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Sebrae em Alagoas
Presidente do Conselho Deliberativo
Wilton Malta de Almeida
Diretor Superintendente
Marcos Antônio da Rocha Vieira
Diretora Técnica
Renata Fonseca de Gomes Pereira
Diretor Administrativo Financeiro
José Roberval Cabral
Revisão
Norma Baracho
Projeto Gráfico
Gisela Abad
Assistente de diagramação
Waleshka Vieira
Foto da capa
Humberto Medeiros
Nota Introdutória | 9
Apresentação - A Civilização Açucareira | 13
Manuel Correia de Andrade
Cultura, Patrimônio e Civilização | 21
Fátima Quintas
Cana, Engenho e Açúcar | 49
Fátima Quintas
A Família Patriarcal - Personagens e Costumes | 69
Fátima Quintas
Casa-Grande, Capela e Senzala | 109
José Luiz Mota Menezes
Religiosidade - Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar | 125
Raul Lody
Açúcar no Tacho | 133
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco | 145
Tânia Kaufman
A Moda como Representação Social |159
Fátima Quintas
À memória de Manuel Correia de Andrade,
geógrafo,
historiador,
ensaísta,
cujos estudos sobre
a terra, o homem e o Nordeste
constituem um marco
na interpretação da cultura brasileira.
A verdade é que no Brasil, ao contrário do que se
observa noutros países da América e da África de
recente colonização européia, a cultura primitiva –
tanto a ameríndia como a africana – não se vem
isolando em bolões duros, secos, indigestos,
inassimiláveis ao sistema social europeu.
Gilberto Freyre
NOTA INTRODUTÓRIA
Fátima Quintas
A CIVILIZAÇÃO AÇUCAREIRA
15
Apresentação - A Civilização Açucareira
Assim, nessa faixa litorânea, que se estende da foz do Potenji até a Bahia
de Todos os Santos, desenvolveu-se a chamada Civilização do Açúcar, estu-
dada em profundidade pelo mestre Gilberto Freyre, em livros magistrais como
Casa-grande & senzala (4) e Sobrados e mucambos (5), enquanto as implicações
ecológicas do avanço dessa cultura seriam analisadas em Nordeste (6).
A Civilização do Açúcar permitiu a formação de uma sociedade aristo-
crática, dominada por grandes e médios proprietários de terra, os sesmeiros,
que viviam em casas grandes, ricas e luxuosas, dispondo de uma imensa quan-
tidade de serviçais, além de artífices especializados na fabricação do açúcar e da
aguardente. Os serviçais, inicialmente indígenas nativos da América, foram em
seguida substituídos por escravos negros, trazidos da África. Os escravos for-
mavam dois grupos distintos, os que trabalhavam na agricultura, sujeitos à
submissão total, e os que eram destinados aos serviços domésticos, na casa-
grande, gozando de alguns favores e regalias. Os cronistas coloniais que vive-
ram na área e conviveram com escravos e com senhores, dão um testemunho
de grande valor, dos hábitos e costumes da sociedade colonial e das transforma-
ções que ela foi sofrendo à proporção que o tempo passava; alguns cronistas
famosos como Antonil, fizeram uma análise profunda da sociedade da época.
Mas, se no século XVI, o açúcar de cana, usado como alimento, se
generalizara na Europa, o mesmo ocorreu no Brasil; por isso, à proporção
que o povoamento se expandia através de áreas menos povoadas, sobretudo
no Sertão, expandia-se também a cultura da cana-de-açúcar, quer cultivada
em pequenas parcelas, quer, às vezes, pelos próprios agricultores livres –
pequenos proprietários ou rendeiros – com a finalidade de produzir os tabletes
de açúcar, chamados em geral de “rapadura,” e a cachaça. Essas unidades de
produção eram os engenhos rapadureiros que permaneceram primitivos até
o século XX, movidos a tração animal, em geral bovinos. Enquanto isso, os
engenhos do litoral evoluíram do engenho movido a tração animal, os cha-
mados engenhos de “bestas”, para os engenhos reais movidos a água, para
os engenhos a vapor, já no século XIX, e, finalmente, para as usinas de açúcar
de pequeno, médio e grande portes.
Os engenhos rapadureiros tornaram-se famosos no Cariri cearense, na
Ibiapaba, no Brejo Paraibano, na serra de Triunfo em Pernambuco e em áreas
úmidas dos sertões da Bahia, de Minas Gerais e de Goiás.
3. As grandes regiões açucareiras de Pernambuco e Alagoas, assim como
da Bahia, no entanto, vêm perdendo espaço e importância para outras regi-
ões açucareiras, como as situadas no Baixo Paraíba, Rio de Janeiro e, mais
recentemente, em terras situadas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais e São Paulo (7).
Nas áreas onde as condições climáticas, as técnicas de cultivo permiti-
rem e o mercado internacional estimular, os canaviais tendem a se estender,
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Manuel Correia de Andrade
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Apresentação - A Civilização Açucareira
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Manuel Correia de Andrade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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(10) CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2003.
19
CULTURA, PATRIMÔNIO
E CIVILIZAÇÃO
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
Tradição e memória | 43
Região e regionalismo | 45
Bibliografia | 48
Fátima Quintas
EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CULTURA
O termo cultura vem do latim cultura, ae, derivado do verbo colligere, “lavou-
ra”, “cultivo dos campos”, “colheita”, ação ou maneira de cultivar a terra ou de
explorar produções naturais. Acrescente-se que é sinônimo de agricultura –
cultura agri, do latim ager, agri, campo. Fundar cultura era, pois, plantar uma
determinada espécie ou selecionar o terreno para um cultivo adequado. Por
conseguinte, a cultura representava o exercício da inteligência humana
direcionado ao tratamento dos plantios. A acepção primeira esteve ligada à
terra e à natureza, conforme o emprego ainda da semântica usual: cultura da
cana, cultura do algodão, cultura do café, etc. Depois, a idéia de colheita
assumiu dimensão mais ampla, agregando o sentido de conhecimentos adqui-
ridos. Mesmo nessa nova contextualização, percebe-se a fidelidade etimológica,
ao denotar uma outra forma de colheita – a do espólio social. Logo, a cultura
é a contribuição humana ao habitat; aquilo que o homem adicionou à nature-
za. Em outras palavras: o modo de vida de um povo, a sua cosmovisão. Por sua
vez, a sociedade é o agregado organizado de indivíduos que adotam o mes-
mo modo de vida. Em resumo: uma sociedade é composta de um conjunto de
pessoas; o modo como se comportam essas pessoas é a cultura. A expressão,
“quanto mais distante da natureza, mais próximo da cultura”, destaca a in-
terferência do homem nas coisas da natureza, a ponto de distanciar a cultura
do seu núcleo-fonte.
Faço um parêntese: a palavra cultura relacionada à pessoa erudita pro-
vém do germanismo kultur. Na Alemanha, por volta de 1793, o termo rece-
beu a significação de aperfeiçoamento do espírito humano ou de um povo.
Ironicamente, justo na Alemanha, o marechal nazista Hermann Goering pro-
nunciou a melancólica frase: “quando ouço a palavra cultura pego no revól-
ver”. A divulgação do vocábulo foi de início uma arma política de aliciamento
intelectual – kultur kampf, luta pela cultura. A rádio oficial de Berlim, duran-
te a Segunda Guerra Mundial, sobretudo entre 1942–45, repetia insistente-
mente o slogan: “Alemanha! Defensora da Cultura!”. A propaganda popula-
rizou-se. Ainda assim, a sua decodificação vincula-se à idéia do indivíduo
que congrega um maior número de conhecimentos adquiridos, aquele que ar-
mazenou um inventário intelectual digno de ser realçado. Do que se conclui
que o “imaginário coletivo” incorpora razões nem sempre desconhecidas
pela própria razão.
Uma das melhores definições de cultura – até hoje aceita e referenda-
da pelos estudiosos – foi proposta por Edward Tylor, em 1871, no século XIX:
“Um conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei,
25
Cultura, Patrimônio e Civilização
26
Fátima Quintas
***
27
Cultura, Patrimônio e Civilização
28
Fátima Quintas
O POTLACH E O KULA
Especificidades culturais da sociedade “primitiva”
ORIGEM DA CULTURA
Naturalmente que não sei contar, repetindo Câmara Cascudo, como a primeira
cultura começou e nem tampouco quais os primeiros elementos que a compu-
seram. No entanto, há indícios da importância de algumas descobertas: o fogo, o
uso dos metais, a roda para a História Social da Humanidade. Em razão desses
artefatos, outros foram se desenvolvendo no arcabouço daquilo que se chama
Cultura. No primeiro momento, objetos incipientes; hoje, sofisticados em
tecnologias.
Uma pergunta me instiga: Por que os primeiros homens escolheram a
atividade da caça e da pesca como maneira de angariar alimentos de substância
viva, implicando no ato da morte de outro ser, para manter a sua sobrevivên-
cia? A colheita de frutos praticava-se de maneira embrionária e dispersiva. A
29
Cultura, Patrimônio e Civilização
EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO
Civilização vem do latim civis – cidadão, civilidade, civismo, civilização, cidade
– e diz respeito à cultura das cidades. Tal conceito, como todos os conceitos,
admite uma série de variações. Karl Marx lembra que a sede da civilização antiga
era a cidade, enquanto Aristóteles ao usar a expressão zoon politikon se referia ao
homem habitante das cidades. O homem político corresponde ao que participa
da Ágora, ou seja, do debate no espaço público. Na Grécia, o espaço público – a
Ágora – configurava a polis e era responsável pela construção da cidadania. As
idéias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos – na Grécia e na
Roma antigas, nos burgos da Europa medieval, nas cidades do Renascimento.
Mas a cidadania moderna, embora influenciada por essas concepções antigas,
possui um caráter próprio. Primeiro, a cidadania formal é hoje quase universal-
mente definida como a condição de membro de um Estado-Nação. Em segun-
30
Fátima Quintas
do lugar, tem se tornado cada vez mais significativa a cidadania substantiva, que subs-
creve a posse de um corpo de civis (leis), políticos e especialmente líderes sociais.
A civilização grega antiga foi controlada pela cidade, volta-se a falar na
polis. As cidades da Mesopotâmia, anteriores à Grécia, já utilizavam a urbe como
pólo de atividades mercantil e cultural – por exemplo, chegavam a incluir cam-
pos e plantações de tâmaras que eram cultivadas por empresários urbanos den-
tro dos muros da cidade. A situação seria revertida na Idade Média, quando a
sede da propriedade fundiária coincidia com o locus do poder – o campo – e as
cidades existiam principalmente como mercado para a troca do excedente pro-
duzido pelos nobres em seus imensos latifúndios.
A cidade ganhou força com a formação da burguesia, o burgos, embora
não se possa desprezar o caráter fundiário que a terra assumiu como poder
econômico ao longo da História. Esta proposição levou o sociólogo Max Weber
a distinguir entre civilização com base na cidade, política no sentido literal da
palavra, pois fundamentada na polis, e civilização econômica, no sentido literal
de oikos, ou família, fundamentada na economia de núcleos familiares amplos.
O Brasil se desenvolve por entre os contatos do homem econômico com o
homem político de Weber. Tal formatação induz ao modelo que Gilberto Freyre
caracterizou como RURBANO, ou seja, uma sociedade entrelaçada de costumes
e hábitos tanto rurais quanto urbanos.
31
Cultura, Patrimônio e Civilização
32
Fátima Quintas
33
Cultura, Patrimônio e Civilização
PATRIMÔNIO
o sentimento de pertença
O que dá dignidade a uma pessoa é a segurança de pertencer a alguma genealogia
– tanto biológica quanto cultural. O mundo está carregado de símbolos que
fazem parte da nossa biografia individual e coletiva. O homem solto no univer-
so, sem história, sem tradição, sem origem cultural, é um homem desterrado
(Fátima Quintas).
