " fun cion a, p a ra a sociologia, co rn o um mito n o
um possuir, e não o lugar e o tempo indistinguível da identidade. sentido de G . Sorel: ele cristaliza o imaginário social, p rov oca a s
Também é preciso lembrar do caráter construído da pretensa " rea- práticas e as análises que contiriuarn a e xplica r s ua legitimidade,
lidade objetiva" do corpo e as múltiplas significações que a ela se a provar de maneira incontestável sua realidade. M a s o sociólogo
vinculam. O significante "corpo" é uma ficção; mas, ficção cultu- não esquece que ele próprio vive num mundo de ca tegorias mentais
ralmente eficiente e viva (se ela não estiver dissociada do ator e as- inseridas na trama da história social, e, de m odo geral, na t rama da
sim se este for visto como corporeidade da mesma forma que a co - história das ciências. De modo mais específico, o qualificativo
munidade de sentido e valor que planejou o lugar, os constituin- "corpo" que limita o campo dessa sociologia é trma " fo rm a sim-
I tes, os desempenhos, os imaginários, de maneira mutante e contra- pIes" no sentido de André Jolles: " Tod as as vezes que uma ativida-
ditória de um lugar e tempo para outro das sociedades humanas. de do espírito conduz a multiplicidade e a diversidade do ser e dos
A construção social e cultural do corpo não se completa somen- acontecilllentos a cristalizar-se para adquirir trrna certa forma, to-
u
11'
te em jusante, mas também em montante; toca a corporeidade não das as vezes que essa diversidade, percebida pela língua em seus
II elelllentos primeiros e indivisíveis e transformada em p rodução da
só na soma das relações com o mundo, mas também na determi-
nação de sua natureza. "O corpo" desaparece total e permanente- línguagem, puder ao mesmo tempo querer dizer e significar o ser e
111 mente na rede da simbólica social que o define e determina o con- o acontecimento, diremos que ocorre o nascimento de uma forma
1 junto das designações usuais nas diferentes situações da vida pes- simples"!" cujas atualizações sociais e culturais é preciso conhecer.
111 ,

soal e coletiva. O corpo não existe em estado natural, sempre está a "corpo" é uma linha de pesquisa e não urna realidade em si. É
li 1 compreendido na trama social de sentidos, mesmo em suas mani- preciso então marcar o distanciamento da sociologia de Durkheim,
ill festações aparentes de insurreição, quando provisoriamente uma segundo a qual o corpo é estritamente redutível ao biológico. O co-
'1!1 nhecimento biomédico representa uma espécie de verdade univer-
I ruptura se instala na transparência da relação física com o mundo

I; !
do ator (dor, doença, comportamento não habitual, etc.). Especia-
listas do sentido oculto das coisas (médicos, curandeiros, psicólo-
gos, pajés, tiradores de sorte, etc.) iriterferern para dar norne ao
sal do corpo que 'urna parte das sociedades humanas não conse-
guiu adquirir, corno os rrurnerosos curandeiros de nossas tradições
rurais . Etnocentrismo elementar ao qual cedem, no entanto, nurne-
mistério, explicar sua gênese, (re)inserir no interior da comunida- rosos pesquisadores. O corpo é tamb ém urna construção simbóli-
i lj de o homem e a doença que o atinge. Indicam a via a seguir para ca. A realidade de suas definições pelas sociedades humanas é
:i
11"
I,
facilitar a resolução do problema. Se a primeira tentativa não dá re- objeto de uma primeira constatação.
I' sultado, outras podem ser feitas e novos especialistas solicitados;
18 • LÉVI-STRAUSS , C. L ' efficacit é sy m bo li q u e . An t hrop oíog ie S t r u ct u ral e II .
nossas sociedades são exemplos formidáveis desse procedirnen- Paris: Plon , 1958 .
to. Sempre resta o imagin ário social para retornar aquilo que esca- 19 • JüLLES, A. Form es simples. P aris : Seuil, 1972, p. 42 [tr a d . fr. ] .

32 33
2. Ind ep en d ên ci a do discurso sociológico Mesmo estudando a socie d a d e n a qual es tá in serido, a tarefa do
Uma v ez estabelecido o caráter " ficcional" do co rpo e, d e algu_ . ' lo go é descobrir a s raízes sociais e culturais que pesam s obre a
saCIO
di ão humana. O cultural não e" m onopo1'10 d iISCU ti' ve ld os I nUIit
ma forma, d adas as indicações da linha a seguir n o ca m p o d a aná- cond osç Dogon, não é privilegio , d as tra dii çoes
- rurais . d e B ocage, mas
lise, pode-se vis lu mbr a r a extensão possível de sua fecundid a- outá também
de para as ciências sociais. Lembrando-se sempre, para não cair n o
o
no coração do p en sa m en to me ICO e d as pra' ti' cas ou
' d o
es a d . I . - d
d instituições que por ele são gera as. A SOCIO ogIa nao eve se
dualismo que desqualificaria a análise, que o corpo é aqui o lugar e
o tempo no qual o mundo se torna homem, imerso na singulari-
d:~xar in ti m id ar pela medicina q~epreten~ediz~r a verdade sobre
o corpo ou sobre a doença, ou ~Iante,d.a b iologia frequentemen-
dade de sua história pessoal, numa espécie de húmus social e cul-
te inclinada a encontrar na raiz genetica a causa dos com!'orta-
tural de onde retira a simbólica da relação com os outros e com o
tos d o homem. A esse respeito conhecem-se as pretensoes da
muridow. O discurso sociológico não isola o corpo humano como men 1 . ~ . ' ti'
sociobiologia visando subordinar o socia a o patrim ônio gene co.
fazem, de m odo m ei o surrealista, as " terapias corporais" (grito p ri-
mordial, bioenergia, Gestalt-terapia, etc.) que parecem colocar o ator
en tre parênteses e fazer de seu corpo uma quase pessoa. 11 - Ambiguidades a esclarecer
A medicina e a biologia também propõem um d iscurso sobre o Duas ambiguidades pesam sobre a sociologia que procura p ro-
corpo aparentemente irrefutável, culturalmente legítimo. Mas, tanto duzir um entendimento sobre o corpo:
uma quanto a outra compartilham um conhecimento d e outra cate- a) A variabilidade de uma cultura e de um grupo para outro,
goria. Detêm, de certa forma, um conhecimento "oficial", ensinado a influência na história, mas sobretudo a não caracterização como
na universidade, isso quer dizer que visam à universalidade e sus- tal em numerosas comunidades humanas.
ten tam as práticas legítimas das instituições médicas ou de pesqui-
b) Os perigos de um impensável dualismo inerente ao uso des-
sa. No entanto, esse monopólio da "verdade" é disputado pelas me-
preocupado do significante co~po que pressupõe o ator em vez de
dicinas que repousam sobre as tradições populares, variáveis con-
confundir-se com ele. O corpo e, antes de tudo, um termo da doxa e
forme as culturas, ou sobre outras tradições do conhecimento (acu-
o uso desse significante, dentro do pensamento sociológico, deve
puntura, homeopatia, quiropraxia, medicina ayuvédica, etc.) que
ser esclarecido de antemão através de uma "história do p~esente",
por sua vez se apoiam em outras represen tações do corpo humano.
uma genealogia do imaginário social que a produziu. E preciso
O sociólogo não pode então tomar p ar tid o n e sses conflitos de leg i-
afastar o r isco da fragmentação da identidade humana entr~ o
timidade ou nessas coexis tências paradoxais que lembram justa-
mente o caráter sempre social e cu ltural das obras humanas; antes de h om e m de um la d o e esse belo objeto que seria o corpo. Desconfie-
mos, ademais, da réplica dos que proporão uma sociologia da alm~.
tudo, tem como tarefa tornar perceptíveis os imaginários do corpo
Em outras palavras, a sociologia do corpp é aquela das modali-
presentes na medicina moderna ou nas outras medicinas; assim como
dades físicas da relação do ator com o mundo.
apreender os procedimentos v aria d os usados nas curas e compreen-
der as virtudes apregoadas.
IH - Uma sociologia do corpo?
A sociologia aplicada ao corpo distancia-se das asserções mé-
dicas que desprezam as dimensões pessoal, social e cultural nas Delineados os obstáculos, uma sociologia relacionada ao cor-
percepções do corpo. Tudo se passa como se a representação ana- po reúne as condições de seu exercício: uma co~st~l~ção de fatos
tomofisiológica tivesse que escapar da história para entregar-se sociais e culturais está organizada ao redor do signifícante corpo.
ao absoluto . Esses fatos formam um campo social coerente, com ló gicas discer-
níveis; formam u m observatório privilegiado dos im a gin ári os so-
ciais e das práticas que suscita. Há uma p~rtinênciaheurís~ica que
20 • Cf. LE BRE TON, O . An tlzropolog ie du corps et modernit é. Op . ci t o a faz funcionar, como comprovam os vanos tr ab a lh os realizados. .
i

II 34 35

J -
Com o vimos, o corpo é um obje to d e q u estion am en to m u ito dis- elo rigor das feri:-~mentas erríprega.:tas, p o d e -~ e afirma r e ntão
perso na sociologia. Três caminhos de pesquisa são admiti dos até ~ ertinência poss ível da confronta ção ~om as dlfe~entes abo rda-
o presente: r
s sociológicas. C ada uma delas propoe aos parceuos um ponto
a) U m a " so ciol ogia d o co n traponto" (J.-M . Ber thel ot) que d ei- âe:ista e sugere uma abordagem original cuja conjugação pode le-
xa de la d o as vias normalmente privilegiadas na apreensão d o so- var à melhor compreensão do objeto. Análises diferentes não são
cial (instituições, classes, grupos) e se prende ao corpo "não para ces sariamente exclusivas, p odendo acrescentar, cada uma em
diluí-lo ou dispersá-lo, mas para colocar em evidência planos pri- ~:u patamar, pontos de pertinência inéditos. A h is.tória das ciên-
v ilegi a d o s de proje ção?". O corpo funciona aqui como se fosse cias expõe a fertilidade d o deslocamento das questoes, da apreen-
uma espécie de analisador, como pode também ser a v ida quotidia- ão inédita de um objeto que escapa à rotina d os hábitos do pensa-
n a, a morte, a sedução, etc., e propõe um p onto de vista suti l e ori- ~ento. A sociologia d o co rpo p ode esclarecer assim, sob outro ân-
gin al através d o qual as ondulações da vida s ocial podem ser re- gulo, alguns m odo s de enfoc ar o s dife rentes ob je to s, da mesma
gis tra das com relevân cia . forÍn a q u e outras abo rdag ens p odem tam b ém se enriquece r com
suas pesquisas.
b ) Uma " so cio log ia do a propósito", por assim dizer. C o m -
preenda-se, com isso, uma sociologia cujo caminho é cruzado inci- Outro risco é inerente à pluridisciplinaridade frequentemente
d entalmente p or alguns traços re lati v os à corporeidade sem que imposta quando d o estudo d o corpo: psicanálise, fenomenologia,
estes se revelem determinantes na construção mais global da pes- etnologia, história, economia, por exemplo, são disciplinas que o
quisa (por exemplo, a sociologia do trabalho pode deter-se um pou- SQciólogo cruza em seu caminho e cuj os dados utiliza. De m odo ge-
co nos tipos de técnicas do corpo associadas ao exercício de uma ral, pode-se dizer com Jean-Michel Berthelot que "0 corpo surge,
profissão ou na relação física do homem com a máquina, mas ela no discurso sociológico, no espigão e na linha da tensão que separa
não é elaborada por esse ponto de vista). a vertente ci ência social da vertente ciência hurna na'r" . São v árias
as precauções a serem tomadas: os conceitos não podem, sem per-
c) Uma "sociologia do corpo", lúcida em relação às ameaças da ou risco de incoerência ou de colagem, passar de uma disci-
que pesam sobre ela, mas que ao afastá-las descobre um continen- plina para outra sem o tratamento apropriado . O~ p.rocedimen-
te a ser pesquisado, quase inexplorado, onde a inteligênda e a ima- to s d e análise não são os mesmos conforme as disciplinas, nem os
ginação sociológica do pesquisador podem se desenvolver. Essa métod os para a coleta de dados. Sem controle rigoroso, a análise
via central da pesquisa pode, por outro lado, alimentar-se avida- p od e parecer uma colcha de retalhos, uma colagem teórica que
mente das análises levadas a cabo em outros lugares e para outras perde a pertinência epistemológica. "Uma vez definidos os dife-
finalidades. rentes comportamentos corporais simbólicos ou práticos sociolo-
gicamente pertinentes, escreve com razã9 Luc Boltanski, pode-se
IV - Os riscos então, sem correr o risco de v er o objeto escolhido se esvair, isto é,
vê-lo se esticar ao infinito, ou, o que dá n o mesmo, dissolver-se na
Uma g rande dificuldade apresentada pela sociologia d o corp o poeira das disciplinas que pretendem encontrar a v er d ad e sobre
consiste na contiguidade com outras sociologias aplicadas à saúde, ele, interpelar as outras ciências do corpo e reutilizar seus resulta-
à doença, à interação, à alimentação, à sexualidade, às atividades dos substituindo as questões, em função das quais fora m explicita-
físicas e esportivas, etc. O risco é a diluição do objeto, insuficiente- mente gerados, por questões implícitas às quais p odem respon-
mente definido pelo pesquisador que, querendo tudo abarcar, aca- der e com a única condição que sejam explícita e sistematicamen-
ba perdendo o ambicionado objetivo. Afastado o risco, controlado tecolo cad a s?" .

21 • Ber t h el o t, J .-M . Co rps et s ociété (p rob l ern e s m éthodologiqu e s pos é s p a r


22 • BERTHE LOT, J- M. et aI. Les so ciologies et le corp s. Op . ci t ., p. 13 1.
u n e approche s oci olo gique du corp s ) . Ca/z ie rs l n t e r n a t io n a u x d e S oci ol o-
g i e, v o l. L XXIV, 19 8 3 , p. 119-1 31. 23 • - BO LTANSKI, L. Les u sages sociaux du corps. An nales , n . 1, 1974, p. 208 .

36 37
Lembremo -n os enfim d e u m a e vidência : fa lar de sociol _
. d '
gla o corpo e uma maneira cômoda de fa la r de s ociolog'
o Capítulo IV
· d la
ap 1rca a ao corpo; esta não é uma dissidência epistemológic
o fere ce n d o a especificida de do campo d e es tud os e dos méto~ Camp os d e pesquisas 1:
d os. A r~flexão sociológica sobre o corpo é t ributária da epis-
te~ologl.a e da metodologia inerentes à disciplina. Se os con- Lógicas so ciais e culturais do corpo
certos exrgern uma modulação particular, pois o corpo não é
pensado como, por e xemplo, o Estado o u a fam ília, o mesmo
campo epistemológico é solicitado com suas maneiras de fa - Considerando os limites de tal p roposta, podem os esboçar en -
zer; de pen~ar e suas precauções usu a is. A soci ologia do COr- tão algumas orientações d e p esquisas relacionadas à co rporeida -
p o e um cap ít u l o en tr e muito s outros que a s oci ologia Com- de, partindo, se p ossível, d e textos fundadores da m atéria e alar-
porta . gando p rogr essiv a m e n te para uma e sp é cie de balanço p r o v isó-
rio dos trabalhos efetuados. Alguns campos foram assim d esbra-
vados: as técnicas d o corpo, a expressão dos sentimentos, a gestua-
lid ad e, as regras de etiqueta, as técnicas de tratamento, as percep-
ções sensoriais, as marcas n a p el e ou na própria carne, a má condu-
ta corporal. Sem d ú v id a estamos na presença d e u m a zo n a e s p e -
cífi ca da sociologia d o corpo . A corporeidade está n o centr o des-
sas temáticas e não ser ve de p retexto para a análise q ue ambicio -
ne outra coisa.

I - A s técnicas d o corpo
Em 1934, diante da Sociedade de Psicologia, M. Mauss a d ianta
uma noção destinada a prosperar: as técnicas d o corpo", Gestos co-
dificados em vista de uma eficácia prática ou simbólica. Trata-se de
modalidades de ação, de sequências de gestos, de sincronias mus-
culares que se sucedem na busca de uma finalidade p recisa. Evo-
cando lembranças pessoais, Mauss lembra a v ar ia çã o de tipos de
nado de uma geração para a outra em nossas sociedades, e mais ge-
ralmente de uma cultura para outra. Da mesma forma ocorre com a
marcha, a co rrida, as posições das mãos em repouso, a utilização
d a enxada ou os métodos d e caça. Mauss observa que a tecnicidade
não é monopólio único da relação do homem com a ferramenta, an-
tes disso h á, de certa forma, outro instrumento fundado r: "0 corpo
é o primeiro e o mais natural instrumento d o homem" . M odelado
conforme os hábitos culturais, ele produz eficácias práticas. " Ch a -

24 • M AUS S , M. L es t e chn i q u e s du corps . Soc iolog ie et a n t h ro p ol og ie . Pa r is :


PU F, 1950 , p . 363 -386 .

38
39
mo técnica uma ação tradicional eficaz (e vemos que nisso não Lévi-Strau ss propõe então a construção de " a rq u iv o s internacio-
difere do ato mágico, religioso, simbólico)", acrescenta Mauss. nais das técnicas co rporais", que consistia no maior inventário pos-
A seguir, Mauss propõe uma classificação das técnicas do corpo sível dos repertórios físicos dos grupos humanos. Salienta os de-
segundo diferentes perspectivas: safios éticos d e tal e mpreitada " em inen tem en te apta a contrariar
os p recon ceitos de raça, já que, face às concepções racistas que que-
• Conforme o sexo: d e fato, as definições sociais de homem e rem ver o homem como produto de seu co rpo, ficaria demonstrado
mulher implicam frequentemente um conjunto de gestos co di- ao con tr á rio que, sempre e em todo lugar, o homem soube fazer do
ficados d e diferentes maneiras. corp o um produto de suas técnicas e representações". Para e le, es-
• Conforme a id a d e : as té cnicas próp rias à obstetrícia e aos ges- ses arquivos fervilhariam de "informações de valor inimaginável
tos do nascimento; as técnicas da infância, da adolescência, da sobre as migrações, os contatos culturais ou os empréstimos que se
idade adulta (Mauss evoca principalmente as técnicas do sono, situam num passado remoto e que os gestos, aparentemente insig-
do repouso, da ativid ade - caminhada, corrida, dança, salto, n ad o, nifican tes, transmitidos d e ger a çã o em ger a çã o e prote gidos pela
subida, descida, movimentos de força); técnicas dos cuidados com própria insignificância, seriam provas melhores que as escavações
o corpo (toalete, higiene); té cnicas de consumo (comer, beber); arqu eológicas ou os monumentos figurativos".
técnicas de reprodução (Mauss introduz de fato a sexuali- Esse projeto será retomado na França no contexto da revista Ges-
dade nas técnicas do corpo e lembra a variabilidade de posi- teet Image por Bernard Koechlin, que coloca para si a questão sobre a
ções sexuais); os tratam en tos do co rp o (massagens). noção simbólica das séries gestua ís". De fato, a descrição minuciosa
• Conforme o rendimento: Mauss p en s a aqui na relação com a dos gestos não é fácil de ser apreendida na trama das palavras. A
destreza, com a habilidade. imagem, através do cinema, do vídeo, da fotografia ou do desenho
apresenta paliativos a essa insuficiência como percebemos quando
• Conforme as formas de transmissão: através de quais modali- evocamos o trabalho de G . Bateson e M. Mead em Bali. Mas a possi-
dades e em que ritmo as novas gerações as adquirem? bilid ad e de comparações interculturais das técnicas do corpo exi-
Mauss conclui a exposição lembrando a existência de técnicas gem critérios de anotação mais precisos, a invenção de um código
do corp o inserid as em religiões como o ioga ou a técnica do sopro d e transcrição como na fonética. Resta saber se tal elaboração é
n o tao ísm o" . Podemos discutir sobre a p er tin ên cia ou não dessa p ossível, se ela não se dissolve na dimensão simbólica do gesto.
classifica çã o o u salientar as omissões, mas Mauss n ão desej ava Gordon Hewes, por sua vez, estudou formas particulares de
la n ça r um p r oje to d e p esquisa p r eciso e exaustivo. Como um fa- técn icas do corpo, como o fa to de estar sentado ou se manter em p é .
rol, lançava lu z sobre a validade heurística d e um co n ceit o; evo- Ele aponta no desenvolvimento das posturas, por um lado, a inte-
cand o uma série de anotações pessoais, convidava os pesquisado- ração do fisiológico e do anatômico e, por outro lado, o cultural. O
r es a exercer a imaginação sociológica sobre o suje ito. conju n to das evoluções pode se r estimado a milhares de combina-
Na "Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss"26, lançada em ções. Com a ajuda de centenas de desenhos esquemáticos Hewes
1950, C. L évi-Strauss salienta a importância desse trabalho de re- aponta, por exemplo, diferentes maneiras de utilizar os membros
ce n s eam en to das técnicas tradicionais do corpo, numa época em do corpo de acordo com o modo de permanecer em pé, sentado, de
que o desenvolvimento das técnicas ocidentais eliminava todo joelhos, de posicionar as mãos e os braços, etc., e propõe um quadro
o patrimônio de gestos das profissões ou da vida quotidiana. C. da distribuição diferenciada dessas posturas pelo mundo. Sugere
25 • Cf. os traba l hos de GRANET, M . Étlldes sociolog iq u ee s u r la Ch ine, Par is : P U F, 27 • KOECHL IN, B. T eehniques corporelles et le u r notation simboliq ue . Latt g a-
1953, ou de MASPERO,M. Les proeé dés de "nouri r l e soufflev ita l". ge s, n . Ia, 1968, p . 36 - 4 7 . L'ethno-teehnologie: une méthode d 'approehe des
Le t a o i e m e et ies rel i g ions ch inoises . Paris: Ga ll imard, 1971. gestes de travail des saeiétés h u m a in e s . Geste et iniag e, número especial, 1982,
p . 13-38. PELOSSE , J .- L. Contribution à I'étude des t1sages eorpore ls traditi-
26 • lntroduetion à I 'oeuvre de Maree I Mauss . Sociolog ie et a n t hr o p ol ogi e , orme ls . R evue l n t er n at ion aíe d' Eth no -peucho log ie Nor m al e et Pat hoi og iq u e, voI.
Op. eit. r. n. 2, p. 3 -26.

