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Ficha 6 · Cesário Verde, Cânticos do Realismo


(O Livro de Cesário Verde)
Lê atentamente a quarta e última parte do poema “O sentimento dum ocidental” de Cesário
Verde.

IV
Horas mortas
O teto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras1;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera2 azul de transmigrar3.

5 Por baixo, que portões! Que arruamentos!


Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais4, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche5 espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta,


10 A dupla correnteza augusta6 das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas7 e trinadas8,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente


Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
15 Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,


Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
20 Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,


E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

25 Mas se vivemos, os emparedados,


Sem árvores, no vale escuro das muralhas!…
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir estrangulados.

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Domínio Educação Literária Ficha 6

E nestes nebulosos corredores


30 Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos9 sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;


Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
35 E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,


Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
40 Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas10.

E, enorme, nesta massa irregular


De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

VERDE, Cesário, 2015. O Livro de Cesário Verde.


Porto: Porto Editora (pp. 58-59)

1. águas-furtadas; 2. fantasia, ilusão; 3. passagem de um lugar, um país,


para outro ou de um corpo para outro; 4. peças de madeira com que se
protege o lado exterior de janelas e montras; 5. carruagem; 6. magnífica;
7. funestas, infelizes; 8. ritmadas; 9. aos bordos: cambaleando;
10. varandas.

Apresenta, de forma estruturada, as tuas respostas às questões.


1. Justifica o título atribuído pelo autor ao último momento de “O sentimento dum ocidental”,
tendo em conta a progressão cronológica que articula as diferentes secções do poema.

2. Ao longo do texto, o sujeito poético descreve o meio citadino que perceciona.

2.1. Relaciona a caracterização do ambiente com os efeitos que o mesmo lhe provoca.

3. Identifica o recurso expressivo presente nas passagens “vale escuro das muralhas” (v. 26) e
“massa irregular / De prédios sepulcrais” (vv. 41-42) e explicita o seu valor.

4. Destaca o efeito de sentido produzido pela anteposição dos adjetivos ao nome que
caracterizam nos versos “E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente, os
cães parecem lobos.” (vv. 35-36).

5. Explica brevemente de que modo as estrofes de “Horas mortas” exploram tematicamente o


imaginário épico que percorre o “O sentimento dum ocidental”.

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