34
Fátima Quintas
O FENÔMENO DA REMOTIZAÇÃO
PATRIMÔNIO MATERIAL
a vida social das coisas
35
Cultura, Patrimônio e Civilização
O que constitui uma cidade e lhe faz a beleza são as casas; portanto, nunca é
demais aproximá-las. Tal é ainda hoje a teoria dos brasileiros de antiga linha-
gem, para os quais o alargamento das ruas parece uma aberração. É ainda a
influência dessa idéia que explica a ausência completa de vegetação no centro das
cidades intertropicais. A vegetação significa o campo, e as árvores não são julgadas
dignas de se mesclarem às obras do homem. [...] Na arquitetura doméstica, os
36
Fátima Quintas
costumes são o espírito que engendra, a alma que dá forma à matéria (FREYRE,
Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1960. vol. II, p. 802, 814-815).
Como deixar [...] de exprimir o meu espanto ao ver nas cartas de Vauthier, ainda
mais do que no seu diário, voltar-se o francês para as casas-grandes e os sobra-
dos de Pernambuco da primeira metade do século XIX, com o olhar de quem,
fixando-se por mais tempo no problema, acabaria talvez descobrindo aí os prin-
cipais pontos de referência para o estudo da nossa história social (FREYRE,
Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1971. p. 82).
37
Cultura, Patrimônio e Civilização
Cada móvel com um sigilo, com uma cumplicidade, com um afeto quase
externo e dizível. Um aparador do século XIX guarda silenciosamente histórias
de várias gerações. E como são discretos no seu gesto confessional!
A representação do que é táctil ultrapassa a simples materialidade física –
matriz indispensável para o acervo da História. Basta pensar nas escarradeiras,
nas conversadeiras, no urinol, na cama de solteirão,
nas namoradeiras, no hábito de deixar um pouco de
comida no prato como sinal de boa educação, nos
lustres dos salões, nas cortinas pesadas a esconder o
ambiente, nos severos leitos nupciais... para ideali-
zar-se os interiores das moradas dos séculos XVII,
XVIII e XIX. As fachadas das casas exprimem teste-
munhos valiosos. Esclareço o tema com mais uma
citação de Freyre:
Há casas cujas fachadas indicam todo o gênero de vida dos seus moradores. Os
mais íntimos pormenores, os gostos, os hábitos, as tendências. Mas não são
apenas as casas que falam e revelam a vida, o espírito e o gosto dos donos. Falam
também por sinais esses outros surdos-mudos que são os móveis (FREYRE,
Gilberto. Artigos de jornal. Recife: Edições Mozart, [s.d.]. p. 82).
PATRIMÔNIO NACIONAL
um breve histórico de suas políticas
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Fátima Quintas
Quem viaja pelo interior de Minas percorrendo suas velhas cidades, Sabará,
Ouro Preto, São João Del-Rei, Mariana e tantas mais, não pode deixar de ter a
impressão triste que tive, a pena infinita que se sente vendo completamente
esquecidos aqueles vestígios tão expressivos do passado, de um caráter tão mar-
cado, tão nosso. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa,
a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de cousas que a
gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós. Não sei – Proust devia
explicar isso direito. (“O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, artigo pu-
blicado na Edição Especial de O Jornal, em 1929).
39
Cultura, Patrimônio e Civilização
Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses
sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso come-
çou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido (BAN-
DEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Editora da Casa do
Estudante do Brasil, 1957. p. 43-45).
40
Fátima Quintas
Afinal desencantei a viagem a Cambuquira. Estou aqui desde o dia 15, e parece
que as águas estão me fazendo grande bem. [...] Anteontem fui numa excursão
a Campanha, cidadezinha morta que fica a uns ¾ de hora daqui. Faz agora
justamente 30 anos que cheguei lá carregado. Verifiquei que era um camelo em
1905, pois não senti então a delícia que são aquelas ruas tão simples, tão modes-
tas, com os seus casarões quadrados, quase todos com bicos de telhado em forma
de asa de pombo. Há lá uma rua Direita (hoje tem nome de gente) que é um
encanto: tão genuinamente brasileira, tão boa, dando vontade de morrer nela
(Arquivo da Fundação Gilberto Freyre).
41
Cultura, Patrimônio e Civilização
42
Fátima Quintas
***
TRADIÇÃO E MEMÓRIA
Os nexos de uma consciência vivente perduram enquanto há memória. O traço
de individualidade tributa às lembranças acumuladas um crédito de valor
intransferível. Recordar pode vir a ser uma leveza de fruição ou um peso trau-
mático do passado que vai e que vem num círculo vicioso. O escritor colombia-
no Gabriel García Márquez diz na epígrafe da sua autobiografia: “A vida não é a
que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Desse contar ribomba a construção existencial de cada um. As biografias hu-
manas comportam vivências extraordinárias, ou seja, experiências para além
do que é plausível à observação ordinária. A elas outorga-se a consistência
ontológica, porque a ausência do não feito redundaria no nada. Na memória
habita a textura do ser.
43
Cultura, Patrimônio e Civilização
44
Fátima Quintas
um longe que parece não ser nosso, mas que o é, com todos os seus fluxos e
refluxos. Arredios aos resíduos desse legado, os continuísmos se romperiam,
desagregando a pirâmide psíquica. Um homem sem raízes é um homem morto
na sua integração ao mundo – alado, solto, imbuído da síndrome de orfandade
cultural.
Reavivo o princípio da pertença porque é deste sentimento que se sugam
os ajustes e os desajustes do Sujeito pensante. A sua ausência inflamará sérias
distorções, provocadas pela carência sociocultural. Os conluios formados pelos
grupos carimbam exatamente a necessidade dos selos coletivos: ligamentos cultu-
rais que se firmam para sancionar a homogeneidade do complexo sociológico.
Cumpre afiançar que o patrimônio, a memória, a tradição confluem em
um mesmo direcionamento, qual seja, o do sentimento de pertença. Sem ele, tor-
na-se complicado sedimentar laços identitários, uma vez que a pessoalidade
demanda um mastro de valores comuns para os quais converge a imprescindí-
vel sensação de pertencer a alguém ou a algo que assegure solidez existencial.
REGIÃO E REGIONALISMO
Os tópicos acima referenciados vão desaguar na idéia de região-regionalismo.
Por região, aqui se conceituam os vetores físicos e culturais delimitados pelo
espaço; por regionalismo, amplia-se o conceito a padrões atinentes a um grupo
cultural que pode estar inserido em um dado espaço ou dele transcender, im-
portando para outros locais os pressupostos valorativos que o balizam. Tomo
como exemplo as manifestações culturais congêneres em regiões diferentes.
Ressalte-se, contudo, que o regionalismo encrava-se dentro do processo
civilizatório mais amplo, isto é, dentro da Civilização onde os blocos culturais se
encaixam. Portanto, o regionalismo subjaz à Civilização e não extrapola, na sua
dimensão autêntica, os seus pontilhados.
O mundo globalizado, por incrível que pareça, tem recrudescido os prin-
cípios do regionalismo justamente porque abala o sentimento de pertença, trisca
as raízes, uniformiza realidades. Pertencer a um mundo anônimo e impessoal
não é pertencer a uma região que tem nome e proximidade. Há um fosso enor-
me entre uma coisa e outra. O mundo representa a exterioridade maior, algo
superior à apreensão de cada um, aquilo que se esgueira para além das possibi-
lidades do indivíduo. Igualar diferenças é anular identidades. Padronizar costumes
é dissolvê-los numa atmosfera de ninguém. Por essa razão, que leva a uma
outra, a da busca de origem, o regionalismo tende a fortalecer os sinais pecu-
liares a um conjunto cultural: seus padrões distintivos. E antes do homem
diluir-se nos fantasmas da globalização, ele vem intentando realçar os
atavismos, o que quer dizer: as aderências à origem.
O regionalismo não pode ser compreendido em oposição ao
45
Cultura, Patrimônio e Civilização
46
Fátima Quintas
Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradi-
ções ilustres e em nitidez de caráter. [...] O Nordeste tem direito de conside-
rar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar à cultura ou à
civilização brasileira autenticidade e originalidade e não apenas doçura ou
tempero. [...] Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a
tradição de criador ou recriador de valores para tornar-se uma população
quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de
antiquários e de arqueólogos (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 52-53).
47
Cultura, Patrimônio e Civilização
BIBLIOGRAFIA
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1975.
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CASCUDO, Câmara. Civilização e cultura. São Paulo: Global, 2004.
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FREYRE, Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1971.
______. Artigos de jornal. Recife: Edições Mozart, [s. d.].
______. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2000.
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LEMOS, Carlos A. C. O Que é patrimônio histórico?. São Paulo: Brasiliense, 1981.
LINTON, Ralph. O homem, uma introdução à antropologia. São Paulo, 1943.
MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
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SPENGLER, Oswald. A decadência do ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1964.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,
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______. Economy and society, 1921.
48
CANA, ENGENHO E AÇÚCAR
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
Origem da cana | 53
O massapê | 56
A escravidão | 64
Bibliografia | 67
Fátima Quintas
ORIGEM DA CANA
Originária do Sudeste asiático (provavelmente da Índia), a cana-de-açúcar
alcançou a Pérsia e dali foi levada pelos conquistadores árabes à costa orien-
tal do Mediterrâneo (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar, 1971; FREYRE
Gilberto. Açúcar, 1987; ANDRADE, Manuel Correia de. Cinco séculos de coloni-
zação, 2004; GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006). Há, entretanto, os
que admitem ser a planta nativa do Pacífico, talvez da Papua, Nova Guiné, onde
já era conhecida há cerca de 12 mil anos (NUNES, Naidea Nunes. Palavras doces,
2003). Ao migrar pelo Mediterrâneo, os árabes levaram-na a Gênova, Veneza,
Sicília e ao sul da Espanha; em Portugal, a sua cultura teve início no Algarve,
ao tempo de D. João I (1385–1433), Mestre de Avis, no ano de 1404, posterior-
mente, transportada pelo Infante D. Henrique para a Ilha da Madeira, cen-
tro de grande irradiação do cobiçado produto. Bom lembrar que a Ilha da
Madeira, no século XV, foi a maior produtora de cana do mundo, cuja ascen-
dência vertiginosa correspondeu ao seu proporcional declínio, então nos mea-
dos do século XVI, diante da efervescência do cultivo no Brasil. Acrescente-se
que foi dessa mesma Ilha da Madeira que a planta chegou até nós pelas mãos
dos colonizadores portugueses, nas primeiras décadas do quinhentos.
Segundo o historiador F. A.Varnhagen (História geral do Brasil antes da sua
separação e independência de Portugal, 1975), baseado em documentos relativos a
pagamentos de impostos à Alfândega de Lisboa do açúcar proveniente de
Pernambuco, datados de 1526, a cana-de-açúcar já havia sido introduzida no
Brasil antes da chegada do seu primeiro donatário. E mais: no período da feitoria
de Cristóvão Jacques, teria sido cultivada “parcimoniosamente” em Itamaracá,
em 1516. Do que se infere que ela fez parte da paisagem pernambucana desde o
início do século XVI. Oficialmente a sua introdução na Terra de Vera Cruz se
deu por meio de Martim Afonso de Souza, em São Vicente, no ano de 1532.
A CAPITANIA DE PERNAMBUCO
berço da civilização do açúcar
Vingando a cana-de-açúcar na Ilha da Madeira, os portugueses a cultiva-
ram em Cabo Verde, Açores e São Tomé, tentando potencializar um produto em
alta no mercado internacional. Afinal, o ouro branco, assim chamado o açúcar,
representava uma das melhores e mais caras iguarias da Europa, bastante cobi-
çada pelos reis, desejosos de aumentar os seus impérios. Para tanto, fazia-se
necessário terra propícia à fertilização de uma gramínea poderosa no tocante à
comercialização e a lucros avantajados. Os olhos do mundo voltavam-se para os
grãos brancos, brancos, brancos e doces e fustigadores da gula econômica.