40 41
cinco níveis de análise ao pesquisador interessado por esse tema de sobre as técnicas do corpo com base em vários e s tudos d e campo,
estudo muitas vezes negligenciado: a relação das posturas com as mas também sob re uma iconografia variada".
máquinas, com os diferentes instrumentos da vida diária ou pro- A a quis içã o das té cnica s d o corpo pelos atores depende de u ma
fission al; a rela ção das p osturas com os dados do meio humano educação quase sempre muito formalizada, intencionalmente pro-
(ecológico, cultural, social, etc.), seus aspectos psicológicos ou psi- duzida pelo entorno da criança (ou do adulto que procura fazer um
quiátricos; o nível sócio-histórico dessas posturas; também consti- outro uso das coisas d o mundo ). Nessa educação, a parte do mime-
tui um amplo campo de estudos a difusão pelas áreas geográficas tismo tem uma influ ência que não p ode ser negligenciada. Cada
quando culturas diferentes entram em contato. G. Hewes propõe aquisição aparece como o p rod u to de um aprendizado específico
finalmente um quinto nível de análise que se preocupa com os as - ligado a diferentes dados (u m período preciso da v id a do ator, a
p ectos filogenéticos q ue caracterizam as p osturas". idade, o sexo, o status social, a p r ofissão, etc.). As técnicas d o corpo
Um campo específico das técnicas d o corpo é o privilégio dos e os estilos de sua p r odução não são os mesm os d e u m a classe so-
especialistas do espetáculo, ourives na matéria, que cultivam sua cial para outra, algumas v ez es, a té as cla sses de idade introduzem
virtuosidade nos circos: malabaristas, equilibristas, contorcionis- variações. As técnicas do corpo são inúmeras: das montagens-mi-
tas, acrobatas, etc. Da mesma forma as performances realizadas niatura de gestos - cuja aparente simplicid a de frequentemente dis-
pelos artistas de rua: cuspidores de fogo, engolidores de espadas, simula o tempo e as dificuldades que são necessárias para assimi-
lá-las - até as disposições coordenadas de a ções e de habilidades -
faquires, etc. Sua habilidade preenche uma função imaginária im -
cuja execução exige longa ascese e particular destreza. A lista é infi-
portante para um auditório fascinado.
nita: dos modos à mesa até às condutas de micção; da maneira de
As atividades físicas e esportivas representam outro caminho nadar à de dar à luz; do lançamento do martelo ao lançamento do
que evidencia as técnicas do corpo. Vários pesquisadores empe- bumerangue; dos gestos da lavagem da roupa até aos do tricotar;
nharam-se na tarefa de descrevê-las numa perspectiva histórica da destreza do malabarista à condução do automóvel; da maneira
I: ou comparativa: G. Bruant, A . Rauch, J. Defrance, P. Arriau d, de andar à posição no sono; as técnicas da caça ou da pesca, etc.
J. T h ib a u lt, etc. G. Vigarello, por exemplo, estuda a interação dos Uma técnica corporal atinge seu melhor nível quando se torna uma
movimentos do corpo e dos aparelhos nos quais se apoiam diferen- somatória de reflexos e se impõe imediatamente ao ator sem
tes práticas esportivas e aponta a transformação desses aparelhos esforço de adaptação ou de preparação de sua parte.
com o repentino aparecimento de novas habilidades". O salto em Na sequência dos trabalhos de Mauss, às técnicas do corpo será
altura, o salto em distância, o lançamento de peso, as corridas a pé, necessário integrar também a sexualidade. As posições dos aman-
etc. são disciplinas que melhoraram as performances ao mesmo tes mudam de fato de uma sociedade para outra, algumas delas são
tempo em que se modificaram os te cnicism os corporais. até mesmo codificadas nas ars amandi. Assim também v a ria m a
Outro domínio das técnicas do corpo é formado pelos conheci- duração das trocas, a possibilidade de escolha de parceiros, etc.
mentos práticos do artesão, do camponês, do técnico, do artista, etc. Da mesma forma, sem dúvida, é conveniente incluir aqui certas
Esse conhecimento é o resultado da competência profissional fun- pesquisas sobre o t ranse e a possessão, mesmo sendo as técni-
dada num conjunto de gestos de base e num grande número de cas corporais somente as auxiliares da dimensão cultural infini-
movimentos coordenados nos quais o homem de profissão cris- tamente mais vasta" .
talizou, com o passar dos anos, sua experiência peculiar. Em 30 • LOUX , F . L e c o rp s d a11S la socié t é t rad it io n n e l l e, P ari s : Be r g er -L e vr ault ,
1979, Fra n ço is Loux tornou disponível um estudo de referência 1 979.
31 • Cf. os estudos de ROUGE T , G . La m ue iq ue et la t ra n se , Pari s: Gall ima rd, 1980 . •
23 • HEWES, G. World distributio n of certa in postura l habits. American Anthropolo- BASTIDE, R. Le r êue, la t ran se, lafo lie . P aris : Flammarion, 1972 . • Le can do mbl é

gist, n . 57, 1955 . de Bah ia . Paris /The Hag u e : M o u t o n , 1958. EL IADE, M . Le ch am an is tn e ou l es


t ech.ni q ues a rch atq ue s de I ' extas e . Pa r is : P a yot , 195 1. • Ross i , L Corp s et ch a ma -
29 • VIGARELLO, G.U11e h istoire c u l t u relle d u sp ort: t ech niqu es d 'h ier et d 'a ujou rd' n is m e . Paris: A r ma n d C o l i n, 19 97 .• PE RRIN , M. Les p rac t ic ien s d u rêv e. Pa-
I
Ij h ui, Paris: Revue EPS /Laffont, 19 88 . • Passion Sport. Paris : Te xtuel, 2000. ris : PUF, 1992.

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42 43

'..... l!
Françoise Loux notou o valor etnográfico dos desenhos ou das membros utilizados, ritmo ), a dim en são inter ativa (tipo de
en t o,
telas de J.-F. Millet que captava de imediato as atitudes e gestos d o '
m
. ção com o interlocutor, com o espaço ou com os o bijetos que
I.I1te ra , . . . .f' -
trabalho dos camponeses. Essas pinturas são hoje documentos para rn parte dele) e a dimensão Iirigu ística (gestos cuJa slgm icaçao
faze , . .d t ' . d d
a história. As técnicas do corpo desaparecem frequentemente Com é ind epen d en te d os r;r~pos:tos ~ os.ou a o con r arro que os es :?-
as condições so ciais e culturais que as viram nascer. A memória de A metodologia e rica e implica sirnultanearnente a observaçao
bra))- . , . did
uma comunidade humana não reside somente nas tradições orais di ta dos atores, o recurso a mumeros croquis apreen I os no
Ire ,. d lhada de v á
omento que ocorrem, a anahse eta a a e vanos ges t os, sua
e escritas, ela se constrói tam b ém na esfera dos gestos eficazes.
~equência, etc. D. Efron utiliza igualmente uma câmera que, em
O estudo sociológico das técnicas do corpo é uma via proveito-
seguida, permite que observadores estranhos a seu trabalho pos-
sa com a condição de esclarecer, para não cair num dualismo ele -
mentar, que mesmo sendo o corpo uma ferramenta, ele continua sam analisar as tomadas.
sendo o "fato do homem" e depende então da dimensão simbólica. A pesquisa re!ere-se a ~n::a popul~çã~ bast~nte ?r.and~ ~e ju-
O corpo n ão é nunca um simples objeto técnico (nem mesmo o obje- s "tradicionaIS" (85 0 sujeitos) e de italianos tra dicionais (700
d eu dif
to técnico). Além disso, a utilização de certos segmentos corporais sujeitos). D . Efron não tem d~ficuldades para demonstr~r as I e-
como ferramenta não torna o homem um instrurnento. Os gestos renças que marcam a gestuahdade dessas duas populaçoes, tes~~­
que executa, até os mais elaborados tecnicamente, in clu em signi- m u nho s da primeira geração de imigrantes. Astuciosamente utíli-
ficação e valor. zando a mesma metodologia, observa em seguida uma popula-
ção "americanizada" de imigrantes de o!igem judia (600 sujeitos ~ e
11 - A gestualidade italiana (400 sujeitos) de segunda geraçao. D. Efron constata entao
que a gestualidade carac;,erí.stica dos Jude:ls "tradicionais" e dos
A gestualidade refere-se às ações do corpo quando os atores se
encontram: ritual de s au d a ção ou de despedida (sinal de mão, ace-
judeu~ "america~i~ado.sr r dIfe~err: entr~,sI, o n:esn:o oco;,re para
os itahanos "rradicionaia e os italianos amencamzados . Inver-
no de cabeça, aperto de mão, abraços, beijos no rosto, na boca, mí- samente, a gestualidade das duas populações"assimiladas" de se-
micas, etc.), maneiras de consentir ou de negar, movimentos da gunda geração teve uma forte tendêr:ci~a a:semeU:~r-se à dos ame-
face e do co r p o que acompanham a emissão da palavra, direcio- ricanos. Condições diferentes de socialização modificaram profun-
namento do olhar, variação da d istância qu e separa os atores, ma- damen te, passado o tempo de uma geração, as culturas gestuais
neiras de to car ou de evitar o con ta to, etc. Um tr abalh o de Davis originais desses grupos sociais. O trabalho de D. Efron demor:stra
Efron, lançado em 1941 nos Estados Unidos", marcou a abordagem a ficção representada pela noção de raça utilizada pelos nazistas
sociológica ou antropológica da g estualidade. P ara opor-se às te- cu jo caráter metafísico e arbitrário facilmente é desmentido. Em
ses nazistas que naturalizavam a noção de raça com o intuito de de- contraposição às teses genéticas ou raciais, demonstra que a ges-
monstrar a superioridade ariana, até mesmo no campo elementar tualidade humana é um fato de sociedade e de cultura e não de na-
dos gestos (sobriedade, rigor, etc.), e estigmatizar a s populações ju- tureza congênita ou biológica destinada a se impor aos atores'. O
dias e mediterrâneas (afetação, infantilismo, gesticulação, etc.), D. nazismo ofereceu ao imaginário racista um terrível poder matenal
Efron pensou colocar-se no campo científico e estudar com p ar ati - que D. Efron, em 1941, sequer im a gin a a amplitude, não obstante a
vamente os gestos utilizados entre os imigrantes judeus originá- necessidade que sente de desarmar as pretensões dessas ideias. Os
r ios da Europa do Leste e os imigrantes originários do sul da Itá- nazistas desejam fazer dos comportamentos humanos o mais puro
lia. A determinação das diferenças culturais pela maneira de usar o produto dos genes, quando a sociologia mostra de maneira evi-
corpo é estabelecida segundo três co ord en a d a s: a dimensão espá- dente que o homem é socialmente criador dos movimentos d~ cor-
cio-temporal (amplitude dos gestos, forma, p lano de desenvolvi- po. O trabalho de D. Efron continua atual para as nossas sOCl. eda-
d es nas quais o imaginário da hereditariedade e da raça contmua
32 • EFRON, D . Gest u re, race and culture . The Hague /Paris : Mouton, 1972. a manter forte presença.

45
44
Em trabalho posterior, R. Birdwhistell mantendo u m rigor bem cadores cinésicos" que acentuam a interação social. Para Birdwhis-
menor devido, sem dúvida, à convicção de afiliar as sequências ges- teUnão é possível imaginar o significado de um gesto independen-
tuais a um modelo linguístico, voltou a atenção para a gestualida- temente do contexto da troca dentro de um sistema de equivalên-
de humana faz en d o-se o promotor da ciné sic a (estudo dos movi- cias, semelhante a um "dicionário de gestos", que a ssocia de m~­
mentos do corpo quando o corre a interação) . Na mesma linha tra- neira ingênua um significado a uma mímica ou a um gesto. O senti-
çada por D . Efron, R. Birdwhístell demonstra que cada língua in- do é construído conforme a interação avança. Por outro lado, ele
duz uma gestualidade própria. Observa assim, nos índios Kutenai leva em consideração a integridade do conjunto de gestos evitando
do Canadá, as modificações gestuais que, num mesmo indivíduo, assim o obstáculo, corolário do precedente, que consiste em isolar
acompanham a passagem da língua materna para o inglês. Ao ela- fragmentos corporais (a face, a mão, etc.) e estudá-los de modo au-
borar a cinésica, Birdwhistell partiu da hipótese que gestos recor- tôn om o e fora de contexto, presumindo a universalidade de sua ex-
rentes que participam da interação distribuem-se de maneira siste- pressão e de seu significado; Nisso reside o limite dos trab~lh?s.de
mática. O estudo d eles podendo as sim depender, segundo ele, de P . Ek m alL cuja abordagem e marcada pelo pressuposto bioló gico
uma subdivisão da linguística estrutural. Escreve: "Quando nossa que invalida o alcance e leva a. uma e~péci~ de"botânic~d~s en:o-
pesquisa coletiva aborda o estudo das cenas de interação, toma-se ções. Finalmente, para Bírdwhistell, nao existe comumcaçao riao-
evidente que uma série de movimentos, antes associados a artifí- verbal". Os movimentos da palavra e do gesto estão mesclados
cios do esforço de locução, apresentam características de ordem, num siste m a e não podem ser estudados isoladamente.
de regularidade, de previsibilidade. Foi possível então isolar, do
fluxo de gestos e movimentos corporais no qual estavam inseridos,
movimentos de cabeça, verticais e laterais, piscadas de o lho, leves 111 - A etiqueta corporal
movimentos do queixo e dos lábios, variações da posição dos om- Isolamos a etiqueta corporal da gestualidade ou da expressão
bros e do tórax, certa atividade das mãos, dos braços e dos dedos, d as emoções por simples razão de clareza na demonstração dos
enfim, movimentos verticais das pernas e dos p és":". O uso da lín- campos de estudo.
gua no ato da fala e o uso do corpo na interação revelariam os mes-
mos princípios de funcionamento . Interações implicam em códigos, em sistemas de espera e de re-
cip r ocida d e aos quais os atores se sujeitam. Não importam quais
Apoiando-se na linguística, Birdwhistell distingue, no fluxo in- sejam as circunstâncias da vida social, uma etiqueta corporal é u s a-
cessante de gestos, os kinemas (análogos aos fonemas, isto é, as me- d a e o ator a adota espontaneamente em função das normas implí-
nores unidades de movimento, ainda n ã o associadas a um signifi- citas que o guiam. Conforme os interlocutores, seu status e o con-
cado) e os kinemorfemas (menores unidades de significação)3-1. Re- texto da troca, ele sabe de antemão que ti p o de expressão pode ado-
centemente, Birdwhistell admitirá as dificuldades de fundar a gra- tar e, algumas vezes de modo desajeitado, o que está autorizado a
mática gestual que sonhara". Ele também trabalhou com os "mar- fa lar da p r óp r ia experiência cor poral. Cada ator empenha-se em
33 • BIRDWHISTELL, . R L 'analyse kinésique . Langages, n . 10 , 1968, p. 103 [trad. controlar a imagem que dá ao o utro, esforça-se para evitar as gafes
f L ]. Para uma apresentação do itinerário intelectual de Birdwhistell cf . que pod eriam colocá-lo em dificuldades ou induzi-lo a confus ão.
WINKIN, Y . La no utiell e com m u n icat ion , Paris: Seuil, 1981. Esse trabalho intro-
duz com a mesma pertinência os trabalhos de GOFFMAN, E.; BATESON, G.; Mas várias são as emboscadas q ue espreitam o desenvolvimento
HALL, E.T .; D . JACKSON; SCHEFLEN, A .; SIGMAN, S.; WATZLAWICK, P . re- ordenado da etiqueta: "Para começar, escreve Goffman, um ator
lativos ao mesmo sujeito.
pode acidentalmente dar a impressão de incompetência, de incon-
• BIRDWHISTELL, R . Lntroâuct ion to kinesics . Louisville: Uni v ersity of Louisville
Press, 195 2 . veniência ou de falta de respeito, perdendo momentaneamente o
• Id. Kineeics an d context oPhiladelphia: Universi ty of Pennsylvania Press, 1970.
So b re a gestualidade encarada como "ecossistêm ica e an tropo lógica": A .] ., KRISTEV A, J., CRESSWELL, R. e KOECHLIN, . B. In: Lan g ages , n ,
KOECH LIN, B. La réalité gestue lle des socié tés h u m a i n e s . Histoi - r e des 1 0 , 1 9 6 8. Sob re a antropo logia do gesto e o esta tuto d o corpo na co m u ru-
mceurs, 1. 2 . P a r i s : La P léiade, 1 9 9 1. • FEYEREISEN , P . & LANNOY,J. -D. de . cação, cf. LE BRETON, D . Les pas s io n s or dinaires - Anthropo logie des émoti-
Psychologie du gest e . Bru xelles : Mardaga , 1985 . Os artigos de GREIMAS, ons . Paris: Armand Colin, 1998 .

