70011-Texto Do Artigo-93344-1-10-20140115 PDF

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2 INTRODUGAO Roger Bastide Os varios estudos que compdem este novo livro da Editora PERSPECTIVA — Coleg “Estudos” —, seja porque tenham sido apresentados em publicagbes que hé muito se esgotaram, soja ainéa devido ao tipo nfo-comercial de algumas dessas edigBes' permaneceram quase ignorados, a nfo ser para um grupo de estu- diosos ¢ especialistas. Distribuem-se eles entre 1944, A Poesia Afro-Brasileira, © 1953, a 34 série de Estudos Afro-Brasileiros. Assim, poder-se-ia indagar da cportunidade de uma reedig&o e se conclusses @ que cheguei nessa época ja distante conservariam um suficiente valor para ser- vir de ponto de partida a novas pesquisas, uma vez que meu objetivo era entdo essencialmente metodolégico: impunha-se desenvolver a aftologia brasileira, cujo desenvolvimento vinha-se processando em circulos fechados sobre 0s mesmos temas, ligando-a a cempos virgens, propor mudangas de perspectivas, enfim, mar- car 05 caminhos ainda nfo percorridos ou insuficientemente batidos, capazes de evar a descobertas originais. Deixando de lado provisoriamente A foesia Afro-Brasileira, da qual trata- rei no fim desta Introdugo, 0s estudos aqui reunidos marcam de certo modo as varias etapas do itinerério espiritual de um pesquisador err busca da desco- berta do mundo dos candomblés. Mais tarde, depois de retornar a Franga, a fim de possibilitar uma purificagao de meu pensamento, gragas ao duplo distanciamento seogréfico e temporal, imposto por mim entre o mundo dos candamblés e mim proprio, recorri a essas etapas pata escrever dois livros jé traduzidos para o por- tugués: O Candomblé da Bahia, Rito Nag6? e As Religides Africanas no Brasil. + Universidade de Sao Paulo, Faculdade de Filosofia, Cifneias e Letras, Bolotim LIX, Socio- logia n? 1, Roger Bastide, So Paulo, 1946, 122 p.; Boletim CXXU, Sociologia n® 2, Roger Bastide, Estudos Afto-Brasleiros - 28’ sfric, Si0 Pauio, Brasil, 1951, 78 p.; Boletim n? 154, Sociotogia (1) n° 3, Roger Bastide, Estudos Afro-Brasileiros, 3® série, Sd0 Paulo, Brasil, 1953, 104 pp. 7 Bastide, Roger, O Candomblé da Bahia, Rito Nag6, Si0 Paulo, Cia Editora Nacional, 1961. > Bastide, Roger. As Religides Africanas no Brail. Contribuigdo a una Sociologia das Inter- pretagSes de Civilizagdes, Sf0 Paulo, Livraria Pioneiza Editora e Editora da U.SP., 1971, 2 ‘volumes. _ Roger Bastide Porém, se nesses dois livros utilizei os dados que agora apresento em estado bruto, nem por isso deixam de constituir ensaios tericos. Ora, as teorias mudam ¢ os fa- tos permanecem. E sic alguns desses fatos, com maior possibilidade de permane- ‘cerem do que suas interpretagGes, atuais ou futuras, que o leitor encontraré neste volume, isto é, a rocha solida sobre a qual se alicerga a Casa da Ciencia. Esclarego a expresso “Itinerdrio espiritual” que acabo de empregar. Esse itinerdrio preserva talvez uma virtude — enquanto expressio de uma experiéncia vivida — a ser apreciada pelos mogos brasileiros de hoje, esses jovens que certa- mente nfo conheco, mas pelos quais tenho muita afeig#o por serem a promessa os dias gloriosos de amanhf para seu pats. Ales, se mo permitem, dedico estas paginas. Com efeito, por detris dos fatos acumulados, encontrar-se-fo vestfgios de dois momentos de minha ciminhada ou do progresso de meu pensamento: uma crise de conscitneia, seguida por um encantamento que nunca se extinguiu. Comecemos pela crise de conscitncia. Abordava eu entio o mundo do candomblé com uma mentalidade alicergada em trés séculos de cartesianismo. Minha primeira enquéte desenvolveu-se em torno do sincretismo: como podiam identificar os Orixd Ioruba com os Santos do catolicismo? Nao haveria contra- digo? _E como pensar 0 contradit6rio? Sem divida, antes de mim esse sincre- tismo fora longamente estudado por antropélogos, de Nina Rodrigues a Hersko- vits, mas seus estudos nfo me satisfaziam, por se situarem dentro de uma pers- pectiva mecinica (aquela que mais tarde seria denunciada sob a formula de acul- turagio en bottes de foin, de elementos de natureza diversa, considerados em conjunto), e sobretudo dogméticas, os sentidos latentes capazes de explicar ou justificar ‘as identificagSes proclamadas, Convenci-me rapidamente (os sinais dessa crise intelectual podero ser encontrados num dos trabalhos inclufdos neste volume), que os problemas por mim mesmo levantados sobre o sincretismo no existiam na realidade e nfo passavam de falsos problemas, uma vez que eu abordara © candomblé com uma mentalidade etnoctntrica ¢ assim teria de “converter-me” (em outra oportunidade j4 empreguei esse termo) a uma outra mentalidade, caso ‘quisess? compreendé-lo. Pediria que nfo houvesse equivocos quanto ao sentido de “converter”; nfo se trata de aceitar a existencia de um pensamento pré-logico fe de negar a unidade e identidade das estruturas mentais. Certamente todos os homens sfo idénticos, porém o pensamento puro no existe, pois no seu funcio- namento ele sempre se colore segundo as exigtncias das diferentes culturas no interior das quais se desenvolve. Compenetrei-me portanto que deveria, no mo- mento de entrar no Templo, deixar-me penetrar por uma cultura diverse da minha. ‘A pesquisa ciontffica exigia de mim a passagem preliminar pelo ritual da iniciagzo. Até minha morte serei reconhecido a todas as Mies de Santo que me trata- ram como um filho branco, as Joanas de Ogum e as Joanas de lemanja, que com- preenderam minha Ansia por novos alimentos culturais e, com aquele seu carac- teristico dom superior de intuigZ0, pressentiram que meu pensamento cartesiano ‘nfo suportaria as novas substancias como yerdadeiros alimentos (isto é, nto po- Introdugzo oe deriam ser por mim absorvidos como acontece naquelas relagdes puramente cien- tificas que permanecem na superficie das coisas, nfo se metamorfoseando em experiéncias vitais, as tnicas fontes de compreenséo), sem que antes fossem ex- plicados para se tornarem assimilaveis, como 0 fazia a mfe-negra que enrolava, em suas méos fatigadas, a comida destinada aos seus nenés, fazendo bolinhas, depois colocadas afetuosamente na boquinha deles. Para mim, meu conhecimento da Africa conserva todo o sabor dessa ter- nura maternal, aquele odor das mos negras carinhosas, aquela paciéncia infinita na oferta de suas “sabedorias”, Terei me conservado digno delas? De qualquer modo, esse primeiro revés transformou-se numa primeira vit6ria. Com efeito, levou-me a0 método que depois passei a seguir — 0 de repensar 0 candomblé no somente nos seus aspectos afticanos mas também no seu sincre- tismo, partindo do interior e ndo do exterior, capacitando-me a mudar inteira- mente minhas categorias logicas. Aquilo que a principio parecia-me incoerente transformava-se agora em coerente ¢ no trabalho “Contribuiggo ao Estudo do Sincretismo Cat6lico-Fetichista™, tentei apresentar alguns modelos dessas estru- turas coerentes, conforme esse sincretismo se situe no nivel ecol6gico, no nfvel das crengas, no nivel das cerimOnias religiosas ou no nivel das préticas mégicas. Daf entdo e no caminho que para mim se abrira, sempre procurei esses modelos de coeréncia no sincretismo — que nunca ¢ simplesmente uma equivaléncia de termos ou justaposicao mecinica de tragos culturais oriundos de duas civiliza Ges diferentes, mas, a0 contrério, é sempre elaboragio de um “sistema”. Segui essa orientago especialmente apés minha primeira viagem a Africa, a prop6sito dos messianismos e dos milenarismos africanos. A descoberta de sistemas, cer- tamente diversos, mas de todo modo andlogos na Africa e no Brasil, permitem-me inferir da riqueza dessa perspectiva; nos dias de hoje ela deveria ser aplicada a0- “espiritismo de Umbanda”. (© “encantamento” marcou minha segunda etapa. Antes de ir a Bahia, lera tudo’ que se escrevera sobre candomblés, de Nina Rodrigues a Arthur Ramos. Nenhum dos livros apresentava erros graves mas todos eles, apesar de sua exa- tid, ofereceram-me uma idéia dos fatos ¢ situagdes a serem vistas que se mostra- ria inteiramente falsa quando me encontrei nos lugares. Isso porque, se eram verfdicos quanto 20 que afirmavam, silenciavam estranhamente sobre aquilo que logo me pareceu essencial. Escrevi entfo esta frase: “H& no candomblé uma importante filosofia sutil (em outra oportunidade, diria, antes uma metaffsica) ‘que mereceria ser exposta. . .” Essas obras, a0 deixarem de bascar as descrighes fem alicerces metafisicos, fizeram com que os candomblés surgissem como um conjunto de sobrevivéncias desenraizadas, privadas de sua propria seiva, em suma, ‘um emaranhado de supersticSes (mais folclore do que religifo). Gostaria de salien- tar que nessa época nfo tinha tido oportunidade de ler os primeiros livros de Griaule (circunstAncias ligadas 4 Segunda Guerra Mundial impediram a remessa desses livros para o Brasil) que aproximadamente a0 mesmo tempo chegava a * Bastide, Roger. “Contribuigdo 20 Estudo do Sincretismo Cat6licoFetichista”, Boletim LIX, Sociologia nf 1.

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