53
Cana, Engenho e Açúcar
54
Fátima Quintas
***
55
Cana, Engenho e Açúcar
O MASSAPÊ
O massapê – terra que se agarra aos pés com “modos de garanhona” – é o
solo predominante da Zona da Mata, de aparên-
cia viscosa, oleosa, cor avermelhada (aluviais de
massapê e aluviais de barro vermelho) que, aliado
à condição climática – clima quente e úmido com
duas estações bem pronunciadas durante o ano,
uma seca, outra chuvosa – oferece condições ex-
cepcionais para a semeadura da cana-de-açúcar.
Assim se pronuncia Freyre:
56
Fátima Quintas
Sem essa argila especial, sem esse húmus generoso, sem essa resistên-
cia de terra, a paisagem do Nordeste não teria se alterado tão decisivamente
no rumo de um latifúndio canavieiro ancho de demandas sociais e humanas.
A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana. O que
chama a atenção é o que essa gleba fascinante representou para a civilização
moderna mais sedentária que o português fundou nos trópicos: uma civili-
zação que escapou do extrativismo do pau-brasil, fixando-se numa região e
gestando uma sociedade singularíssima, no sentido material e sociocultural.
ENGENHO
a manufatura do açúcar
57
Cana, Engenho e Açúcar
Muito deve o Brasil agrário aos rios menores porém mais regulares: onde
eles docemente se prestaram a moer as canas, a alagar as várzeas, a enverdecer
os canaviais, a transportar o açúcar, a madeira e mais tarde o café, a servir
aos interesses e às necessidades de populações fixas, humanas e animais,
instaladas às suas margens; aí a grande lavoura floresceu, a agricultura
latifundiária prosperou, a pecuária alastrou-se (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966, p. 98-99).
***
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Fátima Quintas
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Cana, Engenho e Açúcar
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Fátima Quintas
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Cana, Engenho e Açúcar
O canavial desvirginou todo o mato grosso do modo mais cru: pela queima-
da. A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os claros por onde se
estendeu o canavial civilizador mas ao mesmo tempo devastador (FREYRE,
Gilberto. Nordeste, 1985, p. 45).
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Fátima Quintas
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Cana, Engenho e Açúcar
A ESCRAVIDÃO
Assim como o engenho não perdeu a sua força social, a escravidão iguala-se
na mesma intensidade, com uma diferença fundamental: a ela adere a
culpa de uma sociedade que almeja deslembrar a mácula histórica. Uma
patologia social que traz o gosto amargo de fel, tão distante da doçura de mel
do dulcíssimo açúcar. Rima cruenta que exibe a fereza do sistema escravocrata.
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Fátima Quintas
SABOR E DOCE
do alimento à gastronomia
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Cana, Engenho e Açúcar
A satisfação de saborear um doce foi tão intensa que não se comia açú-
car nos engenhos na sexta-feira santa por representar um prazer incompatí-
vel com a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O gosto deriva do cultural. Aprende-se a saborear aqueles pratos que
fazem parte da nossa culinária. O sabor se educa; por isso gostamos de uma
determinada receita e não de outra. Há todo um aparato estimulativo para a
escolha do que se quer comer. E este sabor depende do jeito de preparar o
alimento. Daí a importância em separar-se o alimento in natura do alimento
cozinhado, regado a temperos, feito para açular o apetite. A gastronomia
resulta da cultura, ou seja, da combinação dos ingredientes e da forma do
cozinhamento. O antropólogo Levi-Strauss, no seu livro O cru e o cozido,
apresenta com clareza essa dupla função: o cru equivale ao estado de nature-
za; o cozido, ao cultural. Exemplificando: a casa-grande preferia os alimen-
tos cozidos, enquanto os africanos apreciavam os assados.
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Fátima Quintas
BIBLIOGRAFIA
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1975.
67
A FAMÍLIA PATRIARCAL
Personagens e Costumes
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
Os corredores da casa-grande | 80
A reclusão da portuguesa | 80
O rito de passagem da Primeira Comunhão | 82
A festa de casamento | 84
O círculo da endogamia | 86
Decadência da sinhá-dona |88
Ecos da africanidade | 90
A imagem da mãe-preta | 90
A prostituição doméstica | 91
A culinária e a negra | 94
A influência deletéria da sífilis | 99
A religião do sexo | 101
Bibliografia | 106
Fátima Quintas
FAMÍLIA
Da origem lusitana à formação personalizada
A PLASTICIDADE DO PORTUGUÊS
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A Família Patriarcal
FAMÍLIA
a unidade colonizadora
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Fátima Quintas
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A Família Patriarcal
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Fátima Quintas
(...) A vida dos aristocratas do açúcar foi lânguida, morosa. (...) Os dias se
sucediam iguais; a mesma modorra; a mesma vida de rede, banzeira, sensual. E
os homens e as mulheres, amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa e
de tanto andarem de rede ou palanquim (FREYRE, Gilberto. Casa-grande &
senzala, 1966, p. 466-467).
A POPULAÇÃO NATIVA
A FÊMEA
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A Família Patriarcal
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Fátima Quintas
pelo homem branco – o oposto dos seus pares: índios nômades. Daí o espanto
das discrições acima textualizadas.
E para cá, ressalte-se, não desembarcou nenhuma elite portuguesa com
dotes de primorosa educação. Nem a erudita nem a sexual. Ao contrário, restos
de homens, vocações explícitas para o erótico, sobras do banquete ibérico. Se
não foram os degredados tão anunciados, historicamente falando – em decor-
rência das Ordenações Manuelinas (1521) –, foram homens ambiciosos, capazes
de enfrentar duros obstáculos para atender aos ímpetos da intemperança.
Para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal
de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da
Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte
plebéia e, além do mais, moçárabe, isto é, com a consciência de raça ainda mais
fraca que nos portugueses fidalgos ou nos do Norte, que se estabeleceria na
América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente euro-
peu (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.103).
O MACHO
Tanto a índia quanto o índio congregaram o capital básico que o colono encon-
trou em terras brasileiras, ou seja, as referências para o prazer e para o trabalho.
No prazer, a fêmea satisfez plenamente; no trabalho, o macho decepcionou.
Decepcionou por incompatibilidade cultural, por incapacidade de submeter-se
ao sistema do eito. Não resistiu; foi aniquilado pelas exigências técnicas e
emocionais da lavoura da cana, a requerer uma saúde física e mental inigualável,
que só o africano, mais tarde, ostentaria.
Em estágio cultural nômade, os nossos indígenas estavam acostumados a
um ir e vir permanente: a caça, a pesca, a guerra. Os atos repetitivos da rotina
não lhes agradavam. Apenas o conviver com a natureza lhes renovava o apetite
de vida. Tais elementos dificultaram o português a fazer uso da massa autóc-
tone. Sem as maravilhosas iguarias da Índia, restava a imensidão da terra a
ser explorada. A agricultura seria o germe latente da colonização que se ini-
ciava. Não havia outra alternativa. Levar a termo o trabalho da lavoura re-
presentava a saída possível. Assim foi feito. A princípio, com o índio escravi-
zado, mas sem os resultados à altura da ambição portuguesa.
E o reinol, melhor dizendo, o português, apelou para o africano.
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A Família Patriarcal
OS CORREDORES DA CASA-GRANDE
A RECLUSÃO DA PORTUGUESA
A bagaceira não poupou a vida da mulher. Fê-la um ser amorfo, sem vonta-
de, pronta para agradar à paisagem da cana, tão imperativa nos seus quere-
res. Madrugadoramente aprendeu a portuguesa o caminho da sujeição por-
que assim a ordem social determinava. O modelo patriarcal usou de todos os
artifícios, contanto que essas mulheres introjetassem sentimentos de sujei-
ção e pacatez. E apressou-se em entronizá-las em retiros quase religiosos;
guardá-las para não serem vistas; reservá-las em ermos enigmáticos; cobri-
las com o véu da pudicícia. Assim garantia uma feição doméstica adequada
aos ditames do patriarcalismo.
E o retraimento começava pelos próprios aposentos. A disposição dos
cômodos mostrava uma arquitetura conventual, a recatar a mulher, ou me-
lhor, a marginalizá-la na vida cotidiana. Além da reclusão física, sofreu a vigi-
lância de argutos observadores: da mucama, sempre ao seu lado; do marido,
com olhos e ouvidos atentos para repreendê-la; do pai, a mensurar o tama-
nho da prole. Ao derredor, dedos em riste.
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Fátima Quintas
Mas a essa mulher passiva, ante o marido, tocava a distinção de ser uma espécie
de objeto quase religiosamente ornamental dentro da cultura de que fazia parte,
especialmente como esposa e como mãe (FREYRE, Gilberto. Modos de homem
& modas de mulher, 2002, p. 42).
A casa compendiou o espaço que lhe confiaram e, assim mesmo, até certo
ponto: com parcimônia e prudência, sem exageros de individualidade; a prestar
contas de seus atos, mínimos atos, como se a vida dela exigisse o máximo de
perfeição.
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A Família Patriarcal
(...) A devoção católica pela Virgem Maria, glorificada como Rainha – Regina –
, em nenhuma outra região do mundo parece se ter tornado tão forte como no
Brasil. Resultado, talvez da extrema idealização da mulher aristocrática e mes-
mo da mulher negra – através do simbolismo da Mãe Preta – como componen-
tes básicos e vitais do complexo de vida familiar nas plantações. Complexo de-
senvolvido durante os dias da escravidão (FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos
trópicos, 1971, p.177).
Até certa idade, era idealizado em extremo. Identificado com os próprios anjos
do céu: andando nu em casa como um Menininho Deus. (FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos, 1981, p. 68).
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Fátima Quintas
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A Família Patriarcal
A FESTA DE CASAMENTO
Casavam-se com maridos 10, 15, 20 anos mais velhos, as portuguesinhas. Sisu-
dos, circunspectos, empavonados de tantos gáudios. Barbudos senhores de en-
genho, bacharéis, médicos, oficiais ou, mais tarde, espertos negociantes... Bigo-
des lustrosos de brilhantina, gordos, arredondados em largas barrigas, suíças
enormes, grandes diamantes no peitilho da camisa, nos punhos e nos dedos...
Os bacharéis ostentavam rubi no dedo.
Aí vinha colhê-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos. Não havia
tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes paixões lúbricas.
(...) Abafadas sob as carícias de maridos (...) muitas vezes inteiramente desco-
nhecidos das noivas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 364).
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Fátima Quintas
peças delicadas, bordados, pontos de cruz, renascenças, tarefas que exigem re-
quintes de devoção. A excelência dos trabalhos atingia níveis de tal detalhamento
que o enxoval era publicamente exposto aos convidados para ser apreciado em
valor e em beleza. Cumpria-se assim um dos objetivos da festa: o de demonstrar,
da forma mais prepotente possível, todos os “encantos” da noiva. Encantos que
se revestiam mais de dotes materiais que de outra coisa. E um bom dote não
deve ser escondido a sete chaves.
A festa do casamento pontificava um fato aguardado com arquejos de
gozo. Durava entre 6 e 7 dias. Às vezes, para maximizar a emoção, simulava-
se a captura da noiva pelo noivo. Regras de etiqueta, convenientes à celebra-
ção do conluio mais espalhafatoso do patriarcalismo. Momento, inclusive,
em que as evidências deveriam ser expostas a fim de evitar suspeitas indevidas.