47
controle muscular. Pode tropeçar , cambalearr cair a r r ota r r b o cejar
.
ções dos interlocuto
tenlturas
re s. Hall estuda as proxemias d e diferentes
. Ies a, fr ancesa, Japon
.
co m e te r um lapso, s e coçar, peidar ou empurrar outr a p es so r
(porexemp Io: a 1ema, _ ing esa, america-
. d 'vertêrici
ma v e r ten cia. D epois,
. o a tor pode agir de tal modo q ue dá a POr .
- d . a Un- na e árabe), mas co nside rando-as co m o fo r m as de e spécies cultu-
press~o e m teressar-se muito ou m u ito p ouco à interação. POde n is com o S2 a h o m ogen eid ade reinasse sem problemas (defeitos) .
~agueJar, esquecer o que acaba de dizer, demonstrar nervosismo ra r d .
B all, qu e, no entanto, eiXOU ma rcas nas pesquisas sobre a in-
ficar co m. ar de culpa ou de embaraço; pode dar livre curso a in- . ' tercu lturali d a d e (mais talvez pelas r efle xõ e s q u e surgem dos seus
tempestivos _ acessos
. de riso ou de raiva ' ou outras man ifesta Çoes .
- livroS qu e pela sequência sem correções do seu método ou de suas
de emoçao que o impedem m omentaneamente de participar d análises), curiosamente não reconhece a divisão de classes, de gru-
interação">. a pos, de etnias, as culturas regionais ou religiosas, até mesmo as di-
Diante das rupturas de convenções, " tro cas restaurado ras" _ ferenças de geração . El e p ostula, a poiando-se im p lici ta m ente na
d . ' " po ideia de "nação" , uma unid a de cultural e ntre fr onteiras, ampla-
em Vir a rrururruzar a gravidade da infração às regras d e interacã .
desculpas, reações de humor, súp li ca s, ações evasivas, etc. É i::~ me n te desmentiàa pelo s fatos, e v iden temen te até mesmo nos Esta-
p ortante manter a linha e restabelecer uma acomodacão provisó na . dos Un id os, o que p o r outro lado observa em ou tr o s m omentos. A
• _ >

na situação. Os trabalhos de Goffman marcam esse campo de es tu - fraquez a de Hall consiste em trabalhar sobre uma espécie de média
d o p ela fineza da análise". Da mesma forma que in con s cie n te m en_ nacion al dos comportamentos p r o xêmicos . Pod e-se também notar
te o ator sab e acioná-las, sabe também decifrar, a té certo p onto, os a ruptura dos níveis d e análise, o recurso a u m a série de fatos pito-
e!e~entos q U,a se imperceptíveis que veem minimizar uma prop o- rescos que adquirem valor de demonstração, uma certa condes-
siçao, acentua-la ou mesmo contradizê-la à revelia d o locu to r . Des- cendên cia para co m a b iologia e eto logia animal. Entretanto, Hall
sa forma, os m ovimentos do corpo marcam a inclusão d a amb i- teve pap el important e nesse tipo de pesquisa apontando um dado
guidade no campo da comunicação. de interação que até então h a via passado despercebido".

As pesquisas de Hall sobre a proxemia, isto é, a utilizaçã o do es- Ou tros trabalhos colocar am em e vidência o apagamento ritua-
pa~o pelos atores quando ocorre interação, são ao mesmo tempo lizado sofrido pelo corpo no decorrer das interações ou ainda na
estimulantes e marcadas de limites. Na trilha d e sen sib ili d a d e dos vida social. A e xistência do corpo parece es ta r sujeita a um peso as-
trabalhos de Sapir e de Whorf, essas pesquisas ch a m a m a atenção sustador que os rituais devem conjurar, tornar imperceptível sob a
para o fato de que uma língua nunca é um simples decalque d o familia ri d a d e das ações. P rov a d isso é a discrição normal nos ele-
pens:mento e que, inversamente, ela condiciona a formação e a ex - vadores, nos transportes em comum ou nas s ala s de espera, quan-
pressao do pensamento. Hall amplia, co m muita razão, essa cons- do os atores, face a fa ce, e s fo rça m -se para, m utuamente e com um
tatação ao conjunto dos dados culturais. A experiência não é u m a certo desconforto, to rnar-se transparentes uns para os outros. Da
relação bruta com o mundo, podendo ser d ividida sem dificu l- mes m a forma acontece com o t ocar ou o ser tocado por um desco-
dades pelos atores de diferentes culturas. A manutençã o de u m a nhecid o, numa rua ou n u m corredo r, o que p rov oca inevitáveis
comu~:licaç~o es tá s ob a égid e de uma d eterminação cultur al qu e desculp as . O mesm o ocorre q u a ndo u m ato r é surpreendido pelo
pode induzir todos os equívo cos, in d e p en d e n te m en te das b o as in- outro numa atitude incongruente ou ín ti m a ou q u ando escapa um
arroto, uma flatulência, um ron co do e stô m a go. A dificuldade apa-
36 • GOFFMAN, E . La 111 ise e n s c en e de l a vie cotidicnne . T . 1. P a r is: M i n ui t 1 9 7 3 rece també m n o encontr o com um estrang eiro q ue não participa
p. 56 [t rad. f r .] . ' ,
dos mesmo s ritua is da so ciedad e q u e o acolhe, p r incipalmente das
37 • Por ~x e m p lo : Les rifes â'Ln t era ct ion . P a r i s: M ín u t , 1974 [t r a d . fr. ] . La m i sc
í

e n s cen e de la V1e quo ti di en n e: 1) La p ré se n t a t i o n de sai (Pa ris: M inu i t , 19 73


pro xe m ias . Nessas con d içõ es, a s imbólica corp o ra l perde momen-
[tr ad. fr.]); 2) L e s r el a t i o n s en p u b l i c (Paris: Mi n u i t , 1973 [ t r a d. fr .]) . L es tanea m e n te o poder de con juração . O corpo t o rna-se um inc ô-
m o t tnt le n h s e e P aris : S e u i I, 1 9 8 8 (trad . fr.).
u r s o m m e s , Fr a m e a in a l u s s :

a n ess a y on th e sO';lal organisa ti on of e xp erienc e. Ne w Yo r k : H a r p e r & 3Z • Cf. , por e xemplo, HALL , E. T. La dim eneio n cach ée, Paris : S e u i l , 19 71 [tr a d .
Row, 19 7 4 . Coll e c tt f : L e pa r ler frais d 'E r ui ng G offman . Paris: Min u it , 1989. fr. ] .

48
49

'-
m odo, u m peso. As esperas respectivas dos a to res não são m ais si- manifes t a çõ e s corporais a sso ci ad as à in tera ção, diferentes se-
métricas e deixam, ao contrári o, transparecer falhas . Os corp os dei- gund Oos g rupos sociais, a s classes d e ida d e, o sexo do ator, segun-
xam d e corresponder-se na imagem fiel do outro, nessa espécie de do seu pertencimento a grupos que d esen v olv e m m ane ira s d e
bloco mágico onde os a t o res apagam sua co rpore idade n a fa - se r específicas (de pendentes de drogas, prisioneiros, etc.).
miliaridade d os sinais e símbolos, ao mesmo tempo em que a colo- I Como para as técnicas do corpo, o aprendizado da etiqueta cor-
cam adequadamente em cena. Um desconforto emerge a cad a •
po ral, em amplitude e variações, depende muito pouco da educa-
ruptura das convenções de apagamento . A esse respeito, pode-se
ção for m a l. O m im e tis m o do ator e as identificações feitas em r e -
chamar a atenção para as dificuldades relacionadas com as pesSoas
la cão ao entorno imediato têm aqui papel preponderante. A ex-
que possuem alguma deficiência física ou sensorial, ou catalog a-
te~são co r p o r al da interação e stá impregnada de um simbolismo
das corno triss ôrnicas, " d éb e is" o u doentes mentais. Nesses atore s
específico para cada g r upo social e depende sobremaneira da
o corpo n ã o passa despercebido como m a nda a norma de d iscrição;
ed u ca çã o informa l, tênue demais para ser percebida e cuja efi-
e quand o esses lim ites de identificação so máticos com o o utr o n ão
caci d a d e pode, sobretudo, ser determinada.
mais ocorrem, o desconforto se instala. O corpo estranho se torn a
corpo estrangeiro e o estigma social funciona então com maior ou
menor evidência conforme o grau de visibilidade da deficiência. O IV- A expressão dos sentimentos
corpo deve se r apagado, diluído n a familiaridade dos s inais fu n - Em 1921, no [ournal de Psychalogie, M . Mauss publica " A expres-
cionais. Mas, com a simples presença física, o "deficiente" físico ou são obrigatória dos sentimentos" . No seu entender, os sentimentos
o "louco" perturbam a regularidade fluida da comunicação. Proi- não dependem nem da psicologia individual nem de uma psicolo-
bindo o próprio corpo, e le s suscitam o afastamento bastante rev e- o2Í.a indiferente. Tal como transparecem na extensão do corpo e se
lador da atitude de nossas sociedades para com a corporeidade" . colocam em ação nos com p or tam en to s, o s sentimentos são emana-
Raymond Fi rth estudou em detalhes as posturas e os gestos de ções sociais que se impõem por seu conteúdo e sua forma aos mem-
bras d a coletiv id a d e, colocados numa dad a situação moral. C on tr a
respeito, assim como os significa d o s a eles associados, de uma po-
os p re con ceito s contraditórios que desejam fa zer da emoção u m
pulação melan ésia, os T íkopia". Observou os diferentes órgãos co-
dado ou íntimo ou natural, M. Mauss sustenta a d imensão social e
locados em evidência, p o r exemplo, nos rituais d e saudação nos
cultur al dos sentimentos e de sua formalização no comportamen-
quais o aperto de mão dos europeus é somente uma modalidade
to d o ator. A ssim, longe de estarem liga dos u nicam ente à dor, os
entre outras d e entrar em contato. N os Tikopia u m a lev e pressão
p ranto s podem es tar a ss o ci a d o s a um momento preciso no rito de
no nariz do interlocutor, a s sociada a urna breve inalação, é o g es- saudaçã o . "Não são somente os prantos, escreve Mauss, mas qu a l-
t o inicial do encontro. Os rituais corporais de respeito envolvem a quer espécie de expressão oral dos sentimentos, não os fenômenos
vida d iá ria dos atores; diferem de uma sociedade p ar a outra, mas exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas os fenômenos so-
também representam o objeto de variações significativas no inte- ciai s, que são essencialmente marcados com o sinal da não espon-
rior dos grupos e das classes socia is de cada s o ci ed a d e . As manei- taneid a d e e da mais perfeita obrigação"~I.
ras de saudar, a distância observada em relação ao outro conforme
Para ilustrar seu pensamento, Mauss toma como exemplo urna
o grau hierárquico, a posição social, o grau de parentesco, a pos-
cerimônia funerária típica da sociedade aborígine australiana, evi-
sibilidade ou não de tocar-se (em que lu g ar ? de que maneira?), as
denciando que as manifestações dos sentimentos resp on d em a
uma certa temporalidade. Não são abandonadas à vontade dos
39 • A respeito do apagamen to ritualizado do corpo , cf . LE BRE TON, D . An t h ro-
pologie d u co rp s et mo dern it é. Op . cito
41 • MAUSS, M . L'expression ob liga to ire d es sen timen ts . Essais de s ocio logie . P a ri s :
40 • F IRTH , R . Po sture s a n d gest ures o f res p e c t. E ch a n g es et co m m u n i ca t i o n s : Minuit, 196 8 -1 9 69, p. 81. Cf. também GRANET, M . Le lang a ge de Ia douI eu r
mélang es o ffe r tes à CIaude Lé v i-Str au s s . The Ha gue /P a ri s: Mo u t o n , d ' apres le ri t u el fu n ér a i r e d e I a C h ine c1a s s iq ue . É t u des so ciologiq ues sur la
1972 . Chine. P a ris: PUF, 1953.

50 51
atores, ao arbítrio, mas inscrevem-se num código p reestabelecido Várias conduta s ap aren temente comandadas p or dados fis ioló -
d o qual o homem não pode se desviar. A conclusão de M auss abre 'cos, e dessa forma fugindo d o controle da von tad e ou da cons-
muitos caminhos: "Fazemos então muito mais que manifestar Os ~ência, também são b astante influenciadas o u até mesmo d ire-
sentimentos: manifes tamos a os ou tros, já que é necessário que lhes ~mente orientadas por dados sociais, culturais ou psicológicos. A
sejam manifestados. Manifestamos a nós m,esmos quando exp ri- dor é u m exemplo significativo. A atitude do ator diante da dor e
mimos aos outros e à intenção d os outros. E essencialmente uma inclusive o limite da dor ao qual reage e stão ligados a o te ci d o so-
simbologia" . cial e cultural no qual ele está inserido, com a visão do mundo, as
Os sentimentos que vivenciamos, a maneira como repercutem e crenças religiosas que lhe são próprias, isto é, a maneira como se si-
são expressos fisicamen te em nós, estão enraizados em n ormas co- tua diante da co m u n id a d e de pertencimento. "A dor, escreve René
letivas im p lí cita s . Não sã o espontâneos, mas ritualmente organi- Leriche, não é só o fato do influxo nervoso percorrendo o nervo
zados e significados visando os outros. Eles inscrevem-se no rosto, com uma determinada v elocid a d e; é também o resultado de um
no corpo, nos gestos, n a s posturas, etc. O amo r, a am izad e, o sofri- conflito entre o excitante e o indiv íduo por inteiro". É o homem
mento, a humilhação, a alegria, a raiva, etc. não são realidades em quem faz a dor conforme o que ele é. A def~ção de Leriche p:rmi-
si, indiferentemente transponíveis de um grupo social a outro. As te avaliar a parte pessoal do a tor na capacidade de percepçao da
condições de seu surgimento e a maneira co m o são simbolizad os dor. Ela evidencia os crivos sociais, culturais e psicológicos do in-
aos outros implica uma mediação sig n ifi can te. Entretanto, na tra- fluxo d oloroso. En t re o excitante e a percepção da dor, há a exten-
dição abert a pela obra de Darwin , Exp ression of the emo tions in man são do indivíd uo enquanto singu la rid ade e ator d e u m a d ada so-
and an ima ls (18 73), vár ios pesquisad ores vindos, na grande m aio- ciedade. A s n o rm as implícitas, escapando ao julgamento do in di-
ria, da etologia ou d as ciência s biológicas, trabalham assiduamen te
víduo, determinam sua relação com o estímulo d o lo r o so . Essa
nesse campo em p enhand o -s e p rincipa lm e nte em provar a u n i-
relação n ão responde a nenhuma essência pura, ela tra d u z uma re-
v e r sa li d a d e d a expressão das emoções. Paradoxo p r az er oso, es ses
lação infinitamente mais complexa entre as modificações do e qui-
pesquisadores não conseguem chegar a um acordo comum sobre o
número e a n a turez a dessas emoções. Se gund o eles, os vestígios de líbrio interno do corpo e os ressentidos p o r um ator que"apren -
animalidad e tr ansp arecem ainda n o hom em, prin cipalmente nos deu" a reconhecer essa sen sação e a relacioná-la a u m siste m a d e
movimentos expressiv os qu e seriam som ente emanaçõe s d o ins- sentido e valor. Como a fome e a sede, a d o r é u m dado b io lógi-
tinto . Essas afirmaç ões per si s te m a despeito d o desmentido de nu- co, m as d a m e s ma forma que não encontram em seu s p ratos
m erosos trabalhos o ri ginári os d a sociologia e d a antropologia. Mas sensações i d ên ticas, experimen tam a comi d a d e mod o difere n -
para qu e o sentimento seja experimentado e ex presso pelo ator, d e- te, d an d o-lh e signific açã o própria, o s h omen s n ã o sofrem d a mes-
ve perte ncer de qu alquer maneir a ao r epe rtó ri o cultural de seu ma maneira e nem a parti r da mesma inten sidade da a gre ssão.
grupo. A socio lo gia p ode d ed icar-se à descoberta desse conheci- Eles atribuem valor e significados diferentes à d o r conforme s u a
mento difuso que a travessa as m anifestações afetivas dos atores e história e pertenci m ento s ocia l.
contribui p ara a evidência d o vínculo social, graças à partilha de M ark Zborowski estudou num hospital americano as atitudes
uma simbologia que ca d a a tor tr a duz com seu estilo próprio, mas
em rela ção à dor d e diferentes grupos socia is : italianos, judeu s e
numa á rea d e reco nhecimento mú tuo".
americanos de fam íli a tradicional. Os doen tes italianos e judeu s re-
velam g rand e sensibilidade à d o r e atitudes muito caracterí s tic a s .
·12 • ELIAS. M. Human beings and t h e ir emotions . In: FEA THERSTONE . M . et
a l . The body: social proc ess and cultura l theory. Lon d on : Sage. I991. LU TZ . C. Unna -
São d e sc ritos pelos meios médicos como apresentando tendência
iural emot ions, C h icag o: University of C h ica go Press, 1988. H arré, R. (ed. ). The so- a "exagerar" e emotivid ade " excessiva". N o entanto, os d oentes ita -
cial co nsrruct ion of emot ion , Ox for d : Bl ac kw e l l, 19 68 . LEWIS. M . & SAARNI•. C.
Th e soc ialization of emotions, New Yo rk: Pl enum, 1985 . FRANKS. 0.0. &
lianos parecem m ais interessados pela d o r em si que pelo p roblema
MCCARTHY. G .O.M. The sociology ofetnotions , Creenwich , Con.:Ja y Press, 1989. LE do qual é o sinto m a . A partir d o momento que ela desaparece, eles
BRETON. O . Les passio ns ordi nories - Anthropologie des émotions. Paris: Arm a n d param d e reclamar e voltam a ficar bem-hurnorados . O s doentes
Colin, 1998.
jud eu s, ao contrário, recusam com frequência os analgésicos. N a

52 53
d or, o que lhes preocupa, s obretud o, é o mal d o q u al ela é o indíci
Mesmo com o término da dor, a agonia continua. M . Zborows~;
v - As perce p çõe s s ensoriais
atenta para o fato de que as duas culturas dão li vre curso a o senti_ A pesquisa s ocio lógica aplic ada ao co rpo n ão p o d e limitar-se
ment?" tanto p e la .p ala v r a quanto p e lo g e s to. O s italia nos ê: o s ju - som en te às ações do corpo, é preciso também considerar as corpo-
deus sentem-se li v res para falar da dor, para reclamar dela e para rificações do funcionamen to r e gular d o mundo . Entra mos então
manifestar seu sofrimento, gemendo, se lamentando, chorando por um domínio ambicioso e orig in al q ue p ermanece quase into-
etc. Eles não têm vergonha de se expressar". Ao contrário, os doen~ cado. George Simmel n o Ensaio sobre a sociologi a dos sentidos" abriu
tes de família tradicional americana ressentem "es toica m en te" um campo de estudo q ue apontava para a impo rtância da media-
dor; não se lamuriam e abandonam-se passivamente aos tratamen~ ção sensorial nas interpretações s ociais. " U m a consideração mais
tos das equip~s,;nédic~s às quais devotam total confiança . Segun_ rigorosa, enfatiza o auto r, evidencia q ue essas troca s d e sensação
d o Zborrrwskj, eles nao param de repetir que de nada adianta re- não são somente a base e a condição comum nas rela ções s ociais,
c~~m~r, g e m e r ou se lamentar". A g in do dessa forma, eles têm co n s- mas qu e cada sentido fornece, de acordo com sua característica
ciencia de reproduzir um modelo de comportamento reconhecido própria, informações específicas para a construção da existência
como "~mericano".M. Zborowski termina seu estudo explicando coletiva e que para cada diferença sutil de suas impressões corres-
q u e as ciifereriças de reações à dor encontram a razão de ser nas mo- pondem particularidades, relações sociais". Essa é a dimensão
d alidades distintas das relações mãe-criança que d istinguem esses mais enraizada na intimidade d o sujeito, a mais intocável; é aquela
grupos sociais». do claro-escuro, uma vez que drena o imenso campo sensório. De
uma área cultural para outra, e mais frequentemente de uma classe
Além d os estímulos im p lí cito s recebidos do grupo de pertenci-
social para outra, os atores decifram sensorialmente o m undo de
m~nto, cada ator r~age à dor com seu próprio estilo . Num grupo,
alem de uma maneira adequada de reagir, alguns têm fama de se- maneira diferenciada.
re m mais "duros" que outros ou mais " d eli ca d o s" e "sen s ív eis" . A configuração dos sentidos, a tonalidade e contorno de seu de-
Freque~temente essas diferenças apontam para a educação recebi- senvolvimento são de natureza não somente fisiológica, mas tam-
da e o tipo de relação afetiva mantida com a mãe. Em nossas socie- bém social. A cada instante decodificamos sensorialmente o mun-
?ades, o me~n:~ recebe uma educação com relação à dor ligada à do transformando-o em informações v isu ais, auditivas, olfativas,
Imagem da virilrdado, de força do caráter. Em princípio, os pais es- táteis ou gustativas. A ssim, certos sinais corporais escapam total-
forç~~-se.paraim~ediras tendências para a emotividade ou para a mente ao controle da v on t ad e ou da consciência do ator, mas nem
neglig ência. O mais depressa possível, ele deve assimilar as quali- por isso perdem sua dimensão social e cultural. As percepções sen-
dades que imaginamos serem as do homem; ao contrário t ole- soriais do homem do campo não são as do homem urbano, as de
ram?s. f.acilmente, e até mesmo encorajamos, as manifestaçÕes de um Tuaregue não são as de um Cuayaqui, etc. Cada comunidade
sensibilidade da menina: as lágrimas e os lamentos são menosad- humana elabora seu próprio repertório sensorial como universo
mitidos no menino que na menina, supostamente mais delicada. de sentido. Cada ator apropria-se do uso desse repertório d e acor-
A educação transforma assim as crianças em atores conformes à do com a sensibilidade e os acontecimentos que marcaram sua his-
imagem da mulher e do h omem em vigor na sociedade. tória pessoal.
As atividades perceptivas utilizadas pelo ato r durante a vida
são fruto do condicio n amento social. Assim, H oward Becker es-
43 tudou de que maneira um grupo pode modelar o aprendizado de
• ZBOROWSKI, M. People in pain . San Francisco: Joss ey-Bass , 19 69 . Cf. igu al-
mente SCARRY, E . The body i n p at n - The making and unmaking of the world. novas formas sensoriais no contexto do consu mo de maconha.
O xfo r d : Oxford Uni ver si t y Pr e ss , 1985 . • MORRIS , D.B . Th e cu l t u re of
pa in . Berkele.y : Univ ersit y o f C alifornia Pr e s s , 19 84 . • LE BR ETON , D. 44 • SI M MEL, G. Es sai su r l a so cio lo gie d e s s ens oS oci ol og ie et ép is t ém olog ie. Pa r i s:
Ant hro p o l ogle de l a d o u l e u r . P ar i s : Métailié , 1995 .
:j P U F, 1981 [trad. fr .].