O reconhecimento social do status familiar estava em jogo. Era chegada,
pois, a hora de queimar os cartuchos na saudação à vitória do açúcar. Indíci-
os econômicos, indícios sociais, indícios pessoais. Alardear sinais de sólidas
prosperidades apontava o desregramento desses banquetes. Escravos, bens,
riquezas. Quanto maior a ostentação, maior o grau de riqueza. Um Potlach
com todas as letras. O império da casa-grande media-se muitas vezes pela
extravagância das solenidades, que funcionavam como termômetros indica-
dores de prestígio do senhor de engenho. Não se poupavam esforços no
sentido de levar às “últimas conseqüências” os detalhes da cerimônia e,
adjetivamente, indicar o demonstrativo do fausto.
O casamento era um dos fatos mais espaventosos em nossa vida patriarcal. (...)
Preparava-se com esmero a “cama dos noivos” – fronhas, colchas, lençóis, tudo
bordado a capricho em geral por mãos de freiras; e exposto no dia do casamento aos
olhos dos convidados. Matavam-se bois, porcos, perus. Faziam-se bolos, doces e
pudins de todas as qualidades. Os convivas eram em tal número que nos enge-
nhos era preciso levantar barracões para acomodá-los. Danças européias na
casa-grande. Samba africano no terreiro. Negros alforriados em sinal de regozi-
jo. Outros dados à noiva de presente ou de dote: “tantos pretos” “tantos muleques”,
uma “cabrinha” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 374).
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A Família Patriarcal
CÍRCULO DA ENDOGAMIA
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A Família Patriarcal
Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mor-
tos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. XXXVII).
DECADÊNCIA DA SINHÁ-DONA
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Pena que tão cedo se desfolhassem essas entrefechadas rosas. Que tão cedo mur-
chasse sua estranha beleza. Que seu encanto só durasse mesmo até os quinze
anos. Idade em que já eram sinhás-donas; senhoras casadas. Algumas até mães
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).
ECOS DA AFRICANIDADE
A IMAGEM DA MÃE-PRETA
(...) Negra ou mulata. Peitos de mulheres sãs, rijas, cor das melhores terras
agrícolas da colônia. Mulheres cor de massapê e de terra roxa. Negras e mulatas
que além do leite mais farto apresentavam-se satisfazendo outras condições, das
muitas exigidas pelos higienistas portugueses do tempo de D. João V. Dentes
alvos e inteiros (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 386).
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A PROSTITUIÇÃO DOMÉSTICA
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O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de
escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: or-
dem. (...) O que houve no Brasil (...) foi a degradação das raças atrasadas pelo
domínio da adiantada (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.
397-398, 463).
É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio,
mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanica-
mente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do
regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a deprava-
ção, criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior nú-
mero possível de crias (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 341).
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A CULINÁRIA E A NEGRA
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A Família Patriarcal
do paladar que não se conformou com a simples degustação. Foi mais além,
alongando-se na “poesia óptica”.
E a arte fez-se também no açúcar e por meio do açúcar. Os tabuleiros
ficaram famosos pela delicadeza do rendilhado e pela coreografia lúdica. As
negras especializaram-se no preparo não somente do doce, mas também do
arranjo que o complementaria. Com papel azul ou encarnado enfeitaram-no e re-
cortaram-no em corações, passarinhos, peixes, galinhas. Neles abrolhavam uma arte
com sugestões fálicas, totêmicas e barrocas. Negras, algumas forras, iam vendê-los na
rua, exibindo seus dotes, tanto físicos como culinários. As célebres “Mães Ben-
tas” ilustram as nuances de um cenário dual em glutonaria e plasticidade.
Com a desafricanização da mesa nas primeiras décadas do século XIX, o
brasileiro perdeu o hábito de vegetais e verduras, tão do agrado do negro. Tor-
nou-se abstêmio de vegetais. O pão surgiu como a grande novidade. Antes pre-
dominaram o beiju de tapioca ao almoço e, ao jantar, a farofa. Ainda: o pirão
escaldado ou a massa de farinha de mandioca espalhada no caldo do peixe ou
de carne. O feijão representou o prato do cotidiano – feijoada com carne salga-
da, cabeça de porco, lingüiça, muito tempero africano. Após a Independência, a
cozinha brasileira sofreu a influência direta da francesa. Na verdade, nesse
período, o Brasil aderiu a galicismos de toda ordem.
O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela primeira vez ao Brasil por um
navio americano, o Madagascar. A sua chegada avultou em sucesso, pois os “no-
vos” brasileiros eram grandes bebedores de água em virtude do calor tropical,
do excesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do açúcar – a pimenta, já
antiga conhecida dos índios, reforçaram-na os negros e os portugueses, esses
com a pimenta do Reino. Com a introdução do gelo, as frutas brasileiras que já
eram utilizadas como doces e geléias, tornaram-se sorvetes e gelados. O sorvete
trouxe uma importante revolução: desbancou a sobremesa patriarcal normal-
mente quente ou ao natural. Também funcionou como um traço de dissolução
dos serões em volta dos chás fumegantes com sequilhos, bolo de goma, queijo
do sertão e pão torrado na hora. O sorvete provocou mudanças de hábitos me-
recedoras de realce: nos idos de 1840, as moças elegantes do Rio de Janeiro iam
à Capela Imperial não somente ouvir música como deliciar-se com sorvete – o
chamado doce gelado.
O processo de desafricanização, todavia, não se operou de forma radical.
Veio aos poucos, mas não subtraiu o paladar silvestre do continente negro; na
verdade, expandiu-o, atenuado por novas combinações, embora algumas de-
notem a originalidade na feitura – o caso do caruru e do vatapá. Outras sofre-
ram alterações. A maioria perdurou afinada numa simbiose eletiva: indígena,
portuguesa, africana – o triângulo brasileiro da antropologia da alimentação.
Diante dos purismos da europeização, a alimentação original dos africa-
nos sofreu algumas emendas para que o resultado ocorresse sem conflitos. De
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Fátima Quintas
A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à
vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada
dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. (FREYRE, Gilberto.
Casa-grande & senzala,1966, p. 343).
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Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a
rapazes brancos já podres da sífilis das cidades (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. 341).
É claro que, sifilizadas – muitas vezes ainda impúberes – pelos brancos seus
senhores, as escravas tornaram-se, por sua vez, depois de mulheres feitas, gran-
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Fátima Quintas
des transmissoras de doenças venéreas entre brancos e pretos. O que explica ter
se alagado de gonorréia e de sífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 342).
A RELIGIÃO DO SEXO
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A Família Patriarcal
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A Família Patriarcal
O sacerdote primeiro dizia missa; depois dirigiam-se todos para o engenho, os bran-
cos debaixo de chapéus de sol, lentos, solenes, senhoras gordas, de mantilha. Os ne-
gros contentes, já pensando em seus batuques à noite. Os muleques dando vivas e
soltando foguetes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 471).
Quando se perdia dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse
conta do objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro,
ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino
Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geléia de
araçá ou goiaba; brincar com os muleques. (...) Com Santo Antônio chega a
haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se
peteca em festas de igreja dos tempos coloniais (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. XXXVII, 246-247).
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Fátima Quintas
(...) O Catolicismo foi o elemento mais vigoroso nesse conjunto, mas ele mesmo
é, sob certos aspectos, aqui no Brasil, “superstição católica” (MARTINS, Wil-
son. Livro definitivo na vida intelectual do Brasil, 1985, p. 273).
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A Família Patriarcal
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GOMES, Geraldo. Engenho & arquitetura. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 1997.
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Fátima Quintas
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CASA-GRANDE,
CAPELA E SENZALA
“Quando o proprietário rico, e também lavrador, ainda vive nas suas terras, em
que a falha dos campos domina e enforma o seu caráter, a casa de lavrador, como
um prolongamento direto da vida do agro, amplia-se e as instalações tomam as
proporções que as necessidades exigem. E, embora o tamanho aumente, o esque-
ma mantém-se igual ao da casa do remediado, e os objetos, animais e pessoas
albergam-se, na mesma, lado a lado”.
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Casa-Grande, Capela e Senzala
Apesar disso, não transparece a menor ostentação, antes, pelo contrário, tudo se
mede pelos cânones de vida sóbria e digna, que se prolongam em gestos, hábitos
e objetos marcadamente rústicos.”
(In: Arquitectura Popular em Portugal, SNA, 19611)
1
VVAA, Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Edição do Sindicato Nacional dos Arquitetos,
2 v. 1961. p. 40 e seguintes.
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José Luiz Mota Menezes
113
Casa-Grande, Capela e Senzala
Nem todos os senhores de terras doadas para plantar e moer eram dotados de
meios para construir um engenho. Este era de alto custo e exigia mão-de-obra
especial, além da aquisição de metais para os tachos. Assim existiam proprieda-
des somente de plantio outras que moíam uma vez que dotadas de moita e
maquinaria necessária a todas as etapas da produção.
2
Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Edição do Sindicato Nacional dos Arquitetos, 2 v. 1961.
3
“cabe, pois, referir aqui um aspecto não mencionado e que é fundamental para a compreensão
do fato: como ressalta da análise mais circunstanciada da planta, semelhante às outras casas, as
varandas são principalmente corredores que ligam a entrada da casa com qualquer quarto ou sala
e serão tanto mais compridas quanto mais dependências existirem alinhadas e convenha servir.
Apoiadas em pilares isolados; retraídas ou projetadas suspensas, de traves lançadas desde o
interior e de lajes de pedra engastada na parede; abertas ou entaipadas, recolheram-se exemplos
interessantes que nos mostram a relativa semelhança de soluções dispersas, numa faixa que se
pode referenciar por locais ou povoados como Nespereira, ao Sul do Douro, em terras de Cinfães;
Celorico de Basto. Ao longo da estrada que daqui segue para Vieira do Minho, Monção e Merufe.”.
Arquitectura Popular em Portugal, 1961, op. cit. p. 84.
4
Vários exemplos existem na referida publicação do Sindicato e algumas das casas estão
reproduzidas no presente texto.
114
José Luiz Mota Menezes
5
No quadro Casa de Plantação com Torre (número 15), reproduzida no Livro sobre Frans Post de
Joaquim de Sousa-Leão (Livraria Kosmo, Rio de Janeiro, 1973), a casa de taipa assenta em pilares
de tijolos. Na pintura Engenho (número 17), temos um exemplar erudito com dois torreões
ladeando um terraço em arcadas sobre um andar térreo muito fechado, talvez uma arrecadação.
Outros exemplares são apresentados pelo autor, mas não fogem muito a tais modelos.
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Casa-Grande, Capela e Senzala
O SÉCULO XIX
AS CAPELAS RURAIS
Em Portugal capelas rurais estão presentes junto às casas dos lavradores desde o
mais recuado tempo, segundo a data da fundação de cada propriedade, as quais
estão sempre integradas. Assim, suas características arquitetônicas acompanha-
ram segundo aquele tempo o gosto dominante no lugar, sejam elas eruditas ou
edificações simples.
6
As Casas-Grandes da Bahia ostentam maior luxo que as de Pernambuco. No entanto nesta
Capitania se pode assinalar a Casa-Grande e capela do Engenho Poço Comprido e a capela do
Engenho Bonito como exemplares de excelente qualidade artística.
7
Grande número de Boas Casas-Grandes de Pernambuco é exemplar do século XIX. Algumas são
frutos de remodelações nessa centúria ou construções novas que substituíram antigas. Podemos
citar entre elas: a Casa-Grande do Engenho Morenos, em Jaboatão; do Engenho Monjope, em
Igaraçu; do Engenho Gaipió, em Ipojuca; do Engenho Preferência, em Escada; do Novo da
Conceição, no Cabo; do Engenho Mattas, no Cabo; do Engenho, depois usina Pumaty, em Joa-
quim Nabuco; do Engenho da Madalena, no Recife e do Engenho São João, adquirida, pois em
estrutura metálica, importada da Bélgica.