I
I
54
55
Um jovem americano que fuma pela primeira vez, via de re gr a não VI - As té cn icas d e tratamento
sente nada, a n ão ser um ligeiro desconforto, um gosto m eio d esa-
gradável. Mas, lentamente, g raças à solicitude do grupo n o qual Referindo-se à etnia específica dos N aci rema, Horace Miner es-
está envolv id o, aos co nselhos que lhe são d a d os, aprenden d o de cre ve qu e " a cren ça fundamental que sustenta todo o si stema con-
maneira informal por uma espécie de bricolagem entre o que per- siste no sentimento de que o corpo humano é feio e que sofre de
cebe da experiência dos outros e o que dela imagina, acaba mo- uma tendência natural ao enfraquecimento e à doença . Aprisiona-
dulando as percepções sensoriais sentidas de acordo com um sis- do em tal corpo, o N acirema só pode esperar escapar à ameaça gra-
tem a de referência n o v o para ele. Pouco a pouco sua experiência ças aos ritos e ce rimônias apropriados. Para esse fim, cada casa tem
co m a maconha submete-se ao modelo de percepção oferecido pe- à disposição um ou vários relicários. Em suas casas, os indivíduos
los com p an h eiros . Ele está apto a reproduzir as sensações neces- mais poderosos da sociedade p ossuem vários d eles" . É provável
sár ias e, a partir daí, d ec odificá-las como sendo agradáveis. A s U
até que o status social mantenha uma correspondência direta com
sensações produzidas p ela m a co nha n ã o s ão automatica m ente, o número d·e relicá rios . Qu an to aos m ais desfa o recid os, tentam
nem mesmo necessariamente, agradáveis. Como para as ostras ou imitar os privilegiados se virando como podem, mas tudo indica
o Martini dry, o gosto para essas sen sa ções é socialmente adquiri- que cada família possua pelo menos um. O paradoxo consiste no
do. O fumante sente coceiras no couro cabeludo, te m sede, perde o fato de que, mesmo ocorrendo no in terior da família, os ritos asso-
sentido do tempo e das distâncias. Tudo isso é agradável? Ele não ciados à conservação obsessiva do corpo não deixam de ser muito
tem certeza. Para continuar a usar maconha é preciso que opte pela íntimos e secretos. "0 ponto focal do relicário é uma caixa construí-
assertiv a,,45. Qualquer aquisição de uma nova técnica é também da na parede onde são colocados todos os encantamentos e poções
a p ren d iz a d o sensorial: aprender a cozinhar (olfação, gosto, visão), mágicas sem os quais nenhum dos indígenas poderia sobreviver".
a escalar rochedos (t ocar, etc.), aprender a toca r um instrumento H . Miner descreve também os curiosos estratagemas empregados
(au d ição, etc.), etc. Ao mesmo tempo em que se manifesta, a expe- para fazer escoar do centro do relicário a " água sagrada" para que
riên cia corporal modela as percepções sensoriais pela integra- cada um possa entregar-se às purificações salvadoras. Um corpo
ção de novas informações. de sacerdotes é especialmente designado para cuidar da proteção
da água para que se mantenha livre de qualquer sujeira. Há tam-
Percepções de co res, gostos, sons, grau de afinamento do toque, bém o horror patológico e a fascinação que os indígenas dedicam à
limite da dor, etc. A percepção dos inúmeros estímulos que o corpo boca. As emanações desta têm fama de exercer a pior influência
consegue recolher a cada instante é função do p ertencimento social possível sobre relações sociais. Sem os rituais da boca que cerceiam
d o ator e de seu modo particular de inserção no sistema cultural. as ameaças, eles temem que os dentes caiam, que as mandíbulas se
O u tros trabalhos co locaram em evidência as estruturas sensoriais contraiam, que os amigos os abandonem, E1 os amantes se afastem.
d a v ida cotidiana" , o u então se dedicaram ao estud o de reairnes
o Teríamos rapidamente reconhecido a etnia Nacirema com mores
sen soriais específicos" . tão próximos dos nossos" .
45 • BEC KEK H. Comment on d e v ient fum eur de ma r ij ua na . Ou t-s i d ere - Ét u de s Outro capítulo da sociologia do corpo consiste nos tratamentos
d e s o c iologie d e l a dév iance. Par is : M éta i l i 1985 , p . 75 [tr ad . fr .] . Hi s -
é ,
dispensados ao corpo. Sabe-se que as condutas de higiene e as rela-
t o r y , culture and s ubject ive expe r ie n ce : a n ex plora ti on of s oci al b a s e s o f
drug - i n d uce d ex per iences. [ournn l of H ealt /z and Social Bc hauior , n. 2, 196 7 . ções imaginárias de limpeza ou de sujeira são profundamente he-
46 • LE BRETON, D . Anthrop ologi e du corps et mod crn it é. Op . ci t.
tero gên eas quando passamos de uma sociedade e de uma cultu-

ra para outra, de uma classe social para outra. Frequentemente as
o Por exemplo, WINTE R, R . Le livre des ode urs, Paris: Seuil, 1978 [tra d . fr.] .•
MON T A G U , A . La peall etle touch er. Pa ris: Seuil, 1979 [t r a d . fr. ]. • C LASSEN,. C.
W orlds of s e n s e , London: Rout ledge . • HOWES , D . Th c oa riet ies of sen soru o f sme ll. L o n d o n: Rout ledg e, 1 9 9 4 . • MÉCH IN, C . et a l . Allt/zropologie d u
ex pe n ellce: a sourcebooks in the a n th r o p o lo g y of the sen ses . T o ronto : Uni ver- s en so r ial - Les se ns dans t o u s le s s ens oParis: L'Harmattan, 1998.
s ity of Toronto P ress, 1991. • LE GUEREK A. Le pouuoir des odeurs . Paris: [ acob, 48 • MINER. H . Bod y rit ual a m o n g th e N a ci r e ma . A m e r i ca n A ri t h r o p ol o g i s t
1993. • CLASSEN ,C. ; HO WE S, D. & S YNNOTT, A . A roma - T lze cu lt llral/zisl ory n . 58 ,1956. o '

56 57
condutas de higiene incentivadas nas sociedades ocid en tais são considerada frágil, correndo o risco de abrir sob o efeito da ensabo-
marcadas pelo domínio do modelo médico. Uma visão d o mundo ação muito forte . Por outro lado, acreditava-se que esse espaço era
que mais ou menos corresponde às condutas quotidianas das po- poroso, podendo ser facilmente penetrado pelo "verm e da cabe-
pulações de classes médias de nossas sociedades, e correspon de ça" : a meningite. A camada de sujei ra era r ep u ta d a para proteger a
menos àquelas das camadas populares que frequentemente fun- criança dessas formas virulentas de adversidade. Também é preci-
cionam, não na ausência da higiene, mas em outra relação com hi- so lembrar que a sociedade rural da época não era hostil às emana-
giene e a prevenção. Problemáticos em nossas próprias socieda- ções do corpo como somos hoje em dia. Um sistema simbólico en-
des, os critérios de limpeza e de sujeira e as condutas coletivas de volve a atitude dessas mães tornando-a compreensívelv.
higiene são ainda mais insólitas no contexto das sociedades não
ocid en tais . Nessas condições e, por exemplo, nas cam p anhas de A pesquisa sociológica pode assim abraçar o conjunto das técni-
ação sanitária promovidas em populações culturalmente muito di - cas de tratamento da corporeidade: os tratamentos corporais nas
ferentes, é conveniente temer as proje ções, os pressupostos p ron- divers as fo r m as que se fazem o u de maneira privada (banho, toale-
tos para uso que desconhecem as representações sociais locais, te, etc.) ou pública (cabeleireiro, manicura, tratamento facial, etc.) e
os sistemas de prevenção autóctones baseados em outros dados, os diversos valores que lhes são associados conforme os grupos
e as classes sociais.
como as tradições locais de curandeirismo. As atitudes ocidentais
negligenciam frequentemente os sistemas simbólicos que dão o con-
torno e o sentido à vida coletiva de comunidades humanas afas- VII - As inscrições corporais
tadas de nosso modo de existência. Mas, os comportamentos de hi- A marcação social e cultural do corpo pode se completar pela
giene particulares às nossas sociedades também repousam sobre escrita direta do coletivo na pele do ator. Pode ser feita em forma de
uma simbólica do limpo e do sujo, do propício e do nefasto; elas remoção, de deformação ou de acréscimo. Essa modelagem simbó-
também são culturalmente condicionadas. lica é relativamente frequente nas sociedades humanas: ablação
As práticas de higiene são frequentemente incluídas na ideia de ritual de um fragmento do corpo (prepúcio, clitóris, dentes, dedos,
prevenção. Em sociedades que ainda escapam à modernidade, ou tonsura, etc.) marcação na epiderme (escarificação, incisão, cicatriz
nas camadas populares de nossas sociedades, os modos de preven- aparente, infibulação, modelagem dos dentes, etc.); inscrições te-
ção dependem da cultura comum e suas exigências são lembradas gumentares na forma de tatuagens definitivas ou provisórias, ma-
quiagem, etc.; modificações da forma do corpo (alongamento do
pelos mais velhos. Orientadas pela perspectiva médica, ao contrá-
crânio ou do pescoço pelo procedimento de contenção, deformação
rio, a prevenção e a higiene são impostas do exterior às p opulações
dos pés, constrição do ventre por bandagem apertada, "engorda"
que não compreendem absolutamente sua razão. Só dar banhos ou emagrecimento, alongamento do I óbulo das orelhas, etc.); uso
em crianças nos finais de semana, por exemplo, pode parecer estra- de jóias ou de objetos rituais que deformam o corpo: anéis de jun-
nho para o indivíduo que possui uma visão médica da higiene. co e pérolas que provocam, com o crescimento do indivíduo, um
Françoise Loux lembra que no final do século XIX, em famílias po- alongamento do pescoço, inserção de discos nos lábios superiores
pulares no meio rural, as mães tinham o hábito de não lavar a cabe- ou inferiores. O tratamento dos cabelos, ou mais geralmente do sis-
ça das crianças. Os agentes sanitários da época revoltavam-se con- tema piloso, é um outro tipo de marcação corporal sobre o qual o
tra aquilo que consideravam ser uma negligência condenável e até coletivo tende a exercer um controle rigoroso.
mesmo uma indignidade das mães. De fato, para essas mulheres Essas marcas corporais preenchem funções diferentes em cada
era questão de uma ação preventiva: a cabeça da criança, e o restan- sociedade. Instrumentos de sedução, elas são ainda com maior fre-
te do corpo evidentemente, mas, sobretudo a cabeça, não era lava-
49 • LüUX, F . An thropo logi e et soins a ux enfants. AI1 t h r o p o l og ia medica , n.
da porque lá estava, a seu ver, a zona vulnerável da criança. Er a 3 , 1987 .• Le j e u n e e nfa n t e i 5 0 11 co r p s d a n s la socíété t ra d i ci o n n e l l e , Paris:
preciso protegê-la com uma espécie de segunda pele. A moleira era Flammarion,1978.

58 59
quência um m odo ritual de afiliação o u de separação. El as inte- dos com o aparecim ento d a d <:.en ça . Ban~l nas :pesqu~s as etn~g~á~i­
gram simbolicamente o homem no interior da comunidade, do clã s nas quais essa co nstata çao deu o n gem a noçao de e fi c ácia
separando-o dos homens d e outras comunidades ou d e outros clã~ Q
·rnbóli ca, parece que numerosos pesquIsa . d ores d etem-se no
ft

e ao mesmo tempo d a n a turez a que o cerca . Ela s humanizam o ho - ~:rnite d e nossas soci e d a d es, não percebendo nelas o exercício da
mem coloc and o-o socialmente no mundo, com o ocorre com os Ba- lficácia simbólica e só percebendo a " ob jeti v id ad e" da eficácia m é-
fia da África Ocidental que afirmam não poder distinguir-se dos ~ica. Corno se a cultura não mais existisse em se tratando de socie-
animais da selva sem suas escarificações. Elas reproduzem o sta tus I dad es ocidentais, a racionalidade tendo tornado obs o leta a sua
social, o u mais especificamente matrimonial, num mundo legível presen ça. Sem dúvida estam?s diante d e u m proble:na. Tanto a
por todos. Podem também recordar, como uma memória o rg ân ica, etnologia como a an tropolo g ia tr az em a comprovaçao de outros
o lugar da pessoa na linha g em dos ancestrais. Chamam a aten ção p rocedim e~tos terapêuti.cos, tam~ém ;f~caz;s n o contexto em q~le
para os valores da sociedade e o lugar de cada um na estrutura so- estão in scn to s. O conhecimento biom édic o e, por o utro lado, obJe-
cial". N ossas s o ciedades ocidentais só conhecem as versões ate- to d e debates contra d itórios nos m eios da p sicologia ou da me-
I I n uad a s da marcação corporal: tatuagem, maquilagem, p or exem- d icin a . E grande núm e r o d e pesso as e scolhe o u t r a s vias t e ra -
IJ plo; ao contrário das sociedades tradicionais, eles propõem em p êu ti c a s, liga d a s, po r exem plo, a o r amo das m edicinas d itas
contrap ar tida grand e v aried ade de tratamentos para cabelos (even- paralelas.
tualmente o tingimento) ou para sistema piloso. O rosto d o h omem
p ode, a ssim, e s tar com bigode, barba o u b arbeado.

V III - A má conduta corporal


As vari a d as traduções físicas (comportamentos ou sintomas)
da doença, da loucura ou do desespero, por exemplo, podem se r
aqui analisadas. Embora tenham u m estatuto paradoxal, aparecem
como emanações do último flange d a sim b ó li ca social. O s modelos
de má conduta colo cados em evidência por Linton ou D ev ere u x le-
vam em consideração, de maneira b a st an te aprofundada, as mo-
dalidades d e expressão corporal de origem cultural. Aqui também
um trabalho apaixonante pode ser posto em prática, num campo
ainda amplamente em construção".
Muita coisa se falou sobre a psicossomática e foi colocada em
evidência a ambiguidade que pesava sobre o termo. N u m a pers-
pectiva bem diferente, n ós propusemos a noção de fisiossemân-
tica". É conveniente dizer que é o h o m em que está doente e que
assim o social, o cultural e o relacional podem estar com p ro m eti-
50 • Vic to r ia Elb in . Cor ps de cor és . Pa ris : Ch êne , 1979 [ tr a d . fr. ]. • CL ASTRES, P .
De la to rt u r e da n s l e s s o c i é t é s p rimiti v e s. La soci ét é co n t r e ['Étal. Pari s :
Min u t , 19 7 4 .• BR AI N , R. The decorat ed body. N e w York : Harp e r & Ro w,
í

19 7 9 .
51 • Cf., por e x emp lo, EHRE NBERG, A. La f at igu e â'ê t re soi. Odile [ acob , 199 8 . O u
a i n d a KLEI NMANN , A . So uffr ir , soig ne r, v iv re. Paris : PUF, 1990 .
52 • LE BRETON , D . A n thropolog ie du corps et mod ern it é, O p . cito