116
José Luiz Mota Menezes
8
Não se pode esquecer a classificação de Kubler em Estilo Chão (Plan Style), grande parte da
produção arquitetônica portuguesa dos séculos XVI e seguinte.
9
Os estudos no Brasil tendem a generalizações e deste modo ao esquecimento de tais situações
singulares e decorrentes de particularidades que se tornam importantes.
117
Casa-Grande, Capela e Senzala
pal ou nos demais quando tal ocorre. Nos retábulos a imaginária acolhe a
mesma linguagem e dá a nota divina ao culto seguindo a devoção da gente.
Cada um daqueles estilos artísticos antes citados tem linguagem pró-
pria e características que direcionaram o gosto do construtor da casa-grande
e essencialmente o da capela. Em termos de características artísticas, anda-
mos, da sobriedade de uma linguagem mais atenta às formas da arquitetura,
para um maior domínio da escultura decorativa. De um modo Apolíneo, no
ver de Gilberto Freyre, ao de Dionísio.
As capelas mais antigas, pertencentes a engenhos dos dois primeiros
séculos, não chegaram ao nosso tempo todas elas10. As que temos hoje são
produtos que sofreram intervenções salvo raros exemplares. No entanto,
graças às pinturas do paisagista Frans Post, artista já referido, se conhecem
exemplares, a maioria não identificados, de capelas rurais. São elas situadas
próximas das casas-grandes e ora são de uma arquitetura erudita, outras
vezes construídas em taipa de mão e muito simples. Os dois tipos têm plano
reduzido a uma sala, a nave, que se interliga por um arco cruzeiro à capela-
mor. Dois espaços interligados com uma sacristia anexa ora do lado direito
ou esquerdo. De um modo geral, ausência de sineiras em construção isolada
ou colada ao corpo da capela. Algumas adotam sineiras sobre a fachada late-
ral ou na frontal. Um elemento de interesse em algumas capelas representa-
das é um alpendre à frente da contrafação principal. Esse alpendre, às vezes
chamado copiar, é um espaço aberto e bem afim com a galilé da igreja cristã.
No caso das capelas construídas à luz dos Tratados de Arquitetura a compo-
sição é cuidada, e a se crer tenham existido eram exemplares de grande bele-
za11.
A decoração interior dessas capelas teria retábulos de boa feitura. A
tomar como referência a descrição do Reverendo Joan Baers de Olinda, elas
10
A capela do Engenho Velho, na Bahia, única peça que resta de uma casa-grande construída no
século XVII, seguiu o modelo das capelas de corpo com planta-baixa ao quadrado e elevação de
mesma altura que o lado dessa figura geométrica, tendo uma cúpula, em meia esfera, assente
sobre pendentes esféricos. Solução de arquitetura muito semelhante à da capela-mor da igreja
dos franciscanos do convento do Recife (1608), onde as fontes dessa composição são as capelas do
litoral da Estremadura em Portugal. A capela do Engenho Velho também recebeu, qual a do
Recife, revestimento azulejar. Uma capela também de grande interesse é a da casa dos Garcia
D’Ávila em Tatuapera, na Bahia. Esta tem planta hexagonal e cúpula em barrete de clérigo.
11
As pinturas de Frans Post não se realizaram todas no Brasil. Somente um pequeno número ele
pintou no Brasil. A maioria realizou a partir de um possível caderno de modelos e as situou em
paisagens fictícias, porém tiradas de desenhos ao natural e montadas aleatoriamente. Assim tais
construções, quer sejam casas-grandes ou capelas, são representações ou não de edificações reais.
Acreditamos que o sejam, mas a dúvida ainda persiste à luz de uma documentação onde o
exemplar não mais existe. Uma capela com copiar que ainda existe é a capela de Nossa Senhora do
Socorro, em Santa Rita, Paraíba.
118
José Luiz Mota Menezes
12
Senhores de engenhos e comerciantes bem-sucedidos eram irmãos da Ordem III de São
Francisco do Recife nesse momento vivido por Pernambuco e o Recife.
119
Casa-Grande, Capela e Senzala
MOBILIÁRIO E IMAGINÁRIA
13
Com o surgimento no século XIX dos engenhos centrais, depois das usinas, fontes de maior
capacidade produtiva do açúcar e que refletiam um capitalismo concentrador, onde o poder
restava nas mãos de poucos, ao qual se somou uma produção mecanizada pelo desenvolvimento
das máquinas a vapor, se terá de considerar no sistema então existente, havia a necessidade de
mais cana para moenda. A forma de resolver tal problema foi se adquirir ou arrendar engenhos
à volta. Eles passaram a ser apenas lugares de plantio. Quando tal aconteceu nessas propriedades
rurais, desmontou-se aquele modelo consagrado. As Casas-Grandes deixaram de abrigar os seus
antigos senhores e as capelas serviram para outra gente ou deixaram de ter usuários. A decadên-
cia de tais construções foi inevitável. Por outro lado, com a libertação dos escravos, nem toda a
senzala se manteve com os seus moradores. Na maioria dos casos os velhos engenhos passaram
a ser coisas do passado e dependentes de uma cultura representativa dos tempos decorrentes e
relacionados com os novos senhores rurais, os usineiros. Estes talvez não integrados ao que
eram para aqueles antigos senhores os engenhos. A morte do engenho foi também a de uma
cultura a ele interligada. Passou tudo a ser páginas viradas e esquecidas de álbuns de família.
120
José Luiz Mota Menezes
tem, mas elas nem sempre estão onde deveriam ser alvos de devoção. São peças
de decoração de casas urbanas. A rica variedade dos santos representados e a
notável execução levam as autorias para bons santeiros de Pernambuco ou de
Portugal. Muitas vezes o engenho associou seu nome ao santo de devoção do
proprietário. Assim estão assinalados vários deles em mapas holandeses do sé-
culo XVII da Capitania de Pernambuco e demais desenhadas pelo cartógrafo
J.Vingboons em c.1665.
AS SENZALAS
121
Casa-Grande, Capela e Senzala
difícil seria a proximidade do mar que também poderia ser útil ao transporte
do açúcar. Preferiu-se como forma inicial e imediata a primeira solução. As-
sim as datas de terras doadas ficavam junto aos rios existentes próximos a
Olinda e ao porto dos arrecifes. A teia começou a se organizar lentamente.
Ela era resultado de sistematização cuja base lógica era bem fiel à nova razão,
esta talvez resultante de um mundo mercantil nascente.
CONCLUSÕES
O conjunto fabril, os engenhos numa designação genérica, eram verdadeiros
complexos em termos de números de edificações e, entre elas, as Casas-Grandes
constituíam obras-primas de arquitetura rural sobre as quais um escritor che-
122
José Luiz Mota Menezes
123
RELIGIOSIDADE
FÉ, FESTA & COTIDIANO
NAS TERRAS DO AÇÚCAR
Raul Lody
antropólogo, museólogo e ensaísta
Navegar é preciso
Crer, também é preciso
Raul Lody – paráfrase de Fernando Pessoa
Raul Lody
Crer é re-ligar, juntar, trazer, unir, fazer com que o homem consiga entender por que
nasce, por que morre, por que encontra nos símbolos mais ancestrais e fundamentais
seus sentimentos de pertença, de singularidade, de alteridade.
É necessário justificar a criação do mundo, do
homem. É necessário criar mitos, deuses, santos, orixás,
seres diferenciados das relações físicas, carnais, essenci-
ais, como buscar abrigo, comida, afeto, lúdica, jogos,
regras e hierarquias para sistematizar papéis sociais, lu-
gares de homens, mulheres e crianças.
Trazer o amplo conceito de religião, aqui melhor
situado na compreensão de religiosidades, é trazer prin-
cipalmente a história, a sociedade, a cultura nos seus mais dinâmicos processos de
trocas, de permanências, de transformações, de patrimônios, de acervos experimen-
tados nos cotidianos, no tempo das festas, nas casas, nas ruas, nos templos, nos
santuários, nos terreiros.
Assim, olhar para as manifestações da religiosidade de maneira generosa e não
preconceituosa é um dos papéis da ação turística, dando valor, reconhecendo e res-
peitando a diferença e o direito a essa diferença.
A FÉ A PARTIR DO AÇÚCAR
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Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar
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Raul Lody
14
Santos em madeira e barro são fortes expressões do artesanato tradicional de Pernambuco,
Paraíba e Alagoas, reunindo centenas de homens e mulheres que se dedicam a trabalhar temas
religiosos que afirmam identidades portuguesas, aquelas implantadas quando do longo processo
do plantio da cana-de-açúcar e da fabricação de açúcar. Assim, santos da fé de além-mar são
rememorizados no trabalho familiar, de comunidades que se distinguem com a produção de
imagens de Santo Antônio, São João, São Francisco, São Sebastião, Nossa Senhora do Carmo,
Santa Luzia, Santo Amaro, Sant’Ana, São José, entre outros.
As comunidades de Goiana e de Tracunhaém, em Pernambuco, são reconhecidas pelos santos
feitos de barro, e a de Ibimirim pelos santos feitos de madeira.
Ainda pintores, gravadores, fotógrafos e outros artistas têm na vasta imaginária católica seus
temas preferenciais para interpretar e trazer estéticas que aproximam e justificam o sagrado do
homem.
15
Exemplos magníficos da arquitetura sacra católica são visíveis nas igrejas, nos claustros dos
conventos, nas capelas dos engenhos, nos altares internos de algumas casas patriarcais, aproxi-
mando sempre o santo, a devoção ao caráter e à fé de uma família, de um estilo próprio de crer
construído no processo multicultural da civilização do açúcar.
Altares e retábulos entalhados em madeira de lei, matéria-prima abundante da Mata Atlântica;
recobertos de folhas de ouro. Arcos romanos, colunas salomônicas, todos repletos de volutas,
cachos de uvas, pássaros e outros motivos decorativos confirmando nosso barroco tardio do final
do século XVIII estendendo-se ao XIX. Ainda alguns ambientes em barroco rococó convivendo
com o neoclássico das fachadas, das colunas, dos altares, trazendo novos usos dos estilos dórico,
jônico e coríntio. Azulejos bicromáticos – azul e branco –, expressiva cantaria, pedra trabalhada,
juntos oferecem uma arte devotada a Deus. Igrejas do Recife, Goiana, Igaraçu, Olinda, Pernambuco;
igrejas em João Pessoa, Paraíba; igrejas em Penedo, Alagoas, são testemunhos vivos da opulência
comercial do açúcar no Nordeste brasileiro
129
Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar
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Raul Lody
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Marcadas pela teatralização da fé da Idade Média na Europa, vêem-se nas procissões da Semana
Santa nas capitais da civilização do açúcar, permanências de uma estética que comove multidões
por um conjunto de andores, santos, alfaias em prata, bandeiras, cenas públicas que ainda expres-
sam as interpretações misturadas do barroco nordestino com a fluente fé afrodescendente das
Irmandades de Homens Negros e Pardos, formadas por africanos e crioulos e hoje por seis
herdeiros, mantenedores dessas memórias nascidas no açúcar e preservados na fé popular.
As cenas de devoção nas ruas, os trajetos dos cortejos, unem-se aos cenários das cidades e de
suas populações, sendo exemplos os mais comoventes de fé interpretada pelo homem regional,
pelo nordestino.
19
Os muitos terreiros afrodescendentes são abertos ao público no período das festas, seguindo
calendários de base católica, conforme as datas consagradas aos santos e suas relações de
sincretismo com os orixás. Por exemplo: São Jorge, Ogum, 25 de abril; São João, Xangô, 24 de
junho; Nossa Senhora do Carmo, Oxum, 16 de julho; Nossa Senhora da Conceição, Iemanjá, 8 de
dezembro; Nossa Senhora Sant’Ana, Nana, 26 de julho.
Geralmente as festas são rituais coletivos em que música, dança, comida, indumentárias e
objetos especiais marcam e caracterizam cada celebração, preservando estética sagrada de pro-
funda interação com o barroco.
As muitas festas da Igreja agregam formas ritualizadas em torno dos espaços sagrados, por
meio de comida e música e principalmente cortejos processionais na terra, no mar e nos rios.
Assim, unem-se os patrimônios arquitetônicos de capelas, santuários, igrejas e demais monu-
mentos cristãos às manifestações populares por meio de teatro de rua, danças, entre outras
expressões de devoção aos santos.
20
As comemorações familiares nos terreiros e nas ruas em louvor aos santos gêmeos em 27 de
setembro são devoções de catolicismo popular e de sincretismo com os Ibejis, gêmeos sacralizados
pelos Iorubá, presentes na mitologia dos terreiros de Xangô em Pernambuco e Alagoas. São
verdadeiros cultos da fertilidade, identificados nas celebrações de oferecimento de doces de
diferentes tipos, indo do nego bom aos bolos mais elaborados. É, sem dúvida, a culminância do
açúcar na fé popular do Nordeste.
21
O mês de dezembro marca o calendário das festas no mar, homenageando Iemanjá, orixá do rio
Ogum (Nigéria) que no Brasil é a dona do mar; também conhecida como rainha do mar, sereia do
mar, Dandalunda, entre outros nomes freqüentes na religiosidade afrodescendente.
Justamente a partir de 8 de dezembro, dia consagrado a Nossa Senhora da Conceição, os
131
Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar
muitos terreiros do Nordeste realizam rituais públicos nas praias, com o oferecimento da panela
– uma panela de barro, comidas, perfumes, fitas e muitas flores lançados ao mar. No litoral do
Recife, destacam-se as praias do Pina, Boa Viagem; em João Pessoa, as praias de Manaíra e Cabo
Branco, e, em Maceió, as praias da Pajuçara, Ponta Verde, como principais locais das festas públicas.
Ainda no mês de dezembro, as festas do Ano Novo, também nas praias, integram-se às
manifestações de religiosidade afrodescendente.
22
Ex-votos – manifestações especialmente visuais e que retratam o milagre, a ação divina na vida do
homem. No Nordeste, especialmente nas terras do açúcar, vê-se ampla produção de objetos ex-
votivos, especialmente entalhados na madeira, de forma e estética fortemente afrodescendente. Luís
Saia, que acompanhou Mário de Andrade nas suas missões de pesquisas na região, destaca o traço
africano, herdeiro da estatuária e das máscaras da África Ocidental presentes nas soluções estéticas de
cabeças e outras partes do corpo humano, exemplos das memórias e das criações do Nordeste. Além
das esculturas de madeira, há outras, de barro e de diferentes materiais, com os chamados riscos de
milagres – pinturas, desenhos – dos quais é excelente exemplo o conjunto de três pinturas sobre tábuas,
retratando as ações divinas de S. Cosme e S. Damião, protegendo a população de Igaraçu; acervo do
museu-pinacoteca do Convento de Santo Antônio, naquela cidade de Pernambuco.
Os ex-votos são formas artísticas da religiosidade nordestina apresentando-se, geralmente,
em conjuntos de centenas de objetos, vistos em igrejas, capelas, santuários de estradas e outros
locais que marcam devoção a diferentes santos, profetas, mitos criados na região, como Padre
Cícero, entre outros.
As técnicas empregadas no entalhe são as mesmas realizadas para a feitura de bonecos do
mamulengo, expressão do teatro de manipulação da região.
23
O amplo e variado conjunto de objetos que fazem a cultura material dos terreiros de Xangô, de
Jurema e de outras expressões da religiosidade afrodescendente e afro-indígena pode ser visto e
comercializado em barracas no interior do Mercado São José, no Recife – ervas, instrumentos musicais
de percussão, destacando-se o adjá, sineta de metal de uso litúrgico nos terreiros, fios-de-contas (colares)
e demais peças da joalheria ritual, além de amplo conjunto de modelagem em gesso policromado.
É sem dúvida um importante acervo de arte de base etnocultural de matriz africana, além das
presenças indígena e católica, todas reveladoras de estilos e manifestações próprias das terras do açúcar.
132
AÇÚCAR NO TACHO
135
Açúcar no Tacho
grinação, de uma oca a outra, bebendo tudo que lhes fosse servido. Durante
a noite inteira cantavam e dançavam entre fogueiras. Até a exaustão. “Be-
bem sem comer e comem sem beber”, escreveu Câmara Cascudo (História
da alimentação no Brasil, 1983). Depois passou a concorrer com as poucas
bebidas que o português trouxe com ele, para o Brasil colônia – um fermen-
tado (vinho), um destilado (bagaceira) e sangria (mistura de vinho, água,
açúcar e rodelas de limão). Para os nossos índios, essas bebidas, vindas de
tão longe, eram “cauim-tatá” (bebidas de fogo).
Negros da África Oriental e Mediterrânea conheciam bem o açúcar –
produzido com canas plantadas nessa região por árabes, que as trouxeram
da Índia. Mas não os escravos que por aqui chegaram, todos vindos da Áfri-
ca Ocidental (Angola, Guiné, Gana). Também eles usavam mel na prepara-
ção de suas receitas. A cana só se popularizou, ali, a partir do século XVI –
quando já havia começado, no Brasil, o ciclo da escravatura. Foram aqueles
árabes, bom lembrar, que desde muito antes difundiram o mel pela Europa,
ensinando como usá-lo na preparação de bolos e doces. Em Portugal as col-
méias tão importantes eram que, por segurança, acabavam cultivadas sem-
pre perto das casas. Havia “meleiros” – que retiravam o favo das colméias; e
“apicultores” – que viviam de vender o mel. No reinado de D. João III, tanto
prestígio tinham que até impostos podiam ser pagos com ele.
Os mosteiros se tornaram, por essa época, grandes produtores desse
mel – usado então, especialmente, para preparar sobremesas e fabricar ve-
las. Havia neles fartura de tudo, em razão das heranças deixadas por famílias
ricas ou por pecadores interessados na redenção de suas almas. Como D.
Maria Francisca Isabel, filha do rei D. Pedro II – o português, claro. Que o
Pedro II brasileiro, filho de D. Pedro I (que em Portugal era Pedro IV), não
foi nunca rei na terra em que morreria velho e triste. Conta-se que essa
princesa chegou a pagar a fortuna de 1.200.000 réis por 12.000 missas a serem
celebradas após sua morte. Dada tanta opulência, ou pela origem nobre de
freiras educadas no requinte da corte, nesses mosteiros se faziam banquetes
que em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas. Foi assim,
especialmente do reinado de Dom Afonso IV, “O Bravo” (início do século
XIV), até o fim da Inquisição. Em decreto de 19 de dezembro de 1834, ainda
no reinado de Dom Miguel I, “O Absoluto”, o ministro Joaquim Augusto
Aguiar aboliu as ordens religiosas e confiscou seus patrimônios. Além de ter
ratificado a expulsão dos jesuítas, de 3 de setembro de 1759, e a extinção da
Ordem, em 21 de julho de 1773; passando a ser por isso conhecido como “o
Mata-Frades”.
A nós chegaram receitas de bolos e doces que, em Portugal, continua-
vam sendo feitas com mel de abelha. Como o bolo de mel e o folhado com
mel. Ou como o alfenim, pelo povo mais conhecido como alfeninho – do
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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
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Açúcar no Tacho
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Açúcar no Tacho
depois colocado em moldes de madeira até que esfriem; após o que, tiradas
das formas, são embrulhadas em papel simples ou palha de bananeira.
Nessas senzalas nasceu também nossa cachaça. A espuma da primeira
fervura do caldo da cana, por não ter à época outra serventia, era colocada
em cochos, ao relento, para alimentação dos animais. Esse mosto, por conta
do clima quente, fermentava com facilidade. E pouco a pouco, meio por
acaso, começaram os escravos a apreciar suas qualidades. Converteu-se em
bebida, para eles estranha, a que chamavam “água ardente”. O Reino tentou
proibir, primeiro, o consumo; depois, sua própria fabricação. Que a concor-
rência diminuía o uso da “bagaceira” (e o volume dos tributos daí decorren-
tes). Em vão. Nessa briga tendo os nativistas apoio, inclusive, de comercian-
tes que usavam cachaça (e também fumo) como moeda na compra e venda
de escravos. Acabou elevada à condição de símbolo de resistência à domina-
ção portuguesa. Bebida de patriotas. Na Revolução Pernambucana, como
em Canudos, brindar com vinhos (especialmente portugueses) ou outra be-
bida importada significava alinhar-se aos colonizadores.
Uma parte importante dessa doçaria está intacta, ainda hoje, fiel a suas
raízes portuguesas. Continuamos fazendo o mesmo pão-de-ló à moda do
Convento dos Amarantes. Bolo-de-bacia, com receita anotada no mais anti-
go livro de culinária de Portugal (A arte de cozinha, 1680), de Domingos
Rodrigues – cozinheiro de D. Pedro II (o de Portugal, já vimos). Pena que
por aqui não tenham chegado toucinho-do-céu, pastel de Santa Clara, cre-
me-da-abadessa, barriga-de-freira, mimos-de-freira, sonhos-de-freira, nuvens,
morcelas de Arouca e bolinhos de Amor, Ciúmes, Esquecidos, Paciência, Raiva
e Ternura. Bolo-de-noiva é adaptação do “panis farreus” romano – compar-
tilhado, pelos casais, como símbolo da vida em comum que se iniciava com
a “confarreatio”. No Brasil, esses bolos de casamento têm preparos diferen-
ciados. Os do Sul usam massa branca e recheios variados. Em nada lembran-
do aqueles de Pernambuco, feitos com massa escura à base de ameixas, pas-
sas, vinho e frutas cristalizadas – tradição britânica que chegou a bem pou-
cos lugares do Brasil. Tudo coberto com pasta de amêndoa e, depois, tam-
bém com glacê branco. Sendo, por fim, decorado com flores em relevo, fei-
tas de goma e açúcar – um hábito que nos veio da Ilha da Madeira. Esse bolo
também está presente em outras festas importantes – aniversário, batizado,
primeira comunhão, noivado e Natal.
Em nosso ambiente foram também nascendo variações desses doces e
bolos a partir de ingredientes novos – amendoim, castanha de caju, coco,
frutas tropicais, mandioca, milho –, adicionados às velhas receitas de Portu-
gal, até então feitas com amêndoas, canela, cravo, gengibre, noz-moscada,
pinhões. Usamos também claras e gemas dos ovos de galinha. Nossos índios
não conheciam esse animal, trazido por Cabral quando por aqui passou a
140
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
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Açúcar no Tacho
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A MEMÓRIA JUDAICA NO MUNDO DO
AÇÚCAR EM PERNAMBUCO
Tânia Kaufman
historiadora e ensaísta
148
Tânia Kaufman
149
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco
PASSAGEM
Novo destino
Para contar esta história, é preciso iniciar por um breve olhar sobre a matriz
dos acontecimentos que traçaram o perfil dos primeiros atos para efetivar a
ocupação das terras recém descobertas. Só então poderemos entender a he-
rança judaica subjacente ao patrimônio histórico e cultural brasileiro com
sua base na economia açucareira. Houve um elo de continuidade no propó-
sito de engajamento dos judeus em todos os ciclos econômicos colonizado-
res. Todos tiveram os mesmos fatores atrativos: as “passagens”, as diásporas,
as migrações compulsórias.
Os planos de Portugal para o povoamento e a expansão geográfica no
Novo Mundo, em muito favoreceram a participação judaica nos desloca-
mentos para o Brasil. Primeiro, foi o arrendamento das novas terras a um
consórcio de mercadores cristãos-novos já em 1502. Afirma-se que muitos
desses mercadores, por serem de origem judaica, viam os projetos coloniza-
dores de Portugal como possibilidades de negócios e como lugar de refúgio
para a população ameaçada diante das pressões inquisitoriais.