60 61
Capítulo V 1 a tradução fís ica dos sentimentos experimenta d o s p elo ato r,
~~~m dependen te s d e m e can ism os b iol ógicos universais e inatos.
Campos de pesquisas 2: A ob ra-mestra da so ciobiolo g ia aparece em 1975 escrita pelo en-
tornologista E. Wilson (SociobioIogy: the new sy nthesis. Harvard Uni-
Imaginários sociais do corpo versity Press) . Wils on desejava estabelecer um "estudo sistemático
doSfundam en to s biológicos d e todos os comportamentos sociais" .
"À ideia segundo a qual as significações são constituídas no plano
Outros campos de aplicação da sociologia do corpo depende m social, resume Marshall Sahlins, opõe-se a ideia q ue as in ter a ções
por su a vez de outra raiz epistemológica: r eferem-se muito m ais human as são determinadas no plano b iológico; o qu e resultaria es-
às representações e aos valores ligados à corporeidade e trans- sencialm en te, na perspectiva evolucionista, em u m a propensão
formam o corpo num inesgotável reservatório de imaginário so cial. dos genótipos, tomados isoladamente, a maximizar a chance de re-
Tom a rem os alguns exemplos de trabalhos nesse campo . produ ção"53. A inteligibilidade d a ação humana, n ã o estando en-
raizada na dinâmica do li ame social, deveria ser simplesmente
1 - uTeorias" do corpo pes quisad a n o cérebro do h omem. "Somente q uando seu mecanis-
mo for, n o n ível da cé lula, inteiramente desmontado no papel e em
As representações tentam identificar o co r p o, determinar as seguid a reconstruído, é que propriedades, tais como a emoção ou o
ligaç~es com o ator que personifica (relações alma-carpa-espíri- julga m ento ético, poderão ser esclarecidas". W ilson revela em sua
to, psique-soma, etc.), distinguir as p artes que o com p õem e as fu n- conclusão uma fantasia p olítica que vislumbra dar p lenos poderes
çõ es recíprocas, isto é, a fisiologia simbólica que as estruturam e aos biólogos. Segundo ele , o importante é construir "u m código éti-
que tenta, por fim, dar nome aos con sti tuin tes e às suas ligações co gen eti cam en te correto e, por isso mesmo, perfeitamente equi-
com o meio social, cultural e cósmico. Teorias do co rp o, de certa tativ o" . Sonho de plenipotência que faz ao mesmo tempo sonhar
forma. Sem esquecer do estudo da m aneira como os atores se apro- e in qu ietar . Deixar a iniciativa da ética social aos genes e aos ge-
priam desses conhecimentos, muitas vezes de m odo rudimentar ne ti cistas não parece de fato nem u m pouco prudente.
m~s suficiente para que tenham o sen ti m ento d e saber do que sã~
feitos e de compreender m elh o r a dimens ão v iv a de sua carn e. N os O s sociobiólogos e numerosos etólogos transferem p ara o fa to
d etiv em os longamente nesse te m a no p rim e ir o capítulo para fa- social, sem correção alguma, os resultados obtidos com os estu-
zer notar a ambiguidade ligada à noção de corp o e a diversidade dos sobre animais (R. Ardrey, D . Morris, L Eibl-Eibesfeld, K. Lo-
de su as definições nas sociedades humanas. renz, etc.) . O sistem a simbólico das relações entre atores, o funcio-
na m ento coletivo das comunidades humanas I
estão, a seu ver, sob a
estr eita dependência de uma programação genética, determinada
11 - Abordagens biológicas da corporeidade
duran te o desenvolvimento da filogênese, fazendo da cultura um
Alguns discursos pretendem abranger as ló gi cas corporais e a simp les artefato do biológico. A dimensão simbólica representaria
condição humana sob a perspectiva biológica e até mesmo neuro- som en te um decalque, no plano social, de u m sistema de disposi-
ló gica ou genética. A corporeidade é a partir daí subordinada a ções genéticas que se imporia ao homem em qualquer direção. Esse
uma n atureza. Essa é a orientação de uma so ciologia que se situa sistema representando o produto passivo dos genes herdados dos
nessa perspectiva, em antagonismo radical com a sociologia do p ais, eles próprios dominados pelos genes de sua espécie. Para mo-
corp o . Os trabalhos inscrevem-se na tradição d arw inian a aberta dificar a organização social ou para transformar as ca r a cterísticas
por The expression of the emotion in man and an imals lança d o em 1872.
Os usos do corpo principalmente em sua dimensão facial ou ges- 53 • SAHLINS, M. Critique de la soc iooiolog ie - Aspects an thropo log iques. Pa ris:
Gallimard, 1976 , p . 13 ( t rad. f r. ) . Cf. igualment e L E BRETON, D . Les p as s i -
0115 ordinaires - Anthropologi e d es émo ti o n s . Paris: Armand Colin, 1998 .

62
63
d o homem, a única intervenção eficaz seria interferir no patr imô_ '1 stralll os cas os das cri anças chamadas"selvagens" ou simples m en-
n io g en é tico para orientá-lo de um modo d iferente. Sem alardes, o~ 1eUas diferen ças significati v a s de r elações com o mund o d as "se-
sociobió logos colam um e squema animal no h o m em sem se ques ~ndas gerações " em relação a seus p ai s n os p aí ses d e mig raçã o.
tioriar sobre as diferenças estabelecidas, entre os dois reinos, atra A crian ça que nasce n a Floresta A mazô nica, num a maternida-
vés d a mediação cultural introduzida pelo próprio homem. 'r- de d e Estrasburgo ou de Tó q uio d ispõe das mesmas potencialida-
Diante da complexidade e da plasticidade da con d ição huma_ · ·~ '.' o des, das mesmas capacidades para aprender. Sua in serção em um
na, a soci ob io lo gia é obrigada a privilegiar argumentos imp ositi_ ,L • • o grupo social desenvo lve, sozinha, suas d isposições num sentido
vos oriundos do im agin á rio biológico. Ela afast a a p reoc u p ação de oUou tro de ac ordo com a educação que re ceb e . A única univ ersali-

If
o

observar o homem real que v ive em dada sociedade num dado m o" dad e consiste na faculdade de mergulhar na or d em s imbólica da
mento; de fato, p refere o estudo dos mecanismos neurológicos do s sociedade, ela é esse priv ilégio d e m an ife st ar-se co m o u m ator num
comportamentos ao estudo das relações do homem com o mun do. r mundo d e si gnificações e de v alores que nenhuma cultura esg ota .
Prefere os mecanismos muscu lares às ações da corporeidade hu- A condição do h omem (e tam b ém a ex tensão fís ic a de sua rela ção
mana. Para evitar encontrar a complexidade da troca das significa- com o mundo) está sob a égide do u niv erso d e sentido s q u e a dere
ções sobre a qual se funda a condição social d o homem, ela p re fere a ele e m antém o vín cu lo social.
falar de troca de "informa çõ e s" co m a vantagem, bem considerável A sociologia d o co rpo a ponta a impo rtância da relação com o
na sua opinião, d e assim d isso lv er a dimensão sim b ó lic a e de poder outro na fo rmação da co rporeidade; constata de fo r ma irres tri ta a
comparar a s trocas de célula p a ra célula com as existen tes entre os influ ên cia dos pertencimentos culturais e sociais na elaboração da
homens vivos, como se fo sse questão de estar tratando da mesma relaçã o com o corpo, mas não desconhece a adaptabilidade que, al-
ordem d e fatos. A lém deste empreendimen to d e dissolução do sen- gum as vezes, permite ao ator in tegrar-se em ou tra sociedad e (mi-
tido e do v alor, a socíobiologia, para justificar sua p erspectiva, deve gração, exíl io, viagem) e n ela construir, com o passar do tem po, suas
também fazer v ista g rossa às formidáveis v aria ções culturais (ou até maneiras de ser calcadas em ou tro modelo. Se a corporeidade é ma-
mesmo pessoais) que pincelam o espaço social com suas incontáveis téria d e símbolo, ela não é u m a fatalidade que o homem deve assu-
particu lari d a d es. "No h omem , escrev e M . Sahlins, as m esm as moti- mir e cujas manifestações ocorrem sem que ele nada possa fazer . Ao
v a ções inter v êm em diferentes fo rmas culturai s, e as mesmas for- contrário, o corpo é objeto de u ma cons tru ção social e cultur al.
m as fazem in tervir motivações d iferentes. Na ausência de co rr es-
pond ência invariáv el entre o caráter da so ciedade e o ca ráter h u m a-
no, n ão p o d eria existir aí d eter m inismo b iológico" (p. 38). 111 - Diferença en tre os sexos
A socio logia d o corpo, se p erm an e ce no campo epistem ológico O homem possui a faculdade de fecundar a mulher enquanto
das ci ências socia is, s ó pode o por-se energ ica m en te à sociobiol o- est a conhece menstruações re g ulare s, carre g a em si a criança que
gia qu e te m a intenção de to rn ar o homem o p roduto do corpo, fun- coloca n o m undo e em seguida aleita . Aí estão os traços estruturais
dando e ste ú ltimo co m o natureza. Os tr abalhos d e orientação so - em torn o dos quais as sociedades humanas ac rescentam infinitos
cioló g ica d emonstram que a s ações do cor po ao longo da existên- de talhes para definir socialmente o que significa o homem e o que
cia do homem, ao contrário de serem artefato s da org anização bio- significa a m ulher, as qualidades e o status respectivo que enraízam
lógica e instintiva, obedecem muito mais à simbólica social e cultu- suas relações com o mundo e suas relações entre si.
ral. Não há bases instintivas para a conduta hum an a tal como a vi - O fato d e o cor po não ser a m a rca fatal do pertencimento bioló-
v enci ada por qua lq uer família q u e a dota u m a criança vinda de ou- gico está exem plifica d o p elos Nuer, para quem s omente as mu-
tra sociedad e, ou co m o v erifica do por n umer oso s trabalh o s etnoló- lheres que podem p a r ir são realmente consideradas como tal. A
gicos q u e descrevem a extraordinária v a ri a ção das con d u tas h u- mulher e s t éril é vista como se foss e u m h omem; pode ter u m a
manas em outras s o cie dad es e em outros tem p os, ou tam b ém como ou v árias e spos a s se tiv e r m e ios par a pagar os dotes. Suas mu-

64 65

o.(.
lh eres p odem se r fecundada~ p o r parentes ou amigos, ou até Ines_ ais estão sujeitos os sistemas educativos e os modos de vi d a. Ex is-
mo por um homem d e uma tnbo subordinada aos N u er (os Dink ;:além disso, uma inte rpretação social das d iferenças, uma moral
-
E sse h ornem r:ao , . d . a).
sera o,genltor a cnança; a mulhe r será conside_ ue as desenvolve e que confirma o h omem e a mulher no estatuto
rada co mo p ai e g ozar a de todas as p rer r ogati v as sociais atrib ' qara o qual estão designados. Em nossas sociedades, por exemp lo,
-
d as a essa fu nção».
UI-
fan to a menina como o menino p odem ser educados conforme
Um passeio pelo espaço etnográfico multiplicaria os exempl urna p re d e stin a çã o social que, d e an tem ão, lhes impõe um siste-
U m a obra clássica de M. Mead, Sex and temperament in three prim ~~" ma de ati tud es que corresponde a os estereótipos sociais . Um estu-
ves societies (1935)55, expôs a relatividade cultural do estatuto d 1- do de E.-G. Belotti lançado em Milão em 197456 observa o compor-
sexos e das qualidades que lhe são mutuamente atribuídas. Pos tamento social diferenciado exercendo-se sobre a menina e o me-
meio de uma investigação d e três sociedades da Nov a Guin é e~r nino, pela educação oferecida pela m ãe, pelo p ai, retomada em se-
pro_cura discern~r " a p~rte d as construções do espírito em co~pa~ guida pela escola mate rnal ou pela es co la primária, reforçada ain-
raçao co m a realidade dos fatos b iológico s sexuais". Nos A rap esch da pelos jo gos e brinquedos com os quais as crianças se divertem,
e n os Mundugumor, mesmo que os papéis atribuídos aos homen as parlen d as, etc. A configuração d istintiva dos sexos prepara, se-
e às mulheres sejam diferentes, não se percebe entre eles n enhum s gundo Belotti, o homem e a mulh er para um papel futuro depen-
d iferença de temperamento. "Q u alq u er pensamento está afastadoa dente dos estereótipos do feminino e d o masculino. Esse encora-
escreve M . M ead, restam traços... da categoria da dominação, da jamen to para a doçura do lado feminino tem em contrapartida do
bravura, da agres~ividade,da objetividade, da m aleabilidade, que lado m ascu lin o o encorajamento à virilidade. A interpretação que
possam estar associados a um sexo em oposição ao outro" . "Os Cham- osocial faz da diferença dos sexos orienta as maneiras d e criar e edu -
buli, em compensação, nos deram uma imagem invertida do que car a criança segundo o papel estereotipado que dela se espera.
se passa em nossa sociedade. A mulher é o parceiro dominante, ela Pare ce, no entanto, que as atitudes mudaram, mesmo que os es-
tem a cabeça fria e conduz o barco; o homem, dos dois, é o menos
tereóti p os continuem a exercer sua fascinação, por exemplo, na pu-
capaz e o mais emotivo" . As características físicas e morais, as qu a-
blicidad e . Seria necessário a esse respeito avançar os estudos com
lidades atribuídas ao sexo, dependem das escolhas culturais e
contemporâneos para verificar as incidências do movimento fe -
sociais e não de um gráfico natural que fixaria ao homem e à mu-
mini st a sobre as atitudes e as representações atuais".
lher um destino biológico. A condição do homem e da m ulher n ão
se inscreve em seu estado corporal, ela é construída socia lmen te. Um trabalho exemplar de E. Goffman expõe a expressão da d i-
Como escrevia S. de Beauvoir, "não se nasce mulher, torna-se mu- ferença sexual tal como é exposta n a publicidade. A ritualiz a ção
lher". O mesmo ocorre ao homem. excessiv a dos estereótipos ligados à feminilidade em r elação ao ho-
Mesmo que as diferenças de altura, peso, longevidade, etc., pos- mem faz uma dublagem daquela que a vidaI quotidiana nos oferece
sam ser observadas de acordo com os sexos, em dada sociedade atra vés d os " id io m as rituais" que regem as relações entre os sexos.
NA maioria d as publicidades em que atuam homens e mulheres
não é menos v erdade que na prática da v id a quotidiana d os a tores
não se trata de uma lei intocável, mas de tendências. Em outras so- evocam de modo mais ou menos aberto a divisão e a hierarquia
ciedades há v a ria ções nem sempre desvantajosas para as m u lhe- tradicio n a l entre os sexos" . Assim, a mulher encontra-se frequen-
res. Parece que certas d iferenças físicas estatisticamente encontra- temente em p osição subalterna ou assisti d a enquanto que o homem,
das entre homens e mulheres dependem muito mais do sistema de de altur a m a is elevada, a ampara n u m a atitude de proteção que
expectativas sociais que lhes atribui preferencialmente papéis ao s 56 o BELOTTI, . E.-G . 011 côté des petites filie s. Par is : Éd . des Fernrnes, 1974 [tr a d . fr .] .
f I
oPALCONNET, G. & LEPAUCHEUR, N. La f abricat ion des mâles. Paris : Seuil,
1975 .
54 o E VA N S - P RI T C HA R D , E .E . Pa renté et ma riag e ch ez les N uer. P a r i s: Pa y ot ,
19 73 [ t r a d , f r .]). 57 o Cf., d e m aneira mais a bra n gen te HÉRITIER, P . Ma s c ul i n -fe m i n un - L a p en sée
d e la diffé r e n ce. Paris: [ a cob , 1996 . o NA H OUM -G RA P P E, V . Le f érn ín in , Pa-
55 o MEAD , M . M au rs et s ex ual ité en O cé an ie , Par is: P lon , 1 9 63 [t r a d . fr} , ris : H a chet te, 1996.

66 67
engloba tanto a esfe ra p rofissional quanto a fa miliar e am Nos anos 1970, o d eba te s obre a sexualidade, a contr acepção, o
- orosa A
relaçao que a mulher tem com os objetos parece obedecer a ' -- do. I b I' . d . d
. d . um lllo_ abar to, etc ., reve ou o s em ates p o Iti COS o s quaIS o corp o a mu-
v im en to e ca rinho, ela toca com doçura infinita o frasco de lher podia ser objeto . E paralelamente, o do h ome m.
m e ou ~ aga~alho do ma~ido. ~as, a mulher também pod~:~::
ta r-se sImbo.hcamente da mteraçao, conformando-se com a Condu_
ta a tomar d itada pelo h o m em : abaixar os olhos juntar as -
IV - Corpo, suporte de v alore s
. ' maos o
cobnr com. te rnu r a o r o s to com as m ãos " Por exemplo oJ'oelh o IeVe_u Num artigo sobre a preeminência da mão direita, Robert Hertz
I mente. flexioriado, a cabeça inclinada
. . ' um sorriso, etc ., são al gulllas bríu um campo de estudos sobre a representação e os v alore s as-

II marterras de marcar SImbolIcamente a suave submissão ao h


.
-
' .
cuJ a presença e sugenda de m odo alusivo. Cobri r d elica d a m
com a mao um rosto sorridente ou alegremente surpreso é u m
~~ _
om ern
ente
ges-
:ociados às parte s do corpo humano ou ao próprio corpo humano.
"À m ão direita, escreve, são le vadas as honras, as designações li-
sonjeiras, as prerrogativ as. Ela age, ordena, pega. A o contrário, a
to que _acre"'L~nta seduçao a o mesmo tempo em que im ita a frágil mão es qu e r d a é d esp r e z a d a e reduzida ao p a p e l d e simp les auxi-
proteçao de SI mesma quando a emoção transborda. Entre as mãos liar : n ad a p eg a p o r si só; dá assistência, auxilia, aguenta." R. Hertz
J do hom.em a mulher pode ser ritualmente dócil e amorosa: o ho- discu te a razão d essa assimetr ia que privilegia a mão direita em de-
mem alIme~ta a n:ulher que dirige avidamente a b oca para o ali- trimen to d a esquerda, e n qu an to a educação poderia o utorg a r às
mento, ela e su a cnança capri chosa ou s eu brinquedo. A tra v és des - du as mãos a mesma eficácia prática. Uma proibição social pesa so-
se estudo magistral, ilustrado co m imagens precisas, E. Goffm an bre a utilização d a mão esquerda e to rn a a vida dos canhotos bas-
~os~ra qu.e ~' a foto g r afia publicitária consiste numa ritualização de tante complicad a . Valores e funç ões contrastados distinguem as d u as
ideais s~ClaIs, ~e ta.l forma que tudo a q u ilo que im p e de o ideal de pa rtes do corpo. Essas atribuições contr á rias, R. Her tz as faz deri-
se rnariifestar e extirpado, suprimido" . Purificar o mund o de SUa var da polaridade fundad ora d o sagrado e do profano. Outras o p o -
complex~~~~e p a r a construir o"eterno feminino" e o h omem " p ro- siçõe s surgem do mesmo dualismo: a luz e as trevas, o dia e a noite,
tetor e VI~I1 r segundo os estereótipos amplamente compartilha- o n ascen te e o poente, etc. " A sociedade, o universo in teir o tem um
dos, essa e a tarefa dos publicitários. "Eles exploram o m esmo Cor- lado sagrado, nobre, precioso, e um outro, fêmea, fraco, passivo,
pus de espetáculos, o mesmo idioma ritual, assim como nós todos ou, em duas palavras, um lado direito e um lado esquerdo. E se-
que partici pamos de situações sociais, e com o mesmo fim: tom ar ria o organismo humano o único simétrico? Refletindo sobre esse
visível uma aç~o pressentida. No mais, eles nada mais fazem que ponto, há aqui uma impossibilidade: tal exceção seria não somen-
to.mar conver:Clonal nossas práticas, esti liz a r o que já o é, faz e r uso te u m a anomalia inexplic ável, mas arruinaria toda a economia do
fnamente de Imagens descontextualizadas, brev e, sua mercad o- mundo espiritual.. . Se a assimetria orgânica não existisse te r ia sido
ria, ousamos dizer, é a h iperritualização"53. necess á r io invent á-law. À direita estão associados a força, o bené-
I

As qualidades morais e físicas atribuídas ao homem ou à mu- fico, o nobre; à e squerda estão associadas a fraqueza, a falsidade,
lher não são inerentes a atributos corporais, mas são inerente s à a impe rí ci a, etc. "Uma mão esquerda com muitos dons naturais
si~ific~ção social q u e lhes d a m o s e à s normas de comportamen - e m uito ágil é sinal de uma natureza contrária à ordem, de uma
t o impli cadas . O feminismo através da atividade m ilitante tomou p redis p o sição perversa e demoníaca: qualquer canhoto, constata
possível a reflexão sobre certas deSigualdades sociais e sobre os es- He rtz, é um possível feiticeiro do qual com razão desconfiamos."
tereótipos de d iscursos e atitudes, sobre as práticas sociais que fa - A mão d ire ita é h e r d e ir a dos atributos do sagrado e a mão esquer-
zem da mulher, como evidencia por outro lado Coffman, um ser d a daqueles do p rofano. Destro e canho to não são somente d e sig -
frequentemente em exposição diante d o homem e a ele subordina- n açõ e s funcionais, mas também são valores morais.

58
• GOFFM.AN, E. La ri tu a li sa tio n de la fémini té. Les 11l 011l e11 t s et leu rs hom mes , Pa- 59 • HERTZ , R. La préérnin enc e d e l a m ai n dr o i te - É tu de s u r l a po la ri té re li -
r rs : Seu l - M ín u r, 1 9 88, p . 185 [ t r a d . fr.] .
í í

g ie use. M élanges de sociolog ie religi euse et de folk lore. Paris: PUF, 192 8.

68
69
Um trabalho cl ássico d e M ary D o u g la s aponta que o co rpo"é fixam-se qualidades da sedução, identifica-se o sexo, e tc. A alte ra-
o modelo por excelência de q u a lq u er sistema finito . Seu s limi tes ão do rosto, que exp õe a marca d e uma lesão, é v ivid a como um
podem rep re sen tar as fronteiras ameaçadas ou precárias. Como o àram a aos olhos d os outros, não r aro como u m sinal de privação de
corpo tem uma estrutura complexa, as fu n ções das diferentes par- iden tid a d e. U m machucado, mesmo que g r av e, no bra ço, n a p erna
tes e as relações entre elas podem servir como símbolos a ou tras es- OU na barriga não enfeia; n ã o modifica o sentimento de identida-
truturas complexas. É impossível in ter p retar corretamente os rit os de. O rosto é, ao m esmo título que o sexo, o lu ga r mais valorizado,
que recorrem aos excrementos, a o leite materno, à saliva, etc., se ig- o mais solidário d o Eu. O comprometimento pessoal é tão maior
norarmos que o co rpo é um símbolo da sociedade, que o co rpo hu- quando um ou outro é atingid o . N u m erosas são as tradições nas
mano reproduz em escala reduzida os poderes e os perigos que Se quais o rosto é associado a uma revelação da alma . O corpo encon-
atribui à estrutur a social"60. O co rpo metafo riza o social e o social traria aí o caminho d e sua espiritualidade, su as cartas d e n obreza.
metafo riza o co rp o. No interio r d o corpo são as possibilidades so- O valor ao mesmo tempo social e in d ividual que distingue o ros to
ciais e culturais que se desenvolvem. do resto d o co rpo, sua em inência na apreen são d a iden ti d a d e é su s-
A os ó rg ão s e às funções do corpo humano são atribuídos rep re- ten tad a pelo sentimento que o se r inte iro aí s e en co n tr a. A infini-
sentações e valores diferentes de uma sociedade para ou tra . Algu- tésima diferença do rosto é, para o indivíduo, o objeto de uma in-
mas vezes, no interior de uma mesma sociedade, diferem também can sáv el interrogaçã o : espelho, retratos, fotogra fias, etc." .
conforme as classes sociais em presença. Para nossas sociedades, Um sistema de valores d ivide o s d iferentes órg ã os e as diferen-
por exemplo, os pés não têm v alo r: órgãos situados embaixo d o tes funções do co rpo humano, de acordo com as sociedades. N o
corpo encarnam a escala m ais baixa do valor. Tocando a terra, no li- mund o moderno, a possibilidade d e retir ar e implantar órgãos le-
mite d o homem e do enraizamento no mundo, eles também são lu- vanta de modo aguçado a questão d os valores ligados à vida hu-
gar de contato. Assim, o ato d e mancar é com frequência o símbo- mana e à corporeidade . O corpo é aq u i visto como um outro dife-
lo da comunicação com o além; o dançarino manco o u que salta rente do homem que encarnara. Através de uma forma eminente-
num pé só, se mantém em equilíbrio entre dois mundos, mani- mente moderna de dualismo, o co rpo perde seu antigo v alo r moral
festa a ambiguidade de sua posição de intercessor. A história d o e vê crescer seu valor técnico (e até mesmo mercante). Hoje, os fei-
combate de Jacó e o anjo q ue deixa o homem mancando, ilustra tos da medicina e da biologia (transplantes, transfusão de sangue,
b em o fato . As simbólicas respectivas das mãos", dos den tesv ou a próteses, manipulações genéticas, inseminação artificial, etc.) abri-
do san gues fo ram larg amente estudadas. Os órgãos nobres (cora- ram caminho para novas práticas para as quais é anunciado um
ção, pulmões, etc.) opõem-se aos órgãos mais "esquerdos" (rins, bar- futu ro de prosperidade. Elas deram ao corpo o valor de um objeto
riga, sexo, etc. ). cujo p re ço é inestimável diante da demanda crescente. As necessi-
O rosto é, de todas as partes d o corpo humano, aquela on d e se dades de substâncias humanas dizem respeito a quatro u tilizações
condensam os v a lo r es mais elevados. Nele cristalizam-se os sen- diferentes: a pesquisa médica e biológica que solicita vários mate-
timentos d e identidade, estabelece-se o reconhecimento d o outro, riais humanos; a fabricação de produtos farmacêuticos; os trans-
pl an tes; os usos tradicionais nos cursos de medicina para a forma-
60 • D OUGLAS, M . De la sOllillll re . P aris : Mas pero, 1971 [trad . fr. ]. Cf. igu al m ente ção dos médicos. O co rpo é assim decomposto em peças, submeti-
DOUGLAS, M . Na t ura l sy m bols - Exp lo r a t io ns in cos m o lo gy . H a rm o n dsw orth: das à raz ão analítica. Os a vanços da medicina, principalmente no
P eng u in Books , 19 73 .
cam p o d os transplantes, levantam h oje em d ia q u estões de cunho
61 • CARENINI, A. La symbolique manu elI e . H istoire des maurs . T . 2 . Paris: Ga ll im a r d,
" La P lé iade", 1991.
ético e moral de muito d iscernimento. As consequências humanas
62
desses novos procedimentos fazem do homem uma possível maté-
• C f . LOUX, F . L 'og re e t la dent. P aris : Be rger-Le vrauIt, 1981.
ria-prima. O corpo humano (e seus componentes) tende a se tornar
63 • ROUX, J.-P. Le sang: m ythes, s ymbol es e t réalités . Paris: Fa yard, 1988 . • CROS, M .
A ntlzropologie du san g en Afrique , P a ri s : L'Harmattan, 1990. 64 • C f. LE BRET ON, D . D es vi sage s - Es sai da nth ropologie. P a r is : Métail ié, 19 92 .

70 71
um ?~j~to como outros: q~e só é dis~inAguido pela raridade de di
ld ado pela históri a pessoal do ator num a dada sociedade, mas
poriibihclade (co~equencIa das res ístêncías sociais.) O corpo h
I1l0 n trá rio, aos olhos do r acista, são as condições de existência do
mano aparece entao com o um alter ego do homem: continua
'f - d h send -ao rn
coem que são os pro dutos
utos ima1terave' .ís d e seu corpo. O ser d o h 0 -
rnarn estaçao o 0:n:e m, .se m se r o h o m em , pois as operações fac ho corresp on d e ao ru ruco d esen v olv i enLO d e SU--a anatom
... .- O
esenvo VIm s, ia.
,i ram de tal forma legitimadas que suscitariam o horror caso f
.
feitas
Osse I1lernem n a d a mais er que um arte f ato da aoarêrici f"ISIca, d o corpo
a aparencIa
-. A.no homem . por inteiro e não no corpo pensado, em conse__, horn dá C' - ,
j
I J
quencia, como rndependente do homem. . imagi n ário ao qual a ra ça. a non;~ ' arte~Iar:o na ruptura, nao ~

I AA ~idade huma~a e~contr~ -~e fragmentada, a vida toma a:


ais ao espírito que o racismo da ím p or ta n cia, mas ao corpo. La
I1l de o aspecto físico parece não existir para operar a descrimina-
I aparencia de uma potência mecaruca. O corpo, dividido em c . . .
ponentes, cai mais facilmente sob a lei da convertibilidade e da°tm-
· d ' ro-
on-o o racismo manifesta tesouros de e iImagInaçao.
. - A SSIm, . d uran t e o
Ç:riodo nazista, par a identificar o s judeus os médicos procediam a
c~ genera 1iza a a medida que é suspensa a questão antropoló_ Pngenhosa s medidas do nariz, da boca, da dentição, do crânio, etc.
grca de seu estatu to", e es trela a m a re la colocada aos olhos d
A os passantes conouz' essa
lógica ao objeti.v0: ~á q~e o~ jude~s não ~?ssuem sinais c<:.rporais
v -O corpo imaginoso do racismo susce tív eis de, a pnmeIra VIsta, diferenciá-los da população, uma
rnarca exterior os denunciaria de maneira inq uestionável.
. A? ~~smo te.m p<:. em que é lugar de valor, o corpo é lugar de
imagmanos, de hga~oes contestáveis cujas lógicas sociais é preciso
compreender. O racismo repousa, entre outras cois a s sobre um VI - O corpo deficiente"
H

relação imaginária
. .
com o co rp o . Ele finca r aízes no int~rior dos ar~
I A relação social estabelecida com o homem que tem uma"defi-
cerces p~s~lOn~ns que al~~entam a vida coletiva, alimentam proje- ciência" é um profícuo analisador da maneira pela qual um grupo
tos, ~obIhzaçoes, mobIhzam tolerâncias ou v iolências. O ra cis- social vive a relação com o corpo e com a diferença. Ora, uma forte
mo e o e x e m p lo ~e _uma f<:>r m a-pre te xto, socialmen te d isponível, ambiv alên ci a caracteriza as relações entre as sociedades ocidentais
para acolher a~ paIxo~~ma~s divergentes, as razões m a is ambíguas e o h om e m que tem uma deficiência; ambivalência que vive no d ia
e dar-lhes enfim ramifica ção. Reprimida a afe tividade, as frustra- a d ia, já que o discurso social afirma que ele é um h o m e m normal,
çõ es, a s resignações ~ã? su g a das para essas formas vacantes que mem b ro da comunidade, cuja dignidade e valor pessoal não são
oferecem uma s~perf~cIe~e p roteção a qualquer g ra daçã o possível enfraqu e cid o s por causa de sua forma física ou suas disposições
de ranco~. ? racismo e den v a d o do imaginário do co rp o . A "raça" é sensoriais, mas ao mesmo tempo ele é objetivamente marginaliza-
uma esp e cie de clone g igantesco que, na im aginaçã o do racismo, d o, mantido mais ou menos fora do mundo do trabalho, assistido
faz de cada u m dos mem bros fictícios que a compõem um eco in - pela seguridade social, mantido afastado da vida coletiva por cau-
can~avelment: repetido. A história individual, a cultura, a diferen- sa das dificuldades de locomoção e de infra 'estruturas urbanas fre-
ç.a sao neutral.lzadas, apagadas, em prol do ima ginado corpo cole- quen tem e n te mal-adaptadas. E, quando ousa fazer qualquer pas-
tiv o, subsumido sob o nome de raça.
seio, é acompanhado por uma m ultidão de olhares, frequentemen-
O pr?:ess~ de ,dis,crimin~_ção repousa no exercício preguiçoso te insistente; olhares de cu rio sid a d e, de incômodo, de angústia, de
da classificação: so da atençao aos tra ço s fa cilmente identificáveis com p aix ã o , de reprovação. Como se o homem que tem uma de-
(ao men~s a seu ver) e impõe uma versão reificada do cor p o . A di- ficiência tivesse que suscitar de cada passante um comentário.
ferença e transformada em estigma. O corpo estr angeiro toma-se Nossas sociedades ocidentais fazem da "deficiênciav -' um es-
corpo estr~nho. A presença do Outro se resume à presença de se u tigma, quer dizer, um motivo sutil de avaliação negativa da pes-
corpo: ele e seu corpo. A anatomia é seu destino. O co rp o não é mais soa. Fala-se então de "deficiente" como se em sua essência o ho-
65
• LE BRET?N, D . Anthropologie d u corps et modern ité, O p , ci to • La cha ir à oif -:
Usages medlcaux et m on d a m s du corps humai n . Paris: Métailié, 19 93 _ 66 • Sobre a história do tra tamento social da deficiência: STICKER, H.-J. Corps infir-
mes et sociétés . Paris : Aubier, 19 8 2 .

72
73
mem fo sse um ser "deficiente" ao invés de "ter" urna deficiên . fora das referências costumeiras. Um "jogo " sutil se imiscui no re-
Na relação com o deficiente, o inválido, se interpõe um anteparo~a. lacion amen to gerando a angústia ou o mal-estar. Essa incerteza
angústia ou de compaixão que o ator válido se esforça para não r ~ não p ou p a mais o homem com deficiência que se questiona, a cada
velar. "Pedimos ao ind ivíd uo estigmatizado, d iz C offrnan, de n:- nOVO encontro, corno será a ceito e respeitado em sua d ignidade. O
gar o peso de seu fardo e de nunca fazer com que acredite q ator que dispõe da integridade física tem então tendência a evi-
, 1 ue, tar se infligir um mal-estar desagradável.
ao carrega- o, toma-se diferente de nós ,' ao mesmo tempo , ex19 ' l.-
mos que se mantenha a distância para que possamos manter a ima - A impossibilidade de identificação com o outro está na origem
gem que dele fazemos . Em outras palavras, sugerimos que aceit de qualqu er prejuízo que pode encontrar um ator social pelo cami-
sua c; m d içã o e que nos aceite, corno forma de agradecimento pel: nh o: p o rque é velho ou moribundo, enfermo, desfigurado, de per-
tolerancia natural que nunca realmente lhe concedemos. Assim a tencim en to religioso ou cultural diferente, etc. A modificação des-
aceitação imaginária está na origem da normalidade imaginária':". favorável é socialmente transformada em estigma, a diferença gera
O contrato tácito que p reside o encontro do h o m em que tem u m a contestaçã o . O espelho do o utro é incap az d e ex plicar o próprio
I
deficiên:ia e dOA h~mem "válido" se sustenta pelo fato do fingir qu:
I
espelho. Por outro lado, a aparência intolerável coloca em dúvida
a alteraçao orgamca ou sen so rial não cria nenhuma diferença, ne- um momento peculiar de identidade chamando a atenção para a
I'
I'
I
I
nhum obstáculo, mesmo que a interação possa ser incomodada p or fragilid ad e da condição humana, a precariedade inerente à vida. O
esse fato que comumente adquire uma dimensão conside rável. homem portador de deficiência lembra, unicamente pelo poder da
Em condições comuns da vida social, as etiquetas de uso do cor- presen ça, o imaginário do corpo desmantelado que assombra mui-
po regem as interações: circunscrevem as ameaças suscetíveis de tos p esa d e lo s . Ele cria uma desordem na segurança ontológica que
surgir d o que nã~ se conhece, dão origem a referências que assegu- garante a ordem simbólica. As reações que provoca te cem urna su-
ram o desenvolvimento da troca. Diluído assim no ritual, o corpo til hi era r qu ia do terror; classificadas conforme o índice de derroga-
deve passar desapercebido, fundir-se nos códigos e cada ator deve ção às normas de aparência física . Quanto mais a deficiência é visí-
poder encontrar no outro, corno num espelho, as próprias atitudes vel e surpreendente (um corpo deformado, um tetraplégico, um
e a im a ge m qu e não o surpreende nem o atemoriza. Corno vimos, o rosto desfigurado, por exemplo), mais suscita a atenção social in-
apagamento ritualizado do corpo é socialmente costumeiro. Aque- discre ta que vai do horror ao espanto e mais o afastamento é decla-
le que tran sgride os r itos que pontuam as interações, de modo deli- rado nas relações sociais. A deficiência, quando é visível, é u m p o-
b era d o ou p ara defender seu corpo, suscita o desconforto e a an- deroso atrativo de olhares e de comentários, um operador de dis-
gústia . A regulação fluida da comunic ação é rompida pelo homem cursos e de emoções. Nessas circunstâncias, a tranquilidade que
que tem urna d eficiên cia observável de imediato. É difícil a rituali- qualquer ator pode gozar nos deslocamentos e no desenrolar d e
zação da parte do d esconhe cid o : como abordar esse homem na ca- sua vida quotidiana surge como urna honra, urna garantia de si-
deira de r~das ou com o rosto desfigurado? Corno reagirá o cego à tuaçã o conforme. O homem que sofre de uma deficiência vis ível,
eventual ajuda para atravessar a rua, ou o tetraplégico que tem difi- qu an to a ele, não mais pode sair de casa sem provocar os olhares
culdades para descer da calçada com sua cadeira? Diante desses de todos. Essa curiosidade incessante é uma violência tão mais
atores, o sistema de expectativa não é mais aceito, o corpo se apre- sutil que ela não se reconhece como tal e se renova a cada passan-
senta de repente com uma evidência inevit ável, ele se torna incô-
te que é cruzado.
modo, não está mais atenuado para o bom funcionamento do ri-
tual. Torna-se difícil negociar uma definição mútua de inserção O homem deficiente é um homem com estatuto intermediá-
rio, um homem do meio-termo. O mal-estar que suscita v em igual-
6í • GOFFMAN, E . St ig nuitc - Les usages sociaux des handicaps. Pari s : Minui t, mente da falta de clareza que cerca sua definição social. Ele nem
1975, p . 145 [ trad. fr . ]. Cf. também DA VIS, F. De viance disavowa l: the ma-
nagement of str ained interaction by the v is ib ly handicapped. Social Probl em s, n.
9,1961, p. 121-132.

74 75
é doente nem é saudável, n em morto, nem completamente viv
n:mfora da socied~de, nem dentro dela, etc.6~ Sua humanidado~ Capítulo VI
nao e posta em que~tao:, n? entanto, ele transgride a ideia habitual
d e humano. A amb iva l ên c ía qu e a socied a d e mantém a seu res .
, . d ' 1' , pel -
Cam p o s de p e squisas 3:
t o e' uma especle e rep rca a ambiguidade d a situacão a seu cara-'
r
te r d u ravel e intocável.
sr- > »
O corpo no espelho do social
,:
I
11 o corpo também é, preso n o espelho d o social, objeto concreto
I' de investimento coletivo, supo rte de ações e d e significações, moti-
,11 vo de reunião e de distinção pelas práticas e d iscu rsos que suscita.
I, Nesse contexto o co rpo é só u m analisa d or privilegiado p ara evi-
denciar os traços socia is cuja elucidação é p rio ridade a os olhos d o
sociólogo, por exemplo, quando se trata de compr eender os fenô-
menos sociais contempo râneos.

I - As aparências
A aparência corporal responde a uma ação do ator relacionada
com o modo de se apresentar e de se representar. Engloba a manei-
ra de se vestir, a maneira de se pentear e ajeitar o rosto, de cuidar do
corpo, etc., quer dizer, a maneira quotidiana de se apresentar so-
cialmente, conforme as circunstâncias, através da maneira de se
colocar e do estilo de p resença. O primeiro constituinte da aparên-
cia tem relação com as modalidades simbólicas de organização sob
a égide do pertencimento social e cultural d o ator. Elas são pro-
visórias, amplamente dependentes dos efeitos de moda. Por outro
lado, o segundo constituinte diz respeito ao aspecto físico do ator
sobre o qual dispõe de pequena margem de manobra: altura, peso,
qualidades estéticas, etc. São esses os traços dispersos da aparên-
cia, que podem facilmente se metamorfosear em vários indícios,
dispostos com o propósito de orien tar o olhar do outro ou para ser
classificado, à revelia, numa categoria moral ou social particular.
Essa prática da aparência, na medida em que se expõe à avaliação
de testemunhas, se transforma em engajamento social, em meio
deliberado de difusão de informação sobre si, como atualmente
ilustra a importância tomada pelo look no al iciamento, na publici-
dade ou no exercício meticuloso do controle sobre si que as agên-
cias de comunicação tentam promover para uso dos h omens pú-
68
• MURPHY, R. Vi vr e à corp s perdu . Paris: P lon, 1987 [trad . fr .].
blicos, principalmente os políticos. Assim, M. Pages-Delon faz das
aparências corporais uma espécie de "capital" para os atores so-

76
77
ciais. "Capital-aparência"69cujas fontes devem ser gerenciad as da
melhor maneira possível para que o melhor rendimento possa ser II - Controle político da corporeidade
alcançado ou simplesmente para que não se prejudique por dema- A questão d o p oder e principalmen te d a ação do p olítico sobre a
siada negligência . corp oreid a d e, objetivando o controle do comportamento do ator, é
A apresentação física de si parece valer socialme~te pela apre- um dado central da reflexão das ciências sociais nos anos 1970. A
sentação moral. Um sistema implícito de classificação fundamenta lei Neuwirth em 1967, legitimando a contracepção, a lei Veil, libe-
uma espécie de código moral das aparências que exclui, na ação rando o aborto, para tomar exemplos na sociedade francesa, são os
q ualquer inocência. Imediatamente faz de qualquer um que pos~ indicadores políticos da mudança nas mentalidades e nos costu-
sua hábito, monge incontestável. A ação da aparência co loca o ator mes que vai se traduzir na revolta da juventude e o marco histórico
sob o olhar apreciativo do outro e, principalmente, na tabela do de 1968, a liberdade sexual, o feminismo, o esquerdismo, a crítica
preconceito que o fixa de antemão numa categoria social ou moral ao esporte lev ada a efeito pela revista Quel corps?, etc. V árias são as
conforme o aspecto ou o detalhe da vestimenta, conforme também abord agens críticas consagradas à co r p o reid a d e q u e, em sociolo-
a forma do corpo ou do rosto . Os estereótipos se fixam com p redile- gia ou em outras ciências, tomam a d imensão política como centro
organizador da análise. Os trabalhos de [ean-Marie Brohm a esse
ção sobre as aparências físicas e as transformam naturalmente em