Depois, em 1504, a política de doação de terras, costeiras e insulares,
atraiu Fernão de Noronha, rico cristão-novo, radicado em Portugal. Datam
dessa época os primeiros núcleos populacionais de europeus, para não dizer,
de cristãos-novos, estabelecidos na colônia como resultado dos acordos dos
consórcios. Segundo Wiznitzer24 existem documentos que confirmam ter sido
24
WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. Tradução de Olívia Krähenbühl. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, Editora da Universidade de São Paulo, 1966.
150
Tânia Kaufman
PRIMEIROS MORADORES
E COLONOS CRISTÃOS-NOVOS NO BRASIL
Francisco Antônio Dória26, analisando a estrutura social da oligarquia agrária no
Brasil, lembra que, em 1530, a população portuguesa era estimada em 1.200.000
indivíduos, período em que se inicia a exploração e colonização sistemática do
Brasil. Destes, 20% eram judeus ou cristãos-novos, alguns procedentes de Castela
e da Andaluzia, expulsos em 1492 pelos reis católicos, mas os demais eram nasci-
dos ou residentes na região lusitana da Península Ibérica.
Considerando esse percentual, é possível afirmar que foi bastante signifi-
cativo o contingente que se deslocou para o Brasil em busca de “passaporte”
para a vida. O principal fator de atração e integração na vida colonial do Brasil
português e do Brasil holandês foram, sem dúvida, as atividades ligadas à cultu-
ra açucareira, predominante na época como principal demanda de negócios do
mercado europeu.
Como se sabe, entre os cinco primeiros engenhos da Capitania erguidos
com a chegada de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco em
1535, um deles teve como sócios importantes figuras do cripto-judaísmo do
Brasil quinhentista: Diogo Fernandes e sua esposa Branca Dias, além de Pedro
Álvares Madeira, o provável técnico de produção de especulada procedência da
Ilha de Madeira, então o maior centro produtor de açúcar no Atlântico.
Estas figuras se encaixariam na discussão apresentada por Arnold
Wiznitzer ao citar Oliveira Lima no comentário sobre os feitores treinados e
os trabalhadores qualificados trazidos por Duarte Coelho, da Madeira e de
S. Tomé para o Brasil – eram “pela maior parte judeus, que constituíam o
25
FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Ed. Hucitec e
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica.
26
DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Editora Revan Ltda., 1994.
151
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco
27
MELLO, J. A. Gonsalves de. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano. Vol. LVIII, Recife, 1993.
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Tânia Kaufman
MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS
Devemos atentar que a história de uma nação, de uma cidade, de uma região
não é registrada apenas pelo patrimônio material. Ela está também no acervo
imaterial, que expressa as relações entre o espaço concreto e os acontecimentos
do passado. Encontramos a história viva dos vestígios daqueles tempos nos rela-
tos de muitas famílias espalhadas em toda a região.
Eles evocam o uso de objetos e de artefatos de culto ou de uso doméstico,
de costumes e de ritos, desvendando a formação do sincretismo a que foram
induzidos os judeus, por séculos de censura e de perseguição. Confrontadas com as
denúncias registradas, é possível perceber como se desenrolaram os seus cotidianos:
...esteve em casa do ditto Balthesar Leitão hum delles foi sabbado dia de trabalho
no qual sabbado sendo dia de trabalho vio que Ines Fernandes cristaã nova molher
do ditto Baltnesar Leitão se vestio de festa com huã saya de tafeta azul e jubão de
olanda lavado e toucado na cabeça lavado e em todo o ditto dia de sabbado sendo de
trabalho guardou e não trabalho, por que nos mais dias da semana a vio estar com huã
saia de pano fiando e no ditto sabbado não tomou roqa nem fez outro serviço algum...
(Denunciações: 106)
28
SERBIM, Aleksandra. Dissertação de mestrado em Antropologia, 2003.
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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco
...a minha família, lá em V., não trabalhava no sábado. Tinha gente que ainda
dizia que éramos comunistas. Tinha um costume na minha família de reunir,
várias vezes por ano os familiares que viviam nos arredores de V. Havia uma
valorização muito grande da família. Minha mãe até contava, que antes, as
reuniões eram na mata, escondidos. Ela também contava que as orações e as
músicas tinham um sotaque diferente. Contavam-se muitas parábolas de Israel.
(I.S.F. mais ou menos 40 anos na data da entrevista).
29
Daniel Breda é mestrando na UFRN e pesquisador do AHJPE.
30
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco
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Tânia Kaufman
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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco
Sá, Felipe Diniz do Porto, James Lopes da Costa [Jacob Tirado], João Luiz
Henriques, Leonardo Ferreira, Simão Soeiro e Simão Vaz.
Além disso, recolhemos das Denunciações... (Recife, 1984) o nome de Nuno
Alvares, citado como senhor de engenho, além de André Pinto, Diogo Roiz
[Rodrigues], Estevão Cordeiro, Estevão Rodrigues, Francisco Mendes, Francis-
co Mendes da Costa, Francisco Pardo, Gaspar Rodrigues, Jacome Lopes, João da
Rosa, João Diaz o Felpudo, Jorge Thomaz Pinto, Manoel de Andrade e Simão
Fernandes, citados os 13 como lavradores de cana.
Extraímos das Denunciações e confissões (Recife, 1984) uma lista de 35 merca-
dores cristãos-novos:
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Tânia Kaufman
PALAVRAS FINAIS
Ao final deste ensaio, retornamos à indagação inicial para apresentar os re-
sultados preliminares de nossa reflexão visando à integração dessas informa-
ções ao projeto maior que destaca a Civilização do Açúcar:
157
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco
BIBLIOGRAFIA
ARRUDA, Fábio. Relação dos engenhos coloniais da capitania de Pernambuco. Levantamento
genealógico e histórico. Alagoas, 2005.
FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo. Ed. Hucitec e
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica
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Editora Revan Ltda., 1994.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997.
KAUFMAN, Tânia Neumann. Passos perdidos, história recuperada: a presença judaica em
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MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro:
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Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. LVIII. Recife.
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RIBEMBOIM, José Alexandre. Senhores de engenho judeus em Pernambuco colonial. 1542-1654. 20
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WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1960.
Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil; Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-
1595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundarpe. Diretoria de Assuntos
Culturais, 1984. (Coleção Pernambucana, 2ª. Fase, 14)
158
A MODA COMO
REPRESENTAÇÃO SOCIAL
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
Bibliografia | 190
Fátima Quintas
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A Moda como Representação Social
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Fátima Quintas
mutativa não permite o mínimo de reflexão. Ela, a moda, chega para assenhoriar-
se dos corpos sociais e raramente não o consegue. Domina por um período, mas
reinventa-se com autoridade inconteste, sem pedir licença a ninguém. A cada
reinvenção, insere aportes adicionais aos modelos antigos, em algum momento
decantados como beleza padrão. São as variâncias que atualizam os estilos e
provocam o desprezo pelas passarelas ultrapassadas para enaltecer o manequim
do presente. A moda, pois, resume-se no agora, não obstante o seu efetivo ro-
deio. Dela se esperam renovações iminentes que incitem as pessoas a confiar na
sua exigüidade. Talvez represente o efêmero desejável. É a nova estação que se
aproxima, recriando modelos e estilos; desprezando o que antes parecia aceitá-
vel; ditando outras normas estilísticas sem dó nem piedade. O mundo da moda
glorifica a traição com o enlevo de quem espera a primavera, o verão, o inverno,
o outono. Por entre estações, a sociedade capitalista envaidece-se de ter os seus
figurinos em dia. Um mecanismo de parciais rupturas claras.
O trajo em alta retrata a indumentária sincrônica dominante. Equivale,
assim, ao fato social total enunciado pelo sociólogo Marcel Mauss. E o que é um
fato social total? Um fenômeno que congrega um leque de representações capa-
zes de traduzir os elementos fundamentais da sociedade. Imbuído de seus ma-
tizes, o observador estará apto a compreender o intricado da rede sociológica.
Nele, fato social total, reside uma convergência de atitudes, hábitos e costumes
reveladores da linguagem sociocultural dominante. Quando falo em linguagem,
faço-o com o intuito de atribuir ao social as estruturas classificatórias –
taxionômicas – de uma possível realidade. Possível por demonstrar fatos regula-
res, sistemáticos, repetitivos naquele instante em que é alvo de perscrutação.
Importa realçar que a sincronia da moda se associa à sua circularidade, jamais à
perspectiva histórica, rica em episódios altercados e em significações sucessivas.
O sincrônico equivale ao corte temporal, momentâneo, presentificado; o
diacrônico ressalta a retrospecção dos fatos, isto é, a leitura histórica.
A aparência do sujeito social reproduz as variações que orbitam o sistema
comunitário. A sociedade presta muita atenção no vestir-se porque dele depen-
de uma série de tópicos que definem as classes e outras categorias responsáveis
pela tessitura social. Vestir-se de acordo com os parâmetros esperados indica, no
mínimo, um equilíbrio de exterioridades. O indivíduo que se amolda às conjun-
turas reais é um indivíduo que se integra aos costumes editados pela comunida-
de. Sem exageros de adaptação. Igualmente sem exageros de inadaptações. Um
ou outro denuncia versões tanto divergentes quanto convergentes e consolida
nichos de acomodação ou de contestação; logo, faz parte do xadrez social.
A moda possui uma natureza circular e espiralada; prende-se a uma mu-
dança periódica de estilo, como já se falou. Vai e volta; circula, mas no seu giro
não retorna com as mesmas feições. Daí a concepção espiral. Nunca inteiramen-
te igual, porém com uma topologia em aclive ou em declive. E obedece a regras que
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A Moda como Representação Social
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Fátima Quintas
Assim, moda, como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo
e resultante de determinado gosto, idéia, capricho, ou das influências do meio.
Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar, pentear etc. Arte e técnica de
vestuário. Fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste
na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de con-
quistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social (FREYRE,
Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 17).
167
A Moda como Representação Social
entendia que as mulheres mais inclinadas à adoção da moda são as menos jo-
vens para as quais novos estilos podem beneficiar o inexorável envelhecimento.
Julián Marías, outro grande estudioso do tema, afirma que a moda se alicerça na
inovação. Mais ainda: na ruptura. E confirma-se pelo reconhecimento social,
do contrário não seria transmissível. Só é transmissível aquilo que tem apro-
vação do grupo ou de parte dele. Portanto, a sua viabilidade dependeria da
aceitação dos que estão submetidos ou não à adesão das sugestões aponta-
das. E interpela o pensador espanhol no seu notável trabalho acerca da mu-
lher no século XX: O que verdadeiramente interessa ao homem e à mulher?
A reposta aponta na direção da vivência recíproca dos dois sexos, cada um
com uma experiência distinta, com uma perspectiva histórica situada em
modos de vida dessemelhantes. Histórias pautadas, as de machos e fêmeas,
em culturas milenarmente construídas.
Sabe-se que com o processo da globalização, visões simplificadoras vêm
ganhando terreno através de elementos uniformizantes ou unissexualizantes.
Entretanto, repetindo Julián Marías, a força psicológica de cada sexo tende a
firmar-se por meio de diferenciações que balizam a moda, bipolarizando apa-
rências femininas e masculinas. O que quero dizer com isso: ainda que o merca-
do aproxime a maneira de vestir de ambos os sexos, haverá um sentimento de
identidade sexual e existencial que preponderará sobre a tentativa de padroni-
zação. Modos bissexuais perdurarão com a finalidade de aumentar os encantos
entre os sexos.