respeito são exemplares, pois pretendem mostrar que" qualquer
estigmas, em marcas fatais de im p erfeição moral ou de pertenci-
mento de raça. política é imposta pela v iolên cia, pela coerção e pela imposição so-
b re o corpo" . Toda a ordem política vai d e encontro à ordem corpo-
Um mercado em pleno crescimento renova permanentemente ral. A análise leva à crítica do sistema político identificado com o
as marcas que visam a manutenção e a valorização da aparência capitalismo que impõe a dominação m oral e mater ial sobre os usos
i ,
sob os auspícios da sedução ou da"comunicação" . Roupas, cosmé- sociais do corpo e favorece a alienação. J.- M . Brohm não se cansa de
ticos, práticas esportivas, etc., formam uma constelação de produ- denunciar, na p rática esportiva, o mesmo confinamento n o siste-
tos desejados destinados a fornecer a "morada" na qual o ator so- ma corporal que rejeita".
cial toma conta do que demonstra dele mesmo como se fosse um Essa perspectiva marxista faz do aparelh o do Estado a instância
cartão de v isitas vivo.
suprema do p oder de classe. A publicação em 1975 de Vigiar e punir
Lugar privilegiado do bem-estar e do parecer bem através da de Michel Foucault introduz uma ruptura ao mesmo tempo epis-
forma e da manutenção da juventude (frequência nas academias, temológica e política na o rientação de análise anterior. M . Fou-
ginástica, body building, cosméticos, dietética, etc.), o corpo é objeto cault constata que as sociedades ocidentais inscrevem seus mem-
de constante preocupação. Trata-se de satisfazer a mínima caracte- bros nas malhas apertadas do feixe d e r el a çõ es que controla os mo-
rística social fundada na sedução, quer d izer, no olhar dos outros. vimentos. Funcionam como "sociedades disciplinares" . Longe de
O homem mantém com o corpo, visto como seu melhor trunfo, encontrar seu centro de radiação na supremacia do aparelho ou
uma relação de terna proteção, extremamente maternal, da qual re - instituição como o Estado, a disciplina molda um novo tipo de rela-
tira um benefício ao mesmo tempo narcíseo e social, pois sabe que, ção, um modo de exercício d o poder, que atravessa as instituições
em certos meios, é a partir dele que são estabelecidos os julgamen- de diversos tipos fazendo-as convergir para um sistema de obe-
tos d o s outros. Na modernidade, a única extensão do outro é fre- diência e de eficácia. M. Foucault desloca os pontos de referência
quentemente a do olhar: o que resta quando as relações sociais se d e análise até então usados e chama a atenção para as modalidades
tornam mais distantes, mais medidas. eficazes e difusas do poder quando se exercem sobre o corpo, para

70 • BROHM, J.-M . Corps et pol it i q u c , Paris : Delarge, 1975 . • Sociol og ie p o/itíque


69 • PAGÊS-DELON, M. Le corp set sés apparences - L'enve rs d u look . Paris: du sport . Paris : Delarge, 1976 . J .- M . Bro hm é moderador da revista Que/ corps?,
L'Harma ttan,. 19 89 . Cf. igualmente RAUCH, A. Parer, paraitre, apparaitre - H is - dentre os q uais um d o s ob jetivos é pensar a corporeidade e suas ligações com o polí-
to rre d e la presence corporelle. Ethnolooie frunçaisc, XIX, 2, 1989 . tico . Que/ corps? deixou de ser publicada em 1997, após a de rra deira d iretriz de
J.-M. Brohm intitulada Autodissol u t ion ,

78
79

of
além das instâncias oficiais do Estado. O investimento político do A" an atomia p o lítica d o detalhe" , constitutiva desses d isp osi ti-
corpo depende mais da forma de organização difusa que im p õe v os [de contr ole] , é encon tra da p o r M. Foucau lt n ão só na organi-
sua marca sem que necessariamente seja elaborada e objeto de dis- zação d o sistem a penitenciário, m as também na organização d'ilS
I curso. El a cons trói um d isp ositiv o fre quentemente artesanal; mas escola s, d os co lég ios, dos h ospitais, d o exército, ou das montado-
que orienta as fo rmas físicas r equisitadas, favorece controle do o ras. O contr ole da atividade im p lica o co ntrole d o tempo dos atores
espaço e do tempo, p roduz no ato r as marcas da obrigação de fide- envolvidos, a elaboraçã o gestual d a a ção que a decompõe em ele-
lidade que demonstram sua boa vontade. O campo político, que se mentos sucessiv os até que sej a conseguida a mais completa corre-
empenha em organizar as modalidades corporais segundo as fina-
I
/
lidades que lhe são próprias, evoca uma tecnologia meticulosa dos
corpos, uma política do detalhe, muito mais que a tomada em mão
lação d o corpo e d o gesto a fim d e se alcançar ao melhor rendimen-
to. Uma p reocupação de uso exau s tivo esforça-se para não deixar
de la do nenhum dos recursos físi cos e morais d o ator. O modelo d o
I/ sem mediação d o Estado, meio de dominação das cl asses domi- quadric u la d o, p ara que suscite utilidade e docilid a d e dos homens
II
,, nantes. A discip lina, esten dendo difus amen te S1.l3 atu ação através atra v és do domínio da corporeidade, encontra no p anotismo sua
do campo social, vem se substituir à noção de um controle social figura ideal e p odendo, n o limite, faze r economia da presença d os
que se apoia unicamente nos aparelhos repressivos. As teses mar- indivídu os en carreg ados d e cuidar d o bom an d amen to do disposi-
xis ta s são bombardeadas. "Essa microfísica, escreve Fou cau lt. su- tivo. " A quele q ue está su bmetido a o cam p o de vi sibili d a d e e que
põe que o poder que aí é exercido não seja concebido como proprie- sabe d isso, e screve Foucault, retoma para si as imposições d o p o-
dade, mas como estratégia, que seus efeitos de dominação não se- der; inscreve em si a relação de poder na qual mantém os dois pa-
jam atribuídos à 'apropriação', mas às disposições, às manobras, às péis; torna-se p ríncipe da p rópria sujeição" . O abandono da hipó-
táticas, a os funcionamentos" . O poder não é um privilégio que
tese repressiv a n a História da sexualidade (1976) dá origem a nume-
pode mudar de mãos como se fosse um instrumento, ele é um siste-
rosos debates. Mas Foucau lt continu a a reflexão sobre o " p od e r so-
ma de relação e imposição de normas. "E preciso, em suma, admi-
bre a vida" q ue, segundo e le, caracteriz a a s s ociedades ociden-
tir que o poder é muito mais exercido que possuído, que ele não é
ta is contemporâneas na en cru z ilhada de uma "anatomopol ítica
' p riv ilé gio' adquirido ou conservado da classe dominante, mas o
do corpo humano" e d e uma "b iop o lítica da popu lação". Sua obra
efeito de conjunto de suas posições estrat égícas"".
posterior marca , co m O u so dos pra z er es (1 984) e O cuidado de si
As conclusões de M. Foucault derrubam a perspectiva marxis- (1984), u m desv io na direção d o sujeito e d a é tica, através da am-
ta. Nessa obra, onde o corpo é somente um revelador precioso, um pla reflexã o sobre as mora is sexuais da A n ti g uida d e . A obra de
pretexto a ser ressaltado na análise do p o d er nas sociedades mo- M . Foucault co nhece n u merosos seguido res , p ri ncipalmente nas
dernas, M. Foucault aborda a prisão como " figura concentrada e páginas da re vista R echerches.
austera de todas as disciplinas" . No final do estudo meticuloso, M .
Foucault demonstra que as disciplinas se instauram no decorrer do
IH - Clas ses so ciais e relações com o corpo
século XVII e do século XVIII como formas de dominação visando
produzir a eficácia e a docilidade dos atores através do cuidado Nas socied a d es h ete rogêneas, as rela ções co m a corporeidade
meticuloso da organização da corporeidade. Aumento da força de insc re vem -s e n o interior das classes e culturas qu e orientam suas
. rendimento e entraves às possibilidades pessoais de oposição, coa- si gnificações e seus valores. Hoje, sem dúvida, sob a égide d o con-
çõ es leves e eficazes sobre os m o v im en to s e extensões do co rpo, sumo e sob o efeito do crescimento das classes médias, sob o efeito
tais são as orientações cujos efeitos conjugados dão à s discipli- também da emergência da sensibilidade individualis ta q ue dá ao
nas um poder de ação e d e controle. ator u ma margem d e manobra menos e streita qu e ante ri o rm en te,
as opo sições não são tão nítidas quanto fo ra m n os anos 1960-1970.
A reflexão sobre a determina çã o, em te rmos de classes sociais, das
71 • FOUCAU LT, M. Su roeiller et p u ni r, P a ris : G alli m ard, 1975 , p. 3 1.
representações e das a ti tudes com relação ao corpo é m ar cad a pela

80 81

-.
sociologia de Pierre Bourdieu e principalmente pelo artigo de fun- Ao contrário, as en quetes dos anos 1960 eviden ciam , para as
do de L. Boltanski sobre "Os usos sociais do corpo". "O co rpo, es- classes so ciais p rivilegiadas, u ma relação m ais atenta com o corpo.
creve P . Bourdieu, é a objetivação menos irrefutável do gosto de As classes mais p rivilegiadas têm tend ên cia a estabelecer uma
classe?" . As conformações externas corporais se riam as represen- fronteira mais tênue entre saúde e doença e a adotar, com relação a
tações de compleições físicas mais amplas envolvendo o conjunto esta última, uma atitude mais preventiva para evitar qualquer
das condutas próprias aos"agentes" de uma classe social. A com- surpresa. "Na medida em que subimos na hierarquia social, que o
pleição física é uma fórmula geradora de comportamentos e de re- nível de in stru ção cresce e que diminui co rrelativa e progressiva-
presentações ligados à posição de classe. "A s regras, escreve L. Bol-
mente a imp ortân cia d o trabalho manual em relação ao trabalho in-
tanski, que determinam as condutas físicas dos sujeitos sociais, e
telectual, o sistema de regras que rege a relação do indivíduo com o
cujo sistema constitui sua "cultura somática", são o produto das
corpo é igualmente modificado. Quando a atividade profissional é
condições objetivas retraduzidas na ordem cultural, quer d izer, na
essencialmente u m a atividade intelectual q ue n ã o exige nem fo rça
maneira d o d ev er ser e, mais p re cisamente, são fu n çã o do g rau com
nem competência física particular, os sujeitos sociais tendem a es-
que os indivíduos retiram os meios materiais de existência da ativi-
tabelecer u m a relação consciente com o corpo e a tomar mais cuida-
dade física, da venda das mercadorias que são o produto dessa ati-
do com as sensações o r gân ic as e à expressão dessas sensações e, em
v id ad e, o u do modo como usa a força física e de sua v en d a n o mer-
cado de trabalho,m. segundo lugar, a v aloriz a r a 'graça', a 'b eleza ', a 'fo rma física' em
detrimento da fo rça física ."
N a mesma linha de sensibilidade de P ierre Bourdieu, ela pró-
pria herdeira do marxismo, L. Boltanski utiliza um certo número Dez anos mais tarde, P. Bourdieu em La distiction (1979), um
de indicadores (alimentares, médicos, relações com a dor, cuida- estudo sistemático sobre as práticas e gostos culturais, inscreve
dos corporais e de beleza, etc.) e de enquetes sociais a fim de delimi- numa perspectiva mais ampla os dados analisados por L. Boltanski
tar os "usos sociais do corpo" ou, mais que isso, as compleições físi- para os anos 1960: apresentação de si, cuidados de beleza, cuida-
cas corporais próprias às diferentes classes sociais. Constata que as dos com o corpo, maneiras à mesa, consumo de alimentos, práticas
classes p opulares mantêm uma relação mais instrumental com o físicas e esportivas, no tocante à corporeidade respondem, segun-
corpo. A doença, por exemplo, é ressentida com o um entrave à ati- d o P . Bourdieu, a compleições físicas de classe interiorizadas pelos
vidade física, principalmente profissional. A qu eixa dirigida ao agentes e incorporando-se aos comportamentos. No entanto, a ló-
médico diz respeito, sobretudo, à "falta de força". A doença retira gica econômica que preside, n o "estruturalismo crítico" de Bourdieu,
dos membros dessa camada social a possibilidade de fazer d o cor- a determinação social dos comportamentos não deixa espaço para a
po um uso (profissional, sobretudo) habitual e familiar. Dessa for- inovação ou para a imaginação dos atores. Ela os aprisiona na re-
ma, não prestam nenhuma atenção especial ao corpo e o utilizam produção de compleições físicas e parece desconhecer os aspectos
sobretudo como um "instrumento" ao qual demandam boa quali- contemporâneos de uma sociedade onde lO provisório é a única
dade de funcionamento e de resistência. A valorização da força permanência e onde o imprevisível leva frequentemente vanta-
lhes confere a uma maior tolerância à dor, "eles não admitem, so - gem sobre o provável. O problema que permanece é o da mudança,
bretudo, sentirem-se doentes". Certamente, nunca ter sido afasta- do homem não mais" agente" , mas" ator" da existência social.
do por doença foi, durante muito tempo, motivo de orgulho e valor
respeitado por in ú m ero s operários. P . Bourdieu revela nas p ráticas físicas e esportivas a correlação
entre as condições sociais de existên cia e o aspecto exterior associa-
d o como estrutura que alimenta os estilos de vida. Uma prática es-
i2 • BOURDIEU, P . La d is t in ct ion - Critique sociale du jugement. Pari s: M in u it, portiva é tão mais valorizada socialmente à medida que encabeça
19 7 9, p . 2 10.
uma certa visão do corpo, própria aos" agentes" da classe social, e é
73 • BOLTANSKI, L. Le s usages soc ia ux du corps. Annales ESC n. 1, 19 7 4, p . 22 . Um
comentári o interessante des s e e stud o d e L. Boltanski: CL ÉMENT, S. D 'un usa-
tão menos apreciada na medida em que se afasta dessa visão. "Se-
ge sociologiqu edu corps. Cahi ers du Cen tre de Recherches socioíogiquee. rc. 5, 1987. ria fácil p rovar, escrev e Bourdieu , que as diferentes classes não

82 83

..
concoràam sobre as vantagens que podem tirar das práticas espor- coloca sob o signo do v alo r. É 11m narcisismo d irigid o e funcional
tivas, sejam vantagens propriamente corporais, das q-uais não vem da beleza a título d a valorização e da troca dos símbolos":".
ao caso discutir a realidade 011 a imaginação, já que são realmente Dessa versão m o derna do indiv id-ualism o qlle é o n a rcisi sm o!
esperadas, t ais co mo o s efeitos sobre o exterior elo corpo co rno a es- Gilles Lipovetsky é um analista meticuloso" indo ao encontro de J.
belteza, a elegância ou a musculatura visível; sejam os efeitos sobre Baudrillard e dialogando com sociólogos americanos como Chris-
o interior do corpo como a saúde ou o equilíbrio físico ... rr Essas hi- topher Lasch e Richard Sermett. Indo além da n dessublimação re-
póteses foram retomadas por um conjunto de pesquisadores reu- pressiva" de Marcuse, nota por sua vez q"Lle a personificação do 1/

nidos por C. Porciello e aplicadas sobre urna série de práticas es- corpo exige o imperativo de juventude, a luta contra a adversidade
portivas". Resta fazer uma retornada desses estudos após as mu- temporal, o combate para qlle nossa identidade conserve sem hiato
danças sociais que nossas sociedades ocidentais sofreram nos últi- nem pane... r simultaneamente... o narcisismo, cUlnpre uma missão
mos vinte anos", de norm al izaçã o d o corp o . O interesse febril que d e clicamos ao cor-
po não é de modo algum espontâneo e " livre", é a resposta a impe-
v . . Moderrri dades rativossociais tais corno a "linha", a "forma", o "orgasmo". etc."78
No campo de manipulação de símbolos que caracteriza o con- Após longo período de discrição, o corpo hoje se impõe como
sumo, Jean Baudrillard faz do corpo no mais belo objeto" do inves- lugar de predileção do discurso social. Eliane Perrin analisou o en-
timento individual e social. Desde 1970" em A sociedade de consumo, tusiasmo pelas terapias corporais (bioenergia, grito primal, ges-
deixa claro os limites e as ambiguidades da "libertação do corpo" . taltterapia, expressão corporal, massagens com técnicas califorrii-
"Sua redescoberta, escreve, após urna era milenar de puritanismo, anas, etc.) a partir do final dos anos 1960. Promoção de urna visão
sob o signo da libertação física e sexual" sua inteira presença... na dualista do homem que o separa em espírito e corpo e propõe agir
publicidade" na moda" na cultura de massa, ou no culto da higiene, sobre o corpo para modificar o espírito. "O inconsciente é um dos
da dietética, da terapêutica no qual ele é envolvido, a obsessão de pontos de dificuldade desse neonarcisismo, o eu tendo sempre de
juventude, de elegância, de virilidade/feminilidade" os cuidados, interromper a influência dos processos de incompreensão e recal-
os regimes" as práticas de sacrifício a ele ligadas" o mito do prazer que", observa com razão G. Vigarello, e continua: "Podemos com-
qlle o envolve - tudo testemunha hoje que o corpo tornou-se objeto preender a nova importância do corpo no sonho de tornar final-
de reverência'<". A retórica da alma foi substituída pela do corpo mente visível o inconsciente fugitivo e inatingível. .. O desbloqueio
sob a égide da moral do consumo. Um imperativo de prazer impõe articular é assimilado inadvertidamente ao desbloqueio psicológi-
fl 79
ao ator, à revelia, práticas de consumo visando aumentar o hedo- CO • Eliane Perrin encontra nos adeptos dessas práticas um per-

nismo de acordo com urn jogo de marcas distintivas. O corpo é pro- fil recorrente: "Podemos imaginar q"Lle 013 indivíduos menos "à
movido ao título de "significante de status social". Esse processo de vontade", os mais fisicamente encurralados", ílbloqueados", "re-
U

valorização de si, através do uso de marcas distintivas e mais efi- primidos", tanto na expressão real como simbólica do corpo, são
cientes do ambiente imediato" depende de uma forma sutil de con- aqueles que as relações de trabalho expõem à agressividade mais
trole social. O cuidado de si mesmo" inerente a esses usos" revela direta" enquanto a profissão lhes proíbe manifestar" em troca, a me-
uma versão paradoxal do narcisismo, "radicalmente distinto, diz nor agressividade... Essas categorias interiorizariam seu mal-es-
Baudrillard, daquele do gato ou da criança na medida em qlle se
77 e Id. L' échange symbolique et la mori . Paris: GalliInard, 1976, p. 172.
74 e PORCIELLO, c. Sports et société. Paris: Vigot, 1981.
73 e LIPOVETSKY, G. L'êre du vide. Paris: Gallimard, 1983, p. 69-70. Sobre o narci-
75 G Para uma abordagem mais contemporânea: LORET, A. Générat ion, glisse. Paris: sismo, cf. SENNETT, R. Les tyrallnies de l'intimite. Paris: Seuil, 1979 [trad. fr.]. o
Autrement, 1995. <O LE BRETON, V. Passion du risque. Paris: Métailié, 2000. LASCH, C. Le complexe de Narcisse. Paris: Laffont, 1980 (trad. fr.).
76 o BAUDRILLARD,J. La sociétéde conscmrnat ion . Paris: Gallimard, 1970, p. 200. 79 o VIGARELLO, G. Les vertiges de l'intime. Esprit, n. 2, 1982, p. 72.

84 85
u rn alier ego de onde emanam sensa ção e sed ução. Ele se transfo r-
tar social em mal-estar físico"' so. As profissões liberais" os quadros
ma no lugar geo métr ico d a reconquista de si, 11m territ ório a ser ex-
superiores e médios formam o essencial d os efetivos das terap ias
p lora do n a procura de sensações inédit a s a/serelTIca pturada s (te~a­
corporais. Essa população desempenha" sobretudo" uma fun ção
pias corporais" lnassagens, danças, etc.). E encontr~do o p ar~elro
n o calnpo da saú de" d o trabalho social e da educa ção; e la e st á d ivi- compreensivo e o c úmplic e q1.1e faltava ao noss o la d o . O d ualismo
dida entre a lei e a satisfação da clientela, entre os sentimentos e da moderriidade n ã o mais o põe a alma ao corpo, mais sutilmente
seus meios limitados, assume responsabilidades" mas sob a UI tela opõe o homem ao corp o COlTIO se fosse um d e s d ob r a m e n to . Desta-
da autoridade q"Lle a controla, etc. Através do clima de cortfiariça cado do homem , transfo rm a do e m objeto a ser moldado"modifica-
que suscita" o espaço terapêutico suspende provisoriamente qual- do, m odulado confo rme o gosto do dia, o corpo se equ ivale ao ho-