Do que se pode inferir que a moda contrapõe os sexos; acentua as diferen-
ças; feminiliza a mulher e masculiniza o homem. Constrói “esculturas” de refe-
rência. É mister que para cada sexo haja atrativos específicos que sirvam de
traços distintivos. Em suma, uma das funções da moda é embelezar para con-
quistar não somente degraus sociais, mas igualmente a ambos os sexos mediante
saudáveis descobertas. Cores, tecidos, talhes deságuam em estilos que se ajus-
tam a apetites diversificados. Homem e mulher expõem modelos de roupa que
louvam feminilidade e virilidade. De um lado, os caracteres da fêmea; do outro,
os caracteres do macho. Ambos guarnecidos do invólucro da beleza.
O trajo permeia a vida privada e a pública. Veste-se em casa de maneira
informal e, na rua, de maneira formal. Porém, o paramentar é uma presença
incontestável no ser humano habitante das sociedades ditas civilizadas. Quanto
mais se cobre o corpo, maior o prestígio social. O homem nu grava o estigma da
barbárie. Os escravos andavam despidos e sequer tinham o direito de adornar-
se com dignidade. Vivenciavam a humilhação dos desprovidos de vestes. A
civilização prescreve o vestuário como manto diferenciador. As monarquias tra-
dicionais, por exemplo, excediam-se em roupas, longas roupas, majestáticas,
ostensivas, únicas na sua representação de reis e rainhas, de príncipes e prince-
sas, de cortesãos e áulicos.
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A Moda como Representação Social
A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da
França, sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a
um Brasil, diferente no clima, da França. Uma moda imposta à mulher brasilei-
ra e à qual essa, quando de gentes mais altas, das cidades principais, teve de adaptar-
se, desabrasileirando-se e, até, torturando-se, sofrendo no corpo, martirizando-se
(FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 106).
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Fátima Quintas
Para vestidos de passeio, à escolha, cores como “cinzento rato, toupeira, castanho não
muito escuro... resedá, musgo, beige carregado, tijolo, violeta”; para “toilettes de
visita e cerimônia: campagne heliotrópio, cinzento pérola, beige claro, groselha, azul
Sèvres, verde esmeralda, mordoré, rubi escuro, violeta de Parma”; e para “toilettes
de baile, soirée e teatro: rosa desde o tom mais suave até ao mais carregado, azul
celeste, verde água, branco, amarelo canário, marfim, creme, rubi, gris, verde muito
claro, gema de ovo, palha e pêssego” (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas
de mulher, 2002, p. 141).
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A Moda como Representação Social
ram-se a essa rigidez. Os homens também, esses com maiores liberdades por-
que, em se tratando da perda da esposa, casavam-se com uma certa rapidez.
Guardavam, assim, um luto ameno. As viúvas, ah, as viúvas!, isolavam-se do
mundo real, a entristecer-se e a lamentar o malfadado destino do cônjuge. Às
vezes o uso do preto estendia-se aos escravos domésticos, considerados mem-
bros sociológicos de uma família brasileiramente patriarcal.
As modistas em voga esmeravam-se em confeccionar vestidos elegantes
de luto. A homenagem do trajo fúnebre patenteou uma aguda demonstração
nos tempos dos nossos antepassados por motivos sociológicos de coesão famili-
ar e de tributo a entes queridos que partiam tão cedo. Para tanto, uma moda
especialíssima: a dos vestidos requintadamente de luto. E depois, requintada-
mente de lutos aliviados, com relevos brancos ou palmas “bordadas a prata”.
Um luxo que se incorporou à morte. Aliás, sobretudo na morte, porque o
adeus era eterno. Não só: cumpre salientar que a sociedade patriarcal fez de
seus mortos ícones inabaláveis, a adentrarem a vida cotidiana com mais vigor
que os próprios vivos. Os mortos comandaram a cena de outrora porque o
prestígio de muitos ultrapassava o “crédito social” dos que ficavam. Render-
lhes láureas era uma forma de conservar um status em perigo. E nada melhor
para manter hierarquias que veementes saudações ao mundo celestial. De lá, da
esfera inabitada por matéria corpórea, manavam as ordens do cotidiano e, con-
seqüentemente, as ordens da estabilidade hegemônica.
A mulher portuguesa “mesclou” duas vidas. Dois comportamentos. Duas
atitudes. A de casa, submersa na indolência; a da rua, resplendendo formosura.
Maria Graham não se eximiu de revelar o seu espanto em não reconhecer as
mulheres nos espetáculos públicos, tamanha a diferença entre o estar em casa e
o estar na rua. Adornavam-se não para os maridos, mas para outras mulheres por-
que, na verdade, não ousavam fazê-lo para homens estranhos, o que denotava
a ansiedade de demonstrar em público elevados níveis de afortunamento.
Na roupa, projetava-se a situação econômica, que se queria próspera no
ranking do latifúndio monocultor. Enfeitadas da porta da rua para fora: nos
teatros, nas festas religiosas, nas praças públicas e, ordinariamente, nos cos-
tumeiros rituais da Igreja.
Somente os olhos não podiam mentir. Denunciavam a cor da tristeza.
O íntimo. O interior. O que ninguém vê. Enganar as exterioridades, muito
fácil. Cobrir-se de preto ou de rosedá, conforme a ocasião, mais fácil ainda.
Embrulhar-se em mantilhas, em véus, em lenços, como representação de
humildade e recato, fazia parte do espetáculo. Isolar-se na nobreza dos para-
mentos, um artifício muito utilizado. O que não se podia esconder, aí sim,
não se podia esconder mesmo, era o olhar melancólico. Este presidiu a vida
da mulher portuguesa. Em todas as idades, em todos os espaços, em todos os
tempos patriarcais.
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(...) A julgar por Mrs. Kindersley, que não era nenhuma parisiense, nossas avós
trajavam-se que nem macacas: saia de chita, camisa de flores bordadas, corpete
de veludo, faixa. Por cima desse horror de indumentária, muito ouro, muitos
colares, braceletes, pentes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966,
p. 370).
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(...) O homem, no Brasil rural patriarcal, foi a mulher a cavalo. Quase o mes-
mo ser franzino que a mulher, debilitado quase tanto quanto ela pela inércia e
pela vida lânguida, porém em situação privilegiada de dominar e de mandar alto
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).
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Em O Carapuceiro (Recife, 1843), dizia o Padre Lopes Gama que (...) “As
nossas sinhasinhas e yayás já não querem ser tratadas senão por demoiselles,
mademoiselles e madames. Nos trajes, nos usos, nas modas, nas manei-
ras, só se approva o que é francez; de sorte que não temos uma usança, uma
prática, uma coisa por onde se possa dizer: isto é próprio do Brasil” (FREYRE,
Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 102).
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é muito comum o hábito de usar lenços nos cabelos, a evocar chapéus proteto-
res, expressão de pudor e de recato, principalmente entre camponesas que se
retraem à medíocre situação de marginalidade. Ademais, há o estereótipo nega-
tivo do chamado cabelo ruim, que agregou durante muito tempo um enxame de
preconceitos. O pixaim não se enquadrava na escala do belo e deveria ser escon-
dido ou alisado para alçar os parâmetros estéticos perseguidos pela sociedade
aristocrática ou burguesa. Quem tivesse o seu cabelo “brigado com Deus” –
expressão típica de desdém –, que tratasse de reabilitá-lo; do contrário, estaria
expondo-se ao ridículo ou, pelo menos, infringindo os moldes já legitimados.
Hodiernamente, os conceitos foram-se modificando com a explosão da
ideologia negra. As nominações pejorativas persistem, ainda que mitigadas pe-
las correntes defensoras do naturalismo e da beleza espontânea. Registra-se na
cultura brasileira um enaltecimento dos valores africanos, etnicamente negróides.
Parece que no cabelo ou, pelo menos, na cabeça, leia-se no alto, sedimenta-
se a graduação do poder. Basta recordar as Monarquias com os seus símbolos
bem patentes: coroa, cetro, bastão. Mas coroa em primeiro lugar. Os toques
elitizantes começam pela cabeça, como prêmio ou galardão de recompensa. Gló-
ria, honra, distinção; cimo, cume, topo. A exuberância de uma bela cabeleira, ou
o excesso de demonstração de vestuário indicava categorias nítidas de classe.
Exibicionismo ou retraimento.
A própria Igreja Católica recomendou, durante muito tempo, o uso do
véu para expressar humildade no louvor a Deus. De cabeça coberta, as fiéis
solidarizavam-se numa atitude de respeito ao divino. Um sinal de pudor, como
se a cabeça coberta explicitasse o reconhecimento público da reverência. O véu
teve até pouco tempo sua representatividade, e ninguém entrava na igreja de
cabeça descoberta. Ninguém, não; diga-se, mulheres; porque dos homens não
se lhes exigia tal costume. Antes, retiravam o chapéu e ainda o retiram ao pene-
trarem em recintos fechados e, sobretudo, sagrados.
Note-se que as freiras escondem o cabelo com mantos exageradamente
largos, padrão opressor, objetivando a ocultação de madeixas porventura pre-
sunçosas e mundanas. Os padres não carecem de tal privação. Tudo leva a crer
que a condição de gênero masculina acarreta, na religião católica, algumas rega-
lias. Estão, todavia, a ocorrer reformulações nos fundamentos da Igreja, miran-
do torná-los mais equânimes. Pela sua natureza humanitária, a religião tende a
destruir preconceitos, o que implica no anulamento dos bolsões discriminatórios
de gênero. Na acepção moderna, o véu caiu de uso e a própria comunhão é
ofertada pela mulher, embora a consagração da hóstia ainda lhe seja vetada.
Resistem algumas prerrogativas hierárquicas que beneficiam o homem, como a
celebração da missa e outras cerimônias análogas. À mulher, falta-lhe ocupar
espaços mais destacados na liturgia da religião cristã. Conquistas aconteceram e
merecem registro no contexto histórico, porém a paridade ainda não se efetivou.
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A MODA NO BRASIL
Os ciclos de vida da moda brasileira têm acompanhado as variações dos centros
internacionais, com bastante veemência no eixo francês, como aludido nos itens
precedentes. O Brasil recebeu influência direta francesa por adotar uma filoso-
fia pedagógica europeizante, voltada com vigor para os valores intelectuais fran-
ceses. E na moda não foi diferente. Se Paris representava o cânone da elegância
da mulher ocidental, não é de admirar o culto às suas Casas de Alta-Costura. O
contrário é que seria de estranhar. Durante os séculos XIX e meados do XX as
repercussões da moda francesa são insofismáveis.
Apesar do clima tropical, as temperaturas quentes não foram suficientes,
nos “mastros” colonial, imperial e republicano – pelo menos até 1960 –, para
gerar um tipo endógeno de vestuário. A abertura dos portos às Nações européi-
as, em 1808, quando da chegada de D. João VI à Terra do pau-brasil, vem forta-
lecer ligações européias, antes menos impregnantes em razão dos ecos mais
direcionados à tradição portuguesa, ou melhor, à Península Ibérica. Assim, o
período colonial se ateve aos modelos lusitanos que não deixavam de ser igual-
mente europeus, porém primordialmente ibéricos. Com o Império, as ingerên-
cias se ampliaram e, no caso da moda, adquiriram a verve parisiense. Ademais,
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A Moda como Representação Social
13 de abril de 1861: “enfeites de cabeça para senhoras de bom gosto”, tanto pretos
como de lindas cores. Eram última moda de Paris. Haviam chegado por vapor
francês. A 25 do mesmo abril, a loja recifense de Burle Júnior anunciava ter
recebido pelo “último vapor de Havre... borzeguins de Meliés todos de bezer-
ro e de cordovão”. Novidade francesa. [...] O escuro em paletós e casacas
para homens caracterizaria também casimiras inglesas, admitindo-se, po-
rém, calças de cores, sem que se voltasse, neste particular, a casacas de cores
dos dias coloniais (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher,
2002, p. 121-122).
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