quer reticência; a expressão dos sentimentos é encorajada num mem" no sentido em que, se modificando as aparências, o próprio
contexto que, en tretanto, mede suas consequências. As fr ustrações homem é m odificad o. Nessa v ertente da modernidade, o corpo é
podem ser ditas" a r aiv a enfim cria corpo. In scr itos em 11m nov o associa d o a um valor in conte st á v el. Ele é p sicologizado e torna- se
77
im a gin ário social (/ílibera çã o do corpo" d a sexuali dade, dos senti- um lugar alegremente h abitável g raças a esse su p lemen to d e alma
mentos; contestação da família, do casal; cuidado de si, etc.), esses (suplemento de símbolo).
jogos e esses discursos loquazes que colocam o corpo em destaque"
A p reocupaçã o com a aparência, a ostentação" o desejo de bem-
ilustram esse dispositivo social de controle que a intimidade do
estar que le v a o ator a correr O"LI a se desgastar, a velar pela alimen-
ator solicita, orientando suas condutas, mas deixando-lhe o senti-
tacão ou a saúde, em nada modifica, no entanto, a ocultação do cor-
mento de completa autonomia.
p; qll€ reina na sociabilidade. A ocultação do corpo continua pre-
Outros trabalhos indicam, no mesmo contexto, a transforma- sente e encontra o melhor ponto de análise no destino dado aos ve-
ção do corpo numa espécie de íntimo companheiro de estrada do lhos, aos moribundos, aos deficientes ou no medo ql1e todos temos
ator. O corpo torna-se parceiro daquele de quem se exige a melhor de envelhecer. Um dualismo personalizado de algum modo se am-
apresentação, as sensações mais originais, a boa resistência, a ju- plia, é necessário não confundi-lo com "libertação" . A esse re_s-
ventude eterna, a ostentação das marcas distintivas mais eficazes. peito, o h o m e m só será "libertado" quando qualquer p reocupaçao
Em tempos de crise do casal ou da família, de "multidão solitá ria" com o corpo tiver desaparecido".
e de dispersão de referências, o corpo torna-se um espelho frater-
nal, um outro eu COITI quem coabitar. Torna-se o outro mais próxi-
mo. Retirando-se parcialmente das antigas solidariedades so- v - Risco e aventura
ciais" assumindo uma certa atomização de sua condição, o indiví- A aventura e os riscos que assumimos. o gosto pelo extremo", fi

duo é convidado a descobrir o corpo corno forma disponível à desenham uma constelação de novas práticas que visam expor fisi-
acão ou à descoberta, um espaço cuja sedução é necessário manter camente o corpo com grandes esforços e até mesmo perigo. P. Yon-
e cujos limites vislumbrados é pre/ciso explorar. O corpo é o lugar- net analisou, desde o início, a "culrura do enduro" que se traduz
tenente do indivíduo, o parceiro. E precisamente a perda da carne J'I
por provas extenuantes como maratonas, reides, caminhadas em
do mundo" que força o ator a se inclinar sobre o corpo para dar car-
ne à existência. terrenos planos ou íngremes, etc. Ele coloca em relação homológi-
ca essas práticas com a abrangente crise, ao mesmo tempo eco-
fi

Recria-se a sociabilidade ausente abrindo em si mesmo u m a es - nômica, energética e ideológica que abala o Ocidenter ". O gosto
pécie de espaço de diálogo que assimila o corpo à possessão de 11m pelo enduro passa hoje em dia por crescente desenvolvimento. N 0-
objeto familiar. Ao alcance das mãos, de certa forma, o indivíduo vas práticas, abertas para a aventura e a plena natureza, surgem no
descobre através corpo uma forma possível de transcendência
pessoal e de contato. O corpo não é mais uma máquina inerte, mas 81 Q LE BRETON, D. Anthropologie du corps et modernit é. Op. ci t., caps. 6 a 8.
32 e YüNNET, P. Joggers et rnarathoniens, - Je ux, modes et masses. Paris : Gallimard,
30 e PERRIN, E. Cult es du corps - Enquête sur les nouvelles pratiques corporelles. 1985, p. 121.
Lausanne: Pierre-Marcel Favre, 1985, p. 124.

87
decorrer dos anos 1980 e apostam na estética do gesto, na p rocura experimentar, às custas do corpo/ a capacidade íntima de olhar a
da sensação, na relação durável e desgastante com o rnurido, po- morte de frente sem fraquejar. Somente esse contato, mesmo que
rém numa perspectiva lúdica. A esse sujeito, o gosto pelo raf ting puramente metafórico, parece ter força suficiente para irrrpulsio-
é revelador". nar, d e maneira d ur ável, urna r elaçã-o com o murido de
sentido, na qual o gosto pela vida se reconstitui. Quando a socieda-
A paixão moderna pelas atividades de risco nasce da profusão
de é incompetente em sua função antropológica de orientação da
dos sentidos que o mundo contemporâneo sufoca. A perda de legi-
existência, resta interrogar a morte para saber se viver ainda tem
timidade dos referenciais de sentido e de valores, sua equivalêncí.,
sentido. Somente a morte solicitada simbolicamente, como se fosse
geral riurna sociedade onde tudo se torna provisório, desestabiliza
um oráculo, pode expressar a legitimidade de existir. Ela é uma
o panorama social e cultural. A margem de autonomia do ator se instância geradora de sentido e de valor quando a ordem social se
amplia, rnas traz consigo o medo ou o sentimento de vazio. Vive- esquiva desse papel".
mos hoje numa sociedade problemática, sociedade em constante
constru ção ria q u a l o exercício da a u ton o mia p essoal dispõe de am-
plitude considerável. Somos chamados a nos tornar em.preende-
VI . . O corpo s P a umerário
dores de nossas próprias vidas", O indivíduo tende cada vez mais Mais difuso, por outro lado, outro imaginário do corpo enfa-
a se autorreferenciar, a procurar em si o que antes procura no siste- tiza a precariedade da carne, a falta de resistência, a imperfeição
ma social de sentidos e de valores no qual a existência se inscrevia. na apreensão sensorial do mundo, o envelhecimento progressivo
A procura de sentidos é fortemente individualizada. Cada ator só das funções e dos órgãos, a falta de confiabilidade de seus desem-
pode hoje em dia responder de maneira pessoal à questão da signi- penhos e a morte sempre ameaçadora. Esse modelo, ao mesmo
ficação e do valor da existência. As respostas são mais pessoais, so- tempo em que parece fazer do corpo um membro supranurnerá-
licitam os recursos criativos do indivíduo. Daí a desilusão ressenti- rio do homem, encoraja a dele se desfazer. Esse imaginário do
da pelos atores quando confrontados às questões cujas respostas descrédito censura o corpo pela pO"LICa influência sobre o Inundo.
não estão presentes. A amplitude alargada das escolhas se paga pa- O ator volta-se então, com ressentimento, contra o corpo marcado
radoxalmente numa incerteza sem precedentes. pelo pecado original de não ser um pllro objeto da criação tecno-
Na ausência de limites de significação que a sociedade não ofe- científica. Mesmo não sendo necessariamente explícito, embora
rece mais, o indivíduo procura ao seu redor, fisicamente, os limites muitas vezes o seja de modo mais o-u menos consciente, esse ima-
de fato. Experimenta nos obstáculos e na relação frontal com o ginário é o motivo qlle anima m uitas pesquisas técnicas e cierití-
murido a oportunidade de encontrar os referenciais que são neces- ficas e numerosas práticas cujo irituito é remediar as incertezas
sários para sustentar a identidade pessoal. O real tende a substituir do orgânico pela adição de procedimentos técnicos, de métodos
o simbólico; os riscos assumidos adquirem uma importância socio- J
de gestão que fazem do corpo, supostarnerrte e graças a seu au-
lógica considerável. Quando os limites dados pelo sistema de sen- xílio, um objeto maleável e sólido, esperando que seja completa-
tidos e valores perdem sua legitimidade; as explorações dos ex- U
mente desnecessário. O corpo é hoje frequentemente percebido
tremos" ganham impulso: busca de performances, de proezas, de como um arcaísmo, a relíquia indigna de uma condição humana
velocidade, de imediatismo, de frontalidade, aumento do risco, uso
que entra na era da pós-humanidade.
exagerado dos recursos físicos. O contato bruto com o mundo atra-
vés do uso das potencialidades físicas substitui o contato ca-utelo- O hornem é diferente da coisa; principalmente da máquina,
so qlle proporcionava o campo simbólico. Trata-se a partir daí de quando a nomeia, quando a integra ao sistema de significações
e de valores OLl mesmo quando decide ver nela um valor superior
33 G Cf., por exemplo, LORET, A. Généraiion glísse. Paris : Autrement, 1995.
34 Q EHRENBERG, A. Le culte de la performance. Paris: Calmann -Lévy, 1991. G 35 • LE BRETON, D. Passion d u risque. Paris: Métailié, 1991 [4. ed. corrigida,
L'Ln d itrid u in cert ain . Paris: Calmann-Lévy, 1995. 2000].

88
ao próprio valor. O homem faz de sua criação a evidência de SUa
indignidade. Lógica absurda, mas qlle lembra que a condição do melubrarr:-ento 011 de experimentações, na medida em que a noção
de humarudade torna-se facultativa para vários órgãos ou funções.
homem é tramada na dimensão simbólica e que pertence ao ho-
m e m decr e t a r q"Lle o hOLn.em é pO"LI Ca co isa.' e até m esmo nada, di- O corpo _é assim um membro supranurnerário do homem", e
ante de outras instâncias cuja superioridade é confirmada. O mes- parece qlle deve ser afastado do indivíd-uo cujo estatuto é cada vez
mo ocorre COlTI o corpo humano, rebaixado ao modelo da máqui- mais indeciso. Mecanismo biológico sobre o qual reina um homem
na, d es titu ido do valor da encarnação, da presença do homem, imaginário. Essa visão biomédica q"lle isola o corpo e deixa o ho-
visto como um objeto entre outros. Hoje, assistimos à considera- mem em suspensão, como se fosse uma hipótese secundária, sem
ção com todas as letras da metáfora que leva a fazer do corpo h1.1 - dúvida descartável, é hoje confrontada à resistência social e à crí-
mano um material disponível. Mas, através dos avanços tornados tica ética generalizada: retiradas de órgãos ou transplantes, que-
possíveis pela distinção ambígua do homem e do corpo, e pela as- bra do parentesco simbólico em favor da autoridadc médica, ex-
sirnila ção l __ec ânica d biol ógic r quento mais o corpo p erde o v a-
J
perimentos com embriões humanos ou com cé lulas, objetiva-
lor moral, mais cresce o valor técnico e mercadológico. O corpo e ção da criança, diagnósticos pré-natais que tendem à eugenia e
seus componentes transformam-se em matéria-prima preciosa e à fantasiosa supremacia absoluta sobre a vida, imaginação da ra-
rara, visto que ainda submetida à cláusula de consciência e ao de- dical manipulação genética do homem para condicionar a saúde"
bate no campo social. A estrutura que compõe o corpo Irurnario é a forma" e até lTIeSmO os corn.portarnerrtos: sonhos do acoplamen-
dividida em peças materiais que, em sua maioria, fazem parte d o to do homem com a informática na forma de cyborg. Ou então,
registro da possessão, são assimiladas a bens patrimoniais do in- mais banal, a solidão dos moribundos, a obstinação terapêutica, o
divíduo. Colocado em outro plano de valor, fazendo parte da ló - destino indeciso da morte cerebral, problema de eutanásia, etc.
gica mercadológica ou quase, essas peças são objeto de comércio e Sintomas que rodeiam a medicina confrontada muitas vezes à re-
tráfico para certos países (rins, testículos, sangue, etc.) ou de ope- jeição. O homem que ainda não havia abandonado totalmente
rações de retirada e transplantes, são isolados desse homem im- esse corpo-objeto e que se faz ouvir. O dualismo metódico da me-
ponderável: aluguel de útero, procura de embriões congelados, ma- dicina e da pesquisa biomédica é confrontado abertamente ao es-
nipulação genética, etc. pectro que faz ranger a máquina, isto é, o irid.ivíd uo que reivindi-
ca a consubstancialidade ao corpo repentinamente promovido a
A humanidade torna-se noção à modulação variável. Uma fi c-
mercadoria, o indivíduo que sabe que é de carne e de símbolo e
ção meio problemática define então o homem e supõe à sua volta,
não se recorihece bem nesse parad igma",
dando-lhe carne, uma série de órgãos e funções e verrtualrnente
destacáveis que fazem dele uma espécie de espectro cujos compo-
nentes podem ser retirados, entrando para o registro inédito d o
objeto biológico humano; em certas circunstâncias, suscetível d e
ser retirado inteiramente quando médicos solicitam fazer experi-
mentos em homens em estado de "morte cerebral", ou quando a
hora é chegada para alguns de deixar os corpos para o manipula-
dor da medicina legal ou estudantes em anfiteatros. A corporeida-
de, qlle dá ao homern a carne de sua relação com o mundo, quebra
em pedaços e se transforma num quebra-cabeça biológico consti-
tuído a partir de UlTI modelo da mecânica humana na qual cada ele-
mento é substituível por outro, eventualmente com melhor desem- 36 ê S_obre os imaginários do ódio do corpo e as fantasias de suprimi-lo da condi-
penho. O homem, fonte de sagrado na medida em que simboliza o çao humana r cf. LE BRETON, D. L'adieu au corps . Paris: Métailié. 1999.
mundo que o envolve, transforma a si mesmo em profano, cujos 87 'I) A esse respeito : EDELMAN, B. & HERMITTE, M.-A. L'homme, la n a i u r e
elementos pertencem a seu patrimônio, objetos suscetíveis de des- e~ le dr o it . Paris: Christian Bourgois, 1988. 0LE BRETON.. D. Anthropolo-
gze du corps set mo dern iié . Op. cito

90
91
Capítulo VII sariamerite momentos de exceção rruma obra que também se de-
senvolve em outras direções (por exemplo, M. Mal.1SS e S1.1aS técni-
cas do corpo; Simmel e a sensorialidade, etc.). Hoje, rrurrieroaos
Estatuto da s ologia pesquisadores elaboram/ de certa forma, a sociologia do corpo em
período integral.

I .. O canteiro de obras 11 - A tarefa


A sociologia do corpo, sem d úvida não urna sociologi~se~o­
A tarefa consiste em esclarecer as zonas escuras. sem ilusão
rial como outras, possui urn estatuto particular no campo das ciencias
nem ideia fantasiosa de supremacia, no entanto, com aquele fer-
sociais (da mesma forma qll€ a sociologia da morte, e pelas mes-
vor que deve COnd"L1Zir qualquer pesquisa, sem esquecer da hu-
rnas razões). U m objeto obstinado e dificiln ente apreens ível COIllO
mildade e d a p rud ência, nem deixar de la d o a imaginação que
a corporeidade exige uma abordagem especial, capaz de res~tuir-~e
deve presidir o exercício da reflexão. A atualização do pensamen-
a complexidade. Essa sociologia, quando torna as precauçoes epIs-
to aplicado a um campo específico na profusão infinita do mundo
temológicas adequadas, traça um caminho na diagonal d.os co-
não deve nunca esquecer que projeta, de forma eletiva, um feixe
nhecimentos constituídos ou a serem enunciados. O pesquisador
de luz fundamentado nas escolhas teóricas do pesquisador e no
é propriamente o lugar do cruzamento; como se fosse 'um espelho
saber de uma época e,.. além disso, que ela não pode explicar de
do objeto de estudo, o constrói como bricolagem, na meTI:0r. acep-
maneira definitiva a complexidade do objeto; qualquer que seja
ção do termo, no sentido de q"Lle todo saber~ mesmo o n:a:s rIgoro-
ele, sobretudo sem dúvida em se tratando da corporeidade. A som-
so, o mais fundamentado, é sempre urna bricolagem teórica, a ten-
bra e a luz se confundem com maior frequência que se distinguem
tativa de realizar a identificação provisória de seu objeto, exposta
realmente. Pensemos a esse respeito na figura de Clouzot em O
às querelas de escola e à obsolescência, mais o~ mer:-0s d~morada
corvo: na peça em que os personagens aparecem, sombra e luz de-
para chegar, da história do pensamento. A sociologia a~llc~da ao
senham fronteiras de contornos suaves; mas ainda assim d iscer-
corpo desenha uma via transversal no contine:r:te das c,le~clas s.o-
níveis. Um sopro sobre a vela e ela oscila. Onde está a sombra,
ciais, cruza permanentemente outros campos epistemológicos (~lS­
onde está a 11.1Z? Onde está a verdade, 01.1 melhor, a pertinência da
tória, etnologia, psicologia, psicanálise, biologia, medicina, etc.) dian-
pesquisa, senão nas condições de sua pr'od uçâo, em permanência
te dos quais afirma a especificidade de seus métodos e ferramentas
submetidas à d vida, ao rigor, à troca com os outros. Como ima-
ú
de pensamento. A análise ql.le faz dificilmente é desenvolvida sem o
ginar uma sociologia não dialógica? E sobretudo quando se trata
controle das influências que recebe dessas disciplinas, sem man-
de elucidar as lógicas sociais e culturais que atravessam e impreg-
tê-las no nível respectivo de pertinência sob o risco de diluir sell ob-
nam a corporeidade. Esta última é um abismo que, com uma espé-
jeto. O corpo é a interface entre o social e o individual, entre a natu-
cie de arrogância tranquila, nos coloca o desafio de apreendê-la;
reza e a cultura, entre o fisiológico e o simbólico; por isso, a abor-
afirma com força incomparável que a experiência nunca existe no
dagem sociológica 011 antropológica exige prudência partic~lare a
estado selvagem. Qualquer relação com o corpo é o efeito de cons-
necessidade de discernir com precisão a fronteira do objeto.
trução social. Para o pesquisador, também é o fruto da conquista,
Essa sociologia ainda está em construção, não obstante as aqui- do olhar, mesmo que fosse o mais exigente, e conseql1entemen-
sições de pesquisadores de diferentes nacionalidades e as tendên- te de categorias mentais específicas.
cias de pesquisas já citadas. A análise sociológica aplicada.ao co~po
Se a sociologia do corpo já anunciou inúmeros argumentos a
permanece constante na sociologia desde a origem, com inflexões
seu favor sobre a pertinência possível da perspectiva, se está em
diferentes de acordo com a época, mas a partir dos anos 1960 o es-
posição de fornecer dados significativos,.. ainda se encontra dian-
forço de pesquisa é sistematizado; os trabalhos não são mais neces-
te de uma tarefa imensa. Ela deve desse modo dedicar-se ao in-

92
93
ventário metódico das modalidades corporais em uso nos diferen- ~i,b Iiografia
tes grllpos sociais e culturais, distinguir as formas e as significações,
as vias de transmissão. Dedicar-se também a comparações entre os
grupos, a encontrar novas emergências de gestos, de posturas, de a) Generalidades
práticas físicas. Inventariar as representações do corpo ql.le)' hoje,
enchem nossos olhos (modelos energéticos, mecânicos, biológi- ARGYLE, M. Bodily communicaiion, London: Metlruen, 1975.
cos, cosmológicos, etc.), distinguir as influências recíprocas. Sem
BENTHALL, J. & POLHEMUS, T. The body as a medium ofexpres-
esquecer das representações associadas aos diferentes segmentos
sion, New York: Dutton, 1975.
corporais, ou ao próprio corpo em seLl conjunto, os valores que en-
cama, as repulsões que suscita, etc. Além disso, a modernidade, com BERNARD, M. Le corps. Paris: Delarge, 1976.
a rapidez d.as mudanças qlle implica, o surgimento ele doen.ças como
a Aids, modifica coristanternente as atitudes diante do corpo e _ _ _o L 'express ioiié du corps . P aris: Delal"ge, 1976.
diante dos modos de usá-lo. Ela remodela os imaginários coleti- BERTHELOT, J.-M.; DRUHLE, M.; CLEMENT S.; FORNE, J. & 1
vos. Isso ocorre da mesma forma com os novos dados médicos: M'BODG, G. Les sociologies et le corps. Curreni Socíology, 33, 2,
biotecnologias, retiradas ou transplantes de órgãos, etc. 1985.
A modernidade desvenda ao sociólogo um campo infinito de
possíveis pesquisas. Outro setor fundamental da pesquisa consis- BLACKING, J. The anthropoIogy ofthe body. New York: Academic
te na explicação das lógicas sociais e culturais que atravessam o Press, 1977.
corpo, isto é, a parte da dimensão simbólica por exemplo, nas per- Body and society (primeiro número, 1995. Sage Publications).
cepções sensoriais, nas expressões das emoções, etc. Esclarecendo
as modalidades sociais e culturais das relações que estabelece no BüLTANSKI, L. Les usages sociaux du corps. Annales, n. 1, 1974.
corpo, o próprio homem se descobre na extensão de sua relação
EFRON, D. Gesiure, race and culture. The Hague/Paris: Mouton,
com o mundo. A sociologia do corpo é a sociologia do enraizamen-
1972